As novas esquerdas na rede actual das mediações

Luís Carmelo1


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No presente artigo, traçamos o contexto da nova época, dominada pela ausência de grandes códigos totalizantes, pela hipertecnologia e seu cronotopo: um tempo instantâneo e um espaço globalizado. De seguida, exposto o quadro social e referencial emergente, explanaremos o pensamento de Giddens, patrono da ideia da chamada 'terceira via'. Um dialogismo (diálogo de textos) entre figuras independentes do socialismo contemporâneo, o ex-presidente da República de Portugal Mário Soares e o filósofo Manuel Maria Carrilho - ex-Ministro da Cultura de Portugal -, fará eco e constituir-se-á como alter-ego às ideias de Giddens. As nossas reflexões conclusivas terão em conta estes diversos níveis de análise convocados e tentarão situar-se face aos parâmetros caracterizadores da esquerda actual, em geral, e face à 'terceira via', em particular.

A esquerda: raízes, fantasmas, novas vias. Um contexto

A livre imaginação de um futuro sobretudo perfectível ou ideal, ditado pela autonomia do sujeito e da representação que as Luzes foram delineando e acentuado ainda pelas várias racionalidades oitocentistas (utópicas e ideológicas), determinaram a própria essência do que designamos, hoje em dia, por esquerda. A esquerda é, pois, uma filha da Modernidade activa e o seu nome depende mais de um acaso do que de uma motivação conceptual. Com efeito, a presença do 'terceiro estado' (e doutros agentes ligados aos sans-culottes, tais como o efémero clube jaconbino) no lado esquerdo da sala onde se realizaram os Estados gerais (1789) e onde depois pontificou a Assembleia Nacional da Revolução Francesa - sala que Abel Gance documentou com mestria e fotogenia no seu filme dos filmes, Napoléon - viria a estatuir a presença das mais diversas esquerdas em parlamentos nacionais e até em alguns aerópagos transnacionais da actualidade. Um nome a confluir numa topografia, numa espacialidade, mas sobretudo numa disputa face a poderes até então baseados na semiose divina.

Como fizemos eco em recentes ensaios (Anjos e meteoros,19991 e Órbitas da Modernidade, 2000) a imaginação de um futuro perfectível sempre constituiu, no âmbito ocidental e semítico, uma visão de inevitável fractura face à instância do presente, persistentemente gerida por um 'grande código' totalizante. Desde a fase profética propriamente dita à apocalíptica judaicas; desde as escatologias cristã ou islâmica à cristalização utópica de pós-seiscentos; desde o alvor neo-escatológico das ideologias ao ponto ómega de T.Chardin, sempre um 'grande código' monopolizou a interpretação de conquista de um futuro distante e perfectível. Esta longa e pesada tradição sempre coabitou, no entanto, com a exigência latente, e às vezes presente, do cumprimento gradativo ou instantâneo desse futuro anunciado na esfera imediata do 'agora-aqui'.

Estas manifestações de exigência e evocação activas do cumprimento do futuro (gradativo ou instantâneo, conforme os programas) - tal como um adequado e às vezes indiscutível 'grande código' o anunciava - foram geralmente enunciadas como fascinantes inícios de ciclos que, após algum tempo, quase sempre se esgotaram na continuidade homogénea e vazia do tempo que, por sua vez, transformava o presente, de novo, no árido terreiro de uma longa espera. A fé, a crença, a convicção, a esperança - para o caso é o mesmo - tornar-se-iam subsequentemente numa espécie de compulsão, capaz de superar a negatividade da própria espera e de instaurar austeras ou severas ordens, caracterizadas, ou pela graça divina, ou pela imagem da libertação do homem, ou ainda, num limiar 'neutralizado', para utilizar a expressão de Husserl, pela construção do homem novo.

Na Modernidade, a construção de todos os macro-sujeitos (tais como o homem comteano, o povo nacionalista, ou o proletariado marxista) assentam, directa ou indirectamente, neste mesmo alicerce ou representação original. Com efeito, devido ao que H.Rowley designou pela 'teoria das duas idades' (1964:73), ou seja, devido a esta perene descontinuidade entre os níveis do presente e do futuro, a história da conquista do futuro (de devir gradativo ou instantâneo) tornou-se amiúde na história comum de augúrios indiferidos, de desejos incumpridos e, já na Modernidade ocidental, sobretudo de autoflagelação instituída e de verdadeiras miragens, muitas vezes sujeitas a uma ética de imposição radical (ainda que involuntária e imaginariamente heróica, diga-se).

Esta situação de disputa nos modos de construção e de controlo do futuro acabaria por alterar-se, gradual mas substancialmente, nas últimas duas décadas, no momento em que a silhueta de uma nova época (ainda) moderna pareceu, a pouco e pouco, emergir. Para tal, contribuiu a articulação entre dois factos, a saber, a falência dos grandes códigos totalizantes, enquanto factor mobilizador das sociedades (nomeadamente os ideológicos), e, por outro lado, a culminante entrada em cena de novos modos de interacção tecnológicos, de uma novíssima antropologia do ciberespaço, da aceleração da (i)mediação telecrática, assim como da sobreposição do acentrado sobre o centrado, nas relações entre auditórios e emissores, quer nas linguagens, quer também nas regras que as significam. O que basicamente domina esta nova época é o que designamos por 'áreas de quase imediação' e que incluem: (1) a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média; (2) a área de propagação ciberespacial; (3) o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista; (4) a compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, (5) a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico.

A instantaneidade, neste novo quadro (que sempre se opusera ao gradativismo, enquanto modo de construção e de controlo do futuro), deixa efectivamente de ser o móbil através do qual se reivindica um horizonte salvífico, para passar a ser o elemento central de um sistema de vida que recoloca na arena do presente tecnológico uma espécie de consecução plena do agir humano, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser. Do mesmo modo, a instantaneidade deixa de ser escrava da fractura entre presente e futuro longínquo (sempre por cumprir) e passa a refluir em direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação e a sublimação exilada desse mesmo futuro, através dos aparelhamentos e simulacros tecnológicos da actualidade..

Desta confluência entre as estruturas dos horizontes de salvação regressados ao presente - devido ao apagamento dos grandes códigos que os situavam em coordenadas sempre distantes - e o próprio refluir da instantaneidade também em direcção ao presente se constitui a nova época 'das quase imediações'. Diga-se que esta época, onde ainda convergem as tarefas da modernidade, cedo viria a ser designada de modo muito variado, devido à tentação de se pretender encontrar, por ratio difficilis, um quadro de novas notações para as novas realidades emergentes.

É dentro deste quadro notacional que, para além do lexemas associados ao 'pós-moderno' (fruto e motivo de muita polémica, às vezes, excrescente), surge o lemexa globalização. É dentro deste quadro que muitos autores dos anos noventa descobriram uma pretensa anulação entre as figuras de esquerda e de direita. É também - e por fim - dentro deste quadro que emerge a chamada 'terceira via', enquanto nova herdeira dos heterogéneos imaginários da esquerda.

Anthony Giddens e o imaginário mapa cor-de-rosa: os valores e as vias

Foi nos finais do século XIX que um pequeno país, deixado ao abandono por quase tudo excepto pelos seus mitos de descoberta universal (ainda por cima reais), decidiu desenhar um mapa cor-de-rosa entre Angola e Moçambique. O ambiente da Conferência de Berlim - que levara as grandes potências modernas a repartirem o mundo com voracidade - conduziu Portugal, o tal pequeno país, à criação dessa desfasada imaginação colonial, tentando, sempre em vão, pressionar a seu favor os poderosos do limiar de novecentos. Sobrou, no entanto, a intenção de tentar sublimar a herança de uma história desmedida, através do riscado cor-de-rosa entre os limites dos Oceanos (Atlântico e Índico), abraçando assim o desconhecido entre litorais já conhecidos. Simbolicamente, o cor-de-rosa aparecia então a cobrir o desconhecido e, de modo complementar, a unir os limites marítimos já desvendados há muito. Digamos de modo figurado que o inventor da "third way", Anthony Giddens (1938), professor na Universidade de Cambridge, director da London School of Economics, autor de uma tese sobre futebol e decisivo amigo de Tony Blair desde 1997, também recebeu a cor rosa dos trabalhistas ingleses como símbolo das suas ideias que, independentemente das virtudes e valências que apresentem, tentam, pelo menos, preencher o vazio e o desconhecido da tansição planetária em que vivemos, bem como tentam ainda encontrar traços de união para a nova rede pós-nacional e global que respiramos na contemporaneidade. Analogias cromáticas e teóricas no mínimo curiosas. Passamos a analisar, ponto por ponto, o pensamento de Giddens no tocante à ideia de uma 'terceira via', ou nova esquerda, de acordo basicamente com o exposto em The Third Way: The Renewal of Social Democracy (1998), em Runaaway World (1999) e também na Revista Construire (1999).

Democratizar a democracia criada na segunda metade do século XX

Para o autor, a 'terceira via' poderia ter um outro nome bem mais consentâneo com os seus próprios propósitos pragmáticos, ou seja o de projecto de "modernização da democracia social". Trata-se de reactualizar a Modernidade e, nesse sentido, desafiar novas interacções na malha social de modo a opitmizar a frágil tradição democrática. É fundamental sublinhar que, para Giddens, no campo estritamente político - contíguo e transversal a muito outros - se está a produzir uma tremenda mudança de paradigma. E o ponto de partida da 'terceira via' confina-se com este facto, já que, nem as esquerdas tradicionais, nem o neo-liberalismo estão em condições de apreender e enfrentar um tal nível de mudança, segundo o seu mentor.

Até ao limiar dos anos setenta, no pós - II grande guerra mundial, a emergência do "Estado social" (demasiado burocrático e até memso antidemocrático nas suas implicações últimas) e de toda a panóplia de reformas que o acompanharam determinaram o jogo de todas as outras políticas. Um limitado campo de possíveis ficou traçado durante esses anos de incremento, a par do horizonte da guerra fria e das derivadas de dominação do globo daí decorrentes.

As novas condições de temporalidade e de espacialidade (instantaneidade tecnológica e globalização), assim como as novas redes de códigos múltiplos - espalhadas como risomas e não já ditando as suas leis decisivas como troncos absolutos -, criariam, ao longo da década de noventa, uma novíssima realidade para a qual todo o leque de respostas clássico se tornou irremediavelmente caduco. A velocidade actual das interacções já não se compadece com a esquerda dos futuros perfectíveis, nem com a desacreditada arena dos liberalismos. Nesse sentido, impõe-se, como princípio elementar da 'terceira via', "democratizar a democracia".

Nessa linha de ideias, é preciso insistir que o projecto de Giddens continua a rever-se como um movimento de centro-esquerda, cujos objectivos não se limitam a ocupar um estático espaço político situado entre o "liberalismo do mercado" e o socialismo "old style". A 'terceira via', ao invés, assume-se sobretudo com uma tentativa de responder às enormes mudanças que o mundo de hoje nos apresenta, com particular ênfase para o impacto da globalização (ponderando aí, quer os lados positivos, quer os riscos e ameaças).

Novo contrato social e cidadania ("No rights without responsabilities")

Para além do desígnio democrático que é afinal a base da nova adequação entre a realidade e o fazer-político específico, a 'terceira via' assume também o desafio de articular uma tradição valorativa da esquerda (liberdade, igualdade, controlo do futuro) com os novos dados que o mundo emergente nos está a devolver na actualidade.

Em primeiro lugar, o socialismo e a social-democracia devem, segundo Giddens, deixar de se confundir com o peso do Estado-providência. Pelo contrário, o que a nova esquerda quer evitar é um sistema que encoraje a passividade e a negligência, em defesa de um sistema de vida eclético que leve as populações a assumir riscos e a reconhecer que existem obrigações e responsabilidades suas para com a comunidade. Em última instância, tentando sintetizar, o que se deseja é essencialmente (a) iniciativa e rotatividade no agir livre de todos, cidadãos e entidades que os representem; (b) fim do espectro do estado guarda-chuva todo protector, enquanto remédio incontornável para todos os males sociais; e nessa medida aponta-se talvez (c) para uma freudiana 'morte do pai', através da qual o "retomar da humanidade" (A.Tourtaine) que foi e é a Modernidade se cumprisse de vez.

Por outras palavras, torna-se inevitável, para os adeptos da 'terceira via', que a reconstrução do Estado social no Ocidente se venha a instituir através de um novo contrato social. Ao invés de "desmantelar" o Estado social actual, a 'terceira via' pretende reconstruí-lo e reedificá-lo através de um novo contrato que inclua a natureza - e não só a cultura -, uma nova perspectiva de cidadania - onde cada um se torne num sujeito-autor da vida social - e, por fim, um novo conjunto de instrumentos que se adequem à vida em rede da contemporaneidade.

Liberalismo cívico e espaço público

Hoje em dia, todo o mundo se transformou numa rede de proximidades. Na visão de Giddens, este universo de interacções sem retorno aplica-se directamente à figura bem real dos "ricos" e dos "pobres". Quer isto dizer que, ao pensar-se o mundo, se deve evitar o gheticização, de modo "a impedir que os ricos se tornem numa classe à parte", excluída da sociedade, como acontece nos Estados Unidos (e não só...), onde estes se "barricam" nas suas escolas, áreas, hospitais, seguradoras, etc . Uma parte da solução - capaz de abranger todas as minorias que se individualizam na sociedade pós-ideológica - é a reedificação do espaço público através do que o autor designa por "liberalismo cívico".

O "liberalismo cívico'e, para o autor, o próprio esforço de recuperação do espaço público com que a Modernidade sempre terá sonhado em surdina. Giddens avança com o exemplo da insegurança urbana e refere que a prevenção da criminalidade passa menos pela mobilização activa das forças policiais "high tech", do que por um efectivo regresso às normas de civilidade na vida quotidianas da polis. Para a 'terceira via' é, pois, necessário assegurar às populações (e é preciso que as populações sobretudo assegurem) o acesso a uma forma de vida quotidiana, cujas disputas se insiram dentro do jogo democrático (independentemente dos contornos funcionais e institucionais que este venha a adquirir a prazo). Para Giddens, a 'terceira via' enfatiza particularmente este reatar do espírito de uma cultura cívica; de uma nova educação valorativa no seio da polis.

Igualidade, capital humano e novo sector para a população activa

Face às grandes fracturas globais, sobretudo no que diz respeito ao permanente incremento das desigualdades sociais no mundo, Giddens é particularmente céptico quando confrontado com as propostas mais protestárias, panfletárias e arcaízantes das esquerdas. A 'terceira via' chega mesmo a condenar a solução clássica, segundo a qual o que urge é uma simples distribuição (ou redistribuição) dos recursos, de modo a que as populações possam atenuar os actuais fossos entre ricos e pobres. O que de facto importa é antes uma redistribuição das possibilidades. É aí que, segundo Giddens, reside a chave de uma matriz de justiça social compatível com a nova sociedade que está a emergir no dia a dia. Nessa medida, torna-se imperioso adoptar um sistema que invista decisivamente nos recursos humanos, isto é, no próprio capital humano. Daí também o papel fundamental, senão vital, da formação - diga-se, da formação contínua - na actualidade.

Com efeito, por exemplo no que diz respeito à complexidade dos novos problemas urbanos - os sem abrigo, as novas pobrezas, as doenças sociais, as minorias imigradas - exige-se sobretudo um cômputo de "respostas sofisticadas" e sem receituário fixo, mas que, em primeiro lugar, não se limite a basear-se na simples e clássica redistribuição decretada de recursos.

Giddens vai mesmo mais longe e alerta até para factos e valores corrosivamente novos. Segundo o autor, é necessário preparar uma nova sociedade onde a figura do 'trabalho' deixe de desempenhar o mesmo papel central que sempre desempenhou na vida das populações; pode até imaginar-se uma sociedade onde ninguém será obrigado a trabalhar (sem que, com isso, o espírito utópico de Bakunine se torne no do súbito vitorioso pós-moderno). De qualquer modo, estas condições de possibilidade são totalmente novas face às tradições mais dogmáticas da esquerda.

Dentro destas expectativas - que a complexidade da nova vida suscita - urge criar, sempre segundo Giddens, um novo e inovador sector de actividade "mais empreendedor" do que os tradicionais onde não se use necessariamente, nem o dinheiro, nem os mecanismos mais directamente ligados ao mercado; mas onde, por outro lado, sejam encorajados o espírito da criatividade e o decisivo investimento nos "recursos humanos". Um exemplo dado pelo autor à revista Construire recai precisamente nas universidades americanas, onde os estudantes, ao desempenharem uma qualquer tarefa comunitária, podem depois cumulativamente agregar e transpor as suas horas de trabalho para um chamado "banco de tempo". Este "capital de tempo" permitir-lhes-á comprar serviços, como por exemplo uma formação mais especializada no domínio a, b ou c, ou ainda outros produtos. A partir deste exemplo, podem imaginar-se - por expansão e metonímia - muitíssimas outras aplicações e possibilidades.

Valores em risco: a família

No quadro da cada vez maior confluência entre espaço público e privado, Giddens defende que a nova esquerda se deve preocupar com a actual (des)estrutura da família e com a igualdade entre os sexos. A actual sociedade destradicionalizou-se definitivamente e, portanto, o regresso à família tradicional mais não é do que uma miragem da direita. Daqui se infere que a livre escolha dos casais e dos sexos é uma emergência a acompanhar com criatividade e sem amarras moralizantes, ao nível da decisão política.

Neste amplexo, segundo a 'terceira via', a protecção da criança deve ser remetida para um primeiro e incontornável plano.

Em defesa de Estados-nações cosmopolitas

Um facto fundamental da contemporaneidade é a mudança de natureza da figura do 'Estado-nação' (ela que constituiu um dos símbolos-chave do comunitarismo moderno), devido sobretudo à globalização que lhe tem inevitavelmente subtraído algumas "prerrogativas" (não apenas no campo económico). Este facto parece revelar uma autêntica cabeça de Janus, já que, por um lado, dá origem hoje a reacções singulares e até imprevisíveis no tocante a desígnios de autonomia local, embora, por outro lado, as velhas fronteiras clássicas se estejam a tornar fluidas ou a anular-se, ainda que sempre enquadradas e integradas economicamente pela nova economia global. Dir-se-ia que estamos face a uma hibridez que atravessa, quer a economia global, quer o que se designaria por transição lenta para o pós-nacional, de que o melhor exemplo, porventura, segundo Giddens, são as grandes metrópoles dos nossos tempos. Com efeito, o papel das grandes cidades está cada vez mais a "metamorfosera-se", até porque o caleidoscópio das suas variadas interacções e links as insere permanentemente, seja na esfera global, seja na esfera local, seja mesmo na esfera nacional. Deste modo, as antigas Cidades-República da Renascença convertem-se agora em Cidades-Globário (de acordo com a noção por nós utilizada em Anjos e Meteoros, 1999).

Para o autor da 'terceira via', o que de facto está a mudar neste novo mundo em transição é a própria ideia de soberania que deixa de se esgotar no íntimo dos Estados, para se passar a jogar nas arenas internacionais (há dias, Maria Lurdes Pintasilgo, ex-Primeiro Ministro de Portugal nos idos do pós-revolução de 1974/5, dizia, num raro debate televisivo, que defender a soberania, hoje em dia, é sobretudo defender, nas instâncias mundiais adequadas, novas estruturas económicas para a Índia, novos aproveitamentos de recursos na Indonésia, etc). Para Giddens, as soberanias estão sobretudo a transformar-se em planos múltiplos, transversais e - mais uma vez - fluidos, sem grande definição possível. A guerra do Kosovo foi, segundo o autor, um combate entre o "cosmopolotismo nascente- onde se reconhecem novas dimensões para as soberanias - e um "nacionalismo quasi-místico e tradicional", ligado ainda ao imaginário do território. Outros pontos - particularmente sensíveis - da Europa podiam enquadrar este exemplo, de que o Kosovo foi uma triste hipérbole e metáfora também.

No entanto, a 'terceira via' não despreza o papel clássico dos 'Estados-nações', muito antes pelo contrário. Giddens prefere salientar que não é desejável sequer imaginar uma sociedade onde tudo remetesse para a ordem do global. Por exemplo, no âmbito das identidades nacionais, é, hoje em dia, impossível supor um fim à vista para a aspiração colectiva/imaginária das fragmentações ou das secessões. No seio dos nacionalistas escoceses - e o exemplo é de Giddens - existe ainda um partido de "highlands", daí que a nação cosmopolita se torne cada vez mais indispensável, enquanto verdadeira mediação entre as "políticas locais" e as "tarefas globais".

Esta "nação cosmopolita- fundamental no eixo teórico de Giddens - é uma nação que sabe repensar a sua própria identidade, mas em estreita relação com toda a amálgama de mutações que estão a afectar o mundo. Para a 'terceira via', este auto-exame permanente das identidades, seja em que país for, deve constituir um reexame do passado e da experiência presente, embora sempre reformulado num contexto mais largo e aberto.

A importância do cosmopolitismo na análise de Giddens conduz mesmo o autor a ilações sobre a pertinência e adequação desse 'universal' que é a esquerda, já que uma boa parte dos conflitos actuais - continua o patrono de Blair - deixaram de ser conflitos que correspondem à estrutura binária e clássica de direita/esquerda, para passarem a ser conflitos entre "princípios cosmopolitas" e princípios "fundamentalistas".

Giddens, as utopias possíveis e a procissão ainda no adro

Antes de The Third Way: The Renewal of Social Democracy (1998) e de Run aaway World (1999) - baseado nas Reith Lectures da BC do ano de 1999 - Giddens, na conclusão de The Consequencies of Modernity (1990), refere-se às utopias possíveis que a actualidade nos pode, de algum modo, reservar. A repescagem desta análise é decerto interessante, por ser, por um lado, anterior à conceptualização da 'terceira via' e, por outro lado, pelo facto de a tradição da utopia (ao lado do programa mais rígido da ideologia, de matriz oitocentista) constituir um dos esteios construtores do pensamento tradicional da esquerda.

Da leitura das últimas páginas da obra de Anthony Giddens (1998/edição portuguesa: 120), depreende-se que a época actual "está cheia de altos riscos", o que faz com que as utopias sugeridas pelo presente sejam sobretudo defensivas; quer isto dizer que escolhem o próprio presente como quadro de acção e não tanto a esperança, ou o futuro. Os quatro exemplos referidos por A. Giddens (ibid.:120) são, em jeito de círculo fechado, - o desastre ecológico, o conflito nuclear, o totalitarismo procedente da globalização (já que esta gera "eventos onde o risco e o acaso assumem uma nova natureza"; ibid.:125) e, por fim, os potenciais colpasos dos mecanismos económicos. Com efeito, o realismo utópico de A.Giddens, cruzando o local e o global com a liberdade ("política da vida") e a "política emancipatória", parece assentar essencialmente na convicção de que "a história não está do nosso lado, não tem uma teleologia e não nos dá garantias"; por outras palavras, - a história parece ter refluído, de vez, para poder salvar a própira esfera do presente, ou, como adiantou J. Baudrillard, a história parece ter-se tornado no "nosso referencial perdido", isto é, no "nosso mito" (1981:59).

Esta desestruturação do tempo da esperança teve eco noutros autores, no início da década de noventa. Pierre Breton - que no presente se mostra bem mais optimista - no final do seu talvez já clássico Utopie et communication (1994/edição portuguesa:140) refere quatro diferentes representações que hoje temos "do que será o futuro". As primerias três (as ideologias de exclusão, as utopias verdes e as teorias do liberalismo - entre elas a de F.Fukuyama) quedam-se, segundo o autor, apenas pelo presente e apenas a quarta parece iluminar o fosco caminho de um futuro pressentido: "A única imagem do futuro de que ainda dispomos é justamente a de uma sociedade de comunicação hipertecnológica". De facto, se é verdade que os mecanismos telemáticos se parecem converter num fim em si mesmos, agora, segundo P.Breton, até acabariam ironicamente por surgir, de forma isolada, esboçando rasgos utópicos. Será a nova esquerda escrava da segunda humanidade de sujeitos-cyborg que a hipertecnologia está a construir ?

É difícil responder, até porque a 'terceira via' europeia deseja fundir o inevitável individualismo dos dias de hoje com uma também incontornável economia de mercado. No fundo, trata-se de ancorar as tarefas da Modernidade ao presente - e não tanto aos rasgos utópicos que a ausência de futuro nas nossas representações está a gerar (daí, talvez, que a própria utopia se possa autonomizar face à tradição da esquerda que sempre a acolheu, para passar a traçar novos caminhos no seio da mediação tecnológica); no fundo, trata-se ainda de mobilizar a sociedade, sem recalcar o indivíduo, para que se garanta (um mínimo de) controlo democrático sobre a produção selvagem e estandardizada de imagens, valores e consequente desfasamento na repartição de riquezas e da qualidade ambiental. Contudo... a procissão ainda vai no adro.

Quais os critérios para aferir da posição da esquerda no mundo de hoje?

Para responder à pergunta e, subsequentemente, para poder concluir e comentar acerca da digressão teórica de Giddens sobre a 'nova esquerda', passo a analisar dois artigos em que os seus autores se propõem clarificar os objectivos actuais da esquerda (nomeadamente, Manuel Maria Carrilho, ex-ministro da cultura de Portugal e filósofo, publicado no Diário de Notícias de Lisboa de 17.12.98 e Mário Soares, ex-Presidente da República de Portugal, publicado no Público de Lisboa de 19.12.98). As presentes reflexões contribuirão, não apenas para clarificar o quadro onde o pensamento político de Giddens se insere, mas também para a procura de uma conclusão - ainda que sempre provisória - sobre o tema.

Os artigos de Mário Soares e de Manuel Maria Carrilho

Embora retoricamente forte, e explorando um universo citacional vasto, o agora ex-ministro da cultura sintetizou, no seu artigo, três metas estratégicas para uma governação de esquerda, a saber: - (1) a solidariedade como um imperativo; (2) o futuro como perspectiva; (3) o mercado como instrumento.

No primeiro ponto, Carrilho fundamenta a necessidade estratégica, e talvez idealista, de qualquer medida política dever necessariamente ter como alvo "as pessoas" e não o mero simulacro estatístico, enquanto barómetro essencial da acção. No segundo ponto, Carrilho, ao relembrar a ideia de futuro, salienta que o presente é um domínio preferencial da direita, na medida em que, teorizando o inevitável termo do rasgo utópico, melhor assim legitima a lisura do quotidiano liberal tout court, como exclusiva possibilidade de gestão do universo. No terceiro ponto, Carrilho, citando Gauchet, opõe a ideia subserviente e peregrina de "sociedade de mercado`a de "economia de mercado", a qual, ao invés de se constituir como fim em si mesmo, mais não deverá ser, no entanto, do que um simples instrumento ao serviço da solidariedade e da construção de metas de futuro.

Mário Soares, por seu lado, ao orientar o seu raciocínio num delicado contraponto ao que foi o discurso de Estocolmo do nobel Saramago, baliza a sua explanação em dois campos cruzados.

No primeiro desses campos, Soares acata a realidade nua e crua da actual alteração dos espaços naturais de comunicação, nomeadamente no que diz respeito aos Estados-nação que, para o ex-Presidente da República, "estão a ser corroídos e altamente condicionados pelas grandes empresas mundiais"; Soares sublinha particularmente o perigo que estas empresas da globalização representam, pelo facto de não estarem sujeitas a qualquer "controlo de tipo democrátrico".

O segundo campo enunciado por Mário Soares, mais optimista - na linha de Derrick de Kerckhove -, refere a existência, em embrião, de uma "ainda incipiente, mas já perceptível" opinião pública mundial - de que o caso Pinochet seria modelo, embora em forma de escorço simbólico. Curiosamente, Mário Soares encerra o seu artigo com um leque de perspectivas que não diverge, em muito, do reflectido por Manuel Maria Carrilho.

Os três pontos, presentes na síntese do ex-ministro da cultura, manifestam-se, no texto de Soares, em outros três momentos: (1) ao responder à pergunta - "Governos de esquerda para quê ?", - o ex-presidente refere, como meta última destes, "dar sentido à solidariedade"; (2) quanto à perspectiva de futuro, embora de modo mais vago, Soares termina o seu artigo questionando: "Para onde se encaminharia a União Europeia, se nesta hora decisiva, lhe faltasse a generosidade e a solidariedade (...) e o sentido da responsabilidade perante um mundo que tanto espera dela ?"; (3) Por fim, tendo como referente a omnipresença do mercado, Mário Soares, na conclusão do seu artigo, é levado a citar o ex-chanceler Khol: "A Europa não é só uma questão de dinheiro- para rematar de modo algo irónico - "Não é, obviamente. Embora as aparências, às vezes, apontem em sentido contrário...".

Esta deriva teórica merece da minha parte alguns comentários, a saber:

1-Sabe-se que as ideologias - entendidas como programas sintacticamente arrumados, capazes de simularem o domínio do tempo através do anúncio de um futuro perfectível, deixaram de ser um factor mobilizável e actuante no mundo de hoje.

2-Por seu lado, o espírito utópico, ancorado no tempo nos idos de Proudhon - e já não na pura imaginação original de T.More, mas incorporado, depois - ainda que em fragmento e à força - nas variadas ideologias, parece hoje conquistar algum espaço da sua pureza autónoma e original, sobretudo enquanto modalidade parcial, "acentrada" (Vatimo), às vezes até marginal, mas jamais submetida à pressão dos grandes códigos totalizantes.

3-Posto este facto - que é pelo menos subjacente às reflexões de Carrilho e Soares -, deve contudo referir-se que ambos se limitam, nos artigos em causa, a recuar até aos alicerces mínimos de uma imaginação de esquerda. Ou seja, até à recuperação da ideia de futuro, enquanto reflexo da crença oitocentista do "progresso" e, em segundo lugar, até à preocupação solidária, enquanto reacção à desumanidade produtiva da modernidade, na sua génese. É caso para dizer que, quanto duas intervenções - tão significativas e simultâneas como são as de Soaers e Carrilho - praticam este regresso à idade do ouro da reflexão da esquerda, é porque estamos diante de um verdadeiro sintoma dos tempos. Que sintoma será esse ?

Creio que esse sintoma nos diz que, actualmente, não existe, de facto, um programa fechado e hermeticamente definido para as esquerdas. Mais: a definição de esquerda e de direita não coincide, hoje em dia, nem com o espectro semântico dos partidos existentes, nem com as delimitações que as inquietações globais mais suscitam. Por outros palavras: esquerda e direita deixaram de ser entidades absolutas, para passarem a nomear faixas de interesse da ordem do acidental e do contextual. Tendo pertinência no jogo das significações da arena política, a legitimidade mobilizadora da entidade esquerda-direita desaparece, esvai-se ou timidamente ressurge, à medida da oscilação das conjunturas particulares que definem os eventos. A esquerda - na sua forma pura - é assim, cada vez mais, nos tempos que correm, uma referência quasi-residual e afectiva, cujo cerne pertence a uma certa nostalgia utópica, mais ligada à mensagem (performativa), do que à acção consequente, propriamente dita.

4-O que será novo, nos textos de Soares e Carrilho, é, talvez, o cariz interpretativo com que se recupera o inevitável mecanismo do mercado, visto como "alvo meramente instrumenrtal", ou como espaço mega-empresarial que é necessário "controlar" democraticamente. Diria ainda que a reflexão sobre o espaço público, no que Soares designa por esboço de uma futura "opinião pública mundial", corresponde a uma novíssima forma de afirmação dos cidadãos da nova polis-global. E é evidente que o seu incremento - no âmbito também das novas ciber-linguagens - vai ser um factor decisivo de afirmação no próximo milénio (o que é subliminar, apenas, cmo veremos, na análise de Giddens).

5-Constatando-se que não existe - na actualidade - um programa fechado e hermético para a(s) esquerda(s), passo a deixar, em aberto, - antes ainda de qualquer conclusão - uma perspectiva enriquecedra de Jacques Derrida que creio complementar da viagem às origens de Carrilho e Soares.

Derrida fala da necessidade de uma nova política que apelida simbolicamente de "amitié". Nela inscreve, como vitais, o "elemento teletecnológico" e o "discurso sobre o excluído". De um lado, um novo (e ainda impredizível) tipo de produção de mensagens e de discussão mundial (e mesmo de mercado); do outro lado - tendo em conta que o presente século gerou mais população que toda a vida humana desde o seu início - as inevitáveis relações de integração entre minorias e maiorias, a inscreverem-se como magno problema global (não só ao nível da exclusão/inclusão/diferença, mas também ao nível da gestão dos parcos recursos do planeta). Olhando para a frente, abrindo-se mesmo a um percurso utópico original, não sujeito a uma rígida gramática futurologista, Derrida acabará por concluir que a própria noção de democracia "está sempre por vir". Isto é, tal como a Europa, "a democracia permanece in-finitamente" aperfeiçoável, pois "mesmo quando existe uma Europa democrática, mesmo quando há democracia, estas nunca existem como tal, nunca são presentes, hoje, aqui e agora" (in O Outro Cabo).

6- Passemos, então, à síntese final que a discussão entre Soares e Carrilho nos sugeriram. A recriação da imaginação utópica, no seu sentido original, protagonizada por Derrida aglutina, à desdramatização do futuro e à solidariedade, a necessidade de encarar o mundo como uma aldeia cosmopolita - a polis - numa inovadora e crescente interacção global. Por outro lado, à necessidade de controlar o poder da mundialização empresarial (para impedir desajustamentos na administração dos grandes espaços de comunicação, bem como dos recursos ecológicos), acrescente-se o renovado poder manifestatário que o espaço público do globo parece deter (o que Soares reflecte através da perífrase - "opinião pública mundial") e que Derrida prescreve teoricamente, ao nível da autoconstrução de um sistema que deve ter sempre, como um fim em si mesmo, a democracia. É neste telos democrático - com um espaço vital que já não é o da nação - que tudo se irá jogar. Em breve. O jogo parece não andar longe das preocupações de Giddens, ou não fossem Soares e Carrilho (este último, um amigo confesso de Derrida) dois socialistas, embora de diferentes matizes.

Conclusões

Da esquerda em geral

Apesar de a esquerda ser um 'universal', ou seja, um género que pretende reunir diversas categorias e práticas particulares, ainda que heterogéneas e às vezes não codificáveis numa mesma área de afirmação, a verdade é que seria falacioso e simplista concluir de modo reducionista que o mundo é o mundo e que os modelos são os modelos. Com um tal simplismo querer-se-ia, porventura, reduzir a realidade a uma mera sequência fantasmática e inatingível - quase platónica - e, nessa ordem de ideias, qualquer modelo ou 'universal' seria votado à indeficácia, à reciclagem. Contudo, no caso da esquerda e em muitos outros - veja-se o caso dos sempre transitórios 'universais' científicos -, é impossível separar o género de uma tradição recheada de factos, emoções, desígnios, visões, sacrifícios, erros, êxtases, vitórias, derrotas e sobretudo de encantamentos e vislumbres. Há, pois, casos em que o nominalismo radical não é bom conselheiro e, nesse sentido, devo, desde já, demarcar-me dos que crêem que a nova era das mediações tecnológicas é a era da abolição do falso binarismo esquerda/direita. Em minha opinião, esse binarismo mantém-se, embora amiúde colocando-se no exterior da mobilização social contemporânea, com também dos limites de muitas das actuais 'grandes questões' (como o tal mapa cor-de-rosa do final de oitocentos)

Para aferir dos citérios capazes de situar a esquerda num mundo de hoje, urge ter em conta os seuintes factores:

a)Em primeiro lugar, é verdade que a única reflexão séria é aquela que parte para o mundo sem quaisquer condicionamentos anteriores. O olhar analítico deve ser, com efeito, ilimitadamente depurado, descategorizado e livre de ruídos pré-adquiridos.

b)Em segundo lugar, é verdade que um olhar analítico sobre o mundo nunca pode ser ileso à história de outras análises anteriores e até das categorizações dominantes, mesmo se falaciosas e desfasadas do próprio real. Até porque elas - qual nuvem de poeira a vaguear pelos ares - também compõem aquilo a que chamamos 'o real'.

c)Entre o homem e o mundo há como que uma permanente e perturbável 'corrente de ar' que coloca, a cada instante, o pensamento, por um lado, a tentar sondar o que é esse processo cricunstancial designado por 'real' e, por outro, a tentar reescrever inevitáveis modelos que o possam traduzir.

d)Nesta medida, esquerda e direita limitam-se a constituir-se enquanto parâmetros, através dos quais a conflitualidade da era moderna se representa (até agora) na área da - chamemos-lhe - utopia social. São, de facto, parâmetros que muito se fragilizaram, quando os 'grandes códigos totalizantes' - sobretudo ideológicos - deixaram de ser mobilizadores das sociedades onde o moderno, pelo menos em parte, se esgotou.

e) Por outro lado, esses parâmetros reproduzem também lógicas de afecto, redes de consciência irracional, de impertinência analítica, de deformação racional, de inevitável carga sentimental e constituem-se, portanto, como anteriores à própria categorização da realidade, enquanto tal.

f) Concluindo, a razão nem estará na frieza marciana dos que aboliram o modelo esquerda/direita, nem estará nos que se limitam - de modo mecanicista - a definir o mundo através do abismo irrevogável entre esquerda e direita. A razão está sempre - penso - nesse lugar onde não existe a possibilidade de caracterizá-la a cem por cento e, portanto, de maneira decisiva. Porque, no seio da própria razão, também tem que existir uma alma, ou uma evidência contraditória; talvez tão-só uma coloração afectiva. Quem sabe se a futura tradição da esquerda, apeada do devir exclusivamente utópico, não acabará por abraçar esta dúvida de quem duvida, apenas porque encara a realidade, não como um mar de respostas a encontrar de modo fechado, mas antes como uma complexidade imparável de perguntas e mais perguntas ? É esse o desígnio da ciência e sabe-se que foi o modelo da ciência que Lyotard um dia invocou para desmaterializar o que parecia aparentemente sólido: a própria Modernidade (afinal de contas, a própria casa original das esquerdas, ou a simbólica Ítaca original de onde tantos Ulisses sempre partiram, de provação em provação, apenas para sonharem com um regresso, com uma certeza).

Da 'terceira via' em particular

Regressando à 'terceira via', aliás enquadrada dentro da necessidade de reposição dos valores residuais da esquerda no novo tempo-espaço da actualidade, creio que há virtudes e fragilidades a apontar. Comecemos pelas primeiras:

1-Parece ser feliz a substituição da 'distribuição equitativa de recursos' em benefício de uma nova atenção face ao capital estritamente 'humano'. Esta medida é inovadora, cheia de potencialidades e transporta consigo uma tradição que liga paradoxalmente o Humanismo e o espírito das Luzes aos dias do chamado pós-moderno.

2- Parece existir também coragem no modo como Giddens se confronta com o espectro do Estado-providência e, portanto, com o fantasma das reformas para a terceira idade. Ou seja, do mesmo modo que o capitalismo global carece de mecanismos de controlo - aliás, é essa até a opinião de Soros em The Crisis Of Global Capitalism (1998) - urge, no presente, criar condições de possibilidade que definam os mecanismos de controlo do mercado, não apenas no quadro das regras estritamente ligadas ao jogo financeiro, mas igualmente num novo quadro ao serviço da solidariedade social. Nesta medida, o papão do Estado-providência deixa de ser um das matrizes taxativas e dogmáticas de luta da esquerda. E é também uma forma de separar a 'sociedade de mercado' e a 'economia de mercado' (retomando aqui Gauchet, citado mais acima na reflexão de Carrilho).

3- Também a atenção devotada ao espaços público e privado, em todas as suas variantes (democratização, civismo, definição de princípios, etc), parece vital para colmatar e diluir um dos problemas fulcrais das sociedades urbanas da actualidade: a afirmação as minorias e a inevitável aceitação de diferenças ou a coabitação dos mundos do mundo. A ideia de Derrida centrada na "amitié", onde são essenciais o "elemento teletecnológico" e o "discurso sobre o excluído", não está muito longe deste patamar teórico da 'terceira via'.

4-Talvez a contribuição mais importante da 'terceira via' é a que centra o seu pensamento na ideia de um novo 'contrato social'. Mas insisto: contando sempre com a natureza, e não apenas com o mundo fáustico que o homem, a partir dos finais do século XVIII, pasou a definir como cultural.

5 - Também a ideia da "nação cosmopolita" de Giddens se parece constituir como um vector de reflexão social fundamental dos tempos contemporâneos. Sobretudo porque a realidade (incluindo na noção de realidade a própria virtualidade hipertecnológica, ou a chamada 'segunda humanidade') é muito mais complexa e célere nas suas manifestações do que a temporalidade clássica das medidas políticas de resposta (de que a esquerda é herdeira, devido sobretudo aos traumas da sua tradição ultra-planificadora). Nessa linha de ideias, parece-me essencial entender a 'nação cosmopolita' de hoje como uma adequada e permanente mediação entre as "políticas locais" e as "tarefas globais" e como uma identidade mutante sempre atenta às mutações omnipresentes no planeta.

Passemos agora às fragilidades que a 'nova esquerda' parece deixar em suspenso:

1-A discrepância e inequidade dos paradigmas sociais e económicos que afectam o planeta não parece merecer uma resposta convincente por parte da terceira via. Os argumentos sobre a desgheticização são isso mesmo: argumentos. No entanto, compete-me duvidar e interrogar: haverá algum dia - fora das cartilhas imaginárias dos homens - uma solução ideal para um tal problema dos problemas ?

2-O controlo dos mecanismos de mercado parece uma tarefa de Sísifo, enquanto é certo que o Estado, por si, está condenado a não satisfazer as necessidades de uma sociedade onde a demografia impõe leis inexoráveis e sem retorno. Será que a reconversão dos sectores económicos de actividade, apontada por Giddens, é, por si só, alternativa ? Fica a pergunta e sobretudo a imensa dúvida.

3-A chamada 'segunda humanidade', i.e., o horizonte futuro de um mundo virtual de sujeitos-cyborgs e as novas plataformas tecnológicas e expressivas que estão a emergir no planeta não parecem estar reflectidas no pensamento da 'terceira via' com a consistência que a questão exige e exigiria.

4-Num mundo contemporâneo dominado por fluxos (de consumo, de viagem, de navegação, de linguagem, de bolsa; cf. nosso ensaio Órbitas da Modernidade, 2000 ), o 'agir livre' de todos parece bastante comprometido. Assim sendo, constata-se que um dos valores fundamentais da tradição da esquerda - a liberdade - não aparece na reflexão de Giddens como um problema fulcral a requerer as devidas soluções, dúvidas e interrogações (até porque a questão da liberdade, na secção "política da vida", em The Consequencies of Modernity -1990, incide mais no conceito de 'liberdade para' - tendo, na linha de Tourraine, como referente os outros - do que propriamente no 'agir livre' no âmbito dos circuitos teletecnológicos da actual era das quase imediações).

De qualquer modo, as novas esquerdas que se queiram repensar e reinstituir, no seio da rede actual das mediações tecnológicas significadas por um risoma de códigos - já não totalizantes e carregados de idealidade - têm que assumir como pontos de partida a distribuição de recursos (e de que tipo de recursos), o papel do estado e do mercado, a dimensão do espaço público, o multiculturalismo, a natureza, a liberdade e, claro, tendo em conta o tempo da instantaneidade e o espaço mundializado onde, a pouco e pouco, totalmente desideologizada, mas reatando uma tradição utópica moderna (de Verne a Huxley), uma 'segunda humanidade' artefactual e hipertecnológica está a brotar.

Sem querer ver o mundo, não há esquerda. Nem direita. Nem nada. Há apenas mundo. Esperemos que a tradição enforme a inovação e que esta se reveja no imprevisível, na dúvida, mas sobretudo na urgente e inadiável ordenação do presente.



Notas de rodapé

... Carmelo1
Escritor e Professor de Semiótica da Universidade Autónoma de Lisboa - Julho de 2000