O milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa.

 

 

            Anima-nos, no presente artigo, a tentativa de compreender os alicerces de um mito que, começando a ser erigido a partir de diversos registos literários da batalha de Ourique, contribui(u) para a “modalização”[1] da auto-imagem de Portugal, em dois momentos-chave da sua história, a saber, - no início do ciclo dos descobrimentos (após o primeiro quartel do século XV) e no período da dinastia filipina. No fundo, esses dois momentos são como que os limites do designado ciclo de ouro português, não só pelas viagens e conquistas então empreendidas, mas sobretudo pela consistência identitária e imaginária de que Portugal é, nesse século e meio, devedor. Facto inabalável é que, após a Restauração, a lenda simbólico-alegórica de Ourique, entre outras (como a do Encoberto[2]), se instituirá decisivamente como uma faceta importante da auto-representação de Portugal, acabando por adquirir, após Herculano, uma verdadeira dimensão mítico-poética.

           

 1- A história da lenda

 

a) Até à Primeira grande compilação medieval

 

Poucas são as canções de gesta que chegaram aos dias de hoje. A grande excepção peninsular é o Cantar de Mio Cid que narra as desventuras aventurosas de um campeador e conquistador, falecido por volta de 1099. Ao contrário da Chanson de Roland, do século XI, o Cantar não se reporta a factos ocorridos num passado distante, embora se mantenha dentro do inevitável espírito de alteridade islamo-cristã que, na Chanson, contudo, é bastante forçado. Todo o vasto reportório épico-romanesco destas e de muitas outras gestas foi oralmente cantado por jograis, durante séculos, mas apenas viria a ser fixado e enxertado textualmente, mais tarde[3], em compilações do tempo de Afonso X, (1221-1284) e, já no século XIV, pela primeira vez, em Português[4], entre outras, na Crónica Geral de Espanha de 1344, da responsabilidade de um bisneto do rei Sábio, - D.Pedro, Conde de Barcelos. É nesta última crónica que se encontram copiladas, por exemplo, a interessante Crónica do Mouro Rasis, as mais antigas referências portuguesas relativas à literatura dita arturiana (também presentes no precedente Livro de Linhagens [5]), para além da famosa lenda épica que converte D.Afonso Henriques num herói a todos os títulos singular.

Nesta crónica, no entanto, não surge ainda narrado o milagre de Ourique que, mais tarde, se associará ao caracter de inspiração divina do primeiro rei de Portugal. Os tópicos constantes na crónica, e resultantes do reaproveitamento de fontes dispersas, dizem respeito à genealogia dos reis bíblicos e da Antiguidade, à crónica romanesca do final dos reinos visigóticos (e do alvor do Islão, através da tradução do já referido Ahmed bem Muhammad Raziz) e ainda, por fim, ao registo de uma das variantes da Crónica General de España de Afonso X, desde Ramiro I das Astúrias até à Batalha do Salado.

Para além de uma original tradição profética relativa à conquista de Santarém (realizada a partir da intertextualização da Crónica Galeco-Portuguesa, de que a Crónica de Santa Cruz é fragmento[6]), nesta crónica de 1344 - como Lindley Cintra aprofundou[7] - o primeiro rei de Portugal surge já, com apenas quatro anos, como válido interlocutor do seu pai, durante um cerco a uma cidade de Leão. Decidido, o herói há-de depois revoltar-se e vencer as tropas do padrasto e da sua própria mãe que aliás virá a  encarcerar. Deixando de lado a lenda de Badajoz (e suas implicações), onde D.Afonso parte uma perna como consequência de uma lendária praga de D.Teresa, o rei prossegue as suas desmedidas façanhas, levando facilmente de vencida o então imperador Afonso VII de Leão e Castela e, num desafio à omnipotência temporal da época, chegando mesmo a nomear um Bispo por sua escolha, o negro Çoleima.

Independentemente dos verosímeis históricos, o certo é que a imagem criada a partir do personagem de D. Afonso Henriques, na Crónica Geral de Espanha de 1344, é, portanto, na sua essência, a de um homem superiormente dotado, insubmisso, audacioso, impertinente, mas sempre firme no cumprimento e decerto na fundação de uma grande obra. Este inventário de valentia heróica, difundido pelos jograis desde os finais do século XII e reposto por escrito antes de meados do Século XIV, constituir-se-à como motivo de um longo e variado intertexto, pelo menos até finais do século XVI.

 

b) A Compilação de 1419: novos dados e suas heranças.

 

A Crónica de Portugal de 1419 - escrita apenas quatro anos depois da conquista de Ceuta, durante o reinado de D.Duarte - apresenta-se como a grande compilação de todos os textos residuais até então ainda não fixados, incluindo-se-lhe todo o reportório da anterior crónica de 1344. Segundo A. Saraiva, a Crónica de Portugal de 1419 - onde se arrolam, além de lendas, documentos históricos autênticos - teria sido da autoria de Fernão Lopes. Para o comprovar, o autor refere uma passagem da Crónica de D. João I [8], além do cuidado registo de alguns traços estilísticos, nomeadamente da área da descrição, que são claramente indícios do grande cronista de Aljubarrota.

Pela primeira vez, é, nesta Crónica de Portugal de 1419, que surge narrado o milagre do aparecimento de Cristo em Ourique. Referindo uma batalha que terá tido lugar ao sul do Tejo contra vários reis “mouros”, entre eles um enigmático rei “Ismar” - que escapam, segundo J. Matoso (1993:70)[9], ao verosímil histórico -, o texto dá particular atenção às vésperas da peleja anunciada. É nessa altura que um ermitão surge face ao futuro rei Afonso, enquanto mediador divino, dizendo - “... E Ele me manda por mim dizer que quando ouvires tanger esta campaínha que em esta ermida está que tu saias fora e Ele te aparecerá no Céu...!”. Num subsequente trecho da crónica, regista-se a aparição: “... tangeu-se a campãa, e ele saiu-se fora da sua tenda, e, assi como ele disse e deu testemunho em sua história, viu Nosso Senhor Jesus Cristo em a Cruz pela guisa que o ermitão lhe dissera e adorou-o com grande prazer e lágrimas...”. O milagre é, logo a seguir, transposto no próprio símbolo da bandeira do futuro reino, “...por se lembrar da mercê que Deus naquele dia fizera, pôs sobre as armas brancas que ele trazia uma cruz toda azul, e pelos cinco reis que lhe Deus fizera vencer departiu a cruz em cinco escudos...”[10].

Como J. Matoso referiu (ibid.:70), existem fundamentos históricos que situam uma batalha, a sul, durante este Verão de 1139. Sendo certo que, por essa altura, D. Afonso terá, pelo menos, dirigido “um fossado” constituído por um exército maior do que o habitual, a verdade é que os cenários apontados pelo historiador são, contudo, muito alternativos aos da Ourique alentejana, isto é, - ou o dito recontro, entre tropas cristãs e islâmicas resultou de uma contra-investida de Afonso Henriques contra os Almorávidas que ameaçariam uma cidade a norte do Tejo; ou, por outro lado, resultou de uma investida directa de D.Afonso, a leste de Badajoz, contra vários ”chefes mouros” que iriam em socorro dos Almorávidas cercados em Colmejar, a sul de Toledo. Verosímil parece ter sido o regresso a Coimbra de D. Afonso, após a contenda, onde, por augúrio feliz, terá encontrado D. João Peculiar, regressado de Roma, onde fora receber, durante o Concílio Latrão Ecuménico, o “pálio arquiepiscopal”. Estes factos importantes, acrescidos aos da própria aclamação de D. Afonso a rei terão inevitavelmente conduzido a uma hiperbolização literária subsequente (de acordo com os horizontes de expectativas [11]de diversas épocas).

Sustentando essa realidade, convirá justamente sublinhar que é quase três séculos depois da pretensa batalha de Ourique que o milagre da aparição de Cristo a D. Afonso se torna numa renovada dimensão da lenda heróica do fundador de Portugal. Além do mais, a Crónica de 1419 cita como fonte alguns documentos anteriores - nomeadamente uma enigmática história do rei “testemunhada por ele mesmo” (A.Saraiva,1996:165) e guardada no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra - o que nos permite concluir que estamos, à partida, diante de um típico enunciado forjado ex-eventum, próprio, a todos os títulos, do género literário profético[12] que, na época, é um claro “um signo dos tempos” (L.Cardaillac,1977:62[13]). De qualquer modo, os desígnios que a efabulação criada sugere apontam, de modo claro - e talvez em empatia com o alvor aventuroso dos tempos de descoberta marítima -, para uma prefiguração de um futuro mito providencialista da história portuguesa.

Segundo L. Lindley Cintra, esta Crónica de Portugal de 1419 inaugura o que passa a designar por “segunda lenda” (1989:71). O autor justifica o novo compasso do mito em formação, referindo que, ao longo texto, a enunciação se centra preferencialmente na batalha de Ourique, o que, em registos anteriores, se circunscrevia apenas a uma “alusão bastante rápida”; por outro lado, o texto da crónica de 1419 sobrepõe ao herói épico e destemido dos registos anteriores a ideia, quase monástica, de um rei ungido de deveres divinos. Não é por acaso - prossegue o autor - que “os monges de Santa Cruz falavam de curas miraculosas que se tinham dado perto do seu túmulo (de D.Afonso) e por sua intercessão”. Quer pelo jogo retórico-literário, quer já pela própria práxis da lenda vivida,  parece que assistimos decididamente a um momento de inflexão da lenda, o que quer dizer que o pretérito herói, anteriormente cantado por jograis ou fixado por escrito, começa agora, de modo lento, a passar testemunho a uma visão sobrenatural, afirmando-se como símbolo divino e espiritual das origens da nacionalidade (o que aliás não destoaria com as correntes próféticas dominantes na época[14]).

No início do século XVI, o compromisso entre estas duas visões (épica versus espiritualizante) torna-se patente na Crónica de D.Afonso Henriques, da autoria de Duarte de Galvão (1505). Como afirma L. Lindley Cintra, sobretudo no percurso narrativo  em que D. Afonso nomeia o famoso bispo negro, é evidente “a necessidade de pôr de acordo, no interior da crónica, a antiga imagem épica do rei, com uma outra imagem, lendária também, que se encontra nela tão completamente desenhada como a primeira, mas que se opõe bastante visivelmente a ela em vários aspectos fundamentais. Trata-se de uma imagem de Afonso como rei essencialmente piedoso, escolhido por Deus para se tornar fundador da monarquia portuguesa e a quem o próprio Cristo apareceu....”(1989:70).

É a esta crónica, aliás, que Camões recorre e de que retira, com grande fidelidade, no canto III dos Lusíadas (28-84), a matéria com que narra o episódio do milagre de Ourique: “A matutina luz, serena e fria,/As estrelas do Pólo já apartava,/Quando na Cruz o Filho de Maria,/Amostrando-se a Afonso, o animava./ Ele, adorando Quem lhe aparecia,/ Na Fé todo inflamado, assi gritava: “Aos infiéis, Senhor, aos Infiéis,/ E não a mi, que creio o que podeis!” (ibid:45,1969:122[15]). Neste trecho verificamos que a voz do rei, em discurso directo, contrasta com a omniscência narrativa com que Cristo se anuncia; por outro lado, a voz de D. Afonso reflecte as duas imagens que Galvão pretende pactuar; uma humilde e devota, a outra combativa e belicosa.

 

c) A nova visão de Ourique, após o ciclo de ouro.

 

Do mesmo modo que S. Tiago, o “apóstolo da reconquista”, no final do século XVI, foi alvo, em Roma, de fortes “argumentos contra la devoción tradicional, como puede verse en cualquier texto de historia eclesiástica española” - o que suscitou “una enorme intranquilidad a Felipe III” (J.Caro Baroja,1978:419[16]) -, também, em Portugal, no prólogo à Crónica dos Reis de Portugal Reformadas (1600), se põe agora em causa a matéria lendária de D. Afonso que era devedora de uma não menor devoção tradicional. Duarte Nunes de Leão trata, nesse prólogo, como falso todo o reportório tradicional de “histórias inacreditáveis” que as fontes antigas atribuíam ao primeiro rei de Portugal. Curiosamente, chegando a surpreender-se pelo facto de D. Afonso Henriques não ter ainda sido canonizado, Duarte Nunes de Leão parece pôr tudo em causa... excepto o próprio feito milagroso que teria coroado a aparição de Ourique (esta, como se sabe, originada de modo forjado e ex-eventum em texto de 1419). Definitivamente, e até com curiosa ajuda do pré-racionalismo renascentista, a lenda de D.Afonso libertava-se, de vez, do seu caracter épico-aventuroso para se transformar no verdadeiro alicerce de um futuro mito.

Tudo ocorre neste breve e sintomático período filipino que liga o final do século XVI à data da edição da Monarquia Lusitana (1632). Em primeiro lugar, porque Pedro de Mariz, no seu Diálogo de Vária História (na segunda edição da obra), anuncia que “os monges Cistercenses de Alcobaça acabavam de descobrir[17], nos arquivos do mosteiro, um documento em latim”(...)“que se verifica ser nem mais nem menos que uma declaração feita 23 anos depois da batalha de Ourique, em Coimbra, em frente de vários Bispos e de todos os grandes da sua corte, pelo próprio Afonso I” (cit. in L.Lindley Cintra, 1989:73). Em segundo lugar, depois  de mais esta enunciação profética forjada e ex-eventum (na tradição da Crónica de 1419), coube, dois anos depois, a Frei Bernardo de Brito - cronista oficial do reino, note-se, - reproduzi-la na Crónica da Ordem de Cister. Por fim, em terceito lugar, corria o ano de 1632, ao redigir a terceira e quarta partes da Monarquia Lusitana - e sucedendo nesse cargo a Brito -, Frei António Brandão haveria de retomar, sem grandes mudanças, esse mesmo intertexto oficioso e forjado que passou a legitimar o agora pungente e abarrocado diálogo entre Cristo e D.Afonso, na véspera da batalha de Ourique.

Numa altura em que, não se punha em causa a “autoridade histórica de Homero, mas sim o itinerário de Ulisses, que ninguém duvidava ser o fundador de Lisboa” (A.J.Saraiva, O.Lopes,1955:475[18]), é também normal que a corrente ficcionalização dos eventos históricos acabasse por legitimar este tipo de enxertos proféticos (sobretudo, se necessários para colmatar as carências políticas da época). O que, neste caso, na nossa perspectiva, tem significado é essencialmente o facto de a ficção em causa preservar um registo profético que vinha desde o século XV, apagando, embora, de vez, o cariz épico do primeiro rei de Portugal; por outro lado, o pendor retórico do diálogo em que D.Afonso e Cristo intervêm (cf. III) é associado, de forma clara, a um verosímil que se pretende credível e manifesto. Este efeito intencional[19] de serieção temático-retórica é, de facto, o centro desta operação realizada durante a quadra filipina.

Com efeito, esta potencial matriz mítica (criada entre os finais de quinhentos e 1632) preservar-se-á, enquanto memória volúvel e funcional, ao longo de mais dois séculos. Por isso mesmo se terá mitificado, ou seja, acedido ao estatuto de memória invisível e evidente, construtora da própria identidade. Não é por acaso que a desconstrução histórica do milagre de Ourique, protagonizada por Alexandre Herculano, gerou, na sua época, o escândalo que se conhece. Mais do que de factos, é, na realidade, a partir da complexidade do imaginário acumulado que as comunidades codificam o seu próprio agir no tempo.

 

II- Outros casos contemporâneos de profetismos forjados.

 

Os factos deste tipo de produção profética ex-eventum, ao longo do século XVI e também no início de seiscentos, são fecundos e variados na Península Ibérica (e não só). Antes de passarmos revista a outros casos da época que se integram no topic mitológico de reinvenção da história, expliquemos, em primeiro lugar, o terreno que os move.

Diga-se que todo o século XVI é balizado por uma autêntica guerra entre o Islão otomano e o novo império que Carlos V edifica, antes ainda da guerra das Germanías de Valência. Foi aliás a partir desta alteridade fundamental, continuadora de um antigo espírito de cruzada originado em antagonismos basicamente escatológicos, que a Península Ibérica se contruiu e auto-depurou, durante a Idade Média tardia. N. Daniel espelha do seguinte modo a geometria do mosaico histórico hispânico que lentamente se sedimenta: “No one could question that it was in Spain more than anywhere that for so long the two cultures developed in parallel. There were indeed four lines in parallel, Europeans under European rule, Arabes under Arab rule, and the two converses, the Mozarabs and the Mudejares” (1975:86[20]).

Contra os conceitos de “Jihâd” e de ”Dar-al-Islâm”, nomeadamente a guerra santa e terrena que pretendia salvaguardar, por sua vez, o território da verdadeira salvação (na óptica islâmica), se contrapôs, desde os martírios de Eulogio e Alvaro até ás primeiras guerras que sucedem ao colapso do Califado de Córdova, o conceito cristão de “reconquista” e mesmo de “batalha celestial”. M. Hagerty sintetiza este facto, identificando os cristãos da Península como “los escogidos por Dios para luchar contra las fuerzas del Mal que habían invadido España en el 711 por culpa de los pecados. Es el comienzo de la Batalla Celestial, combatida materialmente en la tierra, que despues surgirá outra vez en un concepto, para nosotros clave, de la reconquista, como guerra santa.” (M.Hagerty,1978:174[21]). Por razões de teodiceia (isto é, para vingar os próprios pecados dos cristãos), o Islão havia assim entrado na Península e, curiosamente, dez séculos depois, é o próprio o Islão, já na sua fase terminal morisca e degenerescente, que irá desenvolver profeticamente[22] idêntico argumento. Estamos, portanto, diante de uma destemida guerra entre duas justiças divinas, para a qual há eterno perdão, e no limiar da qual apenas se poderá supor um único e possível fim : a salvação.

É pois natural, para além dos ingredientes retórico-literários próprios do género profético (e que têm a sua origem no primeiro milénio A.C.[23]), que os relatos das batalhas medievais estejam repletas de aparições, de milagres, de visões - no quadro de uma semiose mântica da realidade. Convém, de qualquer modo, salientar que a própria noção de realidade, na Idade Média, se confunde com a dimensão mágico-misteriosa do significado[24], daí que o sistema simbólico vivido se visse reflectido, com adequação, na arquitectura maravilhosa e fantasiosa desse relatos. A.Abel pressente esta objectividade e vai mesmo mais longe, ao assegurar que a armadura fantástico-visionária dos relatos de guerra acabava, em última análise, por ter efeitos nas esferas jurídicas e até políticas: “Pour le Moyen Age, les représentations que l´on pouvait qualifier de transcendantes, célestes ou infernales, sont objectives, sont le fait. Les apparitions de saints, les visions extatiques, les états de tansport extatique, les opérations au-dela du réel, les contacts avec le démon sont choses tenues pour réelles. Ils ne font pas seulement partie de l´arsenal littéraire et des ressorts habituels du developpement des contes ou des romans de chevalerie, mais ils ont leur incidence dans la vie juridique aussi bien que dans la vie religieuse, et les canons du droit, aussi bien que la vie historique, enportent parfois les traces” (1960:32)[25]

Enquanto o pano de fundo islamo-cristão radicalizou a belicosa alteridade peninsular, os artifícios profético-históricos mais não fizeram do que mimetizar essa mesma irredutibilidade. Esta autêntica obra de séculos haveria de gerar, no crepúsculo de todos embates - ou seja na transição de quinhentos para seiscentos[26] - uma estado de catarse violenta, de auto-purgação, capaz do melhor e do pior, ou seja, do ouro que deu nome ao século e de todos os seus imponderáveis reversos inquisitoriais e de radical aniquilação de minorias. F. Braudel chegou mesmo a afirmar que "nenhuma civilização foi obrigada a trabalhar sobre ela mesma, a ‘partilhar-se’, a despedaçar-se tanto como a ibérica"(...)Digo bem, civilização ibérica. É uma variedade particular da civilização do ocidente, uma ponte avançada, uma extremidade desta, antes quase inteiramente recoberta por águas estrangeiras. Durante o longo século XVI, a Península, para se tornar de novo Europa, fez-se Cristandade militante; partilhou as suas duas religiões superfluidas, a muçulmana e a hebraica. Recusou ser África ou Oriente, segundo um processo que se parece de uma determinada maneira com os processos de descolonização." (1984:157[27]).

É pois natural que toda a vastíssima tradição, sustentada em relatos de batalhas entre o Islão e a Cristandade - de origem jogralesca e mais tarde historiográfico-profética -, acabasse por se converter em fonte de enunciados ex-eventum que, no fim do caminho (sobretudo após Lepanto e antes da expulsão definitiva dos moriscos, em 1609), haveriam de inevitavelmente forjar os mais diversos sentidos da história, ao serviço, quase sempre, da orientações oficiosas. Destacaremos dois exemplos peninsulares desta tendência artificiosa de manipular os destinos da história, ao serviço de uma guerra definitiva (e às vezes auto-flageladora). Referimo-nos aos dotes de S.Tiago em complemento com a temática castelhana “goticista” e, por outro lado, referir-nos-emos a alguma literatura profética morisca (de Granada e de Aragão).

Veremos que as empatias com Ourique não são, de facto, menores.

 

Em Espanha, as aparições detêm-se em grande parte num longo intertexto ligado a S. Tiago, o Matamoros. Apesar dos travões romanos a essa devoção tradicional, como acima referimos, J.Caro Baroja adianta que “ La fe en un Santiago que estubo en España y que mucho después de muerto se apreció repetidas veces a las huestes combatientes, en función de ser ‘matamoros’ y al que se invocaba al grito de ‘Santiago y cierra España’, se refleja también en sinfín de pinturas e esculturas populares que aún se hacían en los siglos XVIII y XIX.” (J.Caro Baroja,1978:419/20)[28]. Esta persistência ligada ao espírito de reconquista é contemporânea (e até complementar) de uma interessante variante temática que surge no último quinto do século XVI, “o goticismo”. Trata-se de uma recuperação do ambiente cristão original, e portanto pré-islâmico, muito centrado na figura do rei Rodrigo, e que tende a legitimar - inclusivamente através de muita história ficcional forjada - a depuração inevitável que a Espanha do final de quinhentos já claramente prenuncia (sobretudo no que diz respeito à expulsão dos moriscos, considerados como uma espécie de quinta coluna do Império Otomano[29]).

F. Márquez Villanueva (1981:364[30]) precisa a questão: “Se impone tomar en cuenta la alternativa metodológica de una fecha determinada por la cuestión goticista, tan vivaz en la década de 1580. Presenció ésta un resurgir general del tema de Rodrigo, iniciado com la publicación de la patrañera, pero convencional, História de los reyes godos (1582) del burgalés Julián del Castillo, cuja misma portada pregona ‘la sucesion dellos hasta el Catholico y potentíssimo don Philippe segundo”. O autor refere depois, neste âmbito, a reimpressão, em Alcalá, no ano de 1586, da Crónica sarracina ou Crónica del rey Rodrigo. No ano seguinte, em 1587, Juán Yñiguez de Laquerica, numa chamada Crónica general de España, descreve os godos como “inclytos” e “temidos por sus proezas”, ou seja, simultanemente piedosos mas sobretudo heróicos, tendo, no entanto, sido alvo da maior injustiça histórica: “Asi cayo y fue abatida en un punto aquella soberana gloria de los Godos ensalçada por tantos siglos de continuas victorias” (ibid.:363).

A reactualização forçada dos visigodos não surge aqui como uma nostalgia de uma idade de ouro pura e invicta, na linha utópico-imaginária do britânico Thomas More, mas sim no quadro da reconstrução ex-eventum da própria história ibérica, ao serviço dos desígnios políticos dos Austrias. Ao fim e ao cabo, este apressado corpus histórico assemelha-se, nas suas metas, à própria produção profética que, ao longo do século XVI, foi, em primeiro lugar, um instrumento de luta política oficial, como sublinhou J. Dény (1936:204[31]): “Les prophéties du XVIe siècle”(...)”présentent un caractère particulier”(...)”Ce sont des véritables instruments de propagande politique, au sens étroit du mot”.

O caso mais exuberante da ficcionalização artificial da história, registada também nas últimas duas décadas de quinhentos, diz repeito aos “libros púmbleos del Sacro Monte” (1595) e ao pergaminho da “Torre Turpiana” (1580), ambos descobertos em Granada. Estamos, aqui, face à reinvenção do destino por parte dos moriscos (uma abundante minoria, neste caso arabófona, composta por dissimulados cristãos-novos). O material encontrado, no sub-solo do monte fronteiro ao Alhambra e na torre referida, aparenta ser antiquíssimo e prevê, de modo auto-flagelador - aliás como nos manuscritos proféticos e não-arabófonos de Aragão, registados no manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris[32] - o fim do Islão na Península Ibérica, assim como o próprio fim do mundo. As placas de chumbo do Sacro Monte, gravadas com caracteres árabes angulares e redigidas num latim quase imperceptível - simulando assim a sua longevidade -, pretendem reivindicar uma origem remota, explicitamente situada no século I D.C.

Entre os vários livros “púmbleos” existentes, registe-se, por exemplo, Los grandes mistérios que vió Santiago, ou Enigmas e misterios que vió la Virgen, ambos atribuídos a Tefsifón Ebnaçar e a seu irmão, supostos discípulos do incontornável e mítico S.Tiago, apóstolo de Cristo e de Espanha (os manuscritos de Aragão, acima citados, remetem, por sua vez, para S.Isidoro, considerado  igualmente como “apóstolo de Espanha”). De referir que uma larga disputa teológica - que chegou aos aerópagos do Vaticano - acabou por envolver estes fascinantes manuscritos que, apenas em 1868, acabariam por ser definitivamente desacreditados pela pena de José Godoy de Alcántara, na sua História crítica de los falsos cronicones (D.Cabanelas,1965,1981 e L.Lopez-Baralt 1980,1981[33]).

Pelo facto, porventura, de a comunidade que produziu estes manuscritos granadinos ter desaparecido, eles acabariam por não gerar qualquer mito ibérico; no entanto, o processo de reinvenção histórica e a sua denúncia definitiva estão intervalados de três séculos, o que também acontece mimeticamente com o caso do relato de Ourique (entre a sua fase filipina de reinvenção e as consequências da intervenção de Herculano).

 

III- Monarquia Lusitana: foz da tradição anterior e matriz do futuro mito.

 

O aparecimento de um enunciado profético forjado e supostamente legitimado pelo próprio D.Afonso Henriques - tese de Duarte Nunes de Leão (1600) que desagua na própria Monarquia Lusitana (1632) - não pode, portanto, ser considerado como um fenómeno literário-profético isolado. Insere-se, antes de mais, no quadro de uma alteridade peninsular mais geral que acabamos - muito sumariamente - de descrever.

Esta tendendência desenvolver-se-á, em Portugal, no entanto, de acordo com uma especificidade, que se torna vital no fim de quinhentos, e que se baseia na afirmação de uma diferença, no quadro da topografia imaginária da Península ibérica. Este facto - que é também motivador das modalizações singularmente portuguesas do mito ibérico do Encoberto (L.Carmelo,1998) - é partilhado, por razões e lógicas corrosivamente diferentes, pelos moriscos do Levante e da Andalusia. Deste modo, contra (ou a favor) da tendência de uma Península Ibérica una, indivisa e monossémica, a todos os níveis, se erguem diferentes modelos de manietação ex-eventum da história. Neste âmbito se insere, por exemplo, o goticismo castelhano (simbolicamente centripto), e, de sinal contrário, as profecias moriscas e. sobretudo, no caso que nos interessa, para além do Sebastianismo português (reactivado na época em causa [34]), a consolidação da matriz do que viria a ser o mito do milagre de ourique.

Vimos que é nesta fase, durante cerca de quarenta anos de significativo período filipino, ou seja, entre os textos de Duarte Nunes de Leão e a Monarquia Lusitana, que, de modo decisivo, se constitui uma matriz construtora do novo e futuro mito. Leiamos, pois, a parte decisiva do trecho original[35] (III parte, 1973:119-120) da Monarquia Lusitana , da autoria de Frei António Brandão, para que dela possamos extrair alguns dados importantes para posterior conclusão.

 

O texto inicia-se com a descrição de um D.Afonso quase místico, lendo a Bíblia e nela encontrando sinais prefiguradores de vitória na batalha que se aproxima. Segue-se a descrição de um sonho - num “brando sono” -, no qual a personagem de D. Afonso vê o asceta, “um velho venerável”, bem como a própria e anunciada aparição do “Salvador do mundo”. Acordará, depois, e, entre a realidade e o sonho, depara então com o “bom velho” com quem antes sonhara e que, desde logo, lhe prenuncia o milagre, acrescentando-lhe que “tivesse muita confiança em o senhor por ser dele amado, e que nele, e em seus descendentes tinha posto olhos de sua misericórdia até à décima-sexta geração[36], em que a fé atenuaria a descendência, mas nela ainda nesse estado poria o senhor os olhos”.

Não muito depois, com o deslumbramento que a retórica barroca tão ornadamente figura, D. Afonso vê Cristo na sua frente: “pondo os olhos no céu viu na parte Oriental um resplendor formosíssimo, o qual (a) pouco e pouco se ia dilatando, e fazendo maior. No meio dele viu o salutífero sinal da cruz”. D. Afonso, nessa altura, - “descalço se prostrou em terra e com abundância de lágrimas começou a rogar ao Senhor por seus vassalos e disse”:

 

- “Que merecimentos achastes meu Deus em um tão grande pecador como eu para me enriquecer com mercê tão soberana ?“(...)”Melhor seria participarem os infiéis da grandeza desta maravilha, para que abominando seus erros vos conhecessem. (ibid.:119)

 

                 No único momento em que fala (também em discurso directo), Cristo anuncia o futuro reino providencial português e termina anunciando - ao nível dir-se-ia, do goticismo castelhano - claros desígnios de depuração e pureza necessárias

                

                 - “Não te apareci deste modo, para acrescentar tua fé, mas para fortalecer teu coração nesta empresa e fundar os princípios do teu reino em pedra firmíssima”(...)”Eu sou o fundador e destruidor dos Impérios do mundo, e em ti, tua geração quero fundar para mi, um Reino, por cuja indústria será meu nome notificado a gentes estranhas. E porque teus descendentes conhecerão de cuja mão recebem o Reino, comporás as tuas armas do preço com que comprei o género humano, e daquele porque fui comprado dos judeus, e ficará este Reino santificado, amado de mim pela pureza da Fé. E excelência da piedade.”(ibid.:119-120)

 

                 Segue-se a resposta de D.Afonso que pede a Deus que proteja o reino, chegando a referir o possível pecado dos seus descendentes (numa clara interferência da enunciação - sublinhando o estado do presente - em desfavor do pretenso passado em que o texto quereria ter sido escrito). Num momento posterior, já em discurso indirecto, mas agora através da voz narrativa e omnisciente, é sublinhada a aceitação de tudo por parte da Divindade e são, de seguida, profeticamente anunciadas as próprias viagens dos descobrimentos, talvez como forma ex-eventum de demonstrar um pretenso domínio da história ainda por cumprir.

 

                 -“Em que merecimentos fundais meu Deus uma piedade tão extraordinária como usais comigo ?”(...)”Conservai livre de perigo a gente portuguesa, e se contra ela tendes algum castigo ordenado, peço-vos o deis antes a mim, e a meus descendentes, e fique salvo este povo a quem amo como único filho.

                 A tudo deu o Senhor resposta favorável”(...)”porque os tinha escolhidos por seus obreiros e legadores, para lhe ajuntarem grande seara em regiões apartadas. Com isto desapareceu a visão.” (ibid.:120)

 

                 Podemos retirar deste enunciado várias conclusões, nomeadamente:

a)  A enunciação não privilegia um elemento intermediário entre o actante-profeta e futuro rei, por um lado, e a Divindade, por outro lado, o que está de acordo com os moldes do género profético, na sua primeira fase, até ao século IV A.C. (anterior, portanto, aos primeiros textos apocalípticos). Este facto acaba também, por produzir um efeito de verosímil hiperbolizado, complementado com reiteradas expressões patéticas e de pretensa humildade por parte de D.Afonso;

b)  O eixo imediato do presente - a pré-batalha - sobrepõe-se ao eixo escatológico, negligenciando-se aparentemente a questão da salvação, mas sublinhando-se, de forma clara e explícita, a questão de uma futura predestinação nacional;

c)  A pseudonímia autorial, neste caso sigularizada pela instância narrativa no próprio actor que é D.Afonso, atribui autoridade à enunciação e permite, à partida, a manipulação do tempo e da história;

d)  A teoria das duas idades impõe-se, mas de tal modo que um presente mágico (o do século XII) parece, desde já, determinar um futuro radioso até - precisamente - à “décima sexta geração”, o que, no fundo, é a chave do que virá a constituir-se como um futuro mito providencialista de sobrevivência nacional. No entanto, inquietações do período em que o texto é forjado reflectem-se na segunda voz de D.Afonso (“conservai livre de perigos a gente portuguesa”);

e)  O discurso refina-se através de visões carregadas de símbolos (a visão no lado oriental do céu; os judeus; a pureza; gentes estranhas; o homem venerável; a Bíblia; a prolepse onírica e sobretudo as armas de Portugal que D.Afonso acata, etc), ainda que a ilocução seja descodificada através da intervenção, premeditada e cruzada, de ambos os autores - Cristo e D.Afonso[37]- que dialogam, ao contrário do que acontecia na versão do século XV (igualmente já afectada pela manipulação do devir histórico);

f)   O sonho[38], um elemento profético por excelência, intervém como uma prefiguração absoluta e literal de tudo o que ocorrerá algumas linhas depois do seu registo, nomeadamente através do surgimento do eremita anunciador e da própria aparição de Cristo. Sem construir um verdadeiro suspense, e sem se constituir como figura de antecipação, o sonho adquire, deste modo, funcionalidade enfática, bem como a força rítmica de uma litania que se limita a repetir o acto que se quer narrar. Contribui, deste modo, para o desejado eco retórico com que a aparição de Cristo se sublinhará;

g)  Quando o “homem venerável” anuncia a D.Afonso que, à décima-sexta geração, “a fé atenuaria a descendência” dos que mandam no reino, logo acrescenta - “...Mas nela ainda nesse estado poria o Senhor os olhos” - o que constitui outro claro prenúncio da necessidade de ver projectada, no presente, uma inevitável projecção divina que ilumine o estado actual de pós-degenerescência (leia-se, de dependência filipina);

h)  Por fim, como se referiu mais cima, a escolha de Deus recaindo sobre os portugueses “para que lhe ajuntarem grande seara em regiões apartadas”, não só sublinha o claro providencialismo divino, como tem a utilidade diegética de denotar um pretenso, mas necessário, domínio da história por parte da transcendência revelada. 

 

IV- Conclusão.

 

            A tradição oral épica, reposta textualmente no século XIV, consagra D.Afonso Henriques como um personagem heróico, ímpar, criador do mundo original, ou seja do novo reino.

No início do ciclo de ouro, passadas as etapas da fundação e iniciação, Portugal descobre-se como terra providencial e, por isso mesmo, a lenda o explicita nos variados excertos que edificam a própria crónica de 1419. Neste contexto, a semantização de um pacto entre a ideia do antigo guerreiro fundador e o agora divino fundador do reino há-de perdurar ao longo do século XVI. Duatre Galvão e Camões farão ainda jus a esta visão de D.Afonso Henriques.

No período de fechamento do ciclo de ouro, os conteúdos da lenda são definitivamente moldados e seriados. Fixa-se, então, de vez, o caracter angélico e divino do primeiro rei português e forjam-se, ao mesmo tempo, as fontes histórico-ficcionais de formato heteredodiegético e actorial, para melhor o legitimar. Além do mais, as características da matriz literária do período (1600-1632) correspondem, nos artíficios retóricos utilizados, a atributos nodais e ancestrais do género profético. Tal é patente no diálogo entre o rei e a divindade[39]; na premonição calculada do futuro, tendo como acento particular o estado de coisas vivido no tempo real em que o texto é enunciado; no recurso a uma estrutura narativa ex-eventum e, por fim, na consequente manipulação da história ao serviço de efeitos de sentido do presente (sobretudo políticos).

Esta definição matricial do futuro mito é contemporânea e muito similar a outras penínsulares; quer face ao corpus profético das minorias ameaçadas de expulsão (os moriscos) que reinventam a história para se tentarem salvar; quer face às tentativas centralistas dos Áustrias de Madrid que também manipulam a história, ao serviço dos seus desígnios imperiais e de monossemia hispânica. Curiosamente, em todos estes casos, a alteridade islamo-cristã é uma das isotopias correntes, na sequência da tradição, quase omnisciente aliás, das narrativas ibéricas medievais e mesmo posteriores (como se viu).

No entanto, a diferença enunciada por Portugal, nesta sua matriz profética de seiscentos, é evidente e vem significar uma necessidade vital de afirmação[40] de uma história específica que, por um lado, crê nas suas origens sagradas e, por outro lado, crê num futuro visionário e sobretudo autónomo. Outros mitos igualmente em formação na época (como, por exemplo, o do Encoberto), coincidem neste singular aspecto de representação do tempo, pelo que confirmam o presente ponto de vista.

O exemplo mais interessante que comprova esta necessária especificidade portuguesa é, porventura, o que advém da adaptação teatral da matéria da lenda - sobretudo a partir dos textos de Benardo de Brito (1602) - por um autor português português e por um outro espanhol. Se António de Sousa, na sua Tragicomédia (1617) funde o ornato alegórico barroco com a essência do conteúdo providencial da lenda, já Tirso de Molina, em Las quinas de Portugal (1638), desenvolve antes conteúdos de tensão amorosa entre D.Afonso e uma senhora da corte que quase o desvia dos seus deveres régios. Deste modo se verifica como já existem, na época, em Portugal, claros factores de identificação e, portanto, de especificação de “formas de conteúdo”[41] que se desvirtuam, quando interpretados por outro sistema semântico.

A força deste intertexto profético e de sobrevivência nacional[42] - baseado no relato mítico de Ourique - é tal que, superando os conhecidos horizontes desconstrutores de oitocentos, acabará, no século XX, por ser recebido como fundamento poético para alguns cultores do modernismo português, assim como para bastantes autores da designada filosofia portuguesa e do projecto da Renascença Portuguesa[43]. Almeida Garrett, nas suas Viagens na minha terra[44], contemplando a “Capelinha de Nossa Senhora da Vitória”, cuja origem uma lenda escalabitana atribui a D.Afonso Henriques, não resiste a lucubrar acerca da transmissão dos imaginários que, de lendas, se transformam em facto: “Mas seria ele (D.Afonso), ou não que levantou essa capelinha ? Os documentos faltam; os escritores contemporâneos guardam silêncio; a História deve ser rigorosa e verdadeira... Deve; e os grandes factos importantes, que fazem época e são balizas da História de uma nação, também eu os rejeitarei sem dó, quando lhes faltarem essas autênticas indispensáveis. Agora as circunstâncias, para assim dizer, episódicas de um grande feito sabido e provado, quem as conservará, se não forem os poetas, as tradições, e o grande poeta de todos, o grande guardador de tradições, o povo? ”(1974:244).

Talvez por isso mesmo, Garrett conclua que “Portugal é, foi sempre, uma nação de milagre, de poesia” (ibid.:214). Uma terra, como tantas outras, onde os factos míticos recortam a identidade, pelo menos no plano de uma subliminar auto-imagem.

 

 



[1]Sobre o conceito, relativo às readaptações e transformações genéricas, cf. A.Fowler The life and death of literary forms in New directions in literary history, Ralph Cohen (ed.), The Johns Hopkins University Press, 1974:77-94, Baltimore. Ainda: Kinds of literature: An Introduction to the Theory of Genres and Modes, Clarendon Press, Oxford, 1982:107.

[2] Acerca do tema em questão, L.Carmelo, A simbologia do Encoberto peninsular - Da génese valenciana aos moriscos aragoneses e ao grande mito português (F.Sur,Madrid,1998) insere-se, tal como o presente artigo, num projecto mais vasto, designado - “Portugal  semiose e auto-imagem”.

[3] Sobre o assunto, refere M.Tarracha Ferreira (Romanceiro de Almeida Garrett,Ulisseia,Lisboa,1997): “Cantadas pelos jograis, as gestas eram de difícil memorização, por serem excessivamente longas, além de que nem todos os episódios impressionariam igualmente a imaginação do povo. E em determinada época, talvez na segunda metade do século XIV, ao mesmo tempo que os jograis iam procedendo a novas refundições dos fragmentos desgarrados que mais tarde emocionavam os ouvintes, quer simplificando-os, quer introduzindo episódios de outras gestas ou de lendas entretanto criadas pelo imaginário popular, as canções de gesta serviam também de fonte histórica às crónicas primitivas, pois nelas iam sendo incluídas em versões prosificadas. Assim, nas compilações históricas realizadas por iniciativa de D.Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela, e avô materno de D.Dinis - a General Estoria e a Crónica General de España, ambas redigidas em castelhano (ou seja, em romance castelhano), - foi incluída ‘ matéria dos poemas épicos de tema histórico ainda então cantados pelos jograis que os iam dando a conhecer de terra em terra’, segundo o medievalista Luís Filipe Lindley Cintra”.

[4] Segundo A.Saraiva (O crepúsculo da Idade Média,Gradiva, Lisboa,1996:158), citando J. Leite de Vasconcelos e L.Lindley Cintra, o presente texto detém marcas sobretudo galegas, provenientes de traduções anteriores, chegando a sublinhar a hipótese de o próprio D.Pedro ter encarregado da tradução de uma das variantes da Crónica general de España um escriba galego”.

[5] M.Buescu (Perceval e Galaaz, cavaleiros do Graal,Biblioteca Breve, Lisboa,1991:87).

[6] A.Saraiva (o.c.,1996:161).

[7] L.Lindley Cintra (Introdução in Crónica Geral de Espanha de 1344, Vol.I, Academia Portuguesa de História, Lisboa,1951; Sobre a formação e a evolução da lenda de Ourique in Revista da Faculdade de Letras,F.L.L.,Lisboa,1957 e A lenda de D.Afonso I, rei de Portugal (origens e evolução) in ICALP revista, ICLP, Lisboa,1989).

[8] Todos os “predicados” analisados por A.Saraiva (o.c.,1996:162-163) são “próprios de Fernão Lopes”(...)”e estranhos aos historiógrafos medievais”. De realçar, neste quadro, o “espírito de paisagem”presente na descrição de Santarém que antecede, na crónica em causa, a narração da conquista da cidade.

[9] J.Matoso, História de Portugal,Estampa, Lisboa,1993-Vol.I:70

[10] Texto in A.Saraiva (o.c., 1996:164-165).

[11] No sentido de enquadrar a noção de ‘horizonte de expectativas’, eis a reflexão de H.Jauss (1978:50-51), a partir de uma definição de W.-D.Stempel: "Si lón définit avec W.D. Stempel l'horizon d'attente où vient s'inscrire un texte comme une isotopie paradigmatique qui se change, à mesure que se développe le discours, en un horizon d'attente syntagmatique immanent au text, le processus de la réception peut être décrit comme l 'expansion d'un système sémiologique, qui s'accomplit entre les deux pôles du développement et de la correction du système. Le rapport du texte isolé au paradigme, à la série des textes antérieures qui constituent le genre, s'établit aussi suivant un processus analogue de création et de modification permanentes d'un horizon d'attente. Le texte noveau évoque pour le lecteur (ou l'auditeur) tout un ensemble d'attente et de règles du jeu lesqueles les textes antérieures l'ont familiarisé et qui, au fil de la lecture, peuvent être modulées, corrigées, modifiées ou simplement reproduites. La modulation et la correction s'inscrivent dans le champ à l'intérieur duquel évolue la structure d'un genre, la modification et la reproduction en marquent frontières." Esta reflexão inclui-se na tradução francesa (1978) de um volume onde se publicam diversos trabalhos de H.Jauss da década de setenta (de 1972 a 1975). Já na década de 80, H.Jauss (1988:27) escreveria: "...le concept d'horizon est devenu une catégorie fondamentale de l'herméneutique philosophique, littéraire et historique: en tant que problème de la compréhension du différent face à l'altériré des horizons de l'expérience passé et de l'expérience présente, comme aussi face à l'altérité du monde propre et d'un monde culturel autre". Jauss, Hans-Robert Asthetische Erfahrung und literarische Hermeneutic - I, Wilhelm Fink, Munchen, 1977; ed.ut.: Pour une esthétique de la réception, Gallimard, Paris, 1978.

[12] A propósito das características do género profético, cf., L. Carmelo (La Représentation du réel dans des textes de la litterature aljamiado-morisque, Universiteit Utrecht, Utreque)1995:18-187.

[13] L.Cardaillac, Morisques et Chréthiens - Un Affrontement polèmique, Librairie Klincksieck, Paris, 1977.

[14] Referimo-nos, por um lado, às reactivações proféticas das tradições joaquinitas e, por outro lado, às reactivações de profecias pró-imperiais, legitimadoras de desígnios divinos, tais como as Tribulações... de Telesforus de Cozenza, a Profecia do Segundo Carlos Magno, o Gamaleon e, já depois de meados do século XV, o Prognosticatio de J.Lichtenbergen (L.Carmelo,o.c.,1995:42-49).

[15] L. de Camões, Os Lusíadas, Porto Editora,Porto, 1969.

[16] Las formas complejas de la vida religiosa - religión, sociedad y carácter en España de los siglos XVI y XVII, Akal Editora, Madrid, 1978.

[17] Sublinhado nosso.

[18] História da literatura portuguesa, Porto Editora,Porto,1955.

[19] A intencionalidade diz aqui respeito à enunciação do intertexto que se cria na sequência dos mais variados registos que vão de Duarte Nunes de Leão a António Brandão.

[20] N.Daniel,The cultural Barrier - Problems in the Exchange of Ideas, Ed.Un.Press, Edinburgh,1975.

[21] Los cuervos de S.Vicente: escatología mozárabe, Ed. Nacional, Madrid, 1978.

[22] Nos textos proféticos dos moriscos de Aragão, sobretudo nos Manuscritos 774 da Biblioteca Nacional de Paris, torna-se evidente que os agora falsos cristãos-novos aceitam que a derrota definitiva face à maioria cristã se fica a dever à sua negligência face aos deveres divinos. Publicamos, como exemplo, um extracto de uma dessas profecias: “- Óh! (Ya) servo de Allah, quero fazer-te saber como se aproximam tempos difíceis ("el eskandalizami(y)ento") para os muçulmanos de Espanha. (E) disse:

               - E porque é que isso acontecerá ?

               - (E) disse:

               - Porque irão acontecer entre eles muitas coisas feias. E a primeira dessas coisas é que deixarão de compreender o Alcorão, e deixarão l-ssalâ (a oração ritual) e não pagarão a(l)zzake (a esmola legal) e dayunarán (jejuarão) pouco e (mesmo assim) dizem que Allah é verdadeiro (fol.279v) nos seus corações (mas) são vazios de nomear Allah. E por isso semearão muito e colherão pouco, trabalharão muito (e disso) terão pouco proveito” (in L. Carmelo,o.c.,1995:348).

[23]A cronologia dos textos proféticos, no seu todo, é bastente imprecisa. Embora o cronotopo diegético se espalhe entre o século XIII A.C. (relato da conquista e repartição da terra pelas doze tribos, em Josué) até aos tempos de Alexandre-o-Magno (no segundo Zacarias), os textos atribuídos aos profetas últimos (de Isaías a Malaquias) acabam por ser autorialmente anteriores a muitas das compilações dos chamados primeiros profetas (de Josué aos Reis) - caso do livro dos Reis (escrito ao longo do séc.VI A.C.), enquanto que, entre os profetas últimos, encontramos textos da autoria do próprio Isaías (no primeiro Isaías) cuja datação nos remete para o século VIII A.C.

Acresce ao indicado, o facto de, na cronologia interna do Antigo Testamento, existirem ingredientes proféticos anteriores aos próprios livros proféticos: nos Números, os textos Eloístas assinalam já a prefiguração profética. Em 11,25 Moisés responde a um rapaz que testemunhara Eldad e Médad em pleno acto de profetizar: "Si seulement tout le peuple du Seigneur devenait un peuple de prophètes sur qui le Seigneur aurait mis son esprit!". No quadro da tradição Eloísta, Deus intervém pouco directamente nos assuntos humanos e espera dos seus servidores obediência. Outros fragmentos de prefiguração do profetismo remontam mesmo ao Génesis. Por exemplo, em Gn 20,7, Abraão é tratado como um profeta:"C'est un prophète qui intercédera en ta faveur pour que tu vives” (diálogo entre o rei de Guérar, Abimélek, e Deus que lhe fala em sonho - um dos elementos mediadores importantes no que virá a ser a futura tradição profética). A realeza é, portanto, um ponto de partida formal para este período profético. No Deuterónimo, o papel de Moisés "n'est pas exactement celui d'un prophète" (Introduction/ Traduction Oecumenique de la Bible:332). O profeta, como o codificamos no início do período designado por profético (ibid.:332), transmite a palavra directamente de Deus ao seu povo; Deus apresenta-se então num discurso da primeira pessoa. Aqui, ao contrário, e como os Levitas continuarão a fazer, Moisés recorre antes à primeira pessoa para se referir a si próprio, enquanto evoca Deus na terceira pessoa verbal (caso de 9,10: "Le seigneur m'a donné les deux tables de pierre, écrites du doigt de Dieu, où étaient reproduites toutes les paroles que le Seigneur avait prononcées pour vous sur la montagne").” (L.Carmelo,o.c.,1995:34). Sobre o tema Frye, Northrop The Great Code, The Bible and Literature, Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1981/2; ed.ut.: Le Grand Code - La Bible et la littérature, Seuil, Paris, 1984., e E.Lévinas Lévinas, Emmanuel Transcendence et Inteligibilité, Éditions Labor et Vides, 1984, Paris; ed.ut.: Transcendência e Inteligibilidade, Edições 70, Lisboa, 1991; citações do A.T. in Traduction OEcuménique de la Bible (TOB) - Édition Intégrale, Les Editions du Cerf/ Les Bergers et Les Mages (Ancien Testament), Paris, 1987; Les Editions du Cerf/ Société Biblique Française (Nouveau Testament), Paris, 1989.

[24] Sobre esta questão, M.Foucault (1988:113) conclui, em As palavras e as coisas, que o saber apenas rompe com o seu "velho parentesco", a divinatio, a partir do século XVII. Até aí, e ao contrário da lógica sígnica "do provável e do exacto", todo o saber decorre do desvelar de uma linguagem anterior, distribuída por Deus ao mundo, linguagem essa que é espelhada pela natureza (nela se incluindo a voz, enquanto suporte anterior e imanente das línguas naturais; cf. Foucaul, Michel Les mots et les choses - une archéologie des sciences humaines, Gallimard, Paris, 1966; ed.ut.: As palavras e as coisas, Edições 70, Lisboa, 1988. ). Julia Kristeva, em Recherches pour une sémanalyse (Seuil, Paris,1969), mostra-se mais prudente na caracterização da época que preside à transição “do símbolo ao signo”. Para a autora, todo o período que sucede ao século XIII - e até aos alvores do século dezasseis - constitui uma transição em que, a pouco e pouco, esta "prática semiótica cosmogónica" (ibid:116), baseada nas relações unívocas entre os universais e as coisas (o mundo da divinatio), cede a um novo tipo de conexão sígnica, baseada na interacção "entre deux éléments placées tous les deux de ce côté-ci, réèls et concrets" (ibid:117).

[25] Sobre a obra de A.Abel, com incidência na análise do profético. Cf.: Réflexions comparatives sur la sensibilité médiévale autour de la Méditerranée aux XIIIe et XIV siècles in Studia Islamica, Vol. XIII, 1960:23-42;Changements politiques et littérature eschatologique dans le monde musulman in Studia Islamica, Vol. II, 1965: 23-45;Un Hadit sur la prise de Rome dans la tadition eschatologique de l´Islam in Arabica, Tome V,1958:1-15 e Bahira in Enciclopedia of Islam (New Edition), Vol. III, 1983: 777-779. Como O.Niccoli referiu (1990:62 e sqqs.), as aparições e visões sobrenaturais integram um vasto corpus profético que se estende desde a Idade Média até seiscentos, atingindo mesmo o mundo protestante (caso do De spectris de Ludwig Lavater - 1570). Em França, por exemplo, “aerial battles had become so common that on several occasions they were predicted by preachers”(...)”the topic appears to have been a favorite of the broadsheets on current occurences known as canards” (ibid.:63). Um dos enunciados mais ímpares descritos é a italiana Littera de le maravigliose battaglie, datada de 1517, e onde se descreve a súbita visão de dois exércitos em luta durante uma semana, três a quatro vezes por dia, na região de Verdello, Bergamo. Após a batalha, os seres envolvidos na peleja desaparecem, deles apenas soçobrando vestígios de pegadas. Esta mundovisão fantástica e recheada de “segno” integra um ambiente semiótico caracterizado pela interpretação mântica de ocorrências; um exemplo evidente disso é o facto de as luzes fosforescentes “appearing on battlefields were a recurrent commonplace to the point that in the mid-eighteenth century Lenglet Dufresnoy felt it necessary to state they “are only gross exhalations that rise naturally from cadavers and that easily take fire”- O. Niccoli, Profeti E Popolo Nell'Italia Del Renascimento, GIUS, Laterza & Figli SPA, Roma-Bari, 1987; ed. ut.: Prophecy and People in Renaissance Italy, Princeton University Press, Princeton - New Jersey) 1990:73.

[26] No momento em que se pressente a expulsão das minorias islâmicas da Península (1609), após os momentos-chave de Lepanto, Alpujarras e Alcácer-Quibir.

[27] Braudel, Fernand La Méditerranée et le monde méditeranéen à l'époque de Philippe II, Librairie Armand Colin, Paris, 1966; ed.ut.: O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico, Publicações D.Quixote, Lisboa, 1983 (Vol. I), 1984 (Vol.II).

[28] Sobre aparições e profecias, na época em questão, cf. William Christian, Jr. - Apparitions in Late Medieval and Renaissance Spain (Princeton,PUS,1991) e O.Niccoli - Prophecy and People in Renaissance Italy (Princeton, PUS,1990).

[29] Cf. L. Carmelo,o.c.,1995:123.

[30]F.Marquéz Vilanueva,Voluntad de leyenda: Miguel de Luna in Nueva Revista de Filología Hispánica, Vol.XXX,nº2,1981:359-395.

[31] J.Deny,Les pseudo-prophéties concernant les turcs au XVIe siècle in Révue des Études Islamiques, nº 10, Cahier 2, 1936:201-220.

[32]Corpo de Manuscritos aljamiados (excepto entre os fol. 88v e 189r, em Árabe), referenciado, pela primeira vez, por E. Saavedra, no apêndice aos Discursos leídos ante la Academia Española el 29 de Deciembre de 1878, Madrid, e catalogado pelo autor como número sessenta. O Manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris corresponde ao manuscrito número 290 de Saint Germain de Près e é actualmente designado por Ms.BNP 774. Em 1982, foi publicado por M. Sánchez Alvarez, El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París, Gredos,  Madrid.

[33] De L.López Baralt: Chronique de la déstruction d'un monde - la littérature aljamiado-morisque in Revue de l'Histoire du Maghreb, nº 17/18, 1980-I:43-73; Las problemáticas profecías de San Isidoro de Sevilla y de Ali Ibn Alferesiyo en torno al Islam Español del siglo XVI: tres aljofores del Ms.774 de la Biblioteca Nacional de Paris in Nueva Revista de Filología Hispânica, nº XXIX-2, Madrid, 1980-2:353-366 e Mahomet - prophete et mythificateur de l'Andalousie Musulmane des derniers temps, dans un manuscrit aljamiado-morisque de la Bibliotheque National de Paris in Revue de l'Histoire du Maghreb, nº21-22, 1981-1: 199-201. De D.Cabanelas, Intento de supervivencia en el ocaso de una cultura: los libros púmbleos de Granada in Nueva Revista de Filología Hispânica, nº XXIX-1, Madrid,1981:334-356.

[34]A Reactivação da figura do Encoberto, oriunda do Levante Ibérico, fica em muito a dever-se à recuperação de Bandarra levada a cabo por D. João de Castro, na sua Paraphrase et Concordancia de alguas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso (1603). Neste contexto deve-se incluir igualmente Bocarro Francês (1588-1662) e, depois da Restauração de 1640, refira-se o Fr. Filipe Moreira que atribu às profecias de Bandarra a premonição do novo rei, D.João IV, pois onde nas Trovas se escrevia - “ o seu nome é Dom Foão”, “houvera de se ler” D. João, o primeiro da Dinastia de Bragança. Contra a “Grifa parideira”, referida por Bandarra e agora intrerpretada como a casa de Habsburgo, se erguia este novo rei do país restaurado. Na sua obra O Sebastianismo - história sumária (1987), José van den Besselaar dá corpo à vasta antologia que, na época, se espalhou em Portugal em torno do agora descoberto Encoberto. No entanto, o Padre António Vieira acabaria por tornar-se no maior dos porta-vozes do novíssimo bandarrismo joanista. No seu estilo literário, baseado na alegoria universal, Vieira, deu corpo ao que viria a designar-se pelo “Quinto império português”. No seu Sermão de Acção de Graças pelo nascimento do príncipe D.João, o padre jesuíta retoma as palavras de Daniel (2,26-45) acerca dos quatro grandes impérios e concretizaria assim: “... o terceiro império, que é o dos gregos, a que hão-de suceder romanos; o demais de ferro[34] até aos pés significa o quarto império, que é o dos romanos, a que há-de suceder o da pedra, que derribou a estátua; e a mesma pedra significa o Quinto Império, a que nenhum outro há-de suceder” (in L.Carmelo, o.c.,1995:324).

[35]Monarchia Lusitana, III Parte, por Frei António Brandão. Texto integral fac-similado”, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1973:119-120 (introdução de A.da Silva Rego e col. A.Dias Farinha e Eduardo dos Santos).

[36] Sublinhado nosso.

[37]A este respeito recorramos à clarificação de L. Hartman (1983:334) : "...I will examine the characteristics of what could be termed the illocution of the text, i. e., what its author wants to say with that which he says.  We could also speak of this constituent as the message or the type of message conveyed by the text" (...) "...in the case of apocalypses, a typical message is one of comfort and exhortation" ; L,Hartman, Survey of the problem of Apocalyptic genre in Proceedings of the International Colloquium on Apocalypticism, (Uppsala, 12-17/8/1979), David Hellholm (ed.), J.C.B. Mohr, Tubingen, 1983: 329-343.

[38] Citando ainda Ibn Khaldún (1967-I:203-4), é através da verdadeira visão onírica (ru`yâ) que a alma humana "atteint à la connaissance de l'avenir souhaité et retrouve aussi ses perceptions originelles"; mas, porque a sua potência depende de percepções corporais, os humanos não atingem nunca o nível superior dos anjos. É, ao contrário, dom dos profetas "passer de l'humanité au pur angélisme, c'est-à -dire à l'échelon supérieur de la spiritualité" (ibid.:205). A visão onírica exprime-se, assim, "à plusieurs reprises au cours des révélations". O registo do oniro está intimamente ligado ao modo profético, ou seja, ao diálogo entre Deus e o homem, seu receptáculo. O sonho constitui-se como matéria do premonitório e a tradição que confere a esse processo uma dada codificaçäo remonta ao século VII A.C., segundo L.Hoppenheim (1956: 179 e sqqs.). As influências que, neste quadro, sobretudo a sociedade islâmica irá sentir, provêm sobretudo da Grécia e da zona do Iraque. Por exemplo, a tradução do livro dos sonhos de Artemidoro de Éfeso foi importante, no século IX, para que a "onirocritique arabe puisse sentir une nouvel essor" (T.Fahd,1966:248). Esta dupla herança (grega e babilónica), bem assimilada pelos “onirocrites arabes, se perd dans l´apport très riche et très varié qu´ils ont enregistré, amélioré et perfectionné, à travers de nombreuses générations” (ibid.:249). Os variadíssimos exemplos de profecias, recorrendo a sonhos (e a existência de códigos para a significação destes), patente no livro de Toufic Fahd (1966), permite concluir que "ces exemples démontrent l'existence, dans la première moitié du IIIe/IXe siècle, d' un code d' interprétation des songes, réunissant certaines constantes symboliques" (ibid.:311). Sobre o tema: L Oppenheim, The interpretation of dreams in the Ancient Near East. With a Translation of an Assyrian Dream-book, in Transactions of the American Philosophical Society, Vol.46, Philadelphie, 1956: 179-373;Ibn Khaldún,Discours sur l'Histoire Universelle (al-Muqaddima), org./tr. Monteil, Vincent: Comission Internationale pour la traduction des Chefs d'Oeuvre, Beyrouth, 1967-I, 1968-II et III; T.Fahd,La Divination Arabe - études réligieuses, sociologiques et folkloriques sur le milieu natif de l'Islam, E.J.Brill, Leiden, 1966.

[39] Já vimos na nota 23 que, no período profético inicial, até ao século IV A.C., não se regista qualquer mediação angélica, entre a divindade e os reis. Essa figura é aqui recuperada. Além do purismo retórico, porventura não intencional, mas objectivado ao nível da enunciação, refira-se que terá feito parte da estratégia de diferenciação portuguesa substituir os santos (S. Tiago, sobretudo) pelo próprio Cristo, na aparição que é, ao fim e ao cabo, a base da profecia fundadora e providencialista de Ourique. Tal é a tese de L.Lindley Cintra (o.c.,I-1957).

[40] A afirmação de uma identidade baseia-se na consciência de se ser sujeito de algo, i.e., de estabelecer com o objecto - o mundo, o outro - uma relação também particular. No plano do imaginário português, segundo J. Matoso, no seu recente A identidade nacional (1998,Gradiva,Lisboa), “a primeira obra em que os portugueses aparecem como sujeito é, talvez, significativamente, as Décadas de João de Barros (1552-1563)”, antecipando, nesse propósito constitutivo, Os Lusíadas. A matriz profética, definida no início do século XVII - e  estimulada decerto pelo contexto político de então - só se torna possível pelo facto de o reino, já na época, se auto-representar como um sujeito (colectivo), construtor das suas prórpias “formas de conteúdo” (segundo U.Eco,O signo,1981:159, Presença, Lisboa - “o sistema das unidades semânticas representa o modo como uma certa cultura segmenta o universo perceptível e pensável e constitui a forma de conteúdo”).

[41] Sobre a noção de “forma de conteúdo”, da autoria de L.Hjelmslev, cf. nota 40.

[42] A.Saraiva refere mesmo que o “milagre de Ourique”, relatado pela primeira vez “250 anos depois do seu suposto acontecimento”,(...)“justifica a independência nacional” e será “invocado e engrandecido após a perda da independência, em 1580. Porque fundava essa independência num direito superior ao dos reis” (o.c.,1996:166).

[43] Nomeadamente os registos do “temperamento messiânico”e da “nova religião” portuguesa, baseados numa pesquisa às “fontes originárias”da alma nacional, e que surgem retrospectivados em obras de Teixeira de Pascoaes, tais como O espírito lusitano ou o saudosismo (Renascença Portuguesa, Porto,1912), ou O génio português - na sua expressão filosófica, poética e religiosa (Renascença Portuguesa, Porto,1913). Por outro lado, em autores como Álvaro Ribeiro (Meditação lusíada - Amanhã, V Império in Tempo Presente,1960:7/8), há a convicção de que “na fluência dos eventos flutua um símbolo de perene”, o que leva a concluir - de acordo com uma notória crença providencialista, baseada numa específica teoria do acto, que - “Portugal é uma potência que urge passar a acto, para que mais brevemente se cumpra a redenção universal”.

[44] Sá da Costa, Lisboa,1974.