Nove Aforismos de Nada


Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa



Vivemos num tempo em que a simulações de instantaneidade sugerem o domínio de tudo e em que o nada se converteu num conjunto de episódios, cujo denominador comum é aquilo que, apesar de tudo, nos escapa, seja o anátema da reciclagem, seja a ordem do imprevisível que condiciona a propagação da vida em fluxos, seja o ruído que se intromete no feixe global dos sinais. O nada equivale ao segno do mundo pré-moderno, ou seja, aquilo que 'escapava à ordem natural das coisas', do mesmo modo que a instantaneidade actual equivale, de certa forma, ao patamar pré-moderno da salvação.
Para María Zambrano, o nada foi a "última aparição do sagrado"[1] . Dir-se-ia, doutra forma, que o nada terá sido uma espécie de animal indomável que a liberdade humana pressupôs, sempre que se sonhou absoluta. Quem diria absoluta, há umas décadas, dirá, hoje em dia, quasi-instantânea, ciber-salvífica.
Nesta medida, passamos a configurar, o nada, fundamentalmente, como um fantasma moderno, antevisto ou revisto enquanto ponto de partida, suspensão temporal (eternidade ou mito), linha de fenda (ponto morto entre representação e caos), ou ilusão diferida (morte de Deus, Fausto e spleen).
É à volta destes sentidos do nada que fazemos desaguar os nossos aforismos. Não os precipitaremos demasiadamente na contemporaneidade, mas sobretudo no filtro da modernidade vivida, experimentada. Quanto aos aforismos, clarifique-se: nada de orgânico os liga, como convém à silhueta de qualquer fantasma que se preze; nada de sólido os coliga, como convém ao discurso de qualquer fantasma que se preze; nada de narrativo os enuncia, como convém à errância de qualquer fantasma que se preze.
Um nada é um nada, valha-nos o agora-aqui !

1- Nada como substância

Van Gogh escreveu a propósito de um estudo que estava a realizar no interior do seu quarto, dias antes de Gauguin se vir juntar a ele, em Arles, no Outono de 1888: "Diverte-me extraordinariamente o trabalho de tirar do nada esse interior, com uma simplicidade digna de Seurat"[2] .
Quer dizer que Van Gogh recorta, re-tira ou molda, a partir de um conjunto avultado de possíveis (de conteúdo e de expressão), a forma precisa que torna palpável o seu escorço, o seu arquipélago de figuras, ou, se se quiser, o seu estudo.
É uma fuga involuntária à tentação de ficar colado ao branco irredutível do animal indomável. Daí a exaltação, a vitória, o êxtase do pintor holandês.

2- Nada e os pontos de partida

Foi Dionísio, o Exíguo, treze séculos antes de Van Gogh, quem concluiu que Jesús deveria ter nascido a 753 A.U.B (ad urbe condita - data contada a partir da presumível fundação de Roma, confirmada ou legitimada, já há séculos, pelo designado 'código juliano').
Segundo os cálculos de Dionísio - feitos por encomenda do Papa João I -, o primeiro ano da Cristandade deveria passar a ser contado a partir do primeiro de Janeiro do ano seguinte, isto é, de 754 A.U.B (momento da circuncisão de Jesús, após a sua primeira semana de vida).
Contudo, por não dispor do número e sobretudo do conceito de zero - criação indiana e depois islâmica dos séculos VIII para IX (S. Gould,1998:22/3[3] ) -, Dionísio esqueceu-se de baptizar o ano de 754 como ano 0 - ícone, índice e símbolo do 'nada' - acabando antes por designá-lo, para a posteridade, como se fosse o verdadeiro ano 1.
Dionísio criou tais problemas por não ter tido em conta um certo 'nada' como ponto de partida, que muitas das conjecturas posteriores acabariam por entender o tempo, não tanto como uma régua bem separada por cortes exactos e precisos, mas entes como uma espuma confusa, difusa e turva.

3- Nada e os sentidos da falha

Lê-se no início das Poésies de Mallarmé: "Rien, Cette écume. Vierge vers/ A ne désigner que la coupe" [4] : (Nada, Esta espuma. Verso virgem/ que não designa senão o corte). Eis o nada, ele sim, mais espuma e fantasma, do que corte preciso, rigoroso e aritmeticamente existente.
Guio durante a noite e que observo, cansado ou não, a linha tortuosa e persistente das bermas, pintadas ou não no asfalto imaginário da viagem. É uma mancha turva entre faróis e o re-corte dessa fronteira entre estrada e não-estrada. Confesse-se que entendo, percebo e compreendo, porque represento (a estrada como faixa...), construo identidades (a estrada como tipo de caminho...) e arrumo conceitos (a estrada como um tipo de diagrama a ligar x e y).
É verdade que, para além do conceito delimitado e fechado em si mesmo, existe também o caos, a estrada sem bermas e sem dimensionalidade (à David Linch); é verdade que também existem as esferas da não-representação, abertas caleidoscopicamente para todos os lados (a sintaxe das cibervias); é verdade que também existem os conteúdos fechados no conceito que, subitamente, se dispersam como bons nómadas a errarem num espaço para fora do espaço (as bandas do hipertexto).
É verdade que do outro lado da representação, das simetrias forçadas, das harmonias adquiridas, das categorias imaginadas, existe o fulgor da grande deriva sem nome, da imensa balbúrdia indeterminada, da gigante entropia sem corpo, da desmedida figuração à margem da ordem dos ritmos, hábitos, memórias e delimitações. É verdade que, para além da sintaxe do paraíso apolíneo, também existe, na imaginação humana, esta outra implosão explosiva que nos arrasta, ou para o inferno, ou para a doença, ou ainda para a beleza das falésias nocturnas, onde aquilo que flui vive da metamorfose imponderável do próprio fluir. Um nada é sempre algo próximo do abismo.
Entre amálgamas de representações, por um lado, e o caos inomeável, existe, no entanto, qualquer outra coisa. Uma mancha, as asas de um fantasma. Chamemos-lhe a falha, a fenda, o fractal, ou, por outras palavras, essa espécie de não-ordem que se intromete entre a dispositio apolínea da nossa comunhão conceptual e a quase infernal e abismada melodia do caos. Nessa passagem, nesse estar-a-meio, nessa media res do corso da vida, ter-se-ão entendido alguns dos dispersos sentidos do nada que, num dado tempo, se arrumaram, ou em conceito, ou em chuva aleatória de estilhaços.
Seja como for, existe sempre um nada adiado ou desconhecido; o que quer dizer que o nada se inscreve em qualquer coisa, se substancia sempre em algum dado. Nem que seja, entre a espuma, o corte e uma certa forma de imaginar o que não tem fim: o eterno.

4- A eternidade como uma espécie de nada

Martin Heidegger e Jorge Luis Borges responderam um ao outro, sem o saberem, a esta mesma questão: a das eternidades sonhadas pelo homem.
O primeiro, ao afirmar que a "finitude do tempo só se tornava plenamente visível, quando o 'tempo sem fim'" se explicitava, por contraposição "à finitude" [5] ; o segundo, ao afirmar que "ninguna de las eternidades que planearon los hombres"(...)"es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos" .[6]
Conclusão: a eternidade - ou a infinitude - torna-se, deste modo, numa espécie de negativo da finitude (e vice-versa), razão pela qual, no seu dicotomismo, o fim não pode nunca ser uma ruptura, ou um deslize para o abismo irrepresentável, mas sim um espaço derradeiro onde o tempo acaba por ser contido.
É nessa contenção do existente (o tempo existente é apenas o tempo concebível) que o nada nos acena. De longe.
Como um fantasma.

5- Nada fáustico

No seu Del sentimiento trágico de la vida[7] , Miguel de Unamuno, pôs a descoberto o que, à data, já era um sentimento comum de desconfiança face ao ímpeto - ou fuga para a frente - que o sujeito moderno parecia querer manifestar. Diante do "hombre concreto, de carne y hueso" que, no início da obra, surge identificado com "el sujeto y el objeto" de toda a filosofia, depara-se, com efeito, a maior das interrogações. O professor de Salamanca exprimi-la-ia do seguinte modo: "Progresar, para qué ?". Adiantando-se à questão, Unamuno haveria de comentar e sobretudo alertar: "la famosa maladie du siècle, que se anuncia en Rousseau"(...)" no era ni es outra cosa que la pérdida de la fe en la inmortalidad del alma, en la finalidad humana del Universo. Su símbolo, su verdadero símbolo, es un ente de ficción, el Doctor Fausto."
De facto, por mais macro-sujeitos que o limiar do século XX tivesse conhecido (a 'classe' marxista, a 'humanidade' comtiana, o 'espírito' hegeliano) e por mais performances que o sujeito livre tivesse exibido na novíssima arena dos artefactos e da urbanidade modernos, a questão persistia. Não era tanto a questão da miséria pascaliana do homem a sós sem Deus, mas era sobretudo o desnorte, ou a falta de fé, face àquilo que, durante séculos - e de diversas maneiras -, havia sido traduzido através da palavra 'salvação'. Ao fim e ao cabo, é esse o desígnio que sempre perseguiu a longa ontologia (ou utopia) da imortalidade. As palavras quase mágicas enunciadas por J. Goethe e imputadas, na hora da morte, ao seu Fausto, parecem aliás atestá-lo:

(...)"Fausto- Que só da liberdade e vida é digno
Quem cada dia conquistá-las deve!"
(...)"Pudesse eu ver o movimento infindo !"
(...)"Mefistófeles-Consumou-se !
Coro- E acabou-se tudo !
Mefistófeles- Acabou-se ! Palavra sem sentido !
Acabou-se porquê ? acabou e nada
É tudo a mesma cousa ! Então que vale
A eterna criação ? Cousas criadas
Ao nada reduzir ! ' Está acabado'!...
Que quer isto dizer ? É exactamente
Como se nunca fosse, e todavia
Circula, como tendo inda existência !
Preferira ao que acaba o vácuo eterno."[8]

Enquanto Fausto sucumbe, após a grande ilusão que se transforma, porventura, na metáfora da própria transcendência perdida, ainda chega a afirmar o que jamais Sócrates, no seu tempo, teria podido afirmar: "Pudesse eu ver o movimento infindo !". O verbo utilizado não é 'saber', ou 'conhecer'; é antes, com toda a intencionalidade, - 'ver'. Isso significa que, tal como nos relatos apocalípticos do séc. II AC ao séc. II DC, a descrença, ou a própria dúvida, impelem o sujeito a querer ver com os seus olhos a máquina que rege o perpétuo universal. Nesta medida, o sujeito ficcional reflecte a frustração que Mefistófeles depois aclarará, ao reduzir a zero a "eterna criação" e sobretudo ao equipará-la a "nada". Por fim, Mefistófeles acabará mesmo por preferir o "vácuo eterno" (o impreenchível; o lugar da não-liberdade, ou da liberdade absoluta) ao que, queira-se ou não, ainda "circula" - ou permanece.

6- Nada metafísico

Miguel de Unamuno parece acertar em cheio neste símbolo de todo o spleen da modernidade. A comprová-lo, bastará rever a questão que domina, do princípio ao fim, a Introdução à metafísica de Heidegger - "Porquê é afinal ente e não antes Nada ?"[9] . A pergunta, para o autor, "gera o fund(ament)o de todo o verdadeiro questionar" e é mesmo reconhecida "como a questão mais originária".
No fundo - repondo a dita questão no berço da modernidade - é como se do 'nada', o homem agora surgisse repentinamente para um recomeço total e se transformasse nesse 'ente' nostálgico de um ser que já nem consegue recordar.
A amnésia colectiva de que nos fala Bernardo Bertolucci ?

7- Nada como terra firme e Deus como ser finado

De qualquer modo, o desencanto pela modernidade começa no seio da própria modernidade e ninguém possivelmente o terá ilustrado melhor do que Nietzsche. No &124 de A Gaia Ciência [10] , o autor parece narrar alegoricamente o facto - que poderíamos denominar por 'pecado original da modernidade':

"No horizonte do infinito. Deixámos a terra firme, embarcámos ! Não podemos voltar para trás, mais ainda, cortámos todas as ligações com a terra firme ! Agora, barquito, toma cuidado ! Tens na tua frente o oceano ! É verdade que ele nem sempre ruge, por vezes espraia-se calmo, como se fosse seda e oiro, como um sonho de bondade! Momentos virão, porém, em que reconhecerás que ele é infinito e que nada há de mais terrível do que a infinitude. Ai da pobre ave que se sentiu livre, e se debate agora contra as paredes desta gaiola ! Ai de ti, se as saudades da terra firme te assaltarem, como se lá tivesse havido mais liberdade... agora que já deixou de haver "terra"."

A partida da ave que ousou ser livre é o próprio sujeito moderno, amaldiçoado por Nietzsche. Dele 'nada' se espera e o devir anunciado jamais se consumará; nem mesmo a ciência, atingido o seu horizonte ou limiar ilusórios, poderá valer ao desencanto humano. E porquê ? A resposta, concludente e quase apaixonada, surge curiosamente no Fragmento seguinte de A Gaia Ciência:

"Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite ? Não teremos de acender lanternas em pleno dia ? Será que ainda não estamos a ouvir o ruído que fazem os coveiros a enterrar Deus ?"(...)"Deus está morto ! Deus permanece morto ! E quem o matou fomos nós ! "

Já Maria Zambrano afirmara que o nada terá sido a última aparição do sagrado. Um fantasma sem rosto.
Nessa medida, todas as outras aparições acabam por ser, ou ilusão, ou dissimulado controlo do agir. Político, mas não só.

8- Nada branco e nada negro

Disse Gilles Deleuze: "A diferença tem dois aspectos: o abismo indiferenciado, o nada negro, o animal indeterminado em que tudo é dissolvido - mas também o nada branco, a superfície tornada calma em que flutuam determinações não ligadas, como membros esparsos, cabeças sem pescoço, braços sem ombro, olhos sem fronte."[11]
Por outras palavras, diríamos que foi esta a dança dominante das vanguardas do século XX. Pelo menos foi este o modo como as ditas oscilaram entre o informalismo complexo de Jackson Pollock e a action painting de Franz Kline, por um lado, e as figurações desconectadas de René Magritte e Max Ernst, por outro.
Segredaria o fantasma que se trata de magia negra e de magia branca, ambas na secreta demanda do seu próprio nome: o nada.

9- O nada e o rosto do mito

E porque não há mito sem Pessoa, retenhamos ainda a emblemática metáfora do "Rosto da Europa"[12] . Diga-se que, no poema, a "Europa" surge como jazendo sobre "os cotovelos", o mais recuado a Itália e o mais avançado a Inglaterra, de onde a mão sustenta o grande rosto. Este fita com olhar esfíngico e fatal o oceano, o mundo, o infinito; e "Este rosto que fita", é, afinal, para o poeta, "Portugal".
Na Mensagem, livro onde Pessoa introduz a ideia do rosto europeu, o poeta identifica o mito com esse "nada que é tudo", como se fosse "o corpo morto de Deus/ vivo e desnudo" que "aportou" em Portugal; e conclui nos versos seguintes: "As Nações todas são mistério/ Cada uma é todo o mundo a sós".
A última aparição do sagrado - esse "nada que é tudo", esse "corpo morto", mas "vivo e desnudo" - torna-se assim numa espécie de memória invisível, no mito, ele- mesmo; ou seja, na última das redenções criadas pelo do homem moderno.

Nada, aFinal

O que não aparece nos circuitos que difundem as tele ou ciber-imagems com que se estão a construir as realidades de hoje em dia - como avançou Bordieu [13] - já não existe. Trata-se de uma curiosíssima divisão entre mundo existente e não existente.
Este último é o novo circo demoníaco, mas também a derradeira aparição do sagrado. Por uma vez, ambos se confundem no lado de lá; do que está em rede (e uma rede não tem limites; tem sim um âmbito).
Descrevamos esse lado de lá; como um território de universos removidos, uma geena de reciclagem global, uma antimatéria de amontoados imateriais constituída pelo que jamais aparecerá na instantaneidade actual.
Entre esses possíveis fósseis que sucederão à morte do planeta contam-se fantasmas, o que resta da aura benjaminiana, mas também cyborgs em deriva e meteoros informes.
O moderníssimo segno - entre outras máscaras chamemos-lhe 'nada' - é, em útima análise, o inomeável informe que escapa à vida em rede da contemporaneidade.
(Admitamos que estamos sempre a repescá-lo, ainda que sem darmos por isso. Admitamos que respiramos com ele, nosso protector e... paradoxal representante de nós na terra).



[1] El Hombre Y lo Divino, Fondo de Cultura Económica,Cméxico,Madrid,1955-1993:174-190.

[2] Lawrence Hanson/ Elisabeth Hanson,Van Gogh, Aster, Lisboa,S/D:273.

[3]Stephen Jay Gould, ‘L´an 2000 et les échelles du temps’ em Entretiens sur la fin du temps, Fayard, Paris,1998:23-24.

[4]Stephane Mallarmé, Poésies, Booking International-PML, Paris:1995:11.

[5] Martin Heidegger,Ser  e Tempo,Vozes,Petrópolis,1997,2-II:125,

[6] BorgesProsa completa,Bruguera,Barcelona,1979-I:223

[7] Miguel de Unamuno, Del sentimiento trágico de la vida Biblioteca Clásica y Contemporánea, Buenos Aires, 1913-1966:7,260.

[8] Johann W. Goethe, Fausto,Relógio d´Água, Lisboa,1987-:475-6.

[9] Martin Heidegger,Introdução à metafísica,Instituto Piaget,1934-5/1997:15.

[10] Friedrich Nietszche, A gaia ciência, Relógio d´Água,Lisboa ,1998:139-140.

[11] Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Relógio d´Água, Lisboa,1968-2000:82.

[12] Fernando Pessoa, Mensagem (IªParte:I/II),Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro,1969:71-73.

[13] Pierre Bordieu, Sobre a Televisão,Celta, Lisboa,1997:12.