O jardim da voyance

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

Escreveu Mallarmé que, no mundo, tudo existe para "aboutir à un livre". Esse grande livro seria porventura um sinal de completude, de superação, de realização superior. Embora a tarefa tenha ficado em aberto, a verdade é que o autor a viu - ou dela teve visão - num desses momentos raros que o homem moderno se habituou a fruir, em pleno banco de jardim. Dizia o poeta, a certa altura do seu Quant au livre:

"Sur un banc de jardin "(...)" je me réjouis si l´air, en passant, entr´ouvre et, au hasard, anime, d´aspects, l´extérieur du livre: plusieurs - à quoi, tant l´aperçu jaillit, personne depuis qu´on lut, peut-être n´a pensé" [1].

Podia esta máxima poética constituir uma benção ao enigmatismo do 'Jardim dos Sentimentos' do Palácio de Cristal; ou podiam estes mesmos versos, simplesmente, traduzir a ideia de que o ar puro do jardim, seja ele qual for, pode sempre trazer até nós o que jamais alguém terá pensado, desde que existe leitura e acaso. Com efeito, um jardim é sempre um local de acaso construído, de natureza recriada, de leitura da paisagem transfigurada, de pura cenografia a auspiciar, página a página, que folheemos o grande livro das origens.

1 - Jardins, os espelhos do verbo.

É verdade que os jardins existiram primeiro na imaginação humana e só muito mais tarde na utopia construída ou planificada. Talvez por isso mesmo, a tradução mitológica dos jardins evoque, não apenas uma espécie de memória invisível e geral da espécie humana, mas também um conjunto perene de significados individualizados, tais como o símbolo do cosmos, do centro, da topografia fundadora, da natureza restaurada, da fonte das águas vivas (no Cântico dos Cânticos), do locus dos (e para os) eleitos, da cruz (sassânida), ou até da topografia para os caminhos do amor místico, entre muitos outros.
Em certas culturas, como acontece no Islão, a insistente imagem do paraíso-jardim chega a contrastar com a imagem cristã do paraíso-cidade. J.-L.Goff disse, a este respeito, "ser uma grande novidade da escatologia judaico-cristã não colocar o paraíso futuro num lugar natural, ilha ou jardim como o paraíso das origens a que a Génesis refere" [2]. É um facto que a Génesis, enquanto lugar mítico, estatui a mundivivência de um jardim e de uma ocorrência primordiais. Contudo, a visão do paraíso final, escatológico, sobretudo no texto do Apocalipse 21, retoma e aprofunda o texto vetero-testamentário (Ezequiel 40 a 48) da cidade-paraíso. Deste modo, o reencontro de Deus com os homens far-se-ia na "Jerusalém celeste" que desceria, após o desaparecimento da terra e dos céus anteriores (21,1-2). Nesta nova urbanização, a descrição quasi-fotográfica da cidade é herdada do texto de Ezequiel - a urbe é cúbica, as paredes de ouro e as pedras preciosas - e, do mundo vegetal, só já parecem sobrar as imagens do grande rio (que desce do trono de Deus) e da "árvore da vida", ambas retomando a prévia descrição da Génesis 2,10.
Ainda que a descrição judaico-cristã tivesse recriado, deste modo, o eldorado final das recompensas humanas, o certo é que os mitos perfectíveis nunca abandonaram completamente a figura metafórica e idílica dos jardins. Uma das razões fundamentais para isso terá sido o persistente culto das 'idades de ouro'. Voltaire, no seu Dictionnaire philosophique, desmistificava já essa pesada tradição e concluía com algum sarcasmo:

"Toute cette histoire en général se rapporte, selon des commentateurs trop hardis, à l´idée qu´eurent tous les hommes, et qu´ils ont encore, que les premiers temps valaient mieux que les nouveaux" [3].

Seja como for, os jardins medievais e renascentistas ainda reflectem o retrato de um céu imaginado, o recato fechado da contemplação impoluta e tentam traduzir o sentido último da salvação, através de uma geometria centrada e harmoniosa. Estes verdadeiros espelhos do céu na terra perdurarão ainda nos grandes jardins que os diversos reis-sol mandarão erigir, ao longo de seiscentos. No entanto - e como referiu J. Delumeau em Uma história do paraíso - O jardim das delícias - o jardim do século XVII já enaltece, aqui e ali, mais a " virtù do proprietário", do que a orientação da alma "em direcção a Deus"[4]. É no decurso do século do Iluminismo, sobretudo na sua parte final, que um conjunto de fenómenos, ligados directa ou indirectamente ao alvor da modernidade, acaba por augurar as futuras funções dos jardins urbanos, enquanto espaços públicos e lúdicos, programados racionalmente. Apesar desse facto, uma curiosa e cáustica passagem de Les Rêveries du promeneur solitaire de Rousseau dá-nos a ver, com alguma nitidez, que, no limiar do último quartel do século XVIII, os parisienses ainda não interpretavam os jardins de acordo com essas funções:

"... un bel esprit de Paris voyant à Londres un jardin de curieux plein d´arbres et de plantes rares, s´écria pour tout éloge: Voilà un fort beau jardin d´apothicaire ! A ce compte le premier apothicaire fut Adam"[5]

2 - Os jardins, a visão racional das grandes urbes modernas.

Na segunda metade do século XVIII, a compreensão do mundo vai deixando de ser matéria de interpretação das escrituras. O sentido último das coisas, baseado na figura da salvação, cede, a pouco e pouco, o seu lugar às vozes do experimentalismo e aos dotes da razão. As leis, os valores, a ideia de futuro (galvanizada mais pelo progresso, do que pela providência) e o próprio domínio das linguagens passam a ser matéria que depende directamente da invenção humana. As cidades expandem-se por trás do fantasma da revolução industrial e das súbitas pressões demográficas que lhes estão associadas, e vêem aparecer, no seu seio, um novo tipo de civilidade, de espaço público, de discussão e de lazer que reflecte este inaudito refundador do mundo que é o sujeito moderno.
A modernidade assume-se decididamente como o reinstituir da humanidade. Para este novo quadro de autonomia e liberdade humanas despontam igualmente novas noções: a cultura, a estética, a nação, o povo, a história (essa "nova ciência" de Vico). Por outro lado, o habitat por excelência dos tempos modernos, a cidade, passa a constituir um modelo vital e racional para o planeamento. Reconfiguram-se eixos, praças, confluências e todas as funções que pressupõem a convivência massificada e a passagem ininterrupta. A arquitectura torna-se na laicização da topografia urbana do antigo paraíso: os centros acolhem a apoteose da cidade, as alamedas elísias disputam o trânsito - como se fossem limbos - e os novos parques e jardins condensam o modo como o homem moderno subtrai a natureza à (sua) cultura. Se no universo pré-moderno tudo era natureza permanentemente criada por Deus e, portanto, havia continuidade natural entre cidade e campo, agora, de modo súbito, a paisagem constrói-se, culturaliza-se e, no interior das cidades, passam a brotar, como se fossem invenções mecânicas ou augúrios de arte, estas áleas de natureza domada, estes alinhamentos racionais de vegetação, estes marcos de reinscrição da Génesis na gestão racional dos espaços.
O projecto parece claro; quer isto dizer que, para além do planeamento do presente, a nova cidade moderna cria dois outros registos de controlo complementares e necessários: um, temporal; o outro, espacial. No primeiro, insere-se a obsessão nascente pelos arquivos, museus, história e identidades nacionais. No segundo, insere-se o domínio da natureza, o fomento dos jardins botânicos (cujo início pródigo se havia registado em Veneza em 1553, e em Paris em 1576) e, por fim, a construção de parques e de jardins - já não na perspectiva da recriação mitológica do cosmos, mas antes no âmbito da novíssima estruturação das funções urbanas e do espaço público emergente.
É possível que ambos os controlos, do tempo e do espaço, apareçam, a seu tempo, muito ligados a um outro mecanismo também de controlo que lhes é contemporâneo e porventura subjacente: a fotografia (ou, pelo menos, a sua fenomenologia e/ou magia). Até porque a fotografia é a primeira figura mecânica de dissimulação que assalta a área do presente (do actual, do agora-aqui) moderno.

3 - Jardins, esses filhos híbridos de cultura e natura.

No início da modernidade esta óptica parece, de facto, ser a correcta. O mesmo é dizer que, na nova escala de valores, a natureza passa a ser definida pela ordem que é anterior ao homem e que se edifica por si só, autotelicamente, enquanto a cultura passa a ser definida pelo fazer humano que procede, ou de um pragmatismo da razão, ou de outras potencialidades não conceptuais, tais com as artísticas. Por exemplo, para Kant, na sua Crítica da faculdade do juízo, arte e natureza distinguem-se do mesmo modo que "o fazer ( facere) se distingue do agir ou actuar em geral ( agere), e o produto ou a consequência da primeira, enquanto obra ( opus), distingue-se da última como efeito ( effectus)" [6]. Tentando exemplificar melhor o seu pensamento, o autor concretiza, de seguida:

"Se na escavação de um poço pantanoso se encontra, como às vezes já ocorreu, um pedaço de madeira talhada, então não se diz que ele é um produto da natureza, mas da arte; a sua causa produtora imaginou um fim ao qual isso deve a sua forma" [7].

Poder-se-á dizer que as novas auréolas da modernidade - a arte e a razão - convergem, de algum modo, na idealização dos jardins modernos. Pelo menos, ambas se tornam em verdadeiras causas planificadoras dos novos espaços vegetais em que a imitação da natureza deixa de ser cópia, para passar a ser uma operação de ponderada representação (leia-se reinvenção). A nova definição de imitação levou mesmo Diderot a criar um novo conceito, a manière, que o autor definia como expressão do artista, conforme este se aproximava "plus ou moins de la nature" (1998:277). Convém acrescentar, ainda segundo o autor, que não existiria sequer manière, "si l´on imitait scrupuleusement la nature" [8]
Um século mais tarde, para John Ruskin, a fidelidade viria a contrapor-se a esta ideia de imitação. Esta continuava a ser um diagrama livre e inventivo da natureza, mas sob o ponto de vista estritamente físico, enquanto aquela pressuporia a representação do lado "imaterial" que a natureza sempre suscita (emoção, sentimento, etc). Os pré-rafaelitas constituíram, com se sabe, o grande exemplo para o romântico tardio inglês e ambos acabariam por se tornar em feéricos inimigos das artes mecânicas de reprodução. O que para Talbot era, à época, o emaravilhamento do mundo microscópico (os cristais fotografados), era para a brotherhood pré-rafaelita e para Ruskin o mundo hipnótico e vegetal das múltiplas focagens truncadas e pintadas à mão num só plano.
Apesar dessa guerra em torno da reinvenção da realidade paisagística , diga-se que uns e outros continuavam a perseguir a mesma via de diferimento face à natureza: Talbot, por reinventar novas visibilidades e um novo tipo de mónada temporal; os Pré-rafaelitas, por reinventarem novas simulações do espaço e um novo tipo de fidelidade imaterial.
Os jardins das novas cidades modernas, curiosamente, parecem respirar e viver com estes mesmos condimentos: por um lado, ao criarem a aura de um tempo mítico no seio do tempo corrente e galopante das urbes; por outro lado, ao enunciarem-se como um mundo de simulação, de jogo, de cascatas imaginárias, ou de sobrepostas cenografias prontas a deleitar os seus fruidores. Encantos da criação e da ilusão exclusivamente humanas, qual as de Talbot ou as de Ruskin, afinal.
No curso do século XIX, acrescentemos ainda, o spleen da grande cidade que Baudelaire descreveu - em oxímoro - como uma desproporcionada "enormité que fleurit comme une fleur" (142) era já, de facto, amenizada e traduzida - em jeito de catarse - por esse hiato ilusório e encantatório que o mesmo poeta dizia ser o - "beau jardin où les rayons d´un soleil automnal semblaient s´attarder à plaisir" [9].

4 - Dos jardins do Palácio de Cristal do Porto.

Nasce sobre o que já não há. E esse nada que paira na alma de todas as paisagens terá sido, para María Zambrano, a "última aparição do sagrado" [10] no mundo moderno. Neste caso, esse nada que continua a existir em estado de "aura" - o velho palácio - era composto por três imensas naves de vidro, metal e granito, arqueando na fachada um perfeito ângulo raso que parecia sugerir o perpétuo pôr-do-sol, e albergando, no seu íntimo, ao fundo da maior das naves, um desmedido orgão. Era de facto um primor, inaugurado em 1865 e concebido pelo arquitecto Thomas Dillen, de acordo com o homónimo londrino de Hyde Park.
Diga-se que nasce também sobre o rio que corre, esse filme de águas vivas, sem princípio nem fim, que traz em si a voragem e o ouro da terra-mãe por onde antes passou, fotograma a fotograma. Manuel de Oliveira e Paulo Rocha que o confirmem. Diga-se ainda, e por fim, que nasceu já em tempos de franca modernidade; que emergiu de uma burguesia nascente e sobretudo fascinada pela munificência das roldanas, pela majestade do metal e que conhecia muito bem a senda do progresso, de que o Porto oitocentista foi um cultor privilegiado e sobretudo ousado.
É, portanto, neste Porto confiante que surge o primeiro Palácio de Cristal e o jardim original, este, já francamente urbano. A sua vida tem várias fases, aliás conhecidas: da apoteose da burguesia de oitocentos à política de arraial já do nosso século; da Exposição Internacional Portuguesa de 1865 à Feira do Porto de 1927 e desta à Exposição Colonial Portuguesa de 1934; do verdadeiro Zoo criado nos anos trinta às volumetrias do Estado Novo levantadas em obelisco; e, finalmente, das cinzas do primeiro palácio destruído com 86 anos de vida, em 1951, à semi-esfera do actual Pavilhão Rosa Mota que completa este ano as bodas de prata de casamento com a Invicta, e que foi concebido pelo arquitecto Carlos Loureiro. A esta vida diversa e rica, aberta à memória da diversão, das exposições e das evocações múltiplas, sucedeu, na última década, um rejuvenescimento que abraçou, de uma só vez, a arquitectura, a reabilitação do lúdico, as práticas culturais e o regresso didáctico à natureza [11].

Todo o jardim é sempre um corpo, uma amálgama de orgãos em movimento; e o jardim do Palácio de Cristal parece, nesta medida, querer rever-se como um derradeiro verbo da liquidez do Douro, expondo o seu corpo, ao longo da encosta, com uma atitude de voyeur e de confessor solitários. Uma postura romântica, porventura, mas que define o olhar para o grande oceano; ou para o sortilégio que cruza e condensa os imaginários do cabo do mundo português, tão diversamente reflectidos por Unamuno ou Raul Brandão: O poente como obsessão, mas a aventura como missão.
Por dentro do corpo do jardim, de leste a oeste - e, de repente, o olhar salta para as fotografias de José M.Rodrigues -, a Avenida das Tílias aparece no seu alçado outonal, rectilíneo e obsessivamente envolvido pela surimage devastadora que empresta a quem nela vagueia um traço de união enigmático, quase hermético, mas que parece, de modo inevitável, unir princípio e fim, céu e inferno, repouso e caos. Folhas no chão, os troncos devolvidos ao ângulo mais térreo, como que a auscultar a melancolia das raízes, o coração da terra e sobretudo o vazio irremissível dos bancos de jardim que, no meio da avenida, se abrem como Janus ao eterno retorno da vida.
A sigilosa Avenida das Tílias revela-se também como o grande eixo, ou o axis mundi, que liga os vários centros do jardim e os redefine como lugares onde o céu e a terra se parecem tocar. Mas... este eixo nodal une igualmente os dois grandes mundos que compõem o corpo do jardim do Palácio de Cristal:

O primeiro mundo, a nascente, constitui a região mais rizomática e nela se situa o lago desenhado por Class, essa espécie de olho da terra, de onde o mundo subterrâneo encara as estrelas, ou a memória dos remadores e nadadores românticos. Nessa região se situa também o Miradouro da Torre da Marca, onde um outro lago, o dos cavalinhos, surge suspenso no fio do relvado, cavando entre o arvoredo a plena imagem de lisura, ou, tão-só, o que diríamos ser um plano cinematográfico que se despede da vista, da foz e da retina em movimento do rio, através de um clímax que a Ponte da Arrábida suaviza, a Ocidente. Por fim, nesta mesma zona, situa-se ainda o Jardim dos sentimentos, esse novíssimo labirinto que aspira à lenda do aprisionado Minotauro de Minos e de onde Teseu conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne. Local exacto para uma peregrinação imaginativa, ou para a fidelidade poética defendida por Ruskin.
O segundo mundo, a poente, junto à Rua D. Manuel II, constitui a região mais ordenada e visivelmente programada e nela se situa o geométrico jardim Émille David (paisagista alemão responsável pelo projecto original dos jardins), ladeado pelos famosos redondentros - que o poeta Albano Martins cantou -, assim como pela colateral Avenida dos plátanos.
Entre ambos os mundos, diga-se que deambulam odores de japoneiras, castanheiros, murtas, acácias, chorões, magnólias, plátanos, tamareiras, olaias, camélias, palmeiras, roseirais, tílias e muitas, muitas espécies raras. Novos equipamentos culturais, museus (como o dedicado ao Romantismo portuense), um grande património escultórico, cascatas, bosques, a capela de Carlos Alberto; o colorido dos cedros do Líbano, o murmúrio da folhagem, a névoa dos espelhos de água; e ainda o crocitar dos pássaros, o tisnar dos granitos e a perene giravolta do Douro, mais abaixo, constituem o vivo gáudio desta encosta, onde a natureza conservou os seus ares e onde o homem os redesenhou nesse seu grande livro espiritual que sempre augurou (como, aliás, escreveu e sonhou Mallarmé).

5 - Um jardim de voyance.

Por dentro, a máquina fotográfica acarreta um deslocamento que a retina nunca acompanhou. Esse deslocamento tem a medida de uma imaginação que, há muito, se desprendeu do seu suporte mais habitual: o tempo. O embalsamento - como referiu André Bazin - deve ter seguido o mesmo caminho, mas a verdadeira metamorfose só se afirmaria na hora de Nicéphore Nièpce. A sacada de uma janela, o olhar a espreitar timidamente a cidade apareceu como um primeiro resplendor da ainda incipiente película fotográfica. Também o jardim parece ter nascido assim, ou seja, para ousar quebrar a timidez dos primeiros modernos, conquistadores da natureza e do olhar mecânico.
Dessa magia ancestral até à oficina das câmaras escuras, passando pelos distintos laboratórios da alma e do vidro que, depois de seiscentos, invadiram a Europa, foi um pequeno passo. O auto-retrato foi uma das primeiras euforias dessa breve história do homem, ainda que, às vezes, o registo do rosto sugerisse a aparição de uma qualquer paisagem augurada, sonhada ou imaginada. Pergunta-se: não será o jardim moderno um locus de fantasia que libertou, pelo menos em parte, essa paisagem recalcada nos primeiros retratados ? Definitivamente, o homem moderno sonhou com cidades, estados, máquinas e futuros agendados. Ao esquecer-se progressivamente do mistério, a modernidade ter-se-á conformado em sublimá-lo através da laicização do paraíso. Não será também essa a sua razão de ser ? Por isso, para além do que se vê, no jardim existe sobretudo " voyance " (a metáfora é de Baudelaire e foi utilizada para, curiosamente, designar a fotografia).
A voyance das espécies raras do mundo, a voyance da vista do Douro, a voyance da idealidade perdida.

6 - Histórias do jardim de cristal de José M. Rodrigues.

À primeira vista, as histórias do fotógrafo são narradas através de um olhar vaticinador e involuntariamente nostálgico. Contudo, ao abrirmos o real baú do artista, o que nos é predestinado é de outra ordem: são fotografias que evitam o artifício e que evidenciam a metamorfose natural, a robustez conceptual e o encantamento formal; são imagens de viagem e sobretudo de travessia; são reportagens da alma profunda e abordagens da multiplicidade que suplantam as fronteiras dos géneros e dos estilos. Dir-se-ia que a obra de José M. Rodrigues é o lirismo possível de um touro mítico que fez a grande peregrinação pelo universo das sete viagens e sabiamente as foi fixando em prata, desde tenra infância.
A felicidade destas histórias agora enunciadas por José M. Rodrigues talvez advenha de uma relação simples. Por um lado, a óptica de génese fotográfica, enquanto meio moderno que estruturou um espaço imaginário onde as relações entre o desejo e os objectos passou a exprimir vazios, dissimulações e fotogenias até então considerados na área do puro fantasmático. Por outro lado, a reescrita da natureza - a criação, ela mesma, dos jardins nas cidades - o que permitiu estruturar e sobretudo pôr em cena o poder do homem sobre o espaço físico natural.
Nesta medida, as fotografias de José M. Rodrigues não percorrem apenas o mundo poético-limite, inscrito na memória dos jardins românticos do Palácio de Cristal; são elas mesmas, essas fotografias, um instrumento desse mundo poético subterrâneo até porque interligam espaços (físicos e imaginários) através do que Deleuze designou por "linhas de fuga", isto é, vias de evasão ou falhas que ligam o material e o legendário, o visível e o memorial, o locus concreto do jardim e a imaginação errante que o desenha. É no hiato que persiste entre ambos os planos - o que se dá a ver e o da voyance, o que nos permite a vista a partir da Torre da Marca e o que nos narra a fotogenia dessa imagem - que, por fim, se abrem os sentidos de mais esta viagem do fotógrafo José M. Rodrigues.

7 - Final: sete histórias do José M. Rodrigues, depois de reveladas na câmara-escura.

A - Cavalos
Os cavalos e as suas musas num tropel de trotes e galopes sobre as águas escuras do lago onde boiam e se arrastam, como Ofélias luminosas, folhas abertas e amareladas de plátano, pétalas e folhas violetas, vagas e esverdeadas, envoltas nesta crisálida líquida que, à superfície, reflecte as copas das árvores, o contorno impreciso das nuvens e a inquietação das ramagens. Ao fundo, por cima da bouquet que a musa enverga, emerge o indefinido plano da ponte meio esférica da Arrábida e, para além dele, o ar torvo e obscuro onde se dissolve o rio, o céu, o mar, a foz e este sonho de jarros cintilantes.

B - Barcos
Na ladeira do olhar, lá em baixo, íngreme, neste suspender da vista que é a razão de ver do miradouro do Lago dos Cavalinhos, um barco sobe pelo Douro transfigurado, quase púrpura, abrindo a nocturnidade das águas em forma de 'V'. Para além da fotografia, no seu punctum mais extremo e poético, entre mil livros por escrever e decifrar, mas sempre a caminho do livro da vida de Mallarmé, fica ainda o lugar inaudito do observador; e fica igualmente a topografia mágica do jardim que nesta imagem, abismada e aturdida, se dilui.

C- Troncos
E aqueles troncos esbeltos, finos e muito altos, quais estiletes de ouro escuro que ascendem do Éden ao céu, sem fazerem escala em Babel e sem sequer acederem à romagem permanente dos anjos. São hastes pródigas dos climas quentes que se cruzam, sob o olhar atento dos cedros frondosos, com o olho ciclópico do sujeito fotográfico que, mais além, no limiar do jardim, ainda soube captar o pranto e o desencanto desses ramos hirtos e desnudados que os climas amenos das quatro estações emprestam aos seus seres mutantes e inquietos.

D - Pegadas
Existem também muros incendiados, bruxuleantes, invadidos por ervas bravias, a escalarem e a enveredarem por caminhos imprevisíveis, sombrios, por onde a luz - esse medium que nos permite agora ver - reinventou a inusitada pose dos roseirais, os grãos suspensos na película sob a forma de picos e folhas picotadas, agrestes, envolvendo e revolvendo o muro manchado pela erosão, pela humidade, pelas pegadas de múltiplos duendes e ainda pelas penumbras de cristal de halogéneo que são as verdadeiras auras deste cenário à beira da fonte escultórica.

E - Bulícios
E os ramos que convergem no azul desse dia tépido, mas solar. E as folhas recolhidas dos castanheiros-da-Índia, ou das araucárias, que mais parecem arenárias rubras do deserto a esvoaçarem sob o fundo turvo das copas muito densas. E as veredas nublosas e enevoadas por onde correm nutridos coelhos e aves dos palácios persas. E aquele banco de jardim feito em granito muito claro, encostado a uma textura de folhas que são penas do velho muro de nascentes e que o destino virou para o rosto misterioso das japoneiras. E a sombra muito alongada a perder-se na árvore da vida, essa verdadeira sombra ancestral de fertilidade. E, por fim, aquele homem a sós ainda a medir forças com as margens sinuosas do lago; aquele homem a sós que acabou por resumir este universo inteiro de liames, rizomas e raízes através do bulício da água do repuxo.

F - Ninfas
Outras vezes, houve quem se reunisse em guarida, em retiro, em acolhimento e se redimisse na música, nos gestos do primeiro orvalho, ou na indolência daquela árvore muito velha que se espalhou pelo cosmos como se fosse polvo de cristal. E viram-se nessa clareira de acrobatas e duendes algumas figuras prestidigitadoras que eram aparição normal nas feiras antigas do jardim, ou na memória ancestral da lanterna mágica ou do cinematógrafo da urbe. Foi então que alguém sorriu e a ninfa da concha acústica logo levantou a taça de júbilo, bem ao alto. O tempo profano recomeçara assim e com ele a roda dos silêncios: era um círculo de crianças, um tambor caído na erva, um mágico quase a levitar e, ao fundo, a calote do actual Pavilhão Rosa Mota salpicada de heras e de trepadeiras imaginárias.

G - Rostos
Por fim, revelou-se-nos por milagre um mínimo chafariz de pedra escura, quase opaca, sílex de águas lentas a escorrer gota a gota, deixando para trás o olhar cúmplice e deslumbrado de uma rã e mais umas três pétalas muito brancas a contemplarem, quer a escadaria lateral que abraça a crosta do Pavilhão, quer os ramos de plátano dependurados como fios de prumo em tempo de gestação. É também esse o sentido daquele rosto moldado na rocha magmática mais antiga do mundo: o tempo como uma única água isolada pelo instante da película; o tempo como incubação de um rosto de seiva deslumbrado, qual o do aprendiz ou iniciado que, na fotografia de José M. Rodrigues, ao rosto da própria pedra se apoia. E assim sorriu para sempre, dizem os deuses.




1- Mallarmé, Quant au livre,Poésies,PML,Paris,1995:212.

2- Escatologia in Enciclopedia Einaudi - Vol.I, G. Einaudi, Turim; ed.ut.: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1984: 441.

3- Voltaire, Dictionnaire philosophique , Gallimard,Paris,1994:291.

4- J. Delumeau, Uma história do paraíso - O jardim das delícias,Librairie Arthème Fayard,Paris,1992; ed.uti.:Terramar, Lisboa,1994:162.

5- J.J.Rousseau, Les Rêveries du promeneur solitaire, Booking Internatinal, Paris,1994:104.

6- I.Kant, Crítica da faculdade do juízo ,INCM,Lisboa,43.1,1998:206.

7- I.Kant, Crítica da faculdade do juízo ,INCM,Lisboa,43.1,1998:207.

8- Diderot, Essais sur la peinture-Salons de 1759,1761,1763, Hermann, Paris,1998:277.

9- C.Baudelaire, Les Paradis artificiels / Le spleen de Paris,Booking International, Paris,1995:94 .

10- M.Zambrano, El Hombre y lo divino ,Fondo de cultura economica,México D.F.-Madrid,1993:174.

11- Parte destes dados, recolhidos de M.Marmelo/C.Ferraz, Palácio de Cristal/Jardim-Paraíso-A Garden Paradise ,Campo das Letras/Câmara Municipal do Porto,2000.