O labirinto de Deus e do Diabo
Sobre fotografia

Luís Carmelo

Universidade Autónoma de Lisboa

1

A fotografia enuncia o seu próprio relato. Plana, imóvel, granulada, manietada, espelho de si e receptáculo de ondas, a fotografia consegue, ao mesmo tempo, criar leis, apontar para mundos concretos e praticar ou desafiar a semelhança, o verosímil. A fotografia cria um quadro, uma encenação, uma disposição ilusória onde o momento, de tão compactamente fragmentado, se desfaz numa miragem de infinitude. A fotografia estabelece a contiguidade entre o reino fantasmático do agora perdido e um qualquer além, ao sabor do arquétipo ancestral da imortalidade. Puro desengano. A fotografia é antes um brevíssimo rio de luz a contracenar com o desejo, com o eros, com a maquinação do olhar inquieto. A fotografia enuncia o seu próprio relato, a sua própria entidade, e não está em vez de nada. É-o, à partida, por si própria, sem objecto, nesse suspiro tão inexplicável que a faz circular na carteira dos namorados, nas molduras memoriais dos mortos ou na banalidade extrema com que se propaga nos mundos on e off-line. A fotografia não é uma ruína, nem um vestígio. A fotografia é sobretudo o labirinto com que o homem sonhou, um dia, para esconder de si o óbvio. O duplo. O outro. O navegante e desmedido sussurro da alma. Ou da aura. A fotografia é, pois, ela mesma, o grande labirinto da modernidade. E como o sentiu Baudelaire !

2

Foi Dédalo que em Creta, por ordem do rei de Minos, escondeu do olhar humano, no seu labirinto, o monstro que tinha cabeça de touro e corpo de homem. Foi para esconder o crime, ou seja, o minotauro, esse filho imaginável de homem e bovídeo, que, a céu aberto, o labirinto surgiu em Creta, ao contrário de outros, de dominante subterrânea, ínvia e oriental. Mais tarde, diz-nos a imperceptibilidade da lenda, ou o dealbar do mito, terá sido Teseu, com a preciosa ajuda do famoso fio de Ariadne, quem encontrou o caminho, quem viu com os seus olhos o monstro e quem matou com os seus braços o minotauro. E Nièpce ? Que fazia exactamente Nièpce, naquele dia em que desafiou, com a mais incipiente das pratas, a luz que batia, despercebida, numa qualquer água furtada ? Que fio de Ariadne terá Nièpce lançado nesse momento em que se fez história ? Talvez o mesmo fio com que Daguerre veio a transformar a fotografia numa arte possível, e com que Disderi a transformou, afinal, em ofício comercial, puro e duro. Era o monstro, outra vez, a aparecer e a sangrar diante de nós. Impiedosamente. Com um novíssimo olhar. O olhar dos inocentes que descobriam a photogenie ao rever-se, olhos nos olhos, no seu duplo. No seu outro. No seu monstro.

3

O monstro foi sempre um fantasma do mal, uma ameaça à divina proporção, um impropério capaz de danar o edifício mais equilibrado da imaginação. Breughel, Bosch e Desprez, ao ilustrar Rabelais, puseram em prática a catarse que milhares de profecias e outros tipos de textos anónimos completaram, durante séculos e séculos de uma Europa ainda a braços com o mais involuntário dos sonhos futuros: a modernidade. Depois, na senda dos iluminados de setecentos, chegaram até nós, finalmente, sentenciosas e solenes, a razão, a crítica, a estética, a arte como actividade autónoma, para além da justiça e da lei não divinas. E o monstro, esse, ao invés de desaparecer, mudou de forma. Entrou em célere metamorfose. Diga-se que foi por entre o novo edifício formal e presumivelmente ordenado que ele passou a acenar, invisível, indescortinável, inefável. O monstro transformou-se assim em silêncio não codificado, em arremesso de mistério sem nome, em poeira sem dó que Nietzsche acabaria por baptizar por "horizonte do infinito".

4

Não raras vezes, a fotografia deixou ver a olho vivo esta poeira, este indisfarçável mal-estar com que pronunciamos o nome oculto do caos. A excelente "fotografia 162" de Carlos Pinto Coelho publicada em A Meu Ver, é disso provavelmente metáfora. É uma fotografia construída a partir de um jorro formativo, onde se lê a imagem de diversos espécies de azulejos e discretos ramos de heras, sob o lema da assimetria e de algum logro que interrompe, na certeza figurada do plano, a própria sequência cromática e configurativa. Esse logro é constituído por manchas, buracos, riscos e traços de erosão (poeiras). Por outras palavras, esse logro é uma súmula de mistérios a bordo do tempo, ou de segredos sem regra a despovoarem a conformidade e o equilíbrio conjecturado. Um olhar, mesmo o mais abismado, é sempre uma operação de montagem que tende a concentrar no feixe de uma possível harmonia a amálgama de rupturas de que é feito, afinal, o iminente turbilhão da vida. E a "fotografia 162" traduz, nessa medida, em última análise, uma suspensão, um planar e um arrebatamento que se interpôs, e que se interpõe ainda, por segundos, entre a bonomia da imensa ordem do labirinto e, por outro lado, o subterrâneo e recôndito halo do monstro pressentido a olho nu. É essa outra vantagem, quase única, da fotografia: ter lado a lado Deus e o Diabo. No mesmo corpo. Ou não fosse a própria arte, na arena do ser, um tácito e deliberado combate entre ambos.