Do fim perpétuo à névoa do futuro

                        

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

1. Construir o tempo.

 

Os signos, enquanto modalidades formais de expressão que transmitem e cooperam com conteúdos, são devedores da famosa noção hjelmsleviana de “mening”, ou seja, de continuum. Em cada comunidade, no sentido de A. McHoul (1996:41-53), as variadíssiamas formas de conteúdo utilizadas, no dia a dia, constituem, portanto, recortes ou moldes que, enquanto substância de conteúdo, se projectam no referido continuum universal de conteúdo, de acordo com a famosa parábola do “filet tendu” qui “projette son ombre sur une face ininterrompue” (L.Hjelmslev,1968/ 71: 75).

Entre os conteúdos retalhados do continuum de conteúdo existe um fulcral que corresponde ao conjunto de sememas que as nossas línguas designam, de diversos modos, por “tempo”. Curioso é até o facto de o conceito denotado através do lexema dinamarquês “mening” significar, entre outras virtualidades, a ideia de “sentido”, mas, como refere U.Eco no seu Kant e l´ornitorinco (1997:39), “nel senso di direzione”(...)”come a dire che nel magma del continuum ci sono delle linee di resistenza”(...)”che rendano più agevole tagliare in una direzione piuttosto che nell´altra”. Nesta linha de ideias, diversos modos de designar o tempo, nas línguas naturais, remeteriam, em última análise, para um mesmo e único fenómeno anterior, isto é, para o próprio continuum temporal.

Deste modo, cada conceptualização específica do tempo, desenvolvida no interior de uma comunidade, corresponde, entre outros, ao tempo émico de T.Bruneau (1980:102), ou aos tempos “formal” e “informal” de E.Hall (1959:127), para além das categorias mesuráveis do tempo que correspondem, utilizando a terminologia dos mesmos autores, ao tempo “ético” ou “técnico”. Porque estas últimas categorias, isto é, as “possibilidades de datação” constituem um primeiro “momento do tempo ocupado” (M.Heidegger,1997,2-II:234), interessa-nos mais compreender as grandes balizas émicas com que sempre se representou o tempo, pelo menos, na génese do mundo euro-ocidental.

Tais balizas corresponderam quase sempre ao estabelecimento de cosmogonias e de escatologias, ligadas inevitavelmente por um fluxo de indução narrativa, mais ou menos elaborado conforme as eras e as topografias geo-imaginárias em causa. No final da sua Introdução à Metafísica (1997,1:223), M.Heidegger refere que o tempo é a essência da presença, não entendido, no entanto, enquanto entidade “desdobrada” e “desdobrável”; é só a partir de Aristóteles - continua M.Heidegger - que a reflexão sobre a essência do tempo o tornará em algo presente, passando a ser concebido “a partir do agora do respectivo e único presente actual” (ibid.:223). Esta lógica é retomada do seguinte modo, no final do Ser e Tempo (1997,2-II:235): “Os agora passam e os agora que passaram constituem o passado. Os agora advêm e os agora que advirão delimitam o futuro”. Ou seja, na temporalidade irreparavelmente humana, convertida num sentido ontológico do “sorge” (cuidar de), o futuro tornar-se-á sempre no pilar fundamental, já que é a única instância que se antecipa à morte, sendo, portanto, capaz de enquadrar e ratificar a finitude.

De facto, os princípios e os relatos míticos que os semantizam, assim como os fins, com as suas homólogas grandes narrativas, abrem e fecham o horizonte com que codificamos e legitimamos a instância ‘actual’ do tempo: o presente. Franz Kermode no seu Sense of Ending refere mesmo que “os homens”(...)”precisam de concordâncias fictícias com origem e fim, daquelas que dão significado à vida e aos poemas” (1997:25). A comparação literária é interessante, já que é da literatura - neste caso dos textos proféticos do Antigo Testamento - que a escatologia, de modo consistente se indicia, sobretudo entre o advento da Realeza (século XI A.C.) e a grande compilação pós-exílica (século VI A.C.). Ainda não assente na mediação angélica, confinada a um intimismo da primeira pessoa e ligando o presente a um futuro próximo, esta actividade mantém-se harmoniosa - como se fosse uma leitura “du dessein dans le trame des événements” (B.Chenu,1997:22) - até que, a certa altura, se tornam audíveis os alarmes, por exemplo, do profeta Habacuque. Aí se pressente já o Apocalíptico, ou seja, a atitude de queixa e questionamento geral, tendo em conta o desfasamento entre a observada disforia terrena e um - cada vez mais distante - plano divino superior. As grandes viagens pelos sete céus, a necessidade de narrar e contextualizar a história passada no seu todo, bem como as visões de Deus, através das quais o homem traduz a sublimação da ansiedade terrena, sucedem, entre os séculos II A.C. e II D.C., à fase profética que N. Frye (1982) descrevera como sendo eminentemente prospectiva (orientada para o futuro).

Esfumada na literatura apocalíptica judaica, em benefício da tensão entre o presente e o “rather prosaic acconunts of the whole of history” (C.Rowland,1982:189), a escatologia surge subitamente reinaugurada com a revelação cristã. Com efeito, a escatologia enuncia-se já como parte da própria história, sendo o escháton dominado por uma salvação que se cumpre, quer no agora-aqui, quer no próprio futuro. Ainda que a primeira corresponda à discutida noção de “métanoia” dos evangelhos (N.Frye,1982:192), segundo a qual os cristãos “sont déjà vainquers”, grace à la parole de Dieu qui est en eux (1Jn, 4.2-4), a segunda corresponde a um devir que sendo “veículo de eternidade manter-se-á História” (J.Le Goff,1984:437). Neste âmbito propriamente histórico, todavia, a ignorância do plano divino de salvação, traduzido em Lc,20 - “Vous n´avez pas à connaitre les temps et les moments que le Père a fixés de as propre autorité” -, acabaria por gerar, ao longo de séculos, as mais diversas atitudes, desde os milenarismos aos montanismos; desde o milénio espiritual de Orígenes às calendarizações émicas de Joaquim de Flora.

Seja como for, e seguindo o raciocínio de B. McGinn “the Christian view of history has always been eschatological in the sense that the course of ages was believed to make sense only in terms of its beginning and its end” (1979:XVII). E apesar das rupturas efectuadas no seio da própria história, o facto é que esta visão monocentrada, rectilínea e linear do tempo, como que povoado por estruturas imanentes que lhe atribuiriam um persistente sentido “taumatúrgico” (B.Wilson,1973:25), acabaria por ser retomada, no advento da modernidade, quando o grande código, gradativamente, deixa de ser escatológico para passar a ser, ou utópico (sobretudo quando este tipo de narrativas ancora no espaço e no tempo terrenos, isto é, nos finais do século XVIII), ou ideológico, a partir de meados do século XIX. Esta visão ancestral, linear e continuista, viria a confrontar-se com o nosso século ainda actual que, por sua vez, se transformaria numa - muitas vezes amarga - arena de todas as experiências, decepções e mal-entendidos.

O recente colapso dos grandes códigos, assentes numa semantização temporal monocentrada e rectilínea em direcção ao futuro, pelo menos enquanto factores de mobilização das comunidades, repôs, de certo modo, a ideia de “actual” e de “presente”, como contra-peso ao tradicional futuro perfectível, sempre anunciado - desde as escatologias às ideologias - e jamais cumprido. J. Bragança de Miranda (1997:32) compara mesmo o caracter “decisivo” da actualidade, na tradição do “instante” de Nietzsche, do “transitório e efémero” de Baudelaire, do “jezzeit” de Walter Benjamin, do “inzwischen, o entre” de Heidegger ou do próprio “imortal agora” de Fernando Pessoa. Todas estas noções, aliás, subjazem a uma ideia de história policentrada, descontínua, contingente, ou seja, como propôs Alec McHoul (1996:8) - “History – as the condition and medium of semiosis – is not so much something that is to be described and explained”.

Concluindo: sem querer atrair para esta exposição a clivagem discursiva sobre o pós-moderno, a verdade é que a indução narrativa criada pela linha que une cosmogonias e escatalogias - no fundo, as balizas émicas fulcrais da nossa cultura euro-ocidental - parece ter entrado num momento histórico de franca crise. Numa altura em que os referentes da modernidade se esvairam, as grandes tarefas do mundo parecem ter regresado, de vez, ao agora-aqui do presente, em prejuízo de um taumatúrgico e salvífico futuro. Numa recente entrevista, V. Soromenho Marques (1999:3), autor de uma tese sobre Kant e a racionalidade, identifica essas tarefas como sendo: “a crise ambiental”; a “diluição dos estados sem alternativa no mar da globalização”; “a falta de um efectivo sistema internacional baseado na lei” e, por fim, os próprios “déficites democráticos”. Todas estas tarefas conferem ao tempo - simultaneamente émico e etico - do presente a sua maior prioridade. O que significará este estado de coisas ? Por outras palavras: Em que direcções do continuum temporal estamos, hoje em dia, a prospectar o nosso próprio futuro ?

 

2. O fim é sempre uma metamorfose ?

 

Raramente, a espécie humana concebeu o fim como um fim absoluto e real. Um caso de excepção terá sido o das tribos da Arábia pré-islâmica que acreditavam numa divindade, o Dahr, que fazia coincidir a morte com a própria razão de ser do ser humano. Aliás, o Alcorão - que, ao revelar-se, trouxe a estas comunidades uma compreensível libertação escatológica -, combatendo esse passado, refere-se, na surata XLV/22-23, aos adoradores do Dahr do seguinte modo: “Ils disent: Il n´y a point d´autre vie que la vie actuelle”. Curiosamente, Dahr, em Árabe, quer, hoje em dia, dizer ‘tempo’ e a forma substantivada da mesma raíz, ad-dahriyyah, ‘ateísmo’. Nada mais esclarecedor do que a condenação perpetrada por um língua natural à memória daquilo que, um dia, ousou auto-representar-se com um fim consumado.

De qualquer mdo, o fim, mais do que um ponto absoluto, é quase sempre representado como um tornar-se em qualquer coisa. As últimas etapas das escatologias e das ideologias consubstanciavam a própria perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero e sempre conturbado do presente. Jean-Claude Carrière chegou a caracterizar o fim dos tempos como “la fin de l ´insupportable contradiction” entre “le temps divin (surpême, absolu) et le temps humain (limité, relatif)”. Num tal quadro, apenas este esbater entre o que S.N.Eisenstadt designou pelas ordens “transcendente” e “mundana”, criadas durante cerca de um milénio pelas “civilizações axiais” (1997:4), é que poderia, com efeito, evitar que o fim continuasse a ser representado como uma metamorfose.

Certas formas clássicas de compreender o tempo inserem-se claramente nesta estratégia de manutenção do fim, enquanto estádio simultaneamente afastado e durável. Lendo F. Kermode, apercebemo-nos de que a crise é indubitavelmente um dessas formas que é “central no nosso empenho em prol do entendimento do mundo” (1997:98). A teoria cíclica das decadências é uma outra forma, porventura subliminar, de doce preservação do fim. Tal é claro na teoria de Spengler, segundo a qual cada cultura realiza um ciclo vital (correspondendo a civilização à fase amadurecida da velhice); ou na teoria ideológica de Lukács, ou ainda na noção de “breakdown” (declínio físico e espiritual) e “disintegration” de Toynbee. Um terceira forma é “a teoria do complot”, referida por U.Eco - de acordo com uma reactualização de Karl Popper - enquanto versão mitológica da explicação causal do acaso. Quer isto dizer que a tentação de explicar todos os factos inexplicáveis ou inesperados conduz o intérprete a inseri-los em esquemas que M.Herzfeld definiria como de “self-fulfilling prophecy” (1992:35), ou seja, pretensamente ordenados num cronograma que salvaguardasse e protelasse o fim bem para longe do presente.

Esta congénita dificuldade em dispor e clarificar o fim - nos fins dos tempos - pode também ligar-se à própria perspectiva com que o homem recorta as delicadas formas de conteúdo - com que se representa - do continuum temporal. Creio que Martin Heidegger e Jorge Luis Borges respondem um ao outro, quando põem o dedo na ferida; o primeiro por afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude” (1997,2-II:125); o segundo por afirmar complementarmente que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres”(...)”es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos” (1979-I:223). Conclusão: a eternidade - ou a infinitude - é uma espécie de negativo da finitude e vice-versa, razão pela qual, no seu dicotomismo, o fim não pode nunca ser uma ruptura, uma falha, ou um deslize para o abismo irrepresentável, mas sim um espaço derradeiro onde se contém o tempo, ou seja, - onde se contém um dos lados da insuperável contradição, atrás referida, por Jean Claude Carrière.

Em última análise, esta tese que enforma o fim como uma metamorfose necessária pode ainda encontrar legitimação numa recente reflexão de Pierre Bourdieu (1998:214/5) onde cooperam “três factos antropológicos indispensáveis e indissociáveis” da finitude, a saber: “o homem é e sabe-se mortal, o pensamento de que vai morrer é-lhe insuportável ou impossível e, votado à morte, fim que não pode ser tomado por fim, (...) o homem é (torna-se) um ser sem razão de ser, habitado pela necessidade de justificação, de legitimação, de reconhecimento”. Esta busca de justificações - “segundo Pascal”(...) “a única instância capaz de concorrer com Deus” (ibid.:215) - conforma-se quase sempre com um relato onde o mais obscuro (o ‘depois do fim’) tende imaginativamente a ser representado através de mais um - e sempre de mais um - relato que o prolonga. Até porque o ‘depois do fim’ (o actual mundo do ‘pós-qualquer coisa’) é, sempre, e também, a varanda de onde se observa um qualquer fim; ou seja, a continuação sine die do relato que está em vez do fim. Até a própria semiose ilimitada de C.Peirce representa uma teoria em que os fins se convertem sempre em fins, - mas em fins que se prolongam indefinidamente no seu próprio relato. Não fora o exemplo do Dahr pré-islâmico e a própria ideia de fim constituiria um autêntico “mise en abyme” (L.Dallenbach, 1977) da espécie humana, praticamente sem excepções.

 

3. O tempo da instantaneidade e a silhueta de Deus.

 

Neste terceiro e último ponto da presente reflexão, tentaremos responder às perguntas que estão, até agora, em suspenso, isto é, - adiada a ordem de um futuro perfectível, com que formas de conteúdo estamos, no tempo actual, a prospectar o futuro ? E - que relato se contém na actual configuração do fim, num tempo muitas vezes designado de ’pós-qualquer coisa‘ ? Para responder a ambas as perguntas, avançaremos com uma relação entre dois termos, os quais nos fornecerão material para eventualmente poder pensar em possíveis e necessárias respostas.

A narração de milagres, pode dizer-se, constitui um sub-género literário. Diferirá do nível da alegoria (e da parábola) pelo facto de esta emprestar ao contexto o seu próprio sentido, enquanto os milagres são, basicamente, significados pelo contexto (G.d'Entrevernes,1977:206). Por outro lado, (ibid.:207) "le  miracle est l'objet d'une demande emanant d'un auteur étranger...", isto é, funciona como prova e testemunha de algo para alguém que está de fora. Em síntese, as duas características da recepção a este sub-género podem ser assim definidas: por um lado, um contexto que, à partida, se quer transformado e, por outro lado, a identificação que se verificará com a adesão do actante que está de fora e que passará a estar, no discorrer narrativo, também, por dentro. Mudança de situação e  idealização da figura da conversão de um outro configuram, pois, a pragmática do milagre. Se este parece ser o objectivo locutório, ilocutório e perlocutório dos milagres (quer na emergência revelatória cristã, quer na sua tradição profética posterior - por exemplo nos Diálogos de Sulpice Sévère), em termos semióticos poderíamos, numa lógica clássica de aliquid pro aliquo, acrescentar que os milagres ‘estão ali’ em vez da omnipresença e potência divinas. Além disso, Deus omnipotente e potente manifesta-se basicamente para se revelar como o grande código, a partir do qual as expressões e conteúdos do mundo se articulam como significado primeiro e anterior. Já vimos que este código assenta basicamente numa historização linear e continuista da salvação.

Passemos agora a descrever um segundo termo a relacionar com esta sintaxe que enquadra ‘milagre-Deus-enunciação de um grande código escatológico’. Imaginemos, pois, o universo telemático contemporâneo no seu crónico imediatismo comunicacional (televisão, internet, mecanismos celulares, relés, etc...) e, porque este universo existe para criar novos contextos, sobretudo ampliando os nossos limites físicos, enquanto exige de nós uma permanente e involuntária adesão, ele acaba igualmente por traçar uma correspondência homológica com a pragmática dos milagres. Ou seja, a dupla função de ‘mudança de situação’ e de ‘conversão’ opera-se automaticamente neste exemplo como no caso dos milagres, analisado que foi, há mais de vinte anos, pelo Groupe d´Entrevernes (1977). Em segundo lugar, podemos também, em termos semióticos, concluir que esta realidade telemática não resiste necessariamente a inferências que se orientam de acordo com uma mesma lógica de aliquid pro aliquo. Nesse sentido, as ocorrências telemáticas ‘estarão ali’, não por si sós, mas antes criando, em vez delas e inevitavelmente, uma qualquer coisa imaterial e superior que as rege. Não lhe chamaremos Deus; designá-la-emos apenas por ‘Existente F’. Esse ‘Existente F’ manifesta-se com homológica ubiquidade e poder globais, enquanto é também natural que propague, ainda que subliminarmente, um certo número de regras que todos assimilamos de modo involuntário e através das quais refiltramos o próprio entendimento do mundo.

Esta relação entre os milagres de ontem e o universo telemático de hoje repõe-nos na irreparável relação entre a cultura da instantaneidade que nos domina - e através da qual somos falados - e as formas de conteúdo que, potencialmente, preenchem uma adormecida teo-semiose. De facto, os mecanismos da instantaneidade tecnológica prescrevem, hoje em dia, verdadeiros valores (U.Eco identifica “le succès éthique, le Bien” com o combate pela visibilidade e pressente a ética condenada ao simulacro de modelos, cujo objectivo é “mettre en scène sa propre normalité dans l´univers médiatique”1998:316); os mecanismos da instantaneidade preservam-nos também a memória, do mesmo modo que a igreja o faria na Idade Média e, como adiantou D.de Kerckhove (1997: 194) em relação à topografia das decisões universais, as actuais “multinacionais são como a ideia de Deus durante a Renascença”, ou seja, “o seu centro está em todo o lado e a sua periferia não está em lugar algum”. Silencioso e imaterial, este poder variado e geral acaba por coadunar-se com o que o autor, em entrevista dada em Lisboa aquando da Expo 98, descreveu com sendo a necessidade “de uma consciência pública comum global” (1998:13). Seja no futuro pela internet, seja no presente ainda dominantemente pela televisão, este “forum” global integrado decorre de uma necessidade do espaço público e, no entanto, requer o que Jean Baudrillard caracterizou como “tempo real” (1996:54), enquanto conceito-chave do acting-out mediático que o gera.

O tempo real implica, pois, a proximidade instantânea do evento e a sua virtualidade generativa, ou seja, a meta-ocorrência. Quer isto dizer que o evento ‘está lá’, mas é transposto ficcionalmente como um duplo, ou como um simulacro que Jean Baudrillard, no seu Simulacros e simulação (1991:75) afirma ser muito mais eficaz do que o real. Estamos no reino do meta-real, onde a simulação governa e é anterior ao mundo, do mesmo modo que, para os medievalistas platónicos, os universais precediam o real de acordo com a famosa fórmula - universalia sunt ante res. O espectro de Deus cruza-se, assim, com o locus ocupado, hoje em dia, pelo nosso ‘Existente F’, ou seja, por essa fissura espantosa que a instantaneidade tecnológica provocou para se tornar, talvez, num fim em si mesma. Tudo isto se passou demasiado rapidamente, sem tempo para grandes acomodamentos, como se tivéssemos atravessado, sem dar por isso, uma ponte entre o ‘sentido imanente da história’ e o ‘sentido imanente da instantaneidade’. Provavelmente, a divindadade terá morrido no dia em que o ‘sentido imanente da história’ se tornou na ‘razão imanente da história’, mas volta, agora, a impor-se na sua imaterialidade mais insuspeita e sobretudo indescritível.

Respondamos agora, finalmente, às perguntas que ficaram em suspenso, já que os termos comparados (mediação divina e mediação da instantantaneidade tecnológica) parecem traçar homologias e até analogias consideráveis e necessariamente interessantes em futuras reflexões.

Comecemos pela segunda pergunta, acerca do relato que se contém na actual configuração do fim. Já entendemos que os mecanismos telemáticos criaram, nos últimos anos, um novíssimo tempo instantâneo, a partir do qual a metáfora do milagre nos condiciona à adesão invitável a um certo devir ‘actual’ da vida. Essa adesão, quase incondicional e hipnótica, descobriu o que dantes era o futuro no seio do próprio presente, já que a instantaneidade tecnológica parece ter-se convertido num fim em si mesma, enunciada hoje, no agora e no aqui globais. Dir-se-ia que esta resposta traduz uma absoluta subversão face à tradição escatológica e ideológica e que, em vez dela, um novo “sujeito global passou a entrever o mundo como uma arena irreal, quase transcendente, mas que é, ao fim e ao cabo, imaginariamente sua” (L.Carmelo:1999:49).

Completando a resposta à pergunta sobre a configuração do fim, cumpre ainda registar que o fim, aliás na continuidade, mantém-se, ainda hoje em dia, em estado de permanência ad eternum. Como se fosse possível sustê-lo e dominá-lo, do mesmo modo que uma auréola prolongaria, na Idade Média, a luz divina no limiar dum corpo santificado. U.Eco, nas epístolas trocadas com o Cardeal Carlo Maria Martinio, em In cosa crede chi non crede ? (1997:99) recorre a uma analogia entre a mediação tecnológica e a miragem do fim (a morte), acabando involuntariamente por ilustrar, de modo exemplar, esta necessidade de suspender o próprio fim, como se este fosse uma espécie de permanente meta-relato: ”Aujourd´hui, l´univers électronique nous apprend que peuvent exister des séquences de messages se transférant d´un support à un autre sans perdre leur caractéristiques uniques, et semblant même survivre comme pur algorithme immatériel à l´instant où, abandonné par un support, ils ne se sont pas encore imprimés sur l´autre. Et qui sait si la mort, au lieu d´être implosion, n´est pas explosion et impression, quelque part , parmi les tourbillons de l´univers, du logiciel (que d´autres appellent âme)”. Esta impressão é porventura a impressão com que o relato do fim se desdobra, em conotações sucessivas, até, quem sabe, se transformar em eternidade. É caso para dizer que ‘o princípio da contradição’ de Jean Claude Carrière está  plenamente correcto.

No que diz respeito à primeira pergunta, acerca das formas de conteúdo com que vamos, no tempo actual, prospectando o futuro, tudo, de facto, se torna subitamente mais obscuro e enigmático. Pierre Breton no final do seu Utopia e comunicação (1994:140) refere quatro diferentes representações que hoje temos “do que será o futuro”. As primerias três (as ideologias de exclusão, as utopias verdes e as teorias do liberalismo - entre elas a de F.Fukuyama) quedam-se, segundo o autor, apenas pelo presente e apenas a quarta parece iluminar o fosco caminho de um futuro pressentido: “A única imagem do futuro de que ainda dispomos é justamente a de uma sociedade de comunicação hipertecnológica”. De facto, se é verdade que os mecanismos telemáticos se parecem converter num fim em si mesmos, agora, segundo P.Breton, até acabam por surgir, de forma isolada, esboçando rasgos utópicos. Todavia e como se depreende, por exemplo, da leitura das últimas páginas de As consequências da modernidade de Anthony Giddens (1998:120), a época actual “está cheia de altos riscos”, o que faz com que as utopias do presente sejam sobretudo defensivas; quer isto dizer que escolhem o próprio presente como quadro de acção e não tanto a esperança, ou o futuro. Os quatro exemplos referidos por A. Giddens (ibid.:120) são, em jeito de círculo fechado, - o desastre ecológico, o conflito nuclear, o totalitarismo procedente da globalização (já que esta gera “eventos onde o risco e o acaso assumem uma nova natureza”; ibid.:125) e, por fim, os potenciais colpasos dos mecanismos económicos. Com efeito, o realismo utópico de A.Giddens, cruzando o local e o global com a liberdade (“política da vida”) e a “política emancipatória”, assenta essencialmente na convicção de que “a história não está do nosso lado, não tem uma teleologia e não nos dá garantias”; por outras palavras, - a história parece ter refluído, de vez, para poder salvar a própira esfera do presente, ou, como adiantou J. Baudrillard, a história parece ter-se tornado no “nosso referencial perdido”, isto é, no “nosso mito” (1981:59).

No seu artigo Interpretação e história (1993:29-44), U.Eco referiu que a tentativa de buscar um sentido final, inalcançável, leva à aceitação de uma flutuação ou de um deslizar sem fim de sentido”(ibid.:36). Talvez esta flutuação se conforme com as duas respostas que ficámos por desvendar ao longo deste texto. Flutuação na durabilidade perpétua de um fim desejado e sempre protelado; flutuação ao sabor da história tornada em mito, ou seja, tornada na memória invisível que povoa e filtra o nosso presente irreparavelmente centripeto. O que poderemos nós ver, para além desse nevoeiro centripeto e flutuante, “sem fim de sentido” ? Decerto que veremos o futuro, mas vemo-lo com esse misto de tentação que terá levado, um dia, Orfeu a olhar para Eurídice.

 

 

 

Bibliografia

 

 

Agamben, G.        A comunidade que vem

1993                     Presença, Lisboa.

 

Baudrillard, J        Simulacros e Simulação

1991                      Relógio d´Água, Lisboa

 

                            O crime perfeito

1996                      Relógio d´Agua, Lisboa

 

Borges, J.L.           Historia de la eternidad in Prosa completa (Vol.1)

1982                      Bruguera, Buenos Aires

 

Bourdieu, P.          Meditações pascalianas

1998                      Celta, Lisboa

 

Bragança

de Miranda, J.A.    Política e modernidade - linguagem e violência na                            

                               cultura contemporânea                

1997                       Colibri, Lisboa

 

Breton,P.                A utopia da comunicação

1994                              Instituto Piaget, Lisboa.

 

Breton,P./Proulx,S.A exploão da comunicação

1997                                izâncio, Lisboa

 

Bruneau, T.          Chronemics and the verbal-nonverbal interface (in

               Key, Mary Ritchie) in The Relationship of Verbal

                              and Nonverbal Communication (101-107), Mouton,

1980                     The Hague

 

Carmelo, L.         La représentation du réel dans des textes

                              prophétiques de la littérature aljamiado-morisque

1995                     Universiteit Utrecht, Utrecht

 

                            Anjos e meteoros

1999                      Ed. Notícias, Lisboa                

 

Carrière, J-C         Les questions du sphinx in Entretiens sur

1998                      Fin des temps, fayard, Paris.

 

Chenu, B.              L´urgence prophètique

1984                      Bayard Éditions/Centurion, Paris.

 

Cionaresco, A.       L´avenir du passé

1972                      Gallimard, Paris

 

Collins, J. J.        Apocalyptic Eschatology as the Transcendence of Death

1974                      in Catholic Biblical Quartely, nº 36,1974: 21-43.

 

Dalenbach, L.      Le récit spéculaire – essai sur la mise en abyme

1977                    Éditions du Seuil, Paris

 

Delumeau,J          Uma história do paraíso

1994                    Terramar, Lisboa

 

Delumeau,J          Mil anos de felicidade

1997                     Terramar, Lisboa

 

Eco, U.                  Interpretação e história in Interpretação e sobreinterpretação

1993                      Presença-Lisboa

 

                             Kant e l´ ornitorinco,

1997                       G.Ed. Bompiani, Sonzongno, Etas, Milano.

 

                              À toutes fins utiles in Entretiens sur la fin des temps

1998                        Fayard, Paris.

 

Eco, U./Martini,C.   Croire en quoi (In cosa crede chi non crede ?)

1997/8                     Rivages Poche, Paris.

 

Eisenstadt, S.N.      Fundamentalismo e modermidade

1997                        Celta, Oeiras

 

Frye, N.                Le grand code: La Bible et la littérature

1984                     Seuil, Paris

 

Giddens, A.            Consequências da modernidade

1995                       Celta, Lisboa.

 

Hall, E.T.                The Silent Language                   

1959                        Fawccet,Greenwich

 

Heidegger, M         Introdução à metafísica

1997-1                    Instituto Piaget, Lisboa

 

                             Ser e tempo (Vols.I e II)

1997-2                    Vozes, Petrópolis

 

Herzfeld, M.        Divining the past in Semiotica nº 38 1/2

1982                     Walter de Gruyter & Co., Berlin, Hawthorne

 

Hjelmslev, L           Prolégomènes à une théorie du langage

1968                        Les Editions du Minuit, Paris

 

Jeudi, H.-P.          A sociedade transbordante

1995                     Século XXI, Lisboa

 

Kasimirski, A.   Le Coran (chronologie et introduction Arkoun, Mohammed)

1970                   Flammarion, Paris,

 

Kerckhove, D. de  A pele da cultura

1995                      Relógio d´Água, Lisboa

 

                            A Expo e os prinípios @ in Indy/ O Independente

1998                      22 .Setembro.1998,Lisboa

 

Kermode, F.           A sensibilidade apocalíptica (A sense of ending)

1997                       Século XXI, Lisboa.

 

Le Goff,J.-             Escatologia in Enc. Einaudi, I.N.-C.M.

1984                       Lisboa

 

McGinn, B.         Visions of end/ Apocalyptic traditions in the Middle Ages

1979                    Comlumbia University Press New York

 

McHoul, A.            Semiotic Investigations - Towards na Effective Semiotics

1996                       University of Nebraska Press, Nebraska

 

Merrell, F.             Semiosis in the Postmodern Age

1995                       Purdue University Press, West Lafayette, Indiana.

 

Noth, W.                Handbook of Semiotics

1995                     Indiana Univ. Press, Bloomington, Indianapolis

 

Peirce, C.S.         Collected Papers of Charles Sanders Peirce -

               Vol. I, The Belknap Press of Harvard Univ. Press,

1978                     Cambridge, Massachusetts

 

Ricoeur, P.          Ideologia e utopia

1991                     Edições 70, Lisboa

 

Rowland, C.         The Open Heaven - A Study of Apocalyptic

                Judaism and Early Christianity

1982                     SPCK - Holy Trinity Church, London

 

Schwartz, H.        Os finais de século

1992                     Difusão Cultural, Lisboa

 

Sèvère, S.                Vie de Saint Martin

1996                         Les éditions du cerf, Paris.

 

TOB                      Traduction Oecuménique de la Bible, Ancien Testament - I, A.Testament-II

1987                     Les Éditions du Cerf-S.B.F., Paris

 

Toffler, A.            A terceira vaga

1984                     Livros do Brasil, Lisboa

 

Soromenho

Marques, V         Entrevista in Leituras/ Público

1999                   27.03.1999, Lisboa.

 

Vattimo, G.          A sociedade transparente

1991                            Ed. 70, Lisboa