A catástrofe dos moriscos hispânicos, ou uma memória sem memória

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

 APRIL 14-17-2000

 

O enunciado profético é, por natureza, um enunciado instável, caprichoso, porque nem denuncia o real, nem o anula; antes o filtra. Como referiu A. Berthelot (1987), o enunciado profético condiciona o leitor simultaneamente a desconfiar e a postular sentidos escondidos que extravasam o próprio texto. Isto quer dizer que o texto profético se insere num tipo de universo interpretativo pré-moderno, dominado por uma semiose em que o emissor é sempre entendido como entidade que se situa no coração do mistério, seja na imanência, seja na transcendência.

De qualquer modo, as singularidades do profético acabam sempre por cooperar com uma realidade que o enunciou e com um auditório também real a que se destinou. O pano de fundo desta cooperação situa-se no facto de os textos proféticos resultarem quase sempre de simulações e modos forjados de manipular o futuro, tendo como objectivo idealizar as condições do presente, à luz do desejo de quem os enunciou. É por isso que a produção prófética oscila entre real e imaginário, colocando-se a sua compreensão nessa região mista e ambígua do sempre possível e do quase exacto.

Os cristãos-novos de raíz islâmica de Aragão, os chamados moriscos que apenas depois de 1526 são confrontados com conversões obrigatórias, produzem alguns textos clandestinos de género profético, descobertos há pouco mais de cem anos dentro de paredes de casas rurais da região do Ebro. Esta comunidade, dominada pela catástrofe da sua própria degenerescência cultural, acabaria por ser expulsa em 1609 de Espanha. Estes textos clandestinos que o acaso deu a ler aos intérpretes da actualidade constituirão assim o testamento, ou melhor, o legado último de toda uma civilização que tinha iniciado a sua vida, na Península Ibérica, quase há um milénio antes. A nossa comunicação irá, embora muito sinteticamente, abordar o modo com a identidade destes moriscos surge reflectida em algumas das suas profecias (Ms.774,B.N.P.) de que me ocupei em doutoramento (Universidade de Utreque, Holanda, 1995). 

 

Uma das obsessões que é transversal às profecias moriscas do nosso corpus diz respeito à imensa consciência de perda, nomeadamente em relação à compreensão do próprio Alcorão. Este signo, fatal para uma comunidade que interiormente se quer islâmica, é ainda acrescido por outros, tais como a perda da língua-mãe, a perda do simbolismo místico e literário islâmicos; a substancialização dos comparantes utilizados em processos metafóricos (a olla - panela - como símbolo de crise e a fragu(w)a - brasa -como símbolo de unidade) e ainda a própria perda da consistência familiar e social, sempre explicitada ns textos com mágoa.

O problema linguístico dos moriscos (dominados por uma língua na transição entre o antigo Aragonês e o Castelhano, e povoado ainda por formas substantivas árabes) é apenas um sintoma exterior de muitos outros que, no seu conjunto, se traduzem pela intraductibilidade de toda uma cultura, a que os moriscos acreditam ainda ilusoriamente pertencer. A degenerescência familiar e a quebra de codificação social reflectem, por um lado, a descontinuidade de um antigo modelo de vida numa situação nova e, por outro lado, a pressão e a opressão a que são quotidianamente sujeitos, nessa situação e que é a de obrigatoriamente convertidos e também oprimidos.

Incapazes de traduzir o mundo cultural genealogicamente anterior, e não dispondo sobretudo de uma estrutura profunda (semiótica e também linguística) para a expressar, estes enunciadores moriscos denunciam uma verdadeira identidade sitiada. A situação de autêntica hibridez em que vivem - a todos os níveis – é, de facto, a metáfora de um fim anunciado, de uma catástrofe pressentida. Curiosamente, no reverso do século de ouro ibérico, esta morte lenta de toda uma comunidade hispânica é contemporânea de outras mortes no continente sul americano.

A ligação com o passado, ou seja, com a genealogia islâmica específica - e que assentaria num esquema imaginário Ibérico-magrebino de raíz almóada, segundo Miquel de Epalza - apresenta características do que poderíamos designar por hierofania. Isto significa que, embora exista um reconhecimento e uma nostalgia do passado por parte dos moriscos, por outro lado, estes manifestam uma simultânea impossibilidade de o actualizar de modo centrado na sua memória colectiva. A prova mais evidente desse facto é a própria literatura aljamiada que os moriscos criaram nas suas mourarias, no seio da qual não se vislumbra qualquer parentesco genético entre os grafemas (do alfabeto árabe) e a língua românica que utilizam. Para além disso, o texto morisco está sobrecarregado de descontinuidades semânticas e sintácticas (tipificáveis), repetições, e de uma miscelânea de conteúdos sem norte que, por certo, são originárias de uma pressão (ainda que não completamente consciente) da sua cultura perdida.

É curioso, neste contexto, verificar que a recorrência a lexemas árabes, nas nossas profecias, privilegia os sistemas de nomeação (sobretudo de povos e lugares), mais ao nível de res (objectos) do que de modus (acções), o que demonstra um total desfasamento face ao sistema línguístico-comunicacional em causa. O vernáculo utilizado - que, apesar de tudo, acusa determinadas constantes - ocupa, portanto, uma espécie de meio termo entre o domínio do universo românico (a que os próprios moriscos recusam assimilar-se) e as pressões reminiscentes do Árabe. Este meio termo linguístico e intersemiótico é, porventura, a imagem ao espelho da própria identidade sitiada a que nos referimos, ou seja, situada entre dois destinos impossíveis: o do passado irrecuperável e objecto de nostalgia, por um lado; e, por outro lado, o do presente, cujo denominador comum assenta no carácter definitivamente inassimilável dos moriscos.

A auto-consciência de progressiva decadência cultural (e até de ignorância) é um facto explicitamente enunciado em diversos textos da literatura aljamiado-morisca. No nosso enunciado, esse aspecto do real também surge representado. Um tal deficit de identidade é, no corpus profético que analisámos, quase sempre associado à ausência ou "vazio de ser" de que os moriscos se sentem investidos. São exemplo desse vazio certos elementos simbólicos como os "corações”, descritos numa das profecias, ora vazios, ora removidos, conforme o espírito divino animava ou não o mundo interior dos moriscos; ou ainda, por exemplo, o "ano de seis" e as "72 senhas", associados noutra profecia à catástrofe do esvaziamento dos moriscos face à Divindade. O "vazio do ser" sublinha a própria infidelidade dos homens face à Divindade, o que seria sinónimo de uma primeira morte, a espiritual. Por outras palavras, uma identidade islâmica, no sentido pleno, só seria compatível com uma vivência interior religiosa, também plena. Este aspecto vital da degenerescência dos moriscos surge justificada como tendo a sua origem em antigas negligências face aos deveres religiosos, comparando-se os próprios moriscos, nesta acepção, aos judeus dos tempos exílicos. Neste sentido, constata-se, a nível da organização narrativa, que os registos da violência cristã, do anúncio dos “males que hão-de vir” e até das catástrofes naturais são interpretados como constituindo parte de um castigo divino, de que os moriscos seriam objecto por via da sua negligência anterior. A infidelidade e uma obsessiva culpabilidade tornam-se, deste modo, num dos aspectos identitários mais relevantes dos enunciadores moriscos, o que, por sua vez, justifica o estado de "vazio de ser" referido.

Apesar de os enunciadores moriscos se reverem neste radical vazio identitário, a verdade é que eles denotam uma forte consciência do campo (ou da barricada) que ocupam. A tendência demarcadora dos moriscos face aos cristãos é, pois, na literatura aljamiado-morisca, um marco muito insistente. Por exemplo, aspectos como o da higiene ritual ou da irrepresentabilidade do divino sobressaem nas perífrases com que nomeiam os cristãos (“comedores de porco” e “adoradores de cruzes”), do mesmo modo que, a um nível mais simbólico, os moriscos reivindicam com exclusividade a purificação e a incorruptibilidade como atributos. Revelador, neste âmbito, é o modo como S. Isidoro de Sevilha é instrumentalizado como pseudo-narrador das profecias. Num dos textos, o santo associa-se à unicidade divina islâmica (tawhíd), à natureza não divina de Cristo e ainda à impossível partilha existente entre Deus e o homem, tudo isto constituindo, como se sabe, verdadeiras linhas de fronteira teológica entre o Islão e o Cristianismo.

Apesar das negligências e do castigo divino de que os moriscos se sentem alvo, estes mantêm, contudo, a contraditória certeza de herdarem o que designam por via recta - em contraste com a “depravada” via cristã. Uma das mais reiteradas denúncias moriscas, neste âmbito, incide no trauma histórico dos juramentos ("las juras") traídos, ou seja, a mudança de política cristã que, entre 1492 e 1501, haveria de conduzir, pela primeira vez, a conversões obrigatórias.

Também na análise das descrições, da paisagem, da semiótica do espaço, é possível constatar a consciência de campo dos moriscos. Não só porque mitificam a terra ibérica (chegando a afirmar, numa das profecias, que a Espanha é “um dos planos do paraíso” onde corre mel nos rios...), mas também porque se sentem como sujeitos que se opõem de corpo e alma aos cristãos em nome da posse - mais escatológica do que terrena - do território ibérico. Aliás, os itinerários de conquista, ao longo da narração, actualizam essa matriz de uma já clássica guerra escatológica que, em terras ibéricas, tem a sua origem no séc.VIII. O espaço simbólico, recortado nas nossas profecias, é, deste modo, duplo: por um lado, repõe as grandes rotas de conquista (do passado), por outro lado, reconstrói-as, no presente, sob o signo do desejo de uma restauradora invasão otomana (para a qual chegam a descrever a rota adequada).

Esta fractura ou alteridade islamo-cristã manifesta-se igualmente na construção de personagens, ou melhor, de actantes de cariz simbólico. É nesta medida que, por exemplo, S.Tiago de Compostela, o cometa da Bretanha ou a cavalaria de França, de um lado, se opõem irredutivelmente ao Alhambra, à aura de Córdova ou à cavalaria de Ronda numa das profecias. É deste tipo de oposições, entre outras simbólicas e temáticas da estrutura profunda do texto, que irradiam outras mais superficiais que constroem a própria lógica da narração. Diríamos, a nível estritamente simbólico e bachelariano, que os elementos ‘terra e ar’ (o céu), representados no nosso corpus, apontam para a disputa central das histórias relatadas, isto é, a questão escatológica. Por seu lado, os elementos ‘fogo e sangue’, constantes e hiperbólicos nas descrições de batalhas, sinalizam, quer a irredutibilidade das partes, quer a redenção que nasce do perpétuo confronto.

Faz igualmente parte da natureza dicotómica deste real literário (real onde onde os moriscos projectam, ainda que amputada, a sua identidade) a visão que os cristãos têm dos próprios moriscos. É nesse contexto que surge a ideia de casta, enfatizando a necessidade de "limpar" as terras de Espanha de todo o "fermento" que corrói a unidade nacional (religiosa e cristã). Numa das profecias, os moriscos preenchem este terrível aspecto semântico, através da figura do Encoberto que é, na tradição dos personagens proféticos do tipo “último imperador salvador”, o decisivo agente da premonitória expulsão dos moriscos de Espanha. Curiosamente, a Península Ibérica está cheia de Encobertos mitificados, islâmicos e cristãos, desde o século XIV. Portugal fez dessa figura um mito da restauração da sua independência, no Séc. XVII, e acabaria até por exportar a expressão desse mesmo imaginário para o Brasil.

A profecia 3 em que surge a figura cristã do Encoberto é claramente um texto que foi transformado ou manipulado, a dada altura, por mão cristã. Trata-se de um enxerto forjado, como muitos outros, na altura da guerra Alpujarras. Contudo, o significado dessa intervenção num corpus morisco clandestino não é um detalhe, mas antes uma questão de bastante interesse, porque nos permite compreender algo mais sobre a complexa identidade dos moriscos. Por mais díspares que sejam as análises sobre a natureza da profecia em causa, há um facto relevante que urge interrogar, isto é: foi, ou não, um morisco quem forjou a dita profecia ? Há um conjunto de dados que, em princípio, nos permitem concluir afirmativamente:

 

a)      embora a profecia resulte de enxertos de outras (umas cristãs, outras não, e, nomeadamente da própria profecia 2 do mesmo corpus), são claras as hesitações que indiciam que o seu enunciador não tem (como qualquer morisco) o Castelhano como língua-mãe;

b)      o recurso a palavras árabes - como por exemplo adarbes (portas das cidades) ou a designação do monstro Jabarín - decorre do mesmo tipo de desfasamento semântico que surge nas restantes profecias do corpus;

c)      verificam-se decalques sintácticos idênticos aos das outras profecias que sinalizam a presença de um modelo linguístico exógeno ao vernáculo românico utilizado, assumindo, portanto, características comuns à textualização mais geral da literatura aljamiado-morisca;

d)      o autor demonstra conhecer bem os símbolos islâmicos e cristãos, recorrendo até à mitificação e mistificação das terras de Espanha, característica morisca sempre presente nas outras profecias do corpus;

e)      em último lugar, é patente o recurso a recorrentes ameaças e pragas, o que denota um sentido manipulador apurado de quem, conhecedor do seus destinatários, depois de criar ambiguidades no início do texto, através de um discurso reconhecível no meio aljamiado-morisco, subitamente o encerra com uma inesperada vitória do Encoberto cristão.

 

            Deste modo, é bem possível que um enunciador morisco  (a soldo de cristãos) utilizasse esta arma de guerra - que, na época, é a profecia - no próprio terreno textual de enunciação morisca. Um tal dado pode permitir-nos concluir, com cuidado, que a comunidade morisca, a par das suas inúmeras fragilidades e inconsistências identitárias, é permeável à enunciação auto-flageladora. Se a auto-mutilação, a nível terreno, é um atributo admitido numa outra profecia, a quarta - de clara enunciação morisca, de resto como as restantes do corpus -, é também possível interpretar a presença da profecia enxertada e forjada no meio das restantes, pelo menos em parte, nesse mesmo sentido (o que, aliás, está de acordo com as investigações de J. Hawkins sobre "a morisco philosophy of suffering" - 1988). Uma tal asserção poderá ser formulada, independentemente de a referida profecia 3 ter sida inserida na sintaxe das restantes três profecias, numa data posterior à enunciação destas (possivelmente aquando da última recopilação do presente Ms., todo ele, uniformemente, redigido com caracteres magrebis e, segundo tudo leva a crer, seguindo o gesto e o gosto de um mesmo copista). No entanto, refira-se que a presença da profecia enxertada no nosso corpus corresponde à lógica hermenêutica da época; de facto, a presença de versões contraditórias num mesmo texto do género é então normal, já que as práticas de  manipulação intertextual eram imensas e constituíam mesmo parte do jogo comunicacional e político da produção profética.

Esta é, em breves linhas, a silhueta do real identitário morisco, tal como nos surge representado na construção semiótica do corpus profético do Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris. Sobrevivência, crença no devir escatológico, consciência de perda irremediável, luta contra a hibridez (de que se sentem conscientes), nostalgia do passado, vazio de ser como castigo pela negligência religiosa (de que se sentem responsáveis), auto-flagelação - e ainda uma nítida consciência do campo cultural que é o seu (embora sem uma linguagem consistente que o possa traduzir, o que revela a natureza do drama identitário morisco) - configuram traços do real moriscos que deram entrada no texto, aquando da sua enunciação. Estamos diante do que poderíamos designar por monólogo interior de uma comunidade em profunda crise identitária e, além disso, à beira do abismo - ou da catástrofe - da sua própria existência, enquanto comunidade, na história. De outro modo: estamos diante de uma memória sem memória.

Como L.Cardaillac refere nas conclusões do seu clássico Morisques et Chrétiens - un affronttement polèmique (1977:389), os moriscos não têm história, na medida em que a própria História pressupõe a existência "d'un groupe humain en évolution"; daí que o problema morisco, para além do método histórico, careça inevitavelmente de outros, e, de modo particular, o “sociológico” (ibid.:389). Esta nossa via alternativa de prospecção semiótico-textual, por seu lado, poderá contribuir complementarmente para situar modalidades de representação da realidade que, de algum modo, possam enriquecer o estudo de minorias terminais como os moriscos. Realidade essa que, infelizmente, é, ainda hoje em dia, muito mais actual do que possa parecer.

 

Bibliografia

 

Berthelot, Anne

Discours prophétique et fiction in Poétique, nº 70, Avril, Paris, 1987: 181-191.

 

Cardaillac, Louis

Morisques et Chréthiens - Un Affrontement polèmique, Librairie Klincksieck, Paris, 1977.

 

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Le prophétisme, signe de l´identité morisque in Actes du II Symposium International du CIEM sur Religion, Identité et Sources Documentaires sur les Morisques Andalous, Pub. ISD,1984:138-146.

 

Carmelo, L.            

La représentation du réel dans des textes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque

1995,Universiteit Utrecht, Utrecht

 

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Anjos e Meteoros

1999, Editorial Notícias,Lisboa

 

(de) Epalza, Mikel

El problema morisco, visto desde las aljamas mudéjares precedentes in Les Moriscos et leur temps, Éd. Du CNRS, Paris, 1983:29-42.

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A modo de introducción: el escritor Ybrahim Taybili y los escritores musulmanes aragoneses in El cántico islámico del morisco hispanotunecino Taybili, Bernebé Pons, Zaragoza, 1988: 5-26.

 

Kontzi, Reinhold

Aspectos del estudio de textos aljamiados in thesaurus, Tom.XXV, nº 2, 1970:196-213.

 

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Hawkins, John P.

A morisco philosophy of suffering: an anthropological analysis os an Aljamiado text in The Maghreb Review, Nº 13, 1988:199-217.

 

Sánchez Alvarez, Mercedes

El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París, Gredos,  Madrid, 1982.