Signo, tempo e consciência: Gilles Deleuze e António Damásio

Face a face entre o organon [1] semiótico e as neurociências

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa


A urgência da actualidade apela a desafios. Um desafio é sempre a abertura de uma brecha, o percurso de uma lacuna, de uma infracção, ou de uma coligação impensável. A necessidade de desafios aplica-se também às inevitáveis pontes entre as áreas do saber, cujos limites e fronteiras são cada vez mais fluidos. Provavelmente sempre o foram, embora, hoje em dia, a revelação desconstrucionista nos permita uma outra visibilidade desse facto, sob a forma de deriva, de deslize, de jogo entre sistemas de centros sempre deslocáveis.
No presente artigo propomo-nos, nesta linha epistemológica de travessias, percorrer hiatos que atravessam as neurociências e a reflexão semiótica e até filosófica. O tema empurra-nos para a ligação entre virtual e real, mas também para os modos diversos com que a consciência torna em figura os eventos já actuais.
Diga-se também que a dissimetria metodológica que é verificável entre um filósofo e semiótico como Gilles Deleuze e um neurocientista como António Damásio, director do Departamento de Neurologia da Universidade de Iowa (EUA), autor de Descartes´Error-Emotion, Reason and the Human Brain (1994) e do recente The Feeling of What Happens (1999[2] ), estimula-nos particularmente a perscrutar as ligações e os modos que pretendemos inquirir.

1- Consciência e plano de imanência, segundo Deleuze

No último texto conhecido que Deleuze publicou, L´immanence: une vie..., um artigo que abre o número 47 da revista Philosophie (1995:3-7 [3]) a ele dedicado, o autor estabelece um conjunto de relações entre consciência humana, por um lado, e campo transcendental, empirismo transcendental e plano de imanência, por outro lado.
Para Deleuze, o campo transcendental define-se, em oposição ao campo da experiência, por não "reenviar a nenhum objecto, nem pertencer a nenhum sujeito". Estaríamos, pois, na área de uma "consciência a-subjectiva", onde o papel do eu não pode sequer ser concebido.
Por seu lado, o empirismo transcendental surge descrito como uma multitude de dados imediatos "pré-reflexivos e impessoais", ou seja, como um fluxo pujante, sem delimitação, princípio ou fim, que se opõe ao mundo do sujeito e do objecto e que é sobretudo anterior a ele.
Se o campo e o fluxo transcendentais aparecem intimamente ligados entre si, já a noção de plano de imanência requer uma apresentação prévia da própria consciência. Segundo Deleuze, neste seu artigo condensado, a consciência só se torna num facto "quando um sujeito é produzido ao mesmo tempo que o seu objecto", embora ambos acabem por não surgir na boca de cena da consciência, acabando antes por se tornar em entidades "transcendentes" da mesma.
Sublinhemos que o lexema "transcendente" significa, aqui, que, ao observarmos o filme da nossa consciência, supomos a existência de sujeitos e de objectos, mas sem, de facto, os vermos como figuras; é nesta medida, e só, que ambos, sujeitos e objectos, são transcendentes. Por outro lado, quando Deleuze utiliza o lexema "transcendental", remete indubitavelmente para um campo prévio à consciência e que se imagina ser, como vimos, um fluxo ininterrupto de eventos, sem objectos nem sujeitos, a maior parte dos quais nem chega sequer a tornar-se presente na cartografia da nossa consciência alargada.
Nesta linha de ideias, a concepção de "plano de imanência", enquanto aplicação do campo transcendental, confunde-se com tudo o que possa escapar à transcendência do sujeito e do objecto, tornando-se em vida, ou em dinâmica, sempre pronta a cruzar-se com a actualização que os vários níveis da consciência vão levando a cabo, ao longo do tempo.
Deste modo, é da vida imanente e do seu fluxo empírico transcendental que se vão separando eventos e "singularidades" que, por sua vez, se actualizam permanentemente na consciência, através de sujeitos e objectos que representam de modo ininterrupto (enquanto manipuladores de marionetas) no palco do nosso interagir quotidiano.
Este processo, não distante de uma qualquer teoria do acto, põe em evidência o emergir do virtual que, para Deleuze, é caracterizado como compromisso (engagement) que se efectiva num processo de actualização, "seguindo o plano" que lhe dá a sua "realidade própria". Daí a conclusão crucial do autor, neste artigo: "Le plan d´immanence lui-même s´actualise dans un Objet et un Sujet auxquels il s´attribue" (1995:6).
Já no texto inédito que Deleuze havia publicado em anexo a Dialogues [4], na sua edição de 1996 (179-185), com o título L'actuel et le virtuel, o autor havia enfatizado a ideia de um universo torrencial e potencial de virtuais, espécie de continuum hjelmsleviano, de onde a consciência, nos seus diversos devires, recortaria, por actualizações sucessivas, a realidade ou a actualidade sempre subjectiva e objectual: "Tout actuel s´entoure d´un brouillard d´images virtuelles. Ce brouillard s´élève de circuits coexistants plus ou moins étendus, sur lesqueles les images virtuelles se distribuent et courent"(ibid.:179).
No entanto, esta discussão sobre o turvo hiato que parece desenhar a linha divisória entre a consciência humana, por um lado, e o "plano" de imanência e os fluxos "transcendentais", por outro, parece agora começar a aclarar-se. No artigo publicado em Philosophie, Deleuze sublinhava que a actualização, isto é a passagem de potência a acto, decorria do plano de imanência, de acordo com a sua "réalité propre" (1995:6). A esta perspectiva autotélica é preciso agora adicionar uma outra de caracter temporal que, surge no início do anexo referido de Dialogues:
"Ils sont dits virtuels en tant que leur émission et absorption, leur création et destruction se font en un temps plus petit que le minimum de temps continu pensable, et que cette brieveté les maintient dés lors sous un principe d´incertitude ou d´indétermination. Tout actuel s´entoure de cercles de virtualités toujours renouvelés dont chacun en émet un autre, et tous entourent et réagissent sur l´actuel" (1996:179).
Esta dupla argumentação, autotélica e temporal, desagua numa terceira e derradeira - também presente no anexo de Dialogues - e que se configura no facto de actual e virtual se constituírem "em circuito", ou em rede de implicações (1996:185). A comunicação entre ambas as ordens pressupõe, seguindo esta lógica, alterações e afectações permanentes em cada uma delas.
Resumindo, diríamos que a consciência se revela em cena, através de actores não presentes, mas transcendentes (sujeitos e objectos); que a consciência se alimenta de uma actualização protagonizada por uma plano de imanência (no fundo, a aplicação do campo e do fluxo transcendentais); que a consciência é um acontecer actual envolvido por um potencial desmedido de virtuais, em interacção permanente; e que, para terminar, a ponte entre campo transcendental e campo consciente, ou empírico, é construída segundos critérios que decorrem do próprio plano de imanência (autotélicos, portanto), do desfasamentos entre ordens temporais e, por fim, das inevitáveis alterações - e indeterminações - que os eventos actuais e os virtuais sofrem, ao comunicarem nessa linha de falha que os separa (e que é, ao fim e ao cabo, a linha de abismo entre representável e não-representável).

 

2- A consciência e os seus circuitos, segundo António Damásio

António Damásio estatui, em The Feeling of What Happens (1999), diversas entidades que, na mente, protagonizam operações comunicacionais a vários níveis, nomeadamente a um primeiro micro-nível entre organismo/objecto/ e o que designa por "proto-si"; a um segundo nível, entre o 'si nuclear' da consciência dita "nuclear" e as imagens do proto-si e do objecto (traduzidas do nível anterior) e, por fim, a um terceiro nível, o da sequência, ou do "filme-no-cérebro" que pressupõe o eclético 'si-autobiográfico', próprio da consciência "alargada".
Esta rede comunicacional da consciência e seus 'sis' (que inclui entidades e relatos diversos) está na base da própria definição de consciência de António Damásio, expressa em antecipação a futuras possíveis polémicas: "(...)se por consciência de si se pretende significar consciência com um sentido de si, então toda a consciência humana corresponde a esse termo" (ibid.:39)

Proto-si: a grande antecâmara.

O proto-si é definido como um "conjunto coerente de padrões neurais" - de que não temos consciência - "que cartografa, a cada instante, o estado da estrutura física do organismo nas suas numerosas dimensões" (2000:184).

Si nuclear

O si nuclear "é inerente ao relato não verbal de segunda ordem que ocorre sempre que um objecto modifica o proto-si" (ibid.:206), constituindo a tradução do que se passa nessa prévia ante-câmara. O si nuclear constitui um sentido de pertença, de auto-apropriação que, subitamente, na esfera do agora-aqui, reconhece que algo se está a passar. É o início da representação que o torna possível. A sua característica base é o conhecimento imediato de que o proto-si foi alterado e de que existe, em função disso, uma dada metamorfose na interacção organismo-objecto.

Consciência nuclear

A "consciência nuclear constitui ela própria o conhecimento, directo e sem qualquer verniz inferencial, do nosso organismo individual no acto de conhecer" (ibid.:152) e, por sua vez, esse conhecimento nasce da "re-presentação do proto-si não consciente no processo de ser modificado"(ibid.:202). Este imediatismo ainda não inferencial assiste à transição dos dados, de padrões neurais a imagens, e, porque estas últimas emergem em plena espontaneidade - nesta que é uma consciência do pertinente instantâneo - não podem ainda considerar-se como disputáveis em pleno pelo jogo semiótico.

O si autobiográfico

"A base neuroanatómica" do si-autobiográfico é descrita a partir de um modelo que comporta, de um lado, um "espaço imagético" e, do outro lado, um "espaço disposicional" (ibid.:254/377). No primeiro, ocorrem explicitamente as "imagens de todos os tipos sensoriais. Algumas destas imagens constituem conteúdos mentais manifestos que a consciência nos permite experienciar enquanto algumas imagens permanecem não conscientes"(ibid.:377). No segundo, estão presentes "as disposições que contêm a base do conhecimento e os mecanismos através dos quais as imagens podem ser construídas durante o recordar, através dos quais os movimentos podem ser gerados, e através dos quais o processamento de imagens pode ser facilitado" (ibid.:377)
O si autobiográfico é a consciência de pertença que age em nós como a montagem do grande filme da nossa consciência.

Consciência alargada

É a consciência ligada directamente ao si-autobiográfico que António Damásio assim traduz: "é a preciosa consequência de duas contribuições que a possibilitam: primeiro, a capacidade de aprender e, consequentemente, de reter miríades de experiências previamente conhecidas através da consciência nuclear. Segundo, a capacidade de reactivar esses registos de tal modo que, enquanto objectos, também eles possam gerar 'um sentido de si' e, consequentemente, ser conhecidos. [5]" (ibid.:228/9)
O funcionamento desta consciência não é muito diverso do da consciência nuclear, já que, em ambas, se processam "múltiplas gerações do si nuclear aplicado não só ao 'objecto-que-está-para-ser-conhecido' como também ao eternamente re-evocado e complexo conjunto de memórias pessoais que constitui o si-auto-biográfico"(ibid.:229)
Registe-se ainda as implicações entre cultura e consciência alargada, no seio da qual o si autobiográfico está necessariamente envolvido num processo concomitante e ininterrupto de inferências semióticas: a consciência alargada "é posta em marcha pelo genoma, mas a cultura pode influenciar o seu desenvolvimento individual de forma significativa"(ibid.:232)

Os relatos

Cada nível da consciência e/ou dos sis que lhes estão associados est(ão)á ligado(s) a um determinado tipo de enunciação. Esta não significa sempre a produção de uma mensagem corpórea e legível, nem tão pouco nítida, ou sequer verbal. A linguagem dos linguistas surge, neste aparelho conceptual, como algo não necessário para definir os níveis da consciência e, por outro lado, como algo que sucede inevitavelmente as operações primeiras e constitutivas da consciência. Por outras palavras, a linguagem dos linguistas é considerada, aqui, de modo consistente e coerente, como um relato de terceira ordem.

Relato da primeira ordem

São relatos não legíveis conscientemente, mas que, ao traduzirem-se, trazem à superfície a figuração permanente do proto-si em estado de metamorfose e também, ao mesmo tempo, o estado das interacções organismo-objecto. Por outras palavras, pode dizer-se que a "cartografia das consequências relacionadas com o objecto surge em mapas neurais de primeira ordem que representam o proto-si e o objecto" (2000:201)

Relato da segunda ordem

As representações imagéticas de segunda ordem incluem o objecto prestes a modificar o proto-si, em interacção com o organismo, assim como as "modificações subsequentes do proto-si" (ibid.:201). É uma escrita que marca o súbito despontar da consciência nuclear. Este tipo de relato da relação causal entre o objecto e o organismo só pode ser captado em mapas neurais de segunda ordem" (ibid.:201). O mais interessante é que este relato tem como atributo o facto de ser um "relato não verbal" e, por outro lado, como que reflecte "o organismo surpreendido no acto de representar" (ibid.:202). António Damásio chega a utilizar a feliz metáfora do "coro grego" (ibid.:202) para acentuar a ideia de que este relato não verbal de segunda ordem age como "um explicativo", ou como um "comentário" oriundo do agora-aqui, sendo, desse modo, incorporado no permanente fluxo de imagens e de "símbolos" que constituem o pensamento. Este tipo de relato é "supra-regional" (ibid.:213) e é gerado por diversificadas estruturas cerebrais e não apenas por uma

Relato da terceira ordem

O relato de terceira ordem, ou seja, a capacidade - entre outras - de natureza verbal e todos os seus deferimentos, pode iniciar-se logo que a representação se inicia, ou seja, a partir do emergir dos enunciados de segunda ordem. Conforme a designação escolhida por António Damásio assinala, o relato desta "terceira ordem" constitui uma tradução, no tempo, das figuras que se geram a partir da submersão de dados que ocorrem na consciência nuclear: "No caso dos seres humanos, a narrativa não verbal de segunda ordem pode ser convertida imediatamente em linguagem"(...)"Poder-lhe-íamos chamar a narrativa de terceira ordem".
Por outras palavras ainda: para além da história que "significa o acto de conhecer e o atribui ao recém-forjado si nuclear, o cérebro humano também forja uma versão verbal automática dessa mesma história" (ibid.:217). Um autêntico mise en abîme de enunciações, aparentemente virtuais umas em relações à outras, mas funcionando todas elas através de vasos comunicantes e traduções sucessivas.

As histórias do cérebro

Nesta contexto, António Damásio, conclui, com alguma ironia, que o cérebro é um exemplar contador de histórias. Com efeito, no seio desta teia de relatos que mutuamente se ampliam e que - a todo o momento - desencadeiam na consciência fluxos de interpretantes, é natural que os conteúdos latentes e a imaginação conotativa se acabem por tornar reprodutíveis. O autor chega mesmo a referir que "contar histórias precede a linguagem", o que é até, "afinal, uma condição para a (própria) linguagem"(...)"que pode ocorrer não apenas no córtex cerebral, mas noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito, quer no esquerdo" (ibid.:221).
Toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, etc) é interpretada por António Damásio como uma consequência desta verificação simples: a capacidade do cérebro em contar histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro, tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar histórias, o que ocorre sempre da "forma mais espontânea possível" (ibid.:221).

3- Conclusões

Da leitura dos discursos de Deleuze e de Damásio, cuja dissimetria metodológica não contradiz a abordagem de idêntico topic, ressalta uma reflexão conclusiva que poderíamos dividir em três pontos: (1) uma ordem autotélica que é própria do plano de imanência, mas também do mundo da representação; (2) as permanentes interacções/alterações sofridas pelo organismo e pelos objectos, ou, por outras palavras, a correspondente ideia deleuzeana de "circuito" actual/virtual; (3) e a questão temporal, talvez a decisiva para avaliar do corte existente entre os possíveis que a consciência figura e o fluxo dos virtuais jamais actualizáveis.

A ordem autotélica

Deleuze diz que existe no empirismo transcendental qualquer coisa de "sauvage et de puissant" (1995:3). Isto quer dizer que as singularidades virtuais constituem um verdadeiro fluxo pujante, anterior ao mundo dos sujeitos e objectos. A natureza da actualização destas singularidades depende, ainda segundo Deleuze, da sua própria ordem. É difícil inquirir que ordem é essa, já que, aquém da consciência, não há discurso que comunique connosco. Para António Damásio, esse discurso surge logo no momento do embate entre actuais e virtuais, nessa linha de falha, nesse incerto "brouillard", para utilizar a metáfora de Deleuze. Esse discurso assenta na primeira antecâmara da consciência, o proto-si, que se faz reflectir no si-nuclear, através de dados neurais. Estes dados já são cartografias, escritas do corpo, mas que não acedem ainda ao palco da representação. A ordem de selecção destes dados também não pode ser apurada. É igualmente autotélica, como autotélico é um imenso conjunto de figurações que entram nos circuitos do nosso organismo, sem que a consciência deles tenha leitura (nomeadamente tudo o que povoa o inconsciente).

A ordem do circuito e das alterações

O relato de segunda ordem, refere Damásio, exibe "o organismo surpreendido no acto de representar o seu próprio estado de mudança enquanto prossegue com a representação de um objecto" (ibid.:202).
Por seu lado, o objecto é cartografado no cérebro, mas "em regiões sensoriais e motoras activadas pela interacção do organismo como objecto" (ibid.:200). Por outras palavras: quando detectamos X, já estamos sempre a detectar-nos a nós - em estado de metamorfose, de alteração - e a detectar a própria rede comunicacional onde nos inserimos com N objectos. Nenhuma entidade é discreta, pelo contrário toda a natureza se mostra profundamente rizomática. E, neste momento, ainda a consciência nuclear está apenas ocupada em disponibilizar a tradução dos padrões neurais de primeira ordem noutros mapas de segunda ordem, de onde, por sua vez, irão sair imagens mentais (entretanto já seriadas e modificadas ao longo de todo este percurso). Talvez por isso, Deleuze afirme em quase perfeita concomitância:
"Le rapport de l´actuel et du virtuel constitue toujours un circuit, mais de deux manières: tantôt l´actuel renvoie à des virtuels comme à d´autres choses dans de vastes circuits, où le virtuel s´actualise, tantôt l´actuel renvoie au virtuel comme à son propre virtuel, dans les plus petits circuits où le virtuel cristallise avec l´actuel"(1996:185).

A ordem temporal

Já vimos que Deleuze afirmou que os virtuais são o que são, na medida em que "leur émission et absorption, leur création et destruction se font en un temps plus petit que le minimum de temps continu pensable" (1996:179). Porventura, esta espécie de mónadas, mesmo as actualizáveis, não são absorvidos sequer pela antecâmara da consciência - senão numa parte muitíssimo escassa, os "actuais" -, devido a esta questão decisiva, a do tempo da consciência. Vejamos qual é o olhar das neurociências.
Dez para um, no melhor dos casos, e dez mil para um, no pior, eis a escala que separa a realidade comunicacional verificada nos circuitos que ligam os neurónios da realidade da primeira representação correspondente que emerge na consciência nuclear. Ou seja, o deferimento temporal é, no mínimo, radical. António Damásio explicita: "Os neurónios são activados e disparam em apenas alguns milionésimos de segundo, enquanto que os acontecimentos de que temos consciência na nossa mente ocorrem na ordem de dezenas, centenas e milhares de milésimos de segundo" (ibid.:154).
O atraso da consciência em relação à ocorrência primordial, verificada na sua ante-câmara, é por mais evidente: "Na altura em que a consciência nos 'é entregue' para um determinado objecto, os respectivos mecanismos do nosso cérebro têm estado a trabalhar há uma eternidade, medida na perspectiva temporal de uma molécula - se as moléculas pensassem, claro. Estamos sempre atrasados para a consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso, ninguém repara."(ibid.:154).
Passemos a uma segunda quantificação: "A ideia de que a consciência chega atrasada, em relação à entidade que a inicia, é apoiada pelas experiêcnias de Benjamim Libet sobre o tempo que um estímulo demora a tornar-se consciente. O atraso é de cerca de quinhentos milésimos de segundo. Claro que é curioso que possamos posicionar o nosso si mental entre o tempo celular, por um lado, e, por outro, o tempo que a evolução demorou a trazer-nos até onde estamos".
De qualquer modo, diga-se que, se, para além de outras formas, o ser humano também recorta do continuum dos conteúdos disponíveis o seu próprio tempo possível - e não aquele que existiria, ou existe ficcionalmente, para além da sua subjectividade e do seu oikos - conformemo-nos com a escala em que a própria semiose ocorre, onde há acomodamentos e "previsibilidades" face ao futuro imediato (ibid.:176), onde a percepção nunca é perfeita porque construtora de "ajustamentos" (ibid.:177). Sobretudo, é preciso ter em conta que o fluxo do pensamento se move "para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa sequência mas em várias". (ibid.:361).
Poderá ainda vir a existir uma semiótica do tempo, assente em parâmetros laboratoriais das neurociências ? De qualquer modo, apesar dos nexos temporais que nos levaram, ao longo de séculos, a tematizar o fim, o princípio e outros sintomas de coerência forçada ou de consciência de crise, estabeleça-se, pelo menos, o que ainda une a epistemologia semiótica, i.e., a noção de signo, depurada pela leitura de António Damásio e G. Deleuze:

um signo é sempre um interface onde intervêm figuras actuais (segmentações de conteúdo, peças de significação e, por outro lado, experiências sensíveis, corpos significantes, dimensões expressivas) que são amalgamado(a)s no curso do tempo diferido da consciência, através de uma relação produtora de sentidos, provocada, quer pelo circuito envolvente de singularidades virtuais, quer pelo impacto entre essas figuras e o fluxo de fundo dos padrões mentais com que pensamos. O código, nas suas variadas facetas (genoma e cultura), selecciona esses sentidos (que são ascendentes e descendentes - em direcção à consciência alargada, ou ao plano de imanência), separa os sememas, pressupõe a transcendência de sujeitos e objectos e tenta, por fim, repor a sempre instável ordem que é própria da indecibilidade da mente, cujo sortilégio último é a sobrevivência (assim como a heideggeriana 'sorge'[6] ).

[1] P. Fabri corrobora a tese de B.Latour, autor que "considera que la semiótica es un organon, lo cual, como decía Kant, no es lo mismo que un canon. El canon, según Kant, es el conjunto de los principios a priori que establecen el uso legítimo de ciertas faculdades de conocimiento en general. El Organon, en cambio, es una regla de uso práctico. Yo creo que hay una fuerte demanda de la semiótica como organon para la ciencia, como una especie de arte racional, no universal, para el funcionamento de los conocimientos". Como exemplo, Fabri, seguindo o exemplo de Latour, refere o caso dos laboratório s científicos e conclui: "(...) la idea, tambièn de Latour, de que un laboratorio no es más que el centro de una red de informaciones sometidas a traducciones y transformaciones es meramente semiótica, y uno de los conceptos fundamentales para abordar el funcionamiento de las técnicas científicas actuales." (El Giro Semiótico, Gedisa Editorial, Barcelona,1999:100-101;La svolta semiotica-1998). Verificamos, neste artigo, que essas "regras de uso prático" - o Organon -, tal como decorrem da leitura de um texto significativo de Deleuze, se adequam em boa medida ao aparelho conceptual descrito por António Damásio. Daí o emprego do lexema Organon no sub-título do presente artigo.

[2] É desta obra de António Damásio que retiramos todas as citações, O Sentimento de Si, Europa-América, Lisboa, Lisboa, 2000

[3] L´immanence: une vie in Philosophie, Paris, Numéro 47, 1er Septembre 1995:3-7.

[4] Gilles Deleuze/Claire Parnet, Dialogues, Flammarion, Paris,1996 e Gilles Deleuze, L´actuel et le Virtuel, Annexe:Chapitre V, ibid.:179-185.

[5] Por outras palavras:"A consciência alargada surge a partir de dois truques. O primeiro requer a formação gradual de memórias de muitos exemplos de uma classe de objectos: os objectos da biografia do organismo e da nossa própria vida, tal como se desenrolaram no passado pessoal, iluminados pela consciência nuclear" (ibid.:229)

[6] Martin Heidegger,Ser e Tempo,Vozes,Petrópolis,1997,I/II.