À luz do deslize da “ipséité”
De Ricoeur às demandas reflexivas de Deleuze e Damásio

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

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1 - “Une philosophie de l´ipséité comme la nôtre” [1] .

Para Frege, o significado consiste na forma como um objecto nos é dado e encerra, em si, um conteúdo que não é de cariz psíquico, correspondendo antes a uma idealidade que pode ser identificada, em tempos e indivíduos diferentes. Para Husserl, esta idealidade acabaria por estender-se a todos os actos volitivos, emocionais e perceptivos. Estas postulações, no entender de Paul Ricoeur de Teoria da interpretação [2] , tiveram bastante importância para o princípio do fim da hermenêutica romântica que tendia a identificar a interpretação com a compreensão, enquanto mero reconhecimento das intenções de um dado autor, considerado do ponto de vista dos seus destinatários, na situação original, e portanto histórica, do discurso [3] .
Ricoeur chegou mesmo a frisar que este corte significava uma verdadeira inversão da historicidade em logicidade “na explicação geral das expressões culturais” [4] . Nesta medida, um relato acabaria sempre por converter-se em mensagem de cariz atemporal, assentando o seu discurso numa idealidade condicionada pelas experiências e expectativas de um dada actualidade, até porque a complexidade dos horizontes em presença levaria estes a fundir-se, ou a divergir dos mundos activados por leituras sucessivas, como Gadamer postulou em Verdade e Método. A tarefa da hermenêutica seria, assim, a de integrar, ou recolocar mensagens no âmbito do presente, através de um certo tipo de diálogo, essencialmente baseado na pergunta e na resposta, colocada a explicação e a compreensão num plano de necessária complementaridade, embora com primazia para esta última (ao contrário do que acontecia com a semiótica de Greimas e do que, em planos opostos, o círculo de Viena e Dilthey advogaram [5] ).
Como Paul Ricoeur adiantou, a interpretação, entendida a um tal nível, como que pretenderia “igualizar, tornar contemporâneo, assimilar, no sentido de tornar semelhante” (1996:103), já que ela actualizaria sempre a significação do relato para um dado leitor presente. A esta actualização faz o autor corresponder, conceptualmente, o termo “apropriação”. Neste movimento plural de eventos discursivos, a idealidade de um texto torna-se no entreposto, ou, afinal, no ponto morto da reflexividade onde interage aquilo que Gadamer designou por “fusão de horizontes” e que Ricoeur designou por “apropriação” (ibid:105), no fundo, na linha da polaridade de Reinhart Koselleck, adoptada já em Temps et Récit III [6] .
Para a teoria hermenêutica da reflexividade de Ricoeur, a “apropriação” não tem em vista nada de mental, nem da intencionalidade de outrém. Pelo contrário, o convívio entre relato e leitor como que obriga este a dar um salto, através do qual se apropria de um novo modo de ser, por via (cito) das “referências não ostensivas”, entreabertas, ou desveladas no fruir do próprio relato. Este salto que obedece à injunção ou apelo potencial do texto está na base de uma súbita autocompreensão que concede ao leitor uma nova capacidade de se conhecer a si mesmo. É o coração do debate hermenêutico, este. Aquele em que o si, revelado através da compreensão dos mundos despertos pelo texto, contracena com o ego que pretenderia, de algum modo, precedê-los. No coração deste debate reflexivo está, por outras palavras, o que Hans Jauss designou pela “catharsis” do leitor que “procède d´une aisthèsis préalable que la lutte du lecteur avec le texte transforme en poièsis” [7] . Esta invenção súbita da e pela linguagem (poièsis), avança Ricoeur em Soi-même comme un autre (1990), irá sobretudo traduzir-se por uma afectação do si, devido à interacção entre mundos postos em movimento numa espécie de rede reflexiva, cujo ser a obra tenta situar.
A hermenêutica é entendida, em Soi-même comme un autre, como a interpretação do si. Esta, contudo, surge como estabelecendo uma equivalência rigorosa com uma mediação tripartida que é dominada pela necessidade da reflexão e sobretudo pelo conceito de “ipséité” nas suas relações com a “mêmeté” e com a “alteridade”. Neste âmbito, “mêmeté” e “ipséité” correspondem a duas significações da identidade. A primeira, “mêmeté”, no sentido de idem, está ligada basicamente à permanência e imutabilidade, ao  longo do tempo. A segunda, a “ipséité”, no sentido de ipse, está ligada ao nexo da variabilidade, do flutuante, podendo, em certos casos ou acasos, ser aferida como resultado de uma coincidência instantânea que, através do tempo, uma coisa mantém consigo própria (o que acontece, segundo Ricoeur, por exemplo, com a preservação do caracter). Mas a “ipséité” é, em primeiro lugar, o elo que melhor designa a própria filosofia de Ricoeur - o próprio o afirma explicitamente no final do sexto estudo sobre o “si e a identidade narrativa” (1990:198) - e, portanto, nessa linha de ideias, o que está em causa na “ipséité” é sobretudo um despojar-se em que o “outro”, ao fracturar a redoma ilusória do “mesmo”, permite ao si o salto que se traduz por uma crise, mas também por uma abertura radical ao outro. É por isso que a “ipséité” alberga em estado, dir-se-ia, de alta tensão o que Ricoeur designa por alteridade e que significa o “cumular das experiências de passividade misturadas, de modo múltiplo, com o agir humano” (ibid:368). A alteridade pertence, pois, “à la tenneur de sens” (ibid:367) e, portanto, à própria “constituição ontológica” da própria “ipséité”.
Resumindo: a polissemia da “ipséité” serve, de algum modo, de revelador à polissemia do outro que, por sua vez, faz frente ao mesmo. Por outro lado, ao regular esta turbulência da consciência, a “atestation” é definida por Ricoeur como o assegurarmo-nos constante de que existimos, de facto, em modo da “ipséité” (ibid:351), o que igualmente pressupõe, de forma concomitante, a suspeita, a dúvida, “le soupçon” - aquilo que para Luc Ferry é a chave de toda uma tradição filosófica moderna [8] -, enquanto constituintes inevitáveis da própria “atestation”, ou atitude verificadora.
Ricoeur situa-se, portanto, à margem, ou entre as margens da dicotomia da querela do Cogito, isto é, recoloca-se face às oscilações da filosofia do sujeito que, ou crêem cartesianamente no fundamento do eu, ou o assumem como uma ilusão, à moda de Nietszche. E, por isso, a sua hermenêutica acede às vizinhanças de uma filosofia, não da consciência dada no imediato, mas antes de teor reflexivo em que há que considerar um conjunto de mediações da própria consciência que sejam, ou fossem, capazes de interpretar os mundos onde ela, a consciência, no mundo, se reflecte. Neste quadro, o “eu sou” torna-se num produto criado pelo si, ou pelos sis que, segundo Damásio, operam entre a antecâmara da consciência (o “proto-si”) e os seus níveis “nuclear” e “alargado” [9] , mas apenas “enquanto (a consciência) é considerada como tarefa analítica, reflexiva e atestativa”(João Amaral Ribeiro, 2000:101 [10] ).
Descritos alguns traços gerais do destino da hermenêutica do si, em P. Ricoeur, após Soi-même comme un autre, passamos agora a analisar a presença de alguns elementos essenciais da discussão de Ricoeur em textos de quadros episméticos muito distintos, mas marcantes, e que versam o tema da consciência no seu “mostrar-se”, tal como Heidegger o considerou [11] . Referimo-nos, por um lado, ao conhecido texto que Deleuze publicou no número 47 da revista Philosophie (1995:3-7 [12] ), L´immanence: une vie..., a ele dedicado, e, por outro lado, num quadro relacional já mais conclusivo, O Sentimento de Si- O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência,  (2000), obra da autoria do neurocientista António Damásio [13] .
Na breve análise que se segue, tentar-nos-emos situar em alguns dados de fundo que a hermenêutica do si de Ricoeur sugere, tais como: o assegurarmo-nos de que, de facto, existimos de acordo com um modo de ser de “ipséité”; o verificarmos que é patente, nos limiares da consciência, um verdadeiro jogo da alteridade face às estruturas temporais da “mêmeté”; e, por fim, o constatarmos que existe um laço íntimo e de facto entre a “ipséité”, de um lado, e a linha de fuga que se entretece entre potência e acto, ou entre virtuais e actuais, do outro. Aliás, no derradeiro estudo, presente em Soi-même comme un autre, “Vers quelle ontologie ?”, Ricoeur reflecte acerca dos paralelismos entre alguns conceitos de Aristóteles e de Heidegger, estabelecidos por Franco Volpi (como, entre muitos outros, o de “Práxis” versus “Sorge”). É a partir destas aproximações que o autor confirma a “consolidação” (1990:362) de um limite (“jalon”- baliza) onde se pudessem colocar, lado a lado, a “ipséité” e essa linha de fuga algo indeterminada, porque rizomática, que se desenha entre potência/acto, ou seja, em termos da semiótica de Peirce, entre as categorias de firstness e de secondness.


2 -“Ipséité” e Deleuze versus Deleuze.

No artigo de Deleuze estabelece-se um conjunto de relações entre a consciência humana, por um lado, e campo transcendental, empirismo transcendental e plano  de imanência, por outro lado.
Para Deleuze, o campo transcendental define-se, em oposição ao campo da experiência, por não "reenviar a nenhum objecto, nem pertencer a nenhum sujeito". Estaríamos, pois, na área de uma "consciência a-subjectiva", onde o papel do eu não pode sequer ser concebido. Por seu lado, o empirismo transcendental surge descrito como uma multitude de dados imediatos "pré-reflexivos e impessoais", ou seja, como um fluxo pujante, sem delimitação, princípio ou fim, que se opõe ao mundo do sujeito e do objecto e que é sobretudo anterior a ele.
Se o campo e o fluxo transcendentais aparecem intimamente ligados entre si, já a noção de plano de imanência requer uma apresentação prévia da própria consciência. Segundo Deleuze, a consciência só se torna num facto "quando um sujeito é produzido ao mesmo tempo que o seu objecto", embora ambos acabem por não surgir na boca de cena da consciência, acabando antes por se tornar em entidades "transcendentes" da mesma. Sublinhemos que o lexema "transcendente" significa, aqui, que, ao observarmos o filme da nossa consciência, supomos a existência de sujeitos e de objectos, mas sem, de facto, os vermos como figuras. Por outro lado, quando Deleuze utiliza o lexema "transcendental", remete indubitavelmente para um campo prévio à consciência e que se imagina ser, como vimos, um fluxo ininterrupto de eventos, sem objectos nem sujeitos, a maior parte dos quais nem chega sequer a tornar-se presente na cartografia da nossa consciência alargada.
Nesta linha de ideias, a concepção de "plano de imanência", enquanto aplicação do campo transcendental, confunde-se com tudo o que possa escapar à transcendência do sujeito e do objecto, tornando-se em vida, ou em dinâmica, sempre pronta a cruzar-se com a actualização que os vários níveis da consciência vão levando a cabo, ao longo do tempo. Deste modo, é da vida imanente e do seu fluxo empírico transcendental que se vão separando eventos e "singularidades" que, por sua vez, se actualizam permanentemente na consciência, através de sujeitos e objectos que representam de modo ininterrupto (enquanto manipuladores de marionetas) no palco do nosso interagir quotidiano.
Este processo, não distante de uma qualquer teoria do acto, põe em evidência o emergir do virtual que, para Deleuze, é caracterizado como compromisso (engagement) que se efectiva num processo de actualização, "seguindo o plano" que lhe dá a sua "realidade própria". A esta perspectiva autotélica é preciso agora adicionar uma outra que sublinha uma dada indeterminação que decorre, no fundo, da própria turbulência processual do envolvimento real-virtual. Não estaremos, aqui, longe do reino da “ipséité”, enquanto  “mantien d´un soi”, no quadro da decomposição da identidade-“mêmeté” (cito): "Ils sont dits virtuels en tant que leur émission et absorption, leur création et destruction se font en un temps plus petit que le minimum de temps continu pensable, et que cette brieveté les maintient dés lors sous un principe d´incertitude ou d´indétermination. Tout actuel s´entoure de cercles de virtualités toujours renouvelés dont chacun en émet un autre, et tous entourent et réagissent sur l´actuel" (1996:179 [14] ).
Resumindo, diríamos que a consciência se revela em cena, através de actores não presentes, mas transcendentes (sujeitos e objectos); que a consciência se alimenta de uma actualização protagonizada por um plano de imanência (no fundo, a aplicação do campo e do fluxo transcendentais); que a consciência é um acontecer actual envolvido por um potencial desmedido de virtuais, em interacção permanente; e que, para terminar, a ponte entre campo transcendental e campo consciente, ou empírico, é construída segundo critérios que decorrem do próprio plano de imanência (autotélicos, portanto) e da “atestation”, para utilizar o termo estratégico de Ricoeur, de inevitáveis alterações - e indeterminações - que os eventos actuais e os virtuais sofrem, ao comunicarem nessa linha de falha que os separa (e que é, ao fim e ao cabo, a linha de abismo entre representável e não-representável, ou a linha de “souci” e de “soupçon” por onde também passa, pode dizer-se, o despojar-se próprio da “ipséité”).


3 - “Ipséité”, Deleuze versus Damásio e linhas conclusivas.

Se se confrontar esta leitura do texto deleuzeano com o traçado dos diversos sis que operam na consciência e na sua antecâmara (o reino do “proto-si”), tal como surge descrito em O Sentimento de Si de A. Damásio, ressalta perante os nossos olhos uma reflexão conclusiva tríptica que poderíamos, desde já, dividir em três pontos: (1) uma ordem autotélica que é própria do plano de imanência, mas também do mundo da representação e que se baseia num princípio tácito e óbvio de reflexividade; (2) as permanentes interacções/alterações sofridas pelo organismo e pelos objectos, ou, por outras palavras, a correspondente ideia deleuzeana de "circuito" actual/virtual, o que corresponde, na linguagem de Ricoeur, aos embates sucessivos entre alteridade e “mêmeté”; (3) e, por fim, a questão temporal, talvez a decisiva para avaliar do corte existente entre os possíveis que a consciência torna em figura e o fluxo dos virtuais jamais actualizáveis, o que pressupõe a equivalência admitida por Ricoeur entre a “ipséité” e o atrito entre potência e acto.


3.1- A ordem autotélica

Deleuze afirma que existe no empirismo transcendental qualquer coisa de "sauvage et de puissant" (1995:3). Isto quer dizer que as singularidades virtuais constituem um verdadeiro fluxo pujante, anterior ao mundo dos sujeitos e objectos. A natureza da actualização destas singularidades depende, ainda segundo Deleuze, da sua própria ordem. É difícil inquirir que ordem é essa, já que, aquém da consciência, não há discurso que comunique connosco. Para António Damásio, esse discurso surge logo no momento do embate entre actuais e virtuais, nessa linha de falha, nesse incerto "brouillard", para utilizar a metáfora de Deleuze. Esse discurso assenta na primeira antecâmara da consciência, o proto-si, que se faz reflectir no si-nuclear, através de dados neurais. Estes dados já são cartografias, escritas do corpo, mas que não acedem ainda ao palco da representação. Comunicamos, pois, antes de representarmos por imagens e muito menos por palavras [15] . A ordem de selecção destes dados também não pode ser apurada. É igualmente autotélica, como autotélico é um imenso conjunto de figurações que entram nos circuitos do nosso organismo, sem que a consciência deles tenha exacta leitura [16] .


3.2 - A ordem do circuito e das alterações

O relato que Damásio designa de “segunda ordem” exibe já “o organismo surpreendido no acto de representar o seu próprio estado de mudança enquanto prossegue com a representação de um objecto" (2000:202). Por outras palavras: ao detectar-se X, já estamos sempre a detectar-nos a nós - em estado de metamorfose, de alteração - e a detectar a própria rede comunicacional onde nos inserimos com N objectos. Ricoeur diria que o si empreendeu o salto, devido ao despojamento criado pelo outro (objecto), ao fazer face ao mesmo. E porque toda a natureza se mostra profundamente rizomática, neste momento de abertura, ainda a consciência nuclear está apenas ocupada em disponibilizar a tradução dos padrões neurais de primeira ordem noutros mapas de segunda ordem, de onde, por sua vez, irão sair imagens mentais (entretanto já seriadas e modificadas ao longo de todo este percurso). Talvez por isso, Deleuze afirme em quase perfeita concomitância: "Le rapport de l´actuel et du virtuel constitue toujours un circuit, mais de deux manières: tantôt l´actuel renvoie à des virtuels comme à d´autres choses dans de vastes circuits, où le virtuel s´actualise, tantôt l´actuel renvoie au virtuel comme à son propre virtuel, dans les plus petits circuits où le virtuel cristallise avec l´actuel"(1996:185).

 

3.3 - A ordem temporal

Já vimos que Deleuze afirmou que os virtuais são o que são, na medida em que "leur émission et absorption, leur création et destruction se font en un temps plus petit que le minimum de temps continu pensable" (1996:179). Porventura, esta espécie de mónadas, mesmo as actualizáveis, não são absorvidos sequer pela antecâmara da consciência, devido a esta questão decisiva, a do tempo da consciência. Vejamos qual é o olhar das neurociências.
Dez para um, no melhor dos casos, e dez mil para um, no pior, eis a escala que separa a realidade comunicacional verificada nos circuitos que ligam os neurónios da realidade da primeira representação correspondente que emerge na consciência nuclear. Ou seja, o diferimento temporal é, no mínimo, radical. António Damásio explicita: "Os neurónios são activados e disparam em apenas alguns milionésimos de segundo, enquanto que os acontecimentos de que temos consciência na nossa mente ocorrem na ordem de dezenas, centenas e milhares de milésimos de segundo" (2000:154).
O atraso da consciência em relação à ocorrência primordial, verificada na sua antecâmara, é por mais evidente: "Na altura em que a consciência nos 'é entregue' para um determinado objecto, os respectivos mecanismos do nosso cérebro têm estado a trabalhar há uma eternidade, medida na perspectiva temporal de uma molécula - se as moléculas pensassem, claro. Estamos sempre atrasados para a consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso, ninguém repara."(ibid:154).
Passemos a uma segunda quantificação: "A ideia de que a consciência chega atrasada, em relação à entidade que a inicia, é apoiada pelas experiências de Benjamim Libet sobre o tempo que um estímulo demora a tornar-se consciente. O atraso é de cerca de quinhentos milésimos de segundo.” E Damásio conclui: “claro que é curioso que possamos posicionar o nosso si mental entre o tempo celular, por um lado, e, por outro, o tempo que a evolução demorou a trazer-nos até onde estamos".
A identidade narrativa surgirá aqui como uma forma de mediação entre a preservação do que Ricoeur designou por “caracter” (os traços que, na evolução, permitem um auto-reconhecimento baseado na mêmeté) e o que o autor designou por “mantien d´un soi” (avesso à generalidade e, portanto, apenas confinado à resposta ao interrogativo “quem ?” - ibid:148). A faixa-imagem da mente parece, pois, desenrolar-se entre a “mêmeté” e “ipséité” (entre a aparente fusão de ambas e a sua separação evidente) e, ante esta insegurança que é, no fundo, a do ser do clip da montagem fílmica, acaba por ser a mediação narrativa que age e fornece os sentidos da nossa demanda de identidade. Sobretudo, porque, como sublinhou Damásio, é preciso ter em conta que o fluxo do pensamento se move "para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa sequência mas em várias". (ibid:361).
Adicionemos ainda um derradeiro registo conclusivo. Quer a tradição hermenêutica, quer a tradição semiótica necessitam de uma rede teórica e prática de mediações. Por isso mesmo, no futuro imediato, estas áreas metodológicas do saber deveriam ser fortemente estimuladas a aferir constantemente as suas noções fundamentais, tais como a de “signo” [17] , no caso semiótico, e tal como a de “apropriação”, por exemplo, no caso da hermenêutica, mas, se possível, de acordo com uma interdisciplinaridade nova, no seio da qual as neurociências, entre outras epistemologias do corpo e da physis, se estão a tornar em charneira necessária, sobretudo por nos encontrarmos no limiar imaterial dos cibercorpos e na fronteira já próxima das futuras consciências, simultaneamente reais e ficcionais, ligadas ao bodynet e aos netcyborgs.
O próprio campo da hermenêutica e da semiótica aconselham este novo “Turn”, já que, como G. Vatimo (1994:100 [18] ) adiantou e U. Eco adequadamente citou no seu Kant e l´Ornitorinco (1997:35 [19] ), a epistemologia é “a construção de um corpus de saber rigoroso, destinado à solução de problemas, que funciona à luz de paradigmas que, por sua vez, ditam as regras tendo em vista a verificação de proposições” preliminares; enquanto, por contraste, a hermenêutica, aliás, em certa medida, como a semiótica, corresponde a “uma actividade que se desdobra (se dispiega) em contacto com horizontes paradigmáticos diversos que não se deixam avaliar tendo como base uma qualquer conformidade (a uma regra, ou até a uma coisa), antes se constituindo como proposta poética de mundos outros (mundi altri) e como criação (istituzione) de regras igualmente novas”.


Resumo / Abstract

II Congresso da SOPCOM /Abstract ST7 À luz do deslize da “ipséité”

por Luís Carmelo

Para P. Ricoeur, a compreensão do si é uma questão essencial da legibilidade da consciência, directamente associada, também ela, ao destino da sua noção de hermenêutica que apareceu como que consumada em Soi-même comme un autre (1990). À luz deste quadro de reflexividade, tentaremos aproximar o último artigo escrito em vida por G. Deleuze (L´immanence: une vie... que abre o número 47 da revista Philosophie (1995:3-7 [20] ) acerca da noção de consciência, a perspectivas neurocientíficas contemporâneas, nomeadamente de A. Damásio, relativas à interpretação, no concreto, de dados neurais (nos circuitos entre o proto-si e os diversos sis da consciência).



[1] Paul Ricoeur, Soi-même comme un autre, Éditions du Seuil, Paris,1990:198.

[2] Paul Ricoeur, Teoria da Interpretação, Edições 70, Lisboa, 1996 (or.:Interpretation Theory: discourse and surplus of meaning, Texas Christian University Press, 1976).

[3] Tinha sido essa, de facto, a herança de Schleiermacher e que Dilthey, ao definir hermenêutica como variante da compreensão “à l´exclusion de l´explication” - (Lectures 2, Éditions du Seuil, Paris, 1999:434) - já centrara na expressão e na experiência vivida, sem referência necessária a um dado autor físico.

[4] Esta “inversão” teve, no campo na análise literária, uma série de contrapontos homológicos, justamente na transição dos biografismos para os diversos formalismos e pós-formalismos (incluindo os da tradição semiótica europeia).

[5] Para a teoria da unidade da ciència, defendida no Círculo de Viena, a compreensão não poderia dar lugar a uma epistemologia factual e, portanto, essencialmente explicativa. Para Dilthey, a oposição entre o mundo dos signos e o mundo dos factos levaria à inevitável oposição entre ciências do espírito e e da natureza e, portanto, entre compreensão e explicação. Já, segundo a revisão crítica de Ricoeur em Lectures 2 - ver nota 3 (Entre herméneutique et sémiotique; 1999: 433-450) - os modelos de Greimas, avançados Sémantique structurale (1966), Du sens I (1970) e Du sens II (1985), reflectem um “renversement méthodologique qui donne le pas à l´explication sur la compréhension”(1999:449) reservada para o plano imediato dos efeitos de superfície. Nesta medida, adianta Ricoeur: “(...) une herméneutique à dominante explicative, ilustrée par la sémiotique de Greimas, reste parfaitement autonome à l´égard d´une herméneutique à dominante compréhensive à la mouvance de laquelle mês propres travaux appartiennent” (ibid:449).                   

[6] “Pur combatre cet oubli” - “l´oubli du jeu d´intersignifications qui s´exerce entre nos attentes dirigées vers le futur et nos intérpretations orientées vers le passé” – “(...) je propose d´adopter pour fil directeur de toutes les analyses qui suivent la polarité introduite par Reinhart Koselleck entre deux catégories d´espace d´expérience et d´horizont d´attente.”(Temps et Récit III - Temps raconté, Éditions du Seuil, Paris, 1985: 301).

[7] Em artigo citado em Soi-Même comme un autre de Paul Ricoeur: La jouissance esthétique. Les expériences fondamentales de la poièsis, de l´aisthèsis et de la catharsis in Poétique, nº 39, Éditions du Seuil, Septembre, Paris,1979.

[8] Ver, por exemplo, L. Ferry, Le pari de la liberté in Un fin de siècle philosophique, 1999:109-150, Liber, Montréal.

[9] A rede comunicacional da consciência, tal como surge caracterizada em O Sentimento de Si- O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência (Publicações Europa-América, Lisboa, 2000) da A.Damásio integra diversas entidades que protagonizam operações que, por sua vez, se desenrolam a vários níveis, nomeadamente, (a) a um primeiro micro-nível, entre organismo/objecto/proto-si; (b) a um segundo nível, entre o 'si nuclear' da consciência dita "nuclear" e as imagens do proto-si e do objecto (traduzidas do nível anterior) e, por fim, a um terceiro nível (c), o da sequência, ou do "filme-no-cérebro" que pressupõe o eclético 'si-autobiográfico', próprio da consciência "alargada", numa estreita relação com o impacto ininterrupto dos dados provenientes da consciência nuclear, a saber, as sucessivas imagens de interacções entre organismo e objectos, bem como dos próprios sis mutantes.

[10] João Amaral Ribeiro, A hermenêutica de Paul Ricoeur face à filosofia reflexiva in Phainomenon – Revista de Fenomenologia (CFFLUL), Colibri, Lisboa, Nº 1 – Primavera, 2000:99-115.

[11] “Mostrar-se (...) diz o que se mostra, o que se revela.”; “O fenómeno, o mostrar-se em si mesmo, significa um modo privilegiado de encontro. Manifestação, ao contário, indica no próprio ente uma remissão referencial, de tal maneira que o referente (o que anuncia) só pode satisfazer a sua possível função de referência se for um fenómeno, ou seja, caso se mostre em si mesmo”  Ser e Tempo, Vozes, Petrópolis, 1997, I:58 e 61 (&7 A).

[12] L´immanence: une vie in Philosophie, Paris, Numéro 47, 1er Septembre 1995:3-7.

[13] É da tradução portuguesa da obra de António Damásio que retiraremos todas as citações: O Sentimento de Si- O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000.

[14] Gilles Deleuze/Claire Parnet, Dialogues, Flammarion, Paris,1996 e Gilles Deleuze, L´actuel et le Virtuel, Annexe:Chapitre V, ibid.:179-185.

[15] Sobre o problema da linguagem verbal que Damásio remete para o relato de terceira ordem (sendo conferida à imagem a segunda), deixo aqui um extracto do meu ensaio A música dos signos: Da lógica de John Deely à semiose de António Damásio a publicar, muito em breve, pelos Cadernos da Universidade Nova de Lisboa: “As representações imagéticas de segunda ordem incluem o objecto prestes a modificar o proto-si, em interacção com o organismo, assim como as "modificações subsequentes do proto-si" (ibid.:201). É uma escrita que marca o súbito despontar da consciência nuclear. Este tipo de relato da relação causal entre o objecto e o organismo só pode ser captado em mapas neurais de segunda ordem" (ibid.:201). O mais interessante é que este relato tem como atributo o facto de ser um "relato não verbal" e, por outro lado, como que reflecte "o organismo surpreendido no acto de representar" (ibid.:202). António Damásio chega a utilizar a feliz metáfora do "coro grego" (ibid.:202) para acentuar a ideia de que este relato não verbal de segunda ordem age como "um  explicativo", ou como um "comentário" oriundo do agora-aqui, sendo, desse modo, incorporado no permanente fluxo de imagens e de "símbolos" que constituem o pensamento. Este tipo de relato é  "supra-regional" (ibid.:213) e é gerado por diversificadas estruturas cerebrais e não apenas por uma.”(...) “O relato de terceira ordem, ou seja, a capacidade - entre outras - de natureza verbal e todos os seus diferimentos, pode iniciar-se logo que a representação se inicia, ou seja, a partir do emergir dos enunciados de segunda ordem. Conforme a designação escolhida por António Damásio assinala, o relato desta "terceira ordem" constitui uma tradução, no tempo, das figuras que se geram a partir da submersão de dados que ocorrem na consciência nuclear: "No caso dos seres humanos, a narrativa não verbal de segunda ordem pode ser convertida imediatamente em linguagem"(...)"Poder-lhe-íamos chamar a narrativa de terceira ordem". Por outras palavras ainda: para além da história que "significa o acto de conhecer e o atribui ao recém-forjado si nuclear, o cérebro humano também forja uma versão verbal automática dessa mesma história" (ibid.:217). Um autêntico mise en abîme de enunciações, aparentemente virtuais umas em relações à outras, mas funcionando todas elas através de vasos comunicantes e traduções sucessivas.” (todas as citações remetem para a tradução portuguesa da obra de Damásio (cf. nota 8).

[16] Nomeadamente tudo o que povoa o inconsciente, como refere Damásio.

[17] De acordo com a reflexão levada a cabo neste artigo, na sequência já de ensaio anterior (ver início de nota 10), desejo, agora e aqui, recolocar minha reflexão sobre uma noção dinâmica de signo, recorrendo ao plano (possível) da definição: um signo é sempre um interface onde intervêm figuras actuais (segmentações de conteúdo, peças de significação e, por outro lado, experiências sensíveis, corpos significantes, dimensões expressivas) que são amalgamado(a)s no curso do tempo diferido da consciência, através de uma relação produtora de sentidos, provocada, quer pelo circuito envolvente de singularidades virtuais, quer pelo impacto entre essas figuras e o fluxo de fundo dos padrões mentais com que pensamos. O código, nas suas variadas facetas (genoma, cultura e mediações), selecciona esses sentidos (que são ascendentes e descendentes - em direcção à consciência alargada, ou ao plano de imanência), separa os sememas, pressupõe a transcendência de sujeitos e objectos e tenta, por fim, repor a sempre instável ordem que é própria da indecibilidade me da ipséité da mente, e cujo sortilégio último é a sobrevivência (assim como a heideggeriana 'sorge').

[18] Gianni Vatimmo, Oltre l´interpretazione, Bompiani, Milano,1994.

[19] Umberto Eco, Kant e l´Ornitorinco, Bonpiani, Milano, 1997.

[20] Cf.Nota 7.