A comunicação profética e a codificação das
ortodoxias.
o caso da alteridade islamo-cristã
por Luís Carmelo
(1/4/1993)
Como T.Todorov referiu, os
géneros literários têm origem pura e simplesmente no “discurso
humano"(1981:62). Daí que possamos operacionalmente pensar uma noção de
género a partir de um conjunto de lesisignos, mais ou menos estáveis, que
condicionam a interpretação de formas arquétipas e reconhecíveis de "actos
de fala"[1],
no seio de uma dada comunidade. Nessa medida, é possível caracterizar o género
profético como uma amálgama de registos discursivos, modalizados durante
séculos nas suas dominantes expressivas e de conteúdo, e que tematizam, a
partir do epicentro cultural euro-semítico, a comunicação entre o homem e
determinadas imagens de transcendência com incidência na codificação da
experiência e no controlo de uma ideia de futuro e, em certa medida, de um eschatón.
Como vimos em trabalhos
anteriores (1995,1999), as próprias circunstâncias histórico-discursivas acabaram
por determinar que as permanências do género profético nos universos cristão e
islâmico, se manifestassem através de diferenciais profundos. Estes recortes
diferenciados na matéria do continuum,
quer expressivo, quer sobretudo de conteúdo, conduzem-nos à questão das
identidades e das alteridades. Para melhor compreender o mundo fechado das
primeiras - e entendamo-lo assim pois trabalharemos com exemplos situados ainda
nas semioses pré-modernas - passamos a analisar, no presente ensaio, um quadro possível
das alteridades, com ênfase para a narração dos eventos escatológicos, para a
enunciação das novas escatológicas e
para a própria natureza da(s) image(n)s de Deus. Após essa radiografia,
passaremos a sistematizar o modo como as ortodoxias em ambos os mundos, o
islâmico e o cristão, codificaram a textualização profética.
1. Alteridade escatológica islamo-cristã.
O lexema escatologia designa
a doutrina dos fins últimos, ou seja, o conjunto de crenças relativas ao
destino final do homem e do universo. A projecção escatológica engloba, assim,
a narração dos últimos dias terrenos, bem como dos estádios derradeiros ou
póstumos das almas. A definição escatológica, nas religiões, atribui
fundamentalmente uma razão de ser ao todo da existência, complementando um
ciclo que se abrira com as cosmogonias. Como refere G. Ricoeur (1971:534), se
estes últimos estão voltados para o passado e se exprimem pela narrativa, a
escatologia está antes voltada para o futuro e "revela-se na visão da
profecia que realiza a transgressão da narrativa".
São fecundas as relações
entre o acto profético e a escatologia, sobretudo no período que sucede o
Exílio hebraico e, de modo talvez mais abismado, durante o período dos
apocalipses judaicos (séc. II a C - séc. II d C). Contudo, a escatologia só
entra decisivamente numa dimensão temporal humana, no âmbito das revelações
cristã e muçulmana. Na sua génese, a profecia é um acto de premonição do
futuro, mas também, e sobretudo, de diálogo entre o homem e a divindade; a
escatologia, ao configurar a narração dos fins (ou a transgressão da própria
narração) constitui o anúncio, por excelência, da revelação do futuro, ou da
configuração de um fim e, ao mesmo tema, constitui-se como um complexo sistema
de comunicação e de significação, onde é realçado o papel de um enunciador
omnipresente e dodato de saber totalizante
Futuro, por um lado,
revelação do plano divino, por outro, eis as traves mestras da escatologia que
servem de horizonte referencial à produção profética humana. Como J. Le Goff
adiantou (1984:428), "escatologia e profetismo uniram-se muitas vezes,
estabelecendo uma relação entre a primeira fase do fim dos tempos e a história
presente e imediatamente futura"; nesta linha de ideias os sinais de crise
histórica foram muitas vezes motivo de produção literária profética, tendo em
vista a antecipação ainda que simulada dos fins últimos, divinamente anunciados
. E, inversamente, a interpretação de sinais ou de sintomas, assumidos como
anúncio ou prenúncio do divino, foram também amiúde motivo de produção de texto
(e de imagens) profético, condicionando os eventos históricos as situações de
“cronotopo de limiar” (para utilizar a expressão de M. Bakhtin) ou de crise (na
acepção de F. Kermode).
J.Galot escreveu um dia que
o Cristianismo "pode ser definido como escatologia tornada
história"(1960-IV:1033). Todo o sentido do homem e da História convergem,
assim, no escháton ou acontecimento
final. Também para o Islão, além da afirmação de um Deus único, omnipotente e
inimitável, num esquema oposto a qualquer antropocentrismo, é decisiva a visão
da história humana decorrendo "from creation to the eschaton"
(Y.Haddad, 1981:5). Ressurreição dos corpos e julgamento final integram,
igualmente, o plano escatológico de ambas as religiões. Há, porém, diferenças
substantivas de natureza escatológica entre as duas religiões, que acabam por
gerar modelos proféticos também diferentes, como referimos. Vamos passar a
analisar essa alteridade escatológica, de acordo com uma categorização
metodológica triádica, a saber: a narração dos eventos escatológicos, a
enunciação da nova escatológica e, finalmente, a natureza de Deus e sua relação
com o homem e a salvação.
1.1 A narração escatológica
É próprio da organização
narrativa atribuir coerência aos elementos que se dispõem em sucessão num dado
relato. Essa coerência narrativa manifesta-se, em todos os relatos, através da
passagem "d'un état initial à un état final, par une transformation"
(G.d'Entrevernes,1977:18). A criação, tal como é descrita nos relatos bíblico e
corânico, surge, não com um "single event"(Y.Haddad,1981:8), mas
antes espalhada por um período de tempo que remete para a semana mítica. Este
mesmo impacto do narrativo (e ainda que, no caso corânico, tal não constitua um
atributo por excelência) está de acordo com a natureza da evolução
escatológica: "evolution is justified in interpretating creation as God's
originating and continuing control of the evolucionary process" (ibid.:8).
Sendo o objectivo de uma tal evolução a própria dissolução do mundo,
verifica-se que, nesses momentos antípodas da criação, os relatos se voltam a
enunciar através de uma cuidada e coerente ordem de sucessão de eventos e de
actantes em acção. A este propósito, M.Eliade (1975:331) referiu que "la
même fluidité des formes constitue, à l'autre extrémité du temps, l'un des
syndromes de l'eschaton, du moment oú l'histoire prendra fin et où le monde
entier commencera à vivre dans un temps sacré, dans l'éternité".
Quer o planos narrativo
cristão, quer o islâmico têm um ponto de chegada: o momento do fim do mundo
terreno. Face a esse instante dramático, a narração suspende o cronotopo, não
precisando nunca, de modo literal, a ocorrência: "Si Dieu voulait châtier
les hommes de leur preversité, il ne laisserait aucune créature vivante sur la
terre; mais il leur accorde un délai jusqu'au terme marqué. Lorsque le terme
sera arrivé, ils ne sauront retarder ni l'avancer d'un seul instant"
(16,63) ou "La venue de l'heure est comme un clin d'oeil ou peut-être plus
proche encore, car Dieu est tout-puissant" (16,80)[2]. No Alcorão
são inúmeras as referências a este respeito, tal como na tradição e,
nomeadamente, no Sahíh`
de Bukhârí[3].
Também os Evangelhos acentuam este mesmo facto de ocultação, particularmente o
de Mateus: "Mais ce jour et cette heure, nul ne les connait" (24,36)
ou "Car c'est à l'heure que vous ignorez que le Fils de l'Homme va
venir" (24,44)[4].
Antes do termo anunciado,
registam-se ocorrências comuns em ambas as escatologias: sinais de grande
atribulação, cataclismos e desgraças, físicas e morais. Há uma alteração da
ordem, prefiguradora do caos. No seio do Islão, estes signos da hora (sâ`a) permitem reconhecer o princípio do
derradeiro estádio escatológico; são índices em termos semióticos[5].
Estas alteraçães da ordem física ('alâmât
al-sâ'a) surgem repetidadamente no Alcorão (caso da surata 81,1-14 ou
47,20). Um dos signos centrais de iminência da hora é consubstanciado por um
actante que parece vir culminar a inversão da ordem e a desintegração das
coisas terrenas: Gog e Magog (Júj wa Mâjúj). No Alcorão (18,93 e 21,96) são
identificados com o fogo devorador e com a "eau jaillissante". A sua
origem remonta a denominações de povos da Ásia central, cujas incursões,
segundo as crenças muçulmanas, Alexandre-o-Magno conteve através da construção
de uma imensa barreira metálica. Essa barreira, no fim dos tempos, acabará por
ser pervertida, e, a partir de uma brecha surgirão, então, o caos e as trevas[6]
("Jusqu'à ce que le passage soit ouvert à Iadjoudj et à Madjoudj; alors
ils descenderont rapidement de chaque montagne"- 21,96).
Naquilo que consideraríamos
a primeira grande luta final escatológica, ainda no domínio do mundo terreno,
Gog e Magog encontrarão, então, pela frente um outro actante restaurador da
ordem e da justiça, que tentará implementar um reino espiritual terminal, no
planeta. Referimo-nos ao Mahdí cuja
intervenção, amiúde, se reitera nas profecias produzidas em meio islâmico. A
personificação deste actante purificador não surge, no entanto, explícito no
Alcorão. É, como vimos no capítulo II, um corpo vasto de tradições que coloca
este actante salvador nos cenários escatológicos islâmicos. Apesar de terem
existido algumas confusões[7]
entre o seu papel e o de 'Isâ (Jesús),
no quadro das lutas finais, "for the most of the muslims the coming of the
mahdí and the return of Jesus are seen as two separate events"
(Y.Haddad,1981:69). Tal facto é confirmado pela formulaçäo de Ibn Khaldún, na
sua Muqaddima (1967-I:661-669[8]), segundo a
qual, no fim dos tempos, um homem da família do profeta apareceria "para
defender a religião e para fazer triunfar a justiça"; seria chamado, o Mahdí. Os muçulmanos, então,
segui-lo-iam e, deste modo, se inauguraria um período de paz, anterior à
chegada da hora final, no qual a lei (sharí'a)
do profeta prevaleceria. Convirá ainda acrescentar, de acordo com C.Glassé,
que, se é possível que este reino (triunfante) do Mahdí possa ser nertevisto como terrestre, "il est loin plus
semblable que, lorsqu'il adviendra, à la fin des temps, il sera intérieur"
(1991:116).
A esta primeira luta
escatológica, vai seguir-se a derradeira, travada num ambiente de expectativa
da chegada do messias. Desse facto advém o nome do novo actante, o messias
impostor (al-Masíh ad-Dajjâl, também chamado Masíkh,
o deformado), ou Anticristo. A vinda deste actante regista-se num momento em
que será difícil fazer a distinção entre uma verdadeira e uma falsa
espiritualidade. É um ser escatológico simulador do sagrado, de milagres,
estabelecendo a ambiguidade e a confusão entre o humano e o sublime; ganhará
adeptos graças à sua fáustica capacidade de criar maravilhas. A tradição de
Bukharí regista alegoricamente o perfil sinuoso do Ad-Dajjâl: "Lorsque apparaitra l'Antéchrist, il y aura de
l'eau et du feu; mais ce que les gens verront comme étant du feu sera de l'eau
froide, et ce qu'ils veront comment étant de l'eau sera du feu brulant; que
ceux d'entre vous qui atteindront cette époque se jettent dans ce qui semble
être du feu, car ce sera une eau agréable et froide" (60-50,1[9]).
Esta época de enganos prenuncia, de facto, o fim.
Com efeito, de acordo com a
tradição (diversos hadits), Jesús regressará antes do fim dos tempos e,
portanto, do julgamento final, para destruir o Anticristo; Cristo marcará,
então, o consumar do ciclo adâmico inaugurando um novo ciclo escatológico. O Sahih` de Bukharí
regista este itinerário narrativo: "L'Heure ne viendra pas avant que le
Fils de Marie ne soit descendu parmi vous, jugeant avec justice. Il brisera
alors la croix et tuera le porc, il supprimera la djeziya"[10].
O presença da cruz, referida nesta etapa escatológica decisiva, de acordo com a
surata 4,157[11],
significa que Jesús não morreu (na cruz) como no livro sagrado muçulmano é referido[12]. Nessa mesma
surata, a alusão temporal - "avant sa mort"[13] - é segundo
algumas interpretações, relacionada directamente com Jesús, tal como refere A.
Kasimirski (1970:103): "...qui doit encore revenir sur la terre pour tuer
l'Antéchrist et mourrir. Alors tout l'univers croira en lui" (em Jesús).
Esta visão da vitória final de Jesús surge também entre mudéjares e moriscos ibéricos. Quanto aos primeiros,
referência para 'Isâ b. Jâbir que, em 1462, escreveu na Suma de los
principales mandamientos y devedamientos de la Ley y Çunna[14]:
"Y la ora deçenderá Ayçe (Jesús) y matarlo a, y quebrantará la eregía y
todas sus ordenes, y sera la tierra en paz debajo de nuestra santa ley".
Depois registar-se-á a morte de Jesús e o seu enterro "junto al
bienaventurado Muhammad", ao
que se seguirá, pouco depois, o fim do mundo, seguido de ressurreição e
julgamento final. Em manuscritos aljamiados do século XVI, nomeadamente nos
Ms.BNM 9074 e 9654, os moriscos
expressam idênticos passos escatológicos. Neste último, refere-se um dado
específico do cronotopo: Jesús ficará ainda quarenta anos na terra, numa
restauração do illud tempus
primordial: "Quarenta años tan feliçes que paçan la obeja con el león, sin
detrimento alguno"[15].
A escatologia cristã, que se
considera aberta após a ressurreição de Cristo, traz para os primeiros anos da
nossa era um fervor de iminência terminal. Os sinais dessa iminência são
definidos por Paulo, nas suas Epístolas, como tempos difíceis a advir:
"Sache bien ceci: dans les derniers jours surviendront des temps difficiles"[16].
Tal como na narração islâmica, a doxa cristã prevê que certos eventos
perturbadores da ordem se manifestem perante a humanidade como verdadeiros
índices do fim (com especial ênfase para o carácter humano das atribulações).
J.Le-Goff numa referência às duas ressurreições anunciadas pelo Apocalipse de
João (20,1-15), sublinha o "carácter dramático dos acontecimentos que
devem preceder a primeira ressurreição, o Milénio - drama em cujo centro se
destaca o Anticristo - e, por outro lado, a marcar o segunda e derradeira
ressurreição, o grandioso juízo final"(1984:441). Por outras palavras,
pode dizer-se que há sinais de caos que prefiguram a Parúsia, ou a vinda de
Cristo no fim dos tempos, mas, por outro lado, também se pode afirmar que essa
expectativa da salvação não é possível sem um último combate contra um actante
oponente: o Anticristo. Esta figura escatológica, no contexto cristão, é visto
como um ser semanticamente disperso no seu investimento actorial: pode
significar a sedução e a mentira[17],
a heresia e o pecado (entendido como obstáculo ao plano divino de salvação)[18],
ou pode referir-se aos "ímpios" dos últimos tempos, na descrição de
Paulo[19]:
"que le Seigneur Jésus détruira du souffle de sa bouche et anéantira par
l'eclat de sa venue"[20].
Sinais prefiguradores,
embate inevitável e triunfo final do bem
escatológico são eventos simétricos nas narrativas cristã e islâmica. Há,
porém, diferenças no limiar desta primeira fase da narrativa escatológica: A
primeira situa-se na não correspondência com a luta entre Gog e Magog e o Mahdí restaurador, numa primeira fase
das lutas finais islâmicas (luta que reflecte uma visão da História de acordo
com ciclos proféticos de renovação[21]); uma
segunda diferença centra-se na doutrina da ressurreição dos corpos: para o Islão,
estes sairão das campas e juntar-se-ão às suas almas para comparecer no
julgamento final; para o Cristianismo, a ressurreição da humanidade inicia-se
em Cristo e desdobrar-se-á numa segunda que merece diversas interpretações.
Assim, de acordo com Ap 20,5, a primeira ressurreição constitui um elemento
simbólico, "c'est la vie nouvelle que donne le Christ"
(ctob,1989:803), como poderá também significar (numa perspectiva literal) o
início de um reino dirigido por santos e mártires e que se prolongará, na
terra, ao longo de um período de mil anos. A segunda ressurreição, também
interpretada como a única fisicamente real e não simbólica (a de todos os
mortos), liga-se ainda directamente à vinda final de Cristo, de acordo com 1
TH,15-18.
Antes da sua efectivação,
contudo, e ainda segundo Ap. 20-7 e 8, assiste-se a um derradeiro embate
inevitável. Satã, que se encontrara
preso durante os mil anos que se sucederam à primeira ressurreição, irá seduzir
"les nations qui sont aux quatre coins de la terre, Gog et Magog".
Surgem aqui aliadas, na última das batalhas, a figura de Satã (não mais a do
Anticristo) e as figuras de Gog e Magog (conhecidas, no Antigo Testamento, pela
sua hostilidade ao plano divino[22]).
É provável que esta diferença, não de actantes, mas do investimento que os
semantiza, reflicta uma visão diferente de Satã no Islão e no Cristianismo.
Como refere A.Abel: "Le chaytân d'Orient musulman (...) n'est pas, comme
le Diable, l'ennemi hideux obsédant du genre humain: c´est par sa douceur
insinuante qu'il essaie de conquérir"(1950:30). Aliás, de acordo com a
surata 2,35-39, o homem, no Islão, não é afectado pelo pecado original e a sua
expulsão do paraíso deve-se sobretudo à imposição do anjo Iblis (2,34).
Antes de passarmos a
descrever eventos e actantes escatológicos da segunda fase (para além do termo
do mundo terreno), convém salientar que a derrota de Satã, anunciada no plano
cristão, é apenas o culminar de uma derrota inicial que teve já lugar aquando
da ressurreição de Cristo. O eixo simbólico e o histórico-profético mantêm,
sempre, entre si, esta tensão: por um lado um advir narrativo que se coroaria
na salvação final; por outro lado, o legado da própria salvação entendida na
ordem do ordem de um agora-aqui. Do
lado Islâmico, apesar de se considerar que o último reino do Mahdí - ou até o derradeiro reino de
Cristo (de quarenta dias) - possam ser espirituais e interiores, o certo é que
a dicotomia vida-julgamento parece impor-se com muito mais acuidade, em termos
escatológicos[23].
*
O fim dos tempos terrenos é,
na escatologia islâmica, marcado pela destruição total do planeta e de toda a
vida que nele se possa supor (suratas 55,26-27 ou 69,13). Esta morte cósmica é
precedida pela morte individual de quem habite a terra, nesse momento. Tal
hecatombe universal precede e prenuncia a ressurreição. A sintaxe desta segunda
fase escatológica abre com o som da trompeta (suratas 23,102-4 ou 39,68-69),
seguido da ressurreição dos corpos - qiyâma
(e referida no livro sagrado islâmico com insistência, por exemplo nas
suratas 37,19 ou 65,3-4) - e do encontro (hashr)
desses corpos com as suas almas[24].
Segue-se depois, no quadro narrativo, o ajuste de contas final (hisâb):"La trompette sonnera et
toutes les créatures des cieux et de la terre expireront"(...)"la
trompette sonnera une seconde fois, et voilà que tous les êtres se dresseront
et attendront l'arrêt (39,68)"; o julgamento, talvez o elemento isotópico
por excelência da mensagem corânica, sucede a esta breve espera: "les
prophètes et les témoins seront appelés, l'arrêt qui, tranchera les différends
sera pronnoncé avec équité; nul ne sera traité injustement"(39,69)".
O julgamento é administrado por Deus, uno e todo poderoso, sob o signo da
balança (simbólica da equidade e justiça divina - 7,7 ou 21,48) e do livro das
sentenças (atestando a sabedoria divina - 81,10). Tawhíd , ou unicidade
divina, e a consumação do contrato ético, sob a forma de um julgamento final,
constituem, assim, formulações chave da mensagem corânica. O retorno de Deus
uno aos homens, no termo da própria escatologia, é também o completar do plano
divino para o todo da sua criação.
O destino final da
humanidade é dicotomicamente apresentado em inúmeros versículos do Alcorão. De
um lado o inferno, que é dominado pelo símbolo do fogo[25],
da"géhenne"[26],
da água a ferver[27]
e pela cor negra dos condenados (10,28)[28]. Do outro
lado, o paraíso, dominado pela simbólica da vegetação exuberante (os jardins)[29],
o elemento água (rios, correntes)[30],
as mulheres virgens e jovens[31],
as jóias e os tecidos de seda[32],
ou seja, tudo o que é codificável como "bonheur ineffable"(44,57).
Embora a dicotomia do destino humano seja profunda - ao longo da enunciação
corânica - há, na surata sétima (44-46), uma referência a um espaço, que separa
o paraíso do inferno, e que é avistado pelos que se encontram, num e noutro dos
cenários escatológicos. Assumindo o nome de a`râf
(orla, divisão), este espaço corresponde ao limbus
(o limbo) dantesco, ou o vestíbulo infernal (M.Palacios,1943:130)[33].
Antes da entrada no paraíso, os crentes que se livraram do fogo infernal terão
de atravessar uma ponte (sirât); Bukharí, no seu Saíh', explicita a função dessa travessia: "ils (os crentes)
seront retenus à un pont reliant le Paradis au Feu. Là, ils obtiendront
réparation des injustices commises entre eux en ce bas monde, jusqu'à ce qu'ils
soient purifiés et redressés. On leur permettra, alors, d'entrer au
Paradis"[34].
Antes da consumação final escatológica não se prescreve qualquer possibilidade
de intercessão, senão para "ceux
qui avaient fait une alliance avec le Miséricordieux" (surata 19,90) -
embora a tradição admita a recuperação dos condenados que tenham um mínimo de
fé[35].
Contudo, e como refere W. Chittick (1987:77), interpretações como a de Ibn
al-'Arabí não apontam para um castigo eterno no inferno: "Ibn al-'Arabí
does not deny that the sinners (al-mujrimún) will remain in the fire forever,
since the text of the Qur`ân reads "Khâlidún fihâ" (S. 2:25, 39, 81,
217, etc). But he points out that the pronoun in fihâ ("in it") is always feminine; in other words, it
refers to the feminine "fire" and never to the masculine
"chastisement" (al-'adâb). Nothing was revealed in the Qur`ân and the
Hadít that would indicate that the
fire's chastisement lasts forever".
O fim dos tempos, na
escatologia cristã, é marcado pelo soar das trompetas, depois de, em Ap 8,1, o
sétimo selo ser aberto. Uma tal simbologia (que passou para o registo corânico)
serve de base à destruição física do planeta e ao consumar das derradeiras
lutas terrenas. A eliminação de uma primeira criação e a sua substituição por
uma segunda é o filão comum a este tipo de narração escatológica. Essa segunda
criação pode ser prefigurada através de reinos terminais votados ao espiritual
(o milénio espiritual ou o reino do Mahdí),
mas é na fase pós-terrena da escatologia que, de facto, ela se consubstancia.
Como vimos, no caso cristão, existe sempre uma dimensão dupla das ocorrências, uma
simbólica-actual, outra histórico-profética. Retenhamos esta última, na
presente descrição. Cristo virá no fim dos tempos (Parúsia) e, à volta dele, as
nações reunir-se-ão (Mt 25,31). A ressurreição geral é descrita de acordo com a
prévia ressurreição de Jesús: "Dieu, à cause de ce Jésus, à Jésus les (os
mortos) réunira" (1 Th 4,14) - "Car lui-même, le Seigneur, au signal
donné (...) descendra du ciel: alors les morts en Christ ressusciteront
d'abord"(1 TH 4,16-17). O reencontro dos homens com Deus é feito fora da
terra: "ensuite nous, les vivants, qui seront restés, nous serons enlevés
avec eux (os mortos) sur les nuées, à la rencontre du Seigneur, dans les
airs"(1 TH 4,17).
A relação cronológica entre
a ressurreição[36]
e o julgamento final é algo ambígua, embora, na passagem acima referida (1 TH
4,17), pareça clara a precedência da ressurreição. Em 2 Co 5,10 não é , no
entanto, explícito se o julgamento final se realiza após a ressurreição geral
ou após a morte individual: "il nous faudra tous comparaitre à découvert
devant le tribunal du Christ a fin que chacun recueille le prix de ce qu'il
aura fait durant sa vie corporelle, soit en bien, soit en mal"[37].
A ambiguidade, poderá provavelmente ficar a dever-se à própria semantização da
expressão - "Dia do Senhor"[38] (própria da
escatologia vetero-testamentária), e que é transposta para o Novo Testamento
como Dia do Cristo ou Parúsia, significando "à la fois réssurrection et
jugement"[39].
Há, portanto, uma implicação muito grande entre ambas as ocorrências, o que dificulta
a sua colocação num eixo cronológico-narrativo certo.
Há igualmente um certo leque
de interpretações quanto à figura que configurará o actante escatológico de
juíz, no julgamento final. Em algumas fontes escriturais, é Cristo quem
desempenhará esse papel, o que surge explicitamente em Ac 11,3, em 1 p 4,5, e
em 2 Tm 4,1 e 4,8[40].
No entanto, no Evangelho de Mateus (16,27 e 25,31) Cristo julgará acompanhado
de anjos a partir do seu "trono de glória" e em 19,28 acompanhado dos
doze apóstolos[41],
o que é corroborado pelo sinóptico de Lucas, em 22,30. Por outro lado, no
Apocalipse de João (20,4), não é clara a figura (ou figuras) que preenche o
mesmo actante escatológico de juíz: "Et je vis des trônes. À ceux qui
vinrent y siéger, il fut donné d'exercer le jugement" - e, de novo em
Lucas (12,8), Jesús surge apenas como testemunha a favor dos fiéis, cabendo o
papel de juíz a Deus e aos anjos: "celui qui m'aura renié par devant les
hommes sera renié par devant les anges de Dieu".
O destino final da
humanidade é, como na revelação corânica, dividido entre as "trevas
obscuras"(1 P 2,17) para injustos e infiéis e a promessa de "cieux
nouveaux et une terre nouvelle" (2,13) para os que, pelas suas obras e fé,
se salvarem. A visão do inferno é dominada pela simbólica do fogo (MT 18,8 e
3,11, Lc 12,49 e Ap 14,10)[42],
da "géhenne" (MT 5,22 e 18,9)[43], das portas
de"Hadés"(MT 16,18)[44],
ou pela imagem dos antros "ténébreux du tartare" (ou do inferno)[45]
e, ainda, pela realidade de "segunda morte" (Ap 21,8), metáfora que
remete para a exclusão dos ímpios da nova vida. O inferno, por sua vez, é
considerado como eterno (embora certos padres da Igreja, como Orígenes, o
tenham contrariado[46]).
Para Santo Agostinho, baseando-se em Mt 25,41-46 e Ap 20,9-10, a pena dos
condenados consiste na perda de vida divina e o fogo chega a ser mesmo considerado, na sua Cidade de
Deus[47],
como uma realidade material[48].
A visão do paraíso celebra,
por outro lado, a descida do reino dos céus na terra. A escatologia cristã,
sobretudo no Ap 21, retoma e aprofunda o paratexto vetero-testamentário (Ez 40
a 48) da cidade-paraíso. Assim, o reencontro de Deus com os homens far-se-á na
Jerusalém celeste, que desce à nova terra, após o desaparecimento da terra e do
céus anteriores (21,1-2). Nesta nova urbanização, não haverá mais mentira
(21,27) nem sofrimento (21,4). A perfeição é simbolizada por medidas, formas e
cores[49]
herdadas do texto de Ezequiel e a imagem do grande rio, que desce do trono de
Deus, bem como a da árvore da vida retomam a descrição de Gn 2,10. Para Santo
Agostinho, o céu é o lugar da verdade perfeita e os eleitos beneficiarão da
sociedade do verbo encarnado, bem como da sociedade dos santos; a cidade de
Deus é a instância escatológica onde a comunicação entre a divindade e os
predestinados é imediata. O purgatório é também considerado na tradição
escatológica cristã. Santo Agostinho, apoaindo-se em 1 Co 3,11-15[50],
considera a existência de um estádio intermédio de penas temporárias
purificadoras da alma (o emendatorius
ignis), cujo efeito cessará, pelo menos, no momento do julgamento final.
*
Podemos reter oito
conclusões fundamentais, quanto às diferenças de narração escatológica que a
alteridade dos códigos islâmico e cristão relectem:
- (a) Como se disse, há uma
diferença básica no que diz respeito às relações entre o agora e o depois
escatológico. Para o Cristianismo a era do agora-vivido
e a era do depois-eterno podem ser
consanguíneas, pois a ressurreição de Cristo possibilita ao homem viver já a sua salvação. Para o Islamismo, o
contraste entre ambos os pólos é significativo e a acepção de que o depois é a verdadeira vida é um facto[51].
- (b) Também referimos
existirem desfasamentos na natureza semântica dos actantes, bem como na sua
intervenção nos eventos escatológicos. O Mahdí
islâmico encarna uma tradição que reflecte uma visão da história baseada nos
ciclos (proféticos) de purificação. Por isso se converte em figura escatológica
consagrada pela tradição (veja-se a posição de Ibn Khaldún[52]), o que não
ocorre com as figuras da literatura profética cristã análogas (casos do último
imperador ou do Papa angélico). Os papéis de Gog e Magog são semanticamente
similares, mas diferem no tempo em que agem e nas relações que estabelecem com
actantes segundos (caso da figura de Satã no Apocalipse cristão). A figura do
Anticristo corresponde a um semema diferente; mais do que um falso messias, ele
é, no cristianismo, o obstáculo ao plano da salvação.
- (c) O evento da
ressurreição assume modalidades bem diferenciadas: na tradição cristã requer
uma dupla ocorrência (quer no plano da interpretação simbólica, quer no
literal-milenarista); no Islão, a ressurreição precede o julgamento final,
enquanto que, no Cristianismo, é algo ambíguo esse cronograma (a posição de
Santo Agostinho quanto às penas do purgatório e do inferno, são disso exemplo[53]).
- (d) O papel de Juíz, no
julgamento final, pertence inequivocamente a Deus único e omnipotente, no
Islão. No Cristianismo, as fontes escriturais manifestam ambiguidades, embora
Cristo se assuma como a semantização mais certa de um tal actante escatológico[54].
- (e) A escatologia islâmica
está referencialmente presa às realidades do mundo terreno, quer por simetria
(aspecto que M.Palacios estudou aprofundadamente[55]), quer por
natureza contrastante. Quer isto dizer que o povoamento semântico do paraíso
islâmico corresponde a muito do que o meio físico e humano - onde a revelação
se produziu - não dispunha ou muito carecia.
- (f) Há uma dimensão
manifestamente antropomórfica na descrição do paraíso e do inferno islâmicos[56].
Num e noutro são os corpos que ou sofrem ou se deleitam, enquanto as vozes
imploram ou dialogam. Na descrição do purgatório, a tensão dramática e a
própria teatralização do discurso, envolvendo os três níveis escatológicos, dão
corpo à alegoria do sofrimento material humano e do seu merecimento. Aqui o
homem é o protagonista da narração. As fontes escriturais cristãs revelam a
existência do fogo, da "géhenne", das portas de"Hadés".
Fontes posteriores, como as referidas a Santo Agostinho, admitem mesmo a
materialidade do fogo. No entanto, não se verifica este fio narrativo
hiper-real dos seres nas suas arenas escatológicas próprias.
- (g) A possibilidade de
intercessão (shafâ'a), descrita na
tradição escatológica islâmica, é longínqua[57]. No
Cristianismo, por seu lado, o inferno é descrito como eterno, apesar de algumas
questões teológicas que o cristianismo inicial levantou a este respeito[58].
No Islão existem igualmente interpretações no sentido de o fogo do inferno não
ser (interpretado como) eterno.
- (h) Finalmente, regista-se
uma oposição quanto à estrutura simbólica do paraíso; no Islão a imagem global
do paraíso-jardim contrasta com a imagem cristã do paraíso-cidade. J.-L.Goff
(1984:441) comenta a este respeito: "Julgo ser uma grande novidade da
escatologia judaico-cristã não colocar o paraíso futuro num lugar natural, ilha
ou jardim como o paraíso das origens e que a Génese refere. Esta urbanização do além será contestada pela
tradição do paraíso-jardim. Trata-se de um debate ideológico ainda não
suficientemente estudado".
1.2. A enunciação escatológica.
Para evitar qualquer tipo de
ambiguidade referencial, convém situar, em primeiro lugar, o espectro semântico
das noções a que, na presente secção, recorreremos. Entendemos por discurso -
na sua dimensão linguística - todo o trabalho de rearticulação dos elementos
(do plano sintáctico e semântico) da língua natural utilizada na mensagem[59].
Por enunciado, entendemos a forma exterior, material e estável criada pelo
discurso. Deste modo, se o enunciado é o dito,
configurando assim a materialidade de um texto (oral ou escrito), a enunciação
será, por outro lado, o próprio acto de
dizer[60].
Discurso e enunciado corresponderão, assim, a um processo realizado de selecção
e fixação de material linguístico. Para designar o acontecimento (o acto),
através do qual o referido material linguístico disponível foi objecto de um
discurso e de um enunciado, recorreremos, então, ao lexema enunciação[61].
Enunciar é, nesta ordem de ideias, sinómimo do próprio acto que consiste em
actualizar a linguagem[62],
numa dada fracção temporal.
Se a enunciação é tida como
um acto de dizer gerada no interior
dos enunciados, é lógico que a mesma seja indissociável de um locutor, ou
sujeito, onde se manifeste. Diferente do emissor (e receptor) físico do
enunciado, o sujeito enunciador pode criar os seus próprios destinatários[63].
Por exemplo, é normal que, no âmbito literário-profético, um dado emissor
físico produza um enunciado recorrendo (mesmo voluntariamente) a uma segunda
voz, a de um sujeito enunciador, que cria os seus próprios destinatários. É
neste postulado da enunciação que se baseia a prática profética de vaticinia ex-eventum. O.Ducrot refere,
mesmo, que o fenómeno religioso poderia ser explicável, caso "a própria
língua não tornasse possível a fala de alguém ser simplesmente a fala de
outrém" (1984:387). Por outras palavras, é a própria organização das
línguas naturais que permite esta sobreposição de vozes enunciadoras e vozes dos
agentes da actividade linguística.
E.Benveniste adianta, no
entanto, que a presença do sujeito da enunciação nos enunciados só se torna
explícita e legível, se estes forem enunciados performativos[64].
Isto é, enunciados que em si mesmos constituam um acto; por outras palavras,
que sejam realizados por predicadores (verbos) aptos a criar uma situação nova
e não apenas a constatar algo consumado. Este tipo de enunciados têm a
particularidade de serem, ao mesmo tempo, uma manifestaçäo linguística e um
facto da realidade. "Pedir", "prometer" ou
"ordenar" são predicadores de enunciados performativos; os
destinatários que estes criam constituem parte integrante da enunciação, pois é
através deles que o pedido, a promessa, ou a ordem se realizam[65].
Os enunciados performativos prolongam-se e completam-se num futuro deixado em
aberto; o acto de dizer, nesses
enunciados ( a sua enunciação), constrói o que poderíamos designar por um
horizonte projectivo[66].
Para E.Benveniste, a
subjectividade, ou "a capacidade do locutor se colocar como sujeito"
(1976:59), é uma condição essencial da linguagem[67]. Este
sujeito, empírico ou enunciador, designa inevitavelmente um tu alucotário, e vice-versa, assim se
gerando uma polaridade comunicacional de pessoas.
O verbo profético das revelações divinas sujeita-se, no plano do enunciado e da
enunciação, a este jogo de sujeitos e respectivos receptores e destinatários -
pois, no caso das religiões do Livro, recorre a línguas (ou a outras formas
discursivas) humanas, para se fazer compreensível. Nesta medida, e porque o
enunciado profético é basicamente performativo (propõe e anuncia um plano
escatológico, que requer uma resposta
dos destinatários), logo o acto de dizer
que o acompanha - a enunciação - se manifesta, nesse mesmo enunciado, de forma
explícita e legível (embora este tipo de texto exija modelarmente a cooperação
entre o ‘dito’ e o aspecto fundamental de um ‘não-dito’ que é, até certo ponto,
o alicerce daquele)..
Assim sendo, podemos
constatar que, a par do conteúdo transmitido pelas revelações divinas, também o
modo de enunciação dessas revelações assume grande importância, quer no momento
e modo da sua transmissão, quer, na sua ritualização posterior (caso da
parascese cristã, por exemplo), ou seja, portanto, nos planos da comunicação e
da significação. Quer no caso corânico, quer no caso cristão, a enunciação da
mensagem tem implicações na maneira como o destino último dos homens é
apreendido (descodificado). Interrogaremos de seguida o papel da enunciação na
mensagem divina transmitida, em ambas as religiões, com incidência na
escatologia. Por outras palavras: tentaremos responder à seguinte questão: Como
se enuncia a escatologia no Islamismo e no Cristianismo ?
1.2.1 Enunciação: o Livro e o
Verbo encarnado.
O verbo, podemos dizê-lo, é o
paradigma das revelações do mundo semítico. No entanto, é possível verificar a
existência de distintos modos de enunciação do verbo divino. O acto de
manifestação do verbo eterno e pré-existente tem mesmo implicações quanto à
natureza do Deus que se revela. Será essa a fonte da alteridade islamo-cristã.
A enunciação adquire, assim, uma pertinência bastante particular, se estudada
no interior de enunciados, produzidos por uma instância divina. H.Meschonnic
(1970:238) adianta mesmo que "il s'agit aujourd'hui, après Benveniste,
d'étudier l' énontiation et le rapport énoncé/ énonciation spécifique à des
textes dits sacrés: les définir par là, pour nous-ici-maintenant, construire
par là une nouvelle rationalité".
O modo de enunciação, por
excelência, da revelação islâmica é consubstanciada pelo termo tanzíl (a descida do Livro eterno, da raíz /NZL/, descer). Não se pode, no entanto, afirmar que o arquétipo de tanzíl (a descida do verbo divino à
humanidade) seja exclusivo do Islão, como refere H.Didier (1982:178)[68].
Em Ezequiel (3,1), o profeta ingere um rolo escrito ("mange ce
rouleau"), imune aos sentidos e impureza humanos, para, em seguida,
receber a ordem de comunicar aquelas mesmas letras "auprès de la maison
d'Israel" (3,4). Por seu lado, o Apocalipse canónico do Novo Testamento
apresenta-se como o duplo terreno de um Livro celeste, recebido por João
através de um anjo intermediário (Ap 5,1)[69]. Esta
tradição é retomada pelo Islão, sendo, nesse quadro, sublinhado que não haverá
outro Livro celeste após o Alcorão, nem outro profeta após Muhammad. É o selo dos
selos, "le Livre contenant la vérité, qui confirme les Ecritures qui l'ont
précédé, et qui les met à l'abri de toute altération" (5,52).
Há, contudo, uma ênfase
particular atribuída à noção de tanzíl,
ao longo do Livro sagrado islâmico. É uma das suas mensagens fundamentais, além
das isotopias que formulam a unicidade divina (tawhíd) e a realidade
dos fins últimos do homem. Para a comunidade islâmica, o Livro é incriado (incréé), de acordo com a surata 85,21-22[70], apesar de,
no século IX, este atributo ter sido objecto da recusa dos Mu'tazilitas[71].
Guardado desde toda a eternidade (enquanto Umm
al-Kitâb[72]),
enunciado à humanidade como termo de um diálogo entre Deus e vários profetas, o
Alcorão é, assim, insuperável e inimitável. Como refere H.Didier, a designação
da sua inimitabilidade, i'jâz al-Qurân,
poderá também significar o seu carácter miraculoso: "mu'jiza prophétique,
Muhammad n'ayant accompli aucun
miracle, hormis celui d'être le réceptable de la Révélation" (1982:177).
No Islão, a mensagem revelada é, portanto, anunciada por uma enunciação do
verbo. É o material linguístico humano, e só,
que é escolhido para que a mensagem se torne conhecida da humanidade.
O enunciado é verbalmente
(re)construído por um intermediário angélico (o anjo Gabriel), que administra o
elemento fático da comunicação estabelecida, sendo o seu receptor imediato o
próprio profeta Muhammad. A enunciação, porém, é divina e o destinatário é
constituído pela humanidade no seu todo. A enunciação verbal (do material
linguístico) é dominada pelo diálogo, enquanto modalidade discursiva: "la
structure fondamentale de tout l'énoncé est le dialogue"
(M.Arkoun,1982:33). Isto quer dizer que o acto de dizer (de revelar) é corporizado
através de uma alteridade, propositadamente instituída. Assim sendo, a
enunciação é protagonizada por dois actantes em posição bipolar. Por sua vez,
os relatos são enunciados no interior dos diálogos (o enunciador de um relato é
um narrador, logo um dos actantes presentes narra ocorrências ao seu receptor
mais imediato). No quadro desta alteridade, e como refere M.Arkoun (ibid:33),
"(...)un Énonciateur omniprésent, magistral intervient explicitement pour
transformer radicalement la conscience de l´allocutaire".
A persistência deste modo de
enunciação de relatos (de narrações), no quadro dos diálogos, permite a
passagem do sentido original e
absoluto do Livro (43,3) aos sentidos
que o texto humano possa comportar. Para tal mobilizam-se diversos enunciadores
secundários[73],
ou recorre-se a metalogismos (parábolas[74]), a
determinadas funções sintácticas recorrentes[75], a asserções
"par l'affirmation et la négation appuyées ou non par un serment"
(ibid:34) e ao emprego frequente da frase nominal. Estes processos permitem a
enunciação em linguagem humana do Livro original, decerto intraduzível no sua
matriz absoluta. Por outro lado, tais processos discursivos contribuem
igualmente para instituir um estado de certeza no alocutário.
O discurso criado pela
enunciação conduz à categorização de actantes bipartidos, que constroem
destinatários também bipartidos: os que se salvarão (os crentes) e os outros,
que não cumprirão os preceitos e o contrato ético, os infiéis[76].
É assim que a mensagem escatológica se corporiza e adquire sentido(s). O
processo enunciador comporta uma duplicidade dramática: por um lado, o diálogo
- com que se institui a comunicação -; por outro lado, a nível da enunciação
discursiva, a criação de dois tipos (oponentes) de comportamentos humanos, na
sua relação com o plano divino: os que são objecto do Islão (Islão quer dizer
‘submissão’ - 3,79) e os que serão, num estádio final da escatologia,
condenados ao inferno. Esta enunciação de actantes oponentes vai prefigurar a
natureza mais profunda da escatologia islâmica: o julgamento final[77].
É desta forma que a visão dos fins últimos se vai alicerçando e enunciando, ao
longo do Livro sagrado, numa linha de força temática que atravessa os mais
diversos relatos. As descrições do julgamento final estão, deste modo, articuladas
e são conaturais a este tipo de enunciação.
*
Como refere F.Schuon
(1989:148) "(...)Todo o Cristianismo se contém no enunciado da doutrina
trinitária", constituindo esta uma doutrina de unidade divina[78]
e, ao mesmo tempo, um veículo fundamental do plano de Deus para a salvação da
humanidade. Este plano escatológico que, na linguagem paulina, se designa pela
ideia de mistério (1 Co 2,7)[79],
é, assim, indissociável do modo como a divindade se enuncia aos homens, numa
dada fracção histórica. Em vez da corporização da noção de tanzíl islâmico, a revelação cristã enuncia-se através da
encarnação de Jesús Cristo, embora a expressão de Paulo "Il (Cristo) s'est
vidé lui-même" (Ph 2,7)[80]
remeta igualmente para uma ideia de descida
(mas não cingida à imagem do Livro celeste). Deus enuncia-se (faz-se enunciar)
através de Jesús, uma criatura celeste - "Avant qu'Abraham fut, je
suis" (Jn 8,58) - mas que, apesar de gerado de forma não humana[81],
se apresenta munido de requisitos humanos normais, nomeadamente, o corpo, a voz
e a acção.
D.Masson (1958:263)
sintetizou este modo singular de enunciação, próprio da revelação cristã:
"...Christ, Verbe incarné, contient seul, en lui-même, toute l'économie de
la Révélation"; este acto de dizer (enunciação) à humanidade, por um lado
profético, por outro lado assumindo-se como verbo divino, ou "expression
éternelle et adéquate de ce qu'est Dieu"(ibid:263), permite concluir que
uma noção estrita de Livro "est ici
dépassé"[82].
Esta é, porventura, a grande diferença entre a enunciação islâmica e a cristã.
Isto é, se a revelação islâmica se centra num enunciado onde o material
linguístico é o referente primeiro[83], já a
revelação cristã constrói um enunciado complexo de signos, descodificáveis a
três níveis: o verbo (a), os actos (b) e o corpo (c).
Este quadro de diferenças é também
aplicável ao nível da enunciação das realidades escatológicas. No quadro do
Cristianismo, verifica-se uma articulação entre os três níveis do enunciado
revelado, acima referidos. O verbo,
ou a palavra original de Cristo, não é - em primeira instância - conhecido de
facto. Por outras palavras, o acesso ao verbo divino, enunciado por Cristo, só
se torna possível através de uma dupla transposição: (a) Sendo as palavras
originais de Cristo proferidas oralmente em Aramaico, elas são posteriormente
escritas e traduzidas para Grego; (b) Por outro lado, além deste índice de
imprecisão, próprio das línguas naturais humanas, os apóstolos
"s'intéressent plus à en faire ressortir le sens qu'à rendre exactement la
teneur littéral des paroles de Jésus" (cTOB,1989:37); ou seja, os
documentos apostólicos do Novo Testamento constituem, sobretudo, testemunhos de
fé em Jesús Cristo. É este postulado doutrinal, baseado na fé, que se transmite
nos Evangelhos (sublinhando-se neles aspectos diferentes[84]),
nomedamente nas Epístolas, nas Actas e acentuando-se a metáfora escatológica
sobretudo no Apocalipse canónico. Os vinte sete livros que integram o Novo
Testamento - e que adquirem a natureza de canon
apenas no século IV[85]
- devem, portanto, ser encarados como uma parte do enunciado criado pela
revelação cristã, cuja função primordial é a de sublinhar a função referencial
dos actos de Jesús e a importância destes para a constituição de uma fé.
Mas é, precisamente, o
legado intertextual ou dialógico, existente entre os quatro registos
evangélicos, que nos remete para os actos
de Jesús e suas circunstâncias - segundo nível do enunciado considerado. Uma
característica da enunciação, que decorre dos actos de Jesús, é a que prescreve
o seu carácter amítico e único: "Le mythe se présente comme un modèle
susceptible de répétitions indéfinies. A l'opposé, l'Incarnation et la Passion
rédemptrices constituent un fait unique et non réitérable" (Y.Bonnefoy,[86]:81).
Este carácter único e inimitável institui a transcendência, ou a ruptura
definitiva entre Deus (o sagrado) e o Mundo dos homens. O acto da cruxificação
de Jesús, por exemplo, "transcends any attempt to state its meaning"
(N.Booth,1970:114); além de irrepetível e agente de uma ruptura definitiva, o
acto em questão não comporta uma natureza transitiva para o significado.
Institui-se pela diferença radical face aos actos humanos e há nele algo de
intrínseco que gera uma significação, só susceptível de apreensão na práxis
vivida (ou seja, na lenta aprendizagem que uma pragmática da espera
escatológica implicará). Os destinatários da enunciação continuam, deste modo,
a ser seus enunciadores. Nesta medida, pode dizer-se que estamos perante um
enunciado e uma enunciação performativos que se caracterizam pela
interiorização do acto divino original, através de um agir que corresponde a
esse modelo, sem com isso o (poder sequer) repetir. Digamos que estamos face ao
que poderíamos designar por ‘sinsigno semiosfórico’ (ou um agir que corresponde
a um sentido íntimo previamente prescrito) na sua relação com um lesisigno
baseado no ‘não-dito’.
No quadro desta enunciação
divina, há que considerar o corpo
humano em que Deus encarna como parte do enunciado revelatório criado. O corpo,
enquanto tal, é indissociável dos actos que enuncia e, por isso mesmo,
constitui-se semioticamente como um enunciado autónomo, por ser, ao mesmo
tempo, veículo e recorte de um continuum
expressivo de onde também se enformam os signos que Ele comunica aos outros
homens. O que distingue os códigos sociais das outras famílias de códigos
(lógicos ou estéticos)[87]
é precisamente esta materialidade antropomórfica dos signos; o homem
transporta-os e significa-os corporalmente, na sua relação com os outros homens
e a comunidade. O corpo que enuncia a mensagem é o de Cristo; é um corpo humano
real apesar da oposição de certos movimentos como o Docetismo[88],
que nele viram uma pura aparência. A própria ressurreição de Cristo é,
igualmente, uma ressurreição do corpo - ainda que des-substancializado -, já
que Paulo refere (1 Co 15,44)[89]
que não é a alma ou uma essência abstracta do corpo que sai da ressurreição,
mas antes um corpo espiritual, o que sugere, em termos escatológicos "que
l'immortalité doit comprendre le corps, quoique sous une forme différente comme
elle l'a fait pour la réssurrection de Jésus"(N.Frye,1984:61). Para além
dos factos da última ceia, onde acto e corpo convergem numa das últimas
ocorrências da enunciação divina[90],
o corpo de Cristo acaba também por converter-se numa realidade da profecia
escatológica[91],
isso é, o corpo místico - ou a continuação da missão de Cristo na terra,
através da Igreja, "spécialement dans l'hiérarquie, doté de vrais pouvoirs
santificateurs" (A.A.F.Cayré,1953-I:31). Em Jn 2,21 o corpo de Cristo é
mesmo considerado como o símbolo final do novo Reino: é o próprio Templo novo
da era escatológica:"Mais lui (Cristo) parlait du Temple de son
corps".
O relato evangélico,
enquanto enunciação não literal do verbo divino, é sobretudo um relato "de
l'agir human" (G.Entrevernes,1977:211). Há, nesta linha de ideias, entre a
palavra e o acto enunciados, uma articulação fundamental que prefigura o
ensinamento escatológico na enunciação revelatória cristã. Na análise semiótica
do Groupe d'Entrevernes (ibid:172), existe, na enunciação cristã, um
"récit primaire" que é definido como um programa narrativo dominante
"structuré intérieurement" (...)"dont l'objet principal s'identifierait
aux valeurs figurées par la métaphore du royaume
de Dieu[92]".
Deste modo, a isotopoia dominante, ou o valor temático mais reiterável da
mensagem é sempre de natureza escatológica. Para o expressar, há dois processos
complementares, respectivamente devedores da palavra e do acto enunciados: as
parábolas e os milagres. Segundo a conclusão do G.d'entrevernes (ibid:212),
"les paraboles donnent au récit primaire son sens mais elles en reçoivent
leur performativité; les miracles donnent au récit primaire son instrumentation
mais ils en reçoivent leur signification". Detsa forma, é entre o registo inteligível do verbo e o objecto concreto criado pelo acto (e
pelo corpo) que o ensinamento escatológico acaba por ser enunciado pelo
discurso revelatório cristão.
1.2.2 História e natureza enquanto veículos de
enunciação
Depois de termos abordado os
modos de enunciação das mensagens divinas cristã e islâmica, passamos agora à
análise dos veículos dessa mesma enunciação. Quer isto dizer que cada acto
enunciador divino determina instâncias particulares, a partir das quais a
mensagem pré-existente[93]
se torna legível (descodificável) perante a humanidade. Estas instâncias
correspondem, no caso cristão e islâmico, respectivamente à História e à
natureza. Tal nível de alteridade é sintetizado por A.Hourani (1980:41) do
seguinte modo: "In Christianity, the idea of revelation is linked with
that of progress", enquanto que o Islão é descrito, neste contexto,
enquanto "underlying natural religion, recalled by prophets from time to
time".
Para o Islão, Deus é
inimitável e não pode ser confundido com o todo da sua criação. O universo e o
seu equilíbrio funcionam, assim, como um gigante enunciado cuja actividade é
gerada (enunciada) por Deus[94].
Toda a natureza (animada ou não) constitui um mapa complexo de indíces que
remetem para a divindade. Como refere N.Booth, "nature is a fabric of
symbols, which must be read according to their meaning. The Quran is the
counterpart of that text in human words" (1970:115). A natureza é, pois,
um discurso: as ocorrências naturais apresentam, assim, uma lógica sintáctica
própria e remetem intrinsecamente para a Divindade, sua causa primeira[95].
O texto sagrado revelado é, igualmente, parte deste discurso. Assim sendo, o
grande código - ou a instância que permite aos homens significar o(s)
sentido(s) do mundo em seu redor - é apreendido a partir da leitura global das
manifestações da natureza. No entanto, o Alcorão é a parte desse discurso
natural que Deus deliberadamente cria para comunicar com a humanidade. Para
tal, recorre à natureza linguística, como suporte fático, por aquela constituir
uma das mais privilegiadas do acto comunicacional humano. Mas tal não invalida
que a natureza, no seu conjunto - nela
se incluindo o universo, o homem, as suas línguas naturais e os elementos
grafemáticos a elas adstritos - não constitua um único horizonte de toda a
criação, um mahal, cuja acção decorra, em última instância, de um enunciador
surpremo que institui e significa todo este discurso: Deus.
Para a tradição cristã (e judaica),
a natureza pode oferecer ao homem exemplos do poder de Deus e até da sua
presença, "but it doesn't provide an immediate encounter with him. God is
encountered in historical rather than in natural events"
(N.Booth,1970:115). Nesta linha de ideias, a História é o veículo privilegiado
da revelação cristã; é na sucessão e ordem das ocorrências humanas que a
mensagem de Deus se converte em signo legível. Atribuindo importância primeira
à sintaxe do tempo, o Cristianismo parte do princípio que os homens, ao longo
da História, adquirem as realidades divinas progressivamente, não as podendo
reter num momento isolado da sua história, enquanto espécie. Tal ordenação do
sentido do tempo (enquanto aprendizagem) conduz, inevitavelmente, a uma teologia de partilha entre o divino e o
humano, cuja forma arquétipa é definida pela encarnação - seu modo particular
de enunciação, como vimos.
Este sentido de partilha é
refutado no seio do Islão: aqui, a natureza e o homem pertencem ao grande
horizonte da criação divina e não se confundem com Deus. Os moriscos ibéricos curiosamente fazem eco
desta refutação nos seus textos: "Le Morisque refuse de distinguer les
plans de temporalité e d'éternité - au contraire du Chrétien -, de même qu'il
n'envisage pas l'existence de la nature et de la personne comme deux réalités
différentes" (L.Cardaillac, 1977 :
262)[96].
A História é, assim, para o Islamismo, o que a natureza poderá, de certa forma,
ser para o Cristianismo: uma arena, de onde é possível recolher exemplos,
sobretudo quando o homem ousa desprender-se do comando divino[97].
Assumindo a natureza como o
grande veículo revelatório, o Islão entende que a enunciação factual da sua
mensagem não é progressiva e, portanto, histórica: "L'Islam accorde
d'avantage à la foi pure et nue en la Parole divine transmise en une fois au
Prophète" (D.Masson,1958:284). O surgimento da mensagem divina, através da
descida do Livro, cria, na realidade
temporal, a divisão entre um antes e um depois, dispostos simetricamente. Esta
consciência "d'un avant et d'un après" (M.Arkoun,1982:28) é,
porventura, proporcional à oposição espacial e escatológica entre dâr al-islâm e dâr al-harb[98]
que, segundo W.Watt (1991:40-41), traduz uma visão "of seeing
world-history": "the former was where a Muslim was ruling according
to Islamic law, and the latter was where that was not yet the case"[99].
Esta leitura dramática do tempo, porque baseada numa tensão irredutível entre
dois pólos, impossibilita a História de se assumir - perante a humanidade -
enquanto veículo progressivo da manifestação revelatória"[100].
O tempo converte-se em drama, pelo facto de a História ter sido bruscamente
interrompida pela descida da mensagem
divina; o rejuvenescimento cíclico do tempo torna-se, assim, na única
possibilidade de a História ter um sentido: é por isso que N.Booth refere que
"Ibn Khaldún gives us"(...)"a kind of natural history", ou
a história entendida ciclicamente à imagem da natureza[101].
Convém, no entanto, notar
que ambos os veículos enunciadores, a que o Cristianismo e o Islamismo recorrem,
respectivamente a História e a natureza, desempenham uma função idêntica em
cada um dos campos. Essa função traduz-se pela necessidade de manutenção ou de
preservação da humanidade num determinado caminho, cujo limite é, naturalmente,
escatológico (dada a natureza de salvação final de ambas as religiões). Por um
lado, pelo facto de a natureza (e também a humana) constituir uma espécie de locus amenus, onde a enunciação das
verdades terminais acabará por se tornar possível; por isso, a concepção de vida
islâmica varia "d'une vision eschatologique où la vie d'ici-bas ne serait
qu'une préparation à la vie de l'au-delà, à une vision plus immanente où
l'homme doit accepter la vie comme elle est ou se
présente"(J.Waardenburg,1989:160). O homem predispõe-se assim a
compatibilizar a prédeterminação e a salvação, alinhando com a natureza no seu
próprio encaminhamento, de que Deus é o enunciador surpremo. Por outro lado, a
função da revelação através da História "is one way of
showing"(...)"the value of abiding patiently in a pattern of
religious obedience", pois " World history is on a particular course
leading to the ultimate triumph of God, and, by the same token, the triumph of
those who have allied themselves to him"(C.Rowland,1982:143). Assim,
também a enunciação divina através da História torna possível uma contenção e
uma fidelidade, ambas necessárias à consumação do plano escatológico -
enunciado pelo Cristianismo.
*
Podemos, agora, reter
algumas conclusões fundamentais quando às diferenças de enunciação de um
horizonte escatológico, no Cristianismo e no Islamismo:
- (a)
Em ambos os casos considerados, estamos perante enunciados performativos, já
que implicam um acto ou um contrato ético por parte dos destinatários, cuja
incidência última é escatológica (não se limitando, portanto, a constatar
factos e realidades);
- (b)
Na enunciação, há locutores que, inevitavelmente, se assumem como sujeitos.
Estes contemplam um enunciador-destinador e um destinatário comum,
respectivamente, Deus e a humanidade. Já os sujeitos empíricos e os receptores
imediatos do acto comunicacional, estabelecidos pela enunciação, diferem: O
anjo Gabriel e o Profeta, no campo muçulmano; Cristo e o corpo de actantes
receptores, que com ele contactam, no campo cristão. No primeiro caso reata-se
uma tradição profética, no segundo a comunicação com a divindade é directa,
prefigurando-se simbolicamente a realidade escatológica;
- (c)
A enunciação divina recorre ao material linguístico, no campo muçulmano, e a
uma articulação sígnica do verbo/acto/corpo, no campo cristão. O anúncio
escatológico depende, assim, do arquétipo definitivo do Livro celeste (13,39)[102],
no campo islâmico, e da vivência transformadora e interpretante[103]
dos actos (e do verbo) de Cristo que, por si só, transcendem um dado nível de
significação[104];
- (d)
O veículo, ou representamen[105],
da enunciação divina é, na sua dominante, a história e a natureza, para o
Cristianismo e o Islão, respectivamente. A enunciação revelatória cristã é
entendida como um processo lento, evolutivo e marcadamente performativo,
enquanto a islâmica é emergente, criando uma roptura no tempo. No primeiro caso
há uma partilha entre a divindade e o homem na narração do processo
escatológico, no segundo caso há uma demarcação entre Deus e a natureza, na
qual o homem se encontra. A narração dos eventos da natureza (e do homem)
pertence exclusivamente a Deus. Há, contudo, uma função idêntica nos veículos
de ambas as revelações: a de salvaguardar os preceitos, que tornarão o devir
escatológico possível.
1.3 A natureza de Deus e a
salvação.
Abordámos, nas duas
sub-secções anteriores[106],
o quadro estrutural de diferenças existentes entre Cristianismo e Islão, nos
planos da narração dos factos escatológicos e da enunciação das mensagens que
os anunciam. Vimos que a relação entre um antes
e um depois é - no Cristianismo -
mais relativada na medida em que a noção de salvação se corporiza no próprio
acto enunciador de Cristo. Estamos, neste caso, perante a realidade da metanoia, ou seja, da recolocação do
referente num modelo de salvação que privilegia a assunção escatológica no aqui-agora[107]. O plano
divino, no seio do Islão, por seu lado,
enquadra preferencialmente a palavra e o discurso linguístico e é a partir da
reposição do real (que os sememas incorporam[108]) que a dicta se regista e se torna
compreensível. Deste modo, é no Livro sagrado que se anuncia o dia, ou a hora,
em que o termo se consumará. Esta relação desigual com o pressuposto
escatológico, nas suas implicações com o tempo humano, é manifestada na
narração e na enunciação da mensagem. No entanto, e como referimos acima, a
questão de fundo que origina essa manifestação de alteridade prende-se com a
própria natureza de Deus. É a essa questão que, nesta sub-secção, nos
referiremos.
D.Broadribb (1970:71), no quadro de
uma reflexão sobre a natureza de Deus em várias religiões, parte do princípio
que o Islão se situa num meio termo, entre o panteísmo hinduísta e o
Cristianismo. Assim, a concepção cristã estabelece a existência de um só Deus,
enquanto "separate individual, not to be confused with the spirits and
beings which he created, and which exist in their own right as
individuals"(ibid.:71). No caso islâmico, "the individuality of God
is emphasized" (ibid.:71) - constituindo esta a característica de fundo da
sua própria diferenciação. É por esta razão que o Islão postula fronteiras
rígidas entre o humano e o divino[109], ou
sublinha a soberania plenopotenciária de Deus sobre o todo da natureza. A vontade
de Deus é, pois, surprema e este facto, enquanto atributo, é indissociável da
própria unicidade divina (tawhíd).
A unicidade divina (tawhíd)
é a base da natureza islâmica de Deus. O tawhíd preconiza a unidade indissociável
da essência, dos actos e dos atributos divinos[110]. Subjacente
a esta formulação, está o princípio que estabelece a diferença absoluta entre o
eterno e o que está no tempo, o muhdât[111]. O sentido
de preservação da unicidade divina constitui de tal forma um princípio
dogmático no Islão que, no quadro do Kalâm[112],
se fizeram ouvir vozes contra a existência dos próprios atributos divinos. Por
exemplo, para os Mu'tazilitas, admitir a existência dos atributos seria sinónimo de pluralidade divina, já que estes
se confundiriam com a própria essência de Deus. Para os Falâsifa[113],
defensores de um estrito tawhíd, Deus seria a fonte de todas as
inteligências, de onde foi emanado o equilíbrio superior (as esferas, os céus)
que governa a alma. Deus, deste modo reduzido a uma abstracção conceptual,
configura uma unicidade plena. As escolas tradicionais, como a Hanbalista, e outras ligadas ao Kalâm, nomeadamente a ash'arita e a
maturidista, defenderam a unicidade divina, mas nela contemplando os próprios
atributos. A expressão de Abú Hanifa
"Lâ huwa wa lâ hairuhu"
(são, nem idênticos a Deus, nem separados Dele[114])
consubstancia a tese que poderíamos designar como ortodoxa (que obtém o
consenso, a ijmâ'). Cabem, portanto,
nesta designação, segundo o modelo de Ibn Taymiyya[115], os salaf, os ahl al-sunna wa-l-hadít,
os sufis e os ahl al-kalâm que
defendem a existência de atributos divinos, nomeadamente, os ahl-itbât ou al-sifâtiyya.
As implicações que, para o
Islão, decorrem desta noção dogmática de unicidade são decisivas. Y.Haddad
(1981:2) sintetizam este facto, enquandrando a questão chave da escatologia
que, naturalmente, se subordina à ideia de um único e magistral narrador do
enunciado da criação; a natureza: "Basic
to Islamic theological discussions of the nature of human kind, the
structure and order of the universe, and the course of human history as part of
the eschatological story of Islam is the primary consideration of whether or
not specific formulations are consonant with the Qur`ânic understanding of the
essential oneness of the divine". As suratas 19,94 e 19,95 detêm a os
princípios que regem esta constatação: por um lado "Tout ce qui existe
dans les cieux et sur la terre est serviteur du Miséricordieux, il les a
comptés et dénombrés tous"; por outro lado, a consciência islâmica de que
a salvação, neste contexto, é individual perante Deus único e todo poderoso:
"Tous paraitront devant Lui au jour de la réssurrection, seuls,
isolés"[116].
Para M.Hagerty, esta
espiritualidade, baseada no tawhíd e na subordinação do homem e do
mundo a algo impessoal e objectivo (1978:262-266), tem as suas raízes no
ambiente desértico, onde o Islão se enunciou: "cuanto más se aleja de la
tierra de las quatro estaciones, más necessidad tiene el hombre religioso de
comprimir sus experiências en una". A uniformidade da paisagem, o domínio
sugerido pelas estrelas (a que recorrem os nómadas para se guiarem) e as
próprias adversidades criadas pela imensidão, implicam uma noção de
transcendência diferente da produzida pela complexidade das florestas[117].
Hierofanias diferentes a gerarem uma também diferente natureza da divindade e
da própria salvação[118].
Neste quadro, é normal que o
Islão entrevesse, na doutrina cristã, sinais de pluralidade divina na figura ou
mistério da trindade. É esta fórmula, garante do carácter divino de Cristo,
que, por fundar-se na hipóstase entre o verbo divino e a natureza humana, se
acaba por converter no ponto irredutível entre as duas concepções - ou
naturezas - de Deus. Nesta medida, D.Broadribb refere que, Islão e Cristianismo,
recorrem a doutrinas virtualmente idênticas, "if we leave aside the exact
wording of dogmas on the trinity"(1970:71). É possível que, na génese de
tal incompatibilidade, pudesse ter havido uma primeira descodificação do termo
"filho" que, por analogia, remetesse para as divindades pré-islâmicas
conhecidas como "Filhas de Allâh"
(as forças destruidoras e irremediáveis - T.Izutsu, 1964: 126[119]).
Al-Ghazâli, embora contrarie
a isotopia corânica da corrupção das Escrituras (tahríf), entende que os Evangelhos requerem uma interpretação
metafórica; assim a trindade constituiria, por si, um conjunto de três
atributos numa só substância, nomeadamente, o Pai - ou a existência (al-mawjúd) - e os restantes termos,
"le connaissant et le connu" (L.Massignon, 1932:523 e sqqs.)[120].
A palavra divina, entendida como atributo e, portanto, indissociável da própria
essência divina, é, nesta óptica, alheia à pessoa
de Jesús (que o Islão, no entanto, considera como um profeta, mas também como
uma figura importante do cronograma escatológico). De salientar, ainda, que
certos desvios do Cristianismo dos primeiros séculos, nomeadamente o Modalismo
e o Adoptacionismo unitário, detêm certas similaridades com estas posições. A
primeira dessas correntes considera Deus como uma só pessoa, sendo os elementos
da trindade simples manifestações dos seus diversos atributos; O Adoptacionismo
unitário nega mesmo a pluralidade das pessoas divinas, nomeadamente a de Cristo
que, assim, teria sido "adoptado" por Deus[121].
O Islão não pode, contudo,
conceber uma distinção entre a essência de Deus e a tríade divina, ainda que
concebida como imanente ao ser surpremo. A surata 5,77 é explícita a esse
respeito: "Infidèle est celui qui dit: Dieu est un troisième de la
trinité. Il n'y a point de Dieu si ce n'est le Dieu unique"; e a mesma
surata, ilustra as consequências escatológicas que tal irredutibilidade poderá
acarretar: "S'ils (os cristãos) ne désavouent ce qu'ils avancent, un
chatiment douloureux atteindra les infidèles". Neste ponto, a alteridade
está criada a um nível profundo: mais do que nos desígnios da narração e, até
certa forma, da própria enunciação escatológica - é ao nível da ideia de
transcendência, ou da natureza de Deus, que a roptura se estabelece. O plano
divino de salvação irá, igualmente, assumir contornos díspares a partir desta
diferença de base
Com efeito, o Islão estabelece uma
conexão entre a ascenção de Cristo e a cruxificação, mas suprime, de facto, o
acto da ressurreição e com ele o da redenção - ou o fundamento escatológico do
próprio Cristianismo: "...ils ne l'ont pas tué, ils ne l'ont point
crucifié; un autre individu qui lui ressemblait lui fut substitué, et ceux qui
disputaient à son sujet ont été eux-mêmes dans le doute (...)Ils ne l'ont point
tué réellement. Dieu l'a élevé à lui, et Dieu est puissant et sage"(surata
4,156). A mensagem cristã, por seu lado, deposita no acto da ressurreição o
argumento enunciador mais fecundo, sobretudo no que respeita à realidade da
salvação: "Christ(...)le premier à ressusciter d'entre les morts(...) doit
annoncer la lumière (le salut) au Peuple et aux nations paiennes"(Ac
26,23). Mesmo entre os moriscos, como
L. Cardaillac demonstrou (1977:225 a 253), esta questão da trindade -
directamente ligada à da natureza de Deus e, portanto, ao plano escatológico -
foi objecto de polémica. Textos aljamiados que abordam esta "desputa de
los Muçlimes kon los K(i)risti(y)anos sobre la Unidad de Allah, kes uno, sin
fijo ni terçero" constituiriam, igualmente, motivo de perseguições por parte
da inquisição[122].
2. Ortodoxias e limites do acto
profético
Niccolò Machiavelli refere
nos seus Discursos[123]:
"no serious misfortune ever befalls a city or a province that has not been
predicted either by divination or revelation or by prodiges or by other
heavenly signs"(1970:249). Esta posição de profunda desconfiança em
relação à prática profética, no seu espectro mais vasto, é partilhada por Ibn
Khaldún, dois séculos antes, com incidência na profecia astrológica:
"...elle porte les hommes à s'attendre à des signes de crise (qawâti`)
touchant les dynasties, ce qui encourage les adversaires et les rivaux de
l'État à attaquer celui-ci et à se revolter contre lui" (Ed.1968-II:1191).
A posição maquiavélica de Ibn Khaldún, podemo-lo dizer, espelha um dado receio
- aparentemente do próprio poder estabelecido - face à prática profética.
Porém, subjacente às palavras de Niccolò Machiavelli, manifesta-se uma quase
certeza quanto ao carácter funesto da profecia, seja onde for que esta se
exerça. Por trás de tais argumentos, de que intencionalmente elidimos o
contexto, não se verifica apenas um temor pelo profético. Muito para além
disso, o que de facto está aqui em causa é o sentido de uma ortodoxia, ou seja,
de uma posição socialmente dominante que prescreve, não apenas um receio pelas
consequências do acto profético, mas sobretudo um agir em prol da sua própria
ilegitimidade (quando dele não se pode servir).
Entendamos, neste âmbito
preciso de análise, o acto profético como facto selectivo que opera a partir de
uma amálgama onde coabitam: (a) a acção de predizer o futuro, (b) a acção de
invocar ou falar em nome da Divindade, (c) e a acção de presumir uma eventual
revelação do plano divino (ou a parte dele). Tal prática é voluntária e
produz-se num mundo pré-moderno, em que a semiose é divina, por se basear na fé
e não ainda em racionalidades, ainda que (nos campos islâmico ou cristão) a
autonomia do acto possa ter sido admitida enquanto causa segunda; como adianta
G.Makdisi: "Intellectual freedom in the Middle Ages existed within the
framework of a system of faith"(1985:79). Neste contexto de carácter ético
- que administra as relações entre o homem e a divindade - cumpre-nos, agora,
interrogar o tipo de relação específica, existente entre o acto profético e as
ortodoxias dominantes (cujo consenso ou determinação, conforme os casos,
dependem do Grande código inicial - a
lei revelada - que actualizam em situações concretas).
O Cristianismo, em
princípio, parece deixar aberta a possibilidade de legitimar esse tipo de acto.
Paulo (1 Co 41,1) aconselha-o mesmo: "Recherchez l'amour; ayez pour
ambition les phénomènes spirituels, surtout la prophétie". Como é explícito
em Ac 11,28 o acto profético, mais do que premonição, é ilmunição "par
l'Esprit"[124]
e pode manifestar ou traduzir, desse
modo, o sentido da vontade divina nas circunstâncias presentes (cTOB,1989:509).
Em Ep 3,5 aclara-se um pouco mais esta legitimação, possível após Cristo:
"Ce mystère, Dieu ne l'a fait connaitre aux hommes des générations passées
comme il vient de le réléver maintenant par l'Esprit à ses saints apôtres et
Prophètes"; em Col 1,26-27, precisam-se os destinatários referidos na
Epístola aos cidadãos de Éfeso: são estes os apóstolos, os santos e,
notoriamente, "todos os baptizados" (ibid.:600).
A articulação destes dados
permitir-nos-ia concluir que, sob o
pano de fundo da nova era histórica - mas também já escatológica - o homem pode
realmente profetizar, na medida em que a potência divina o permita (através do
Espírito Santo, como se anuncia em Ac 1,8: "vous allez recevoir une
puissance, celle du Saint Esprit qui viendra sur vous"). No entanto, os
textos do Novo Testamento não deixam, igualmente, de avisar que os falsos
profetas surgirão "en foule et égareront beaucoup d'hommes" (Mt 24,11
e 7,15, 1 Jn 4,1). Esse facto que, desde o fim do primeiro século, "a
troublé profondément l'église" (cTOB,1989:111)[125], é também
referido no Apocalipse canónico, sob a forma da "segunda besta" (Ap
13,11-16)[126].
Os limites e a legitimidade do acto profético ficam, de certa forma, por
codificar. Entrevê-se, assim, um debate constante entre a produção profética e
os critérios que uma dada ortodoxia edifica, em tempos e lugares diferentes, no
sentido de evitar ambiguidades. A importância do acto profético a isso
obrigará, como veremos.
O discurso divino, revelado
através do Alcorão, parece ser mais claro e conciso: A surata 33,40 refere
explicitamente que "Muhammad
n'est le père d'aucun de vous. Il est l'envoyé de Dieu et le sceau des
prophètes. Dieu connait tout". Tudo parece estar definitivamente dito à
humanidade, numa última descida
revelatória. Em 31,34 tal visão é, porventura, acentuada: "l'homme ne sait
point ce que lui arrivera demain"(...)"La connaissance de l'heure est
auprès Dieu". Não se contempla aqui a possibilidade de revelação
progressiva . No entanto, no final da surata 42, é referido o seguinte:
"Dieu ne parle jamais à l'homme, si ce n'est par inspiration ou derrière
une voile"(50)"Ou bien il envoie un apôtre à qui il révèle ce qu'il
veut(...)"(51)"C'est ainsi que par notre volonté l'esprit t'a parlé,
à toi..."(52). Significando "espírito", em 42,52, o anjo Gabriel[127],
o que aqui se aflora é a modalidade de comunicação existente entre Deus e o
profeta, no acto da revelação. Por outro lado, também não deixa de ficar em
aberto (em 42,50) a possibilidade de Deus "falar", ou comunicar com
os homens, sob certas circunstâncias.
Além deste facto menor,
convém, sobretudo, não esquecer que o Islão esteve sempre bastante povoado por
movimentos que interpretam a Lei revelada como algo excessivo ou pesado[128].
São seitas ou correntes que aspiram a
um modo mais directo de assunção com Deus. Surgem nesses casos, por razões
diferentes, os ghulât[129],
entre os shi'itas mais radicais, os Ismaelitas[130], os Druzes[131]
e os próprios místicos, nomeadamente os sufis (cuja maioria se encontra dentro
do campo sunita[132]).
São movimentos referenciados como antinomistas que, pela possibilidade de
contacto directo com Deus - que
preconizam -, acabam por deixar a porta
aberta à legimitação do próprio acto profético. Como no caso cristão há que
definir, aqui, critérios capazes de estabelecer limites e níveis de
legitimidade para o acto de profetizar a que, curiosamente, os moriscos irão recorrer.
*
J.Schacht (1953:36), num
artigo importante para a teorização do Kalâm[133],
(teologia dogmática islâmica) equaciona e tenta atribuir um significado ao que
designa por "Muhammadan orthodoxy". O autor conclui, no artigo em
causa, que ortodoxia deve ser entendida como sinónimo da doutrina
"followed by the majority of Muslims". J.Schacht retira, em seguida,
a seguinte ilação: "In the fourth century of the hegira this doctrine
acquired as a façade, or if one prefers to say as a supersturcture, the two
related schools of the Ash'arites and of the Mâturídites". Em dois artigos
posteriores (1964 e 1974-I,II e III[134]), G.Makdisi
considera que a ortodoxia islâmica representa "What is standard", no
sentido de que "the overwhelming
majority in Islam constitutes its membership"(1964:44-5). Assim sendo, o
sunismo, ao congregar 90% dos muçulmanos,
configuraria a própria ortodoxia.
A diferença que G.Makdisi
vai estabelecer decorre da ilação que retira seguidamente: "Sunnite
orthodoxy is determined by membership in one of the Sunnite Schools of Law, all
of which follow the sunna (tradition)
of the prophet" (ibid:45). Deste modo, não são as correntes de teologia
dogmática (kalâm) que se constituem
como referente da noção de ortodoxia, mas antes as escolas jurídicas sunitas,
onde as correntes referidas (do kalâm)
têm influência diversa e até concorrente. É por isso que, em 1974, G.Makdisi
conclui: "La seule orthodoxie qui ai été attesté en Islam par le consensus
de la communauté ou ijmâ', ce fut
l'orthodoxie sunnite, représentée, depuis le IIIe siècle, par les quatre écoles
de droit sunnites"; a razão é clara:"dans le domain de la religion,
tout doit être légitimé par l'intermédiaire des écoles de
droit"(ibid.:76), pois o Islão é, antes demais, nomocrático e
nomocêntrico.
A noção de ortodoxia está,
assim, intimamente ligada à ideia de consenso (ijmâ`), no quadro do Islão sunita. Não havendo sínodos ou
concílios, o Islão centra-se em torno da sua voz comum e interior. A partir do
séc.IX, são fundamentalmemte quatro[135], as escolas
de direito que dão corpo à ortodoxia: a hanafita[136], a malikita[137],
a shafi'ita[138]
e a hanbalita[139],
recorrendo a diferentes métodos de jurisprudência, mas todas baseando-se nas
mesmas fontes principais: o Alcorão e a sunna.
O Malikismo e o Hanifismo consideram, além das fontes consideradas,
respectivamente, a opinião pessoal e o princípio da analogia (qiyâs) e, só numa última fase, o
consenso (exclusivamente dos doutores
de Medina, no primeiro caso, e sem qualquer restrição no segundo). O Shafi'ismo
recodifica a noção de consenso, sob a forma de acordo unânime entre os doutores
da lei, num dado período e sobre uma questão determinada. Finalmente, a escola
hanbalita, mais rigorosa quanto às fontes da lei principais, só em casos de
absoluta necessidade poderia admitir o próprio julgamento pessoal.
O esforço de investigação pessoal
que, em cada escola, conduz à interpretação da Lei - ou à descodificação da Sharí'a no quotidiano - é designado por ijtihâd. A capacidade de efectuar esta
descodificação é, apenas, reconhecida aos fundadores de cada escola, ou aos
seguidores que tenham tido a responsabilidade de passar à prática o método
daqueles. A partir daqui, não mais é possível recorrer ao ijtihâd, sem que, com isso, se impeçam os muftis de assumir as suas
responsabilidades, em certos casos sem precedentes factuais. Este sistema,
fechado sobre si mesmo, contendo o nível da diferença no seu interior,
consubstancia, de facto, o consenso islâmico ou, por outras palavras, a
ortodoxia. A centripticidade do Islão é, sob uma outra forma, apresentada por Ibn Taymiyya (1263-1328) na teoria que
poderíamos caracterizar como dos círculos
concêntricos[140].
Tal concepção estabelece as posições relativas das diversas escolas teológicas
(incluindo as do Kalâm) na
comunidade, tendo como referente base o Alcorão e a sunna - como acima se viu (cf.1.3). Neste quadro consensual de
grande amplitude, apenas os partidários da jammiyya
são considerados exteriores à própria ortodoxia[141].
Na Península Ibérica, bem como em
grande parte da África setentrional, a escola de direito tradicionalmente
dominante é a maliquita. Isso não significa que a ortodoxia ibérica silenciasse
vozes diferentes, como as de Ibn Hazm, dos filósofos ou até das correntes
mahdistas, de que os Almóadas são o expoente máximo. No seu tradicionalismo
moderado, o Maliquismo constitui-se como escola oficial do al-Andalus duranteo
século IV/X (cf.nota 148). Ibn Khaldún (1332-1406) integrou o Islão maliquita e
surge já no fim do grande período islâmico; como R.Habachi comentou (1980:85),
"la pensée novatrice d'Ibn Khaldoun au XIVe siècle apparait d'autant plus
originale que rien ne la laisse prévoir et rien ne la prolonge". De certo
modo, dir-se-ia que Ibn Khaldún expressa, numa lucidez final, uma espécie de
síntese do pensamento comum, mas dando-lhe um grande refinamento reflexivo.
Embora o autor considere que
a especulação pura é necessária para abarcar o real, crê, igualmente, que a
razão não pode abranger toda a causalidade do mundo à nossa volta. Por isso,
Ibn Khaldún refere que "une voile sépare les hommes de l'inconnu que
personne ne connait sauf celui à qui Dieu le révèle dans le sommeil ou par voie
de sainteté"[142].
Em relação aos adivinhos, o autor acrescenta: "il s'agit d'une catégorie
d'hommes imparfaits par rapport aux prophètes"[143]. No seu
combate à adivinhação, nomeadamente a astrológica, refere ainda que "Il
n'y a qu'un Agent, c'est Dieu - comme on l'a prouvé par déduction (istidlâl) au chapitre sur l'Unité de
Dieu" (al-Muqqadima,ed.1968-II:1188). As realidades futuras convertem-se,
assim, num mistério difícil de desvendar. Porque o homem tem, simultaneamente,
contacto com os sentidos e com o espírito, é possível que - e só por iniciativa
divina - o dom da profecia sobre ele recaia. Quando tal ocorre a história muda,
e o movimento assim determinado é, por natureza, cíclico[144]. Porque o
ciclo se fechou com Muhammad, Ibn
Khaldún conclui que as práticas proféticas, simplesmente humanas, nada têm a
ver com o decreto divino, "c'est à dire avec la prédestinaton (al-Qadar)"(ibid:1187); "Telle
est la tradition authentique" - remata o autor (ibid.:1189), o mesmo é
dizer que tal é o legado da própria ortodoxia islâmica.
De facto, o termo
"ortodoxia" implica a existência de uma norma ou autoridade, capaz de
distinguir uma doutrina herética da que o não é. Este modo de diferenciar o
legítimo e o ilegítimo não existe no Islão (ao contrário do Cristianismo). No
entanto, e como reflecte D.Broadribb (1970:71): "the believer knows what
is the will of God in each specific situation which he
encounters"(...)"in this respect we may note that Muslim religious
law is highly detailed and codified". As posições de Ibn Kaldún, num tal
contexto, remetem inevitavelmente para a tradição que é selada como a
autêntica, não para a que poderá estar falseada. Mas, mais uma vez o círculo se
torna a fechar, já que Ibn Khaldún parte do princípio que a melhor maneira de
defender a credibilidade das palavras imputadas ao profeta reside na própria igmâ' (cit.in Goldziher, 1952:1971).
Há vários hadít (tradições) que, aliás,
argumentam nesse sentido[145]
como é o caso da recolhida por Khatíb al-Bagdâdí: "Quand vous
entendez comme venant de moi une information qui plait à vos coeurs et qui rend
vos cheveux et votre chair tendres et que vous sentez proche de vous, sachez
que nul d'entre vous n'en est plus près que moi-même". A ijmâ', assim, autentifica a tradição;
esta, uma vez autentificada, converte-se numa fonte da própria ijmâ'. Independentemente da verificação
dos vários garantes do Isnâd (para
acautelar o carácter, os fins, e a
certificação dos testemunhos do Râwí
- o transmissor) e do facto de a transmissão ser a forma "mais nobre"
(ibid.:174) de shahâda[146],
a verdade é que muitas tradições (hadít)
foram forjadas na história do Islão:"dans ce domaine, on a eut recours au hadít lui-même comme moyen de
saper la Tradition"(ibid:166)[147]. Sem
querermos aprofundar aqui este aspecto, parece-nos claro que a maleabilidade da
ortodoxia, de que a ijmâ' é a
substância, parece ser grande; ou seja, no campo estrito da tradição, há de
facto espaço para a produção do acto de características proféticas,
independentemente da sua ilegitimidade (aliás traçada pelos argumentos do
próprio Ibn Khaldún). Como T.Fahd refere, "En Islâm, l'affirmation
constante de la tradition se résume dans ce principe: Lâ Kihâna ba'da n-nubuwwa (il n'y a) plus de divination après la
prophétie" (1966:64). O parecer de Ibn Khaldún parece, assim, de facto,
corroborar o desígnio da ortodoxia.
Um olhar sobre algumas
suratas do Livro sagrado confirma-o. Neste quadro, a legitimidade de desvelar
algum detalhe do futuro ou do próprio plano divino é, claramente, reservado a
Deus: "...n'anticipez point sur les ordres de Dieu et son envoyé"
(49,1). Sobre a autenticidade do que é formulado, incluindo naturalmente
possíveis enunciações proféticas, a mensagem apela ao cuidado
-"...cherchez d'abord à vous assurer de sa véracité"(49,6). Além disso, várias são as suratas onde é
notório o intuito de dissociar a poesia (ou as "histórias frívolas")
do conteúdo da revelação[148].
Tal acontece pois, como refere G.E.von Grunebaum, os adversários do profeta
"s'efforcèrent (...) de confondre les notions de divination d'une part, de
révélation et de production poètique d'autre part" (1955:7). A afirmação
de Muhammad como profeta terá,
assim, exigido essa demarcação. É por isso que toda a literatura (de foro
puramente humano) não é, tradicionalmente, olhada com bons olhos no seio do
Islão. Essa é a razão, também, porque "une impulsion aussi élémentaire et
aussi forte que la conversion à l'islam n'ait pas provoqué d'échos littéraires
importants" (P.Heath,1989:197). A surata 69 põe mesmo em pé de igualdade o
adivinho e o poeta, contrapondo-os à
figura do próprio profeta, numa antinomia que separa a verdade da
frivolidade: "Ce n'est pas la parole d'un devin. Combien peu
réfléchissent!" (69,42), "et n'on pas la parole d'un poète. Combien
peu croient à la vérité".
Esta delimitação entre ambos
os campos parece, de facto, ser tangível e definitiva. A conclusão poderia ser
dada pela fonte sagrada, através da surata 5 (versículo 101): "...ne vous
interrogez point au sujet des choses qui, si elles vous étaient dévoilées,
pourraient vous nuire". No entanto, é também aqui que, ao evocar a
misericórdia divina, se parece atenuar a ilegitimidade radical do próprio acto
de profetizar :"Dieu vous pardonnera votre curiosité, parce qu'il est
indulgent et miséricordieux". O Alcorão aconselha, deste modo, o crente a
não ultrapassar o que lhe está destinado; no entanto, a infidelidade não é
imputada ao homem - de forma absoluta - sempre que os limites da sua
curiosidade sejam superados. O mesmo tom de limitada condenação, ou na
expressão de T.Fahd, de "réticente du Prophète à denier toute valeur
intrinsèque au contenu de la divination"(1966:68) é traduzido num hadít da responsabilidade de Wahb b. Munabbih (primeiro transmissor
do isnâd relativo a relatos bíblicos[149]):
"Dieu révéla à Moise b. Manassa b.
Yúsuf de dire à son peuple: je n'ai rien à voir (anâ barí') avec quiconque pratique la magie ou s'adresse à un
magicien, avec quiconque pratique la divination"(...)"celui qui
s'éloigne de Moi et met sa confiance en un autre, en bon associé, Je lui
retourne la prière qu'il m'aurait faite et Je le confie à celui en qui il
aurait mis sa confiance; mais, celui que j'aurais confié à un autre, devrait
être prêt à l'épreuve et à l'adversité"[150]. Parece-nos
assim que as práticas premonitórias, ainda que condenadas pelas fontes da ortodoxia,
adquiriram com o tempo, no seio do Islão, uma razoável margem de manobra para
se manifestarem. Ibn Khaldún, mais uma vez na sua Muqqadima, parece conclusivamente admitir este aparente paradoxo:
"...ces pratiques sont très répandues dans les villes. La loi religieuse
les interdit"(ed.1967-I:679). Divórcio entre o real quotidiano e a
prescrição da ortodoxia, ou compatibilidade entre o real quotidiano e a
ambiguidade da ortodoxia - tal parece ser o eixo duplo de implicações
decorrentes da prática premonitória e daquilo que, no Grande código, a legitima.
*
Pode dizer-se que a
adivinhação e práticas correlativas sempre mereceram, no quadro islâmico, uma
credibilidade determinada. A origem do fenómeno remonta a tempos pré-islâmicos
e, nos tempos da da revelação, é mesmo normal que a profecia tenha sido
enquadrada numa lógica de continuidade, ou seja, numa tradição já anterior. A
ausência de um sacerdócio organizado na Arábia dos séculos VI e VII
"réduit le personnel du culte aux devins pris aux sens le plus large et
dans toutes leurs specialités" (T.Fahd,1966:79). As teorias espalhadas no
Islão, segundo as quais a profecia é concebida como um prolongamento da
adivinhação e, simultaneamente, seu estado superior (Mas'údí, Ibn Khaldún e,
por vias diferentes, alguns filósofos e al-Ghazâlí[151]) terão
origem nessa credibilidade do premonitório, do fruto da adivinhação, da
oralidade profética popular.
A ambiguidade face à
adivinhação, a que anteriormente nos referíamos, tem aqui possivelmente a sua
origem. A própria noção de Ortodoxia, não dependendo de um centralismo de
autoridade, atribui ao crente a interiorização e até a difusão da fé. Esta
fluidez codificada deixará, também, a porta aberta à realidade da prática
premonitório-profética e vai ter consequências reais entre os moriscos ibéricos do sec. XVI. Assim, e
como refere L.Cardaillac (1977:62), "L'Islam n'ayant pas de clergé, c'est
à chaque croyant qu'est dévolu le rôle de la propagation de la foi. Néanmoins,
certaines personnalités, du fait de leur science, de la sainteté de leur
vie"(...)"assument ce rôle. Il s'agit parfois de quelqu'un qui a la
réputation d'être adivino y profeta" e que dá forma à
ambiguidade atrás referida, transmitindo ao mesmo tempo "les précèptes
coraniques et superstitions populaires".
É desejável conhecer a
codificação islâmica específica face à questão do profético puro e do profético
premonitório, pois é a partir dela que, entre outros segmentos do mundo
islâmico, os moriscos ibéricos
entenderam e significaram a sua própria prática. (que não é alheia à produção
de aljofores premonitórios). No
entanto, além do seu contexto genealógico, há que considerar os moriscos como uma unidade sincrética,
rodeada física e culturalmente pelo meio cristão. E, assim sendo, devemos
referir que a Península Ibérica cristã, durante todo o século XVI, vive num
ambiente cultural que Ottavia Niccoli designou por divinatio popularis (1990:13). Tal significa que a manipulação das
ocorrências reais, quer levada a cabo pela "low
culture", quer pelas elites (ibid.:13) - caso do próprio papado até
1530[152]
- num processo de transferências contínuo, constitui um sistema de signos
essencial da identidade época. A sua origem, enquanto tal, é medieval mas "prolonga-se"
pela era moderna (Jean-Claude Schmitt,1981:6), segundo O.Niccoli, em Itália,
até 1530 e, na Grã-Bretanha e França, até ao início do Sec.XVII - o que é
apanágio, igualmente, das terras ibéricas[153].
Esta cultura, caracterizada pelo divinatio popularis, coexiste com a da
produção de valores humanistas e renascentistas, no século XVI[154].
Porém, a debilidade destes últimos na Península Ibérica, no que M.Herrero
García considera "la propensíon española al hacer descompasado con
relacíon al resto de Occidente" (1966:16), contribui para que as práticas
proféticas se constituam como autênticos signos dos tempos em terras
hispânicas. Juan de Horozco y Covarrubias (ed.1588-XII:fol.30r)[155]
refere que "casos de falsos Mesías, falsos Cristos se han dado repetidas
veces"(...)"amenazas de varones santos que han dicho se perdió una
vez España por torpezas, y deshonestidades, y se avia de perder otra vez por
ellas" e muitos outros "milagros fingidos" e "oráculos
falsos" (ibid.:XIII,fol.36r) dominam
estes tempos de "abominación profetizada"
(J.C.Baroja,1978:39). Do lado cristão, a inflação profética é tal que a
exigência de critérios, capazes de distinguir o premonitório legítimo daquele
que o não é, se vai tornar numa das tarefas da próprio poder (no sentido global
do que poderíamos designar por ortodoxia). A necessidade de actualizar a lei,
de a definir, entrará na ordem do dia como veremos. Antes, no entanto, é
importante situar os domínios da própria ortodoxia.
Segundo a tradição medieval,
a autoridade sobrenatural pertence não apenas à Igreja, mas igualmente à
monarquia nacional. Como N.Cohn refere (1970:233), "o monarca era o
representante dos poderes que governam o cosmos, uma encarnação da lei moral e
da divina intenção". Esta herança sagrada da monarquia, aliás ligada à
figura modalizadora do último imperador (cf.Cap.II), está directamente ligada
aos "prophetae com o seu séquito
de miseráveis, dispostos a carrear o levantamento até à batalha
apocalíptica"(ibid.:233) de que o monarca é o arquétipo vencedor. Este legado
medieval tem diversas matizes de continuidade, no século XVI. John Bossy, em A
Cristandade no Ocidente(1990[156]),
refere-se-lhes. Assim, em França, "quando Francisco I subiu ao trono, em
1515, já era bastante banal falar ao rei de França como um Deus corpóreo".
Esta prática é institucionalizada na década de setenta por Jean Bodin
(ibid.:181) e, modificada no século seguinte, tornar-se-ia "a teoria
política oficial da monarquia francesa até ao século dezoito"(ibid.:183).
Em Inglaterra, para os católicos, na tradição de More, a subalternização da
Igreja constituia "uma profanação do santuário que contagiava toda a
comunidade" (ibid.:185). Este divórcio entre o sagrado e o social adquire
"garantia constitucional"(ibid.:180) com Lutero, ao "repudiar a
encarnação da santidade".
No caso espanhol - e
especificamente referindo-se a Filipe II - o autor considera que, apesar do
carácter providencial de que os soberanos se sentem investidos[157],
"nenhum dos atributos do sagrado poderia ser reconhecido como fazendo
parte dos atributos da monarquia" (ibid.:183). John Bossy conclui:
"minando as pretensões dos monarcas ingleses, lançando a dúvida sobre a
ortodoxia"(...)"dos franceses, refutando o que consideravam posições
luteranas", para a monarquia espanhola, quer os bispos, quer o papa, eram
"os inexpugnáveis guardiões do santuário"(ibid.:184). E isto, apesar
da "fragrância de santidade" que os reis católicos anteriormente
haviam projectado. Como adianta F.Braudel (1984-II:187), a Espanha, enquanto
unidade política, só se "pode conceber, no século XVI, com uma unidade
religiosa". De um lado o guardião do sagrado, o poder papal, do outro o
agente militante da providência de Deus, o imperador, ambos sedimentando uma
ortodoxia que se edificará na Contra-Reforma, nas diversas expansões além-mar,
nas inquisições e no retomar tardio do espírito de cruzada. É sob este pano de
fundo que os critérios de legitimação da inflacionada prática profética vão ser
definidos. Vejamos, então, quais as posições da ortodoxia quanto a essa
prática.
Convirá, em primeiro lugar,
situar algumas manifestações, directa ou indirectamente ligadas ao
premonitório-profético, que são combatidas pela ortodoxia. Este termo designará
um poder - ou uma autoridade - cujos agentes são diversificados, mas que
compartilham a semiose de uma unidade religiosa, de acordo com a noção de F.
Braudel (disposições régias, bulas papais, índices da inquisição, escritores
oficiais ou oficiosos,etc.). A astrologia, embora com uma tradição específica,
surge como um fenómeno susceptível de se associar ao premonitório-profético. Um
exemplo paradigmático, do início do século XVI, é o da previsão da conjunção
planetária de 1524 (pela primeira vez registada por Johann Stofller em 1499[158]),
e que irá originar um intertexto profético denso e variado de cariz
catastrófico. Como O.Niccoli demonstrou (1990:Cap.6), a própria Igreja
contribuiu e muito para a difusão destas profecias, que prediziam um dilúvio. O
significado do mesmo era duplo: castigo de Deus pela corrupção da Igreja ou,
noutra interpretação, pela rebelião luterana. O. Niccoli conclui que, passada a
fatídica data de 1524, "the figure of the astrologer emerged much
diminished by the way popular culture had received the supposed
deluge"(ibid.:167).
F.Díaz Jimeno (1987)[159]
reflecte sobre a visão da astrologia dos tratadistas hispânicos, até ao século
XVI. A questão de fundo, com raízes na tradição cristã, diz respeito à oposição
existente entre a astrologia natural (fruto de observações, no sentido da
moderna astronomia) e astrologia judiciária (ou divinitória) que, devido ao seu
determinismo inerente, contraria o desígnio divino providencial. Para Santo
Agostinho, não há causas que possam existir para além da providência divina e,
como tal, o livre arbítrio tem razão de ser, devido ao simples facto de estar
incluído na ordem de causas e efeitos, "y por ende de la presciencia
divina que no está limitada por secuencias temporales"[160]. A tradição
providencial é reatada por Santo Isidoro, sobrepondo a astrologia natural à
"supersticiosa"(ibid.:17) ou judiciária. S.Tomás de Aquino, ao
compatibilizar a causalidade aristotélica com a providência "como regidora
del universo"(ibid.:18), não admite a predicção de factos fortuitos
"a los practicantes de la astrologia judiciaria" (ibid.:19).
Obras como a Disputationes
Adversus Astrologiam de Pico della Mirandola (editada em 1502, em Veneza) e
Compendio de la Fortuna de fray Martín de Córdoba (ainda do século XV)
retomam a teoria providencialista, adversa ao premonitório astrológico. A obra
anónima de 1546, Reprobación (F.D.Jimeno, 1987:110-112) baseia-se nestes
dois últimos paratextos e na obra de Girolamo Savonarola, Tractato contra li
astrologi[161]
(editada em 1497 e reeditada, em Veneza, em 1536), postulando, em três linhas
de força, as posições - podemo-lo dizer - da ortodoxia: ataque à astrologia
judiciária por pôr em causa a omnipotência divina, por restringir o livre
arbítrio humano e, finalmente, por carecer de exactidão lógica e causal. A Bula
Papal de 1586, a Constitution[162],
condena igualmente essa antiga forma de adivinhação e, em Espanha, o Index
expurgatório de 1583 contém igual condenação, embora menos enérgica:" se
prohiben todos los libros, tractados, y escritos, en la parte en que tratan y
dan reglas, y hazen arte, o sciencia para conocer por las estrellas y sus
aspectos, o por las rayas de las manos lo po venir que está en la liberdad del
hombre"[163].
A par da manifestação astrológica que
parece merecer condenação da ortodoxia, todas as manifestações que, na época,
parecem sair fora do quadro considerado normal
não são menos susceptíveis de perseguição oficial. É o caso dos místicos e do
próprio Santo Inácio de Loyola. Como J.C.Baroja afirma, "a acusación más
fácil, contra la piedad ortodoxa del que reforma,
es la de ser alumbrado"(1978:471)[164].
Pedro de Rivadeneira, no seu Tratado de la tribulación (1877:371)[165],
refere-se às deambulações, em pleno século XVI, de "apóstolos falsos,
forasteros, anduvieron en España predicando por las aldeas y pueblos pequeños y
confessando la gente, daban a entender que les habían sido revelados por Dios
sus pecados". Casos de mulheres dominadas pelo demónio ou iluminadas
subitamente, como Magdalena de la Cruz de Córdova[166] ou Sor
Patrocínio, são paradigmáticos neste ambiente de fervor milagroso colectivo e,
por outro lado, constituem modelos de "female saintliness centering on
charisma, with strong prophetic tendencies" (O.Niccoli, 1990:192).
Num âmbito próximo, o
fenómeno da bruxaria encarna, igualmente, uma velha tradição de heresia.
J.Bossy (1990:100) refere que, após 1400, surge uma "profunda convicção de
que as bruxas não eram simplesmente inimigos particulares de determinado
cristão, mas estavam (antes) ligadas a uma conspiração geral que tinha por
objectivo derrubar todo o Reino Cristão". Personalidades religiosas
extremistas, visionárias ou dissidências entendidas como seita, criando a
imagem de algo diferente, pelo
menos, do que se poderá designar por senso
comum, acabam, portanto, por serem susceptíveis de recair sob o foro da
inquisição. Por razões de âmbito mais profundo (cf.Cap.II), a posição da
ortodoxia face aos moriscos, e também
aos judeus, é a da progressiva (ou imediata) anulação. Cumpre-se a prescrição,
segundo a qual, no século XVI, toda a comunidade deve integrar a família do Rei
e participar da unidade religiosa,
piedosa e militante que este prefigura.
A emergência da reforma vem,
por outro lado, criar na igreja católica a necessidade de se cerrarem fileiras
contra a propagação de heresias. Muitas das práticas que, até então, eram
características da própria vida religiosa são, agora, postas em causa (casos da
manipulação profética do papado de Leão X e de Clemente VII[167], além do
próprio papel da igreja nas profecias da conjunção de 1524): "a number of
phenomena that had been characteristic of religious life in the fifty years
between 1480 and 1530 thus either ground to a halt or were suffocated"
(O.Niccoli,1990: 193). Esta "imposição da ortodoxia", como J.Elliott
a designa (1963:216), traduz-se pela perseguição de humanistas,
"illuminists and Erasmians"(ibid.:224), pela reprodução dos autos de
fé da inquisição e pela aceitação geral do conceito de limpeza (cf.Cap.III). Os últimos anos do reinado de Carlos V, até
ao termo do Concílio de Trento (1563), constituiriam a consumação desta nova
política. O percurso, em Portugal, é paralelo: centralização do reino sob
D.João II, em finais do século XV, nova política contra as heterodoxias com
D.João III, sobretudo a partir dos primeiros anos da década de trinta.
Um exemplo hispânico de uma obra de
profecias, simultaneamente proibida e aplaudida neste ambiente austero, é o das
Trovas de Bandarra, sapateiro de Trancoso (a quem Juan de Horozco y
Covarrubias, no cap.XX do seu Tratado de la verdera y falsa prophecia,
se referirá). As profecias de Gonçalo Annes, o Bandarra (m.1545 ou 1560),
são redigidas e trasladadas (não tipograficamente, portanto) durante a década
de trinta. A rápida divulgação do texto, composto por três sonhos premonitórios
e messiânicos e um intróito sobre "as maldades do mundo e particularmente
as de Portugal", leva Bandarra ao segundo auto de fé inquisitorial,
realizado em Lisboa, em 1541. Aí, Bandarra é ilibado da suspeição de judaísmo,
enquanto é levado a perjurar os seus erros e a obrigar-se "a nunca mais
escrever, ler ou divulgar assuntos referentes à Bíblia"(cit in
A.Carvalho,1990:21). As Trovas, curiosamente dedicadas ao Bispo da
Guarda, serão sucessivamente proibidas pela inquisição (até ao século XVIII)
tendo o auto de fé de 1541 sublinhado que "qualquer pessoa que tiver as
ditas Torvas as apresente à Santa Inquisição, dentro de três dias que vier a
sua notícia e o que puder fazer"(ibid.:22).
O outro lado destas Trovas
é o da sua relação com o rumo da própria história de Portugal. Perdida a
independência para Espanha, em 1580, após a derrota do rei português,
D.Sebastião, em Alcácer Quibir (1578), cria-se no país a lenda segundo a qual o
rei não morrera e que, como Frederico II, haveria de regressar numa manhã de nevoeiro.
Estas prescrições desvelam-se nas Trovas e os seus defensores, D.João de
Castro (neto de um vice-Rei da Índia portuguesa) e, posteriormente, o Padre
António Vieira, tornam a leitura da profecia num acto da sua real efectivação.
Com efeito, a Restauração portuguesa, em 1640, será associada a esta "self-fullfiling prophecy"e o
messianismo português, conhecido como Sebastianismo,
será, em muito, devedor da lenta hermenêutica das Trovas. É curioso que,
mesmo proibida pela Inquisição, as profecias de Bandarra tivessem sido,
igualmente, bastante divulgadas e até pregadas "do alto dos
púlpitos"(A.Neves,1990:43). Sujeitas a um intuito colectivo, elas resistem
assim à ilegitimidade e o jesuíta Padre Antonio Vieira - que não ficaria ileso
à inquisição - concede-lhe, mesmo, a verdade profética em Esperanças de Portugal, quinto império do Mundo[168]: "por
nenhuma ciência, nem humana, nem diabólica, nem angélica, podia conjecturar
Bandarra a mínima parte do que disse, quanto mais afirmá-lo com tanta
certeza"(...)"é certo que só Deus podia dizer e revelar ao Bandarra
todos estes futuros e qualquer deles, e com a mesma certeza se deve ter e
afirmar que foi Bandarra verdadeiro profeta".
Esta relação entre a
persistência de uma prática -
aparentemente condenada - e os pressupostos de ilegitimação, algo
fluidos, que sobre a mesma recaem, podia ser exemplificada com outras profecias
cristãs. Um traço talvez comum, entre elas, é o da identificação entre a
(interpretação da) providência divina e o conteúdo enunciado na premonição. Tal
é o critério oficioso - embora não oficial - da leitura do Bandarra, como do
poderiam ser exemplo as premonições astrológicas que prefiguram a expulsão dos moriscos (profecia em quinze pontos,
F.Dragó, 1979:109-110). Com efeito, os signos celestes "ont été
interprétés tout au long du siècle par les astrologues dans un double sens: ils
sont des avertissements sur les dangers que représentent les Morisques, en même
temps que l'annonce de leur expulsion prochaine, voire même des victoires de la
Chrétienté sur l'Islam" (L.Cardaillac,1977:55). E tudo isto, apesar da
imposições da ortodoxia a que acima nos referimos. Outro exemplo da ambiguidade
entre prática e norma é dado pelo Concílio Laterano e pela bula Supernae Majestatis, da época de Leão X
(1513-1521), que "prohibían a los predicadores el anuncio de la venida del
anticristo o la del juicio final"(...)"cinquenta años después San
Carlos Borromeo, tenía que insistir. Pero los predicadores parece que non
estaban dispuestos a dejar de explotar tan rico filón de
efectos"(ibid.:8). Se a prática profética convoca o desconhecido e o
espectro de heresia em tempos de austeridade ibérica, também não deixa de, em
certos casos, constituir uma arma eficaz para o próprio poder. Deste modo, a
situação exigia critérios, codificações que definissem com precisão a faceta
legítima da actividade profética.
Em 1588 surge uma obra
fundamental, quanto ao tipo de precisão referida e que, na altura, virá
corresponder às exigências do horizonte de expectativas do poder cristão.
Trata-se da obra de Horozco y Covarrubias, a que já aludimos, o Tratado de
la verdadera y falsa prophecia. O seu prefaciador, o franciscano Fray Juan
de Colmenares, refere-se aos intuitos da edição: "desengaño de las
invenciones y enredos del demonio en las falsas revelaciones que en diversas
partes ha sembrado estos dias..."[169]. O autor
enfatiza o objectivo hermenêutico da obra, já que os enganos da época obrigavam
a um corpo fixo de regras: "si en todas las naciones antiguas hubo falsas
prophecias en varias formas, la luta seguía". Entre os Capítulos XV e XX,
Covarrubias estabelece uma série de critérios, tentando, assim, criar uma
codificação mais ou menos lógica para a difundida e ambígua prática profética.
São os seguintes os parâmetros que se instituem:
a) Constatação
do "fruto de la profecía"(XV-fol.43r-44v), ou seja, a observação dos
impactos do enunciado no real;
b) Verificação da verdade da
profecia "con respecto a la voz divina"(XVI-fol.44v-45v). Aqui
retoma-se um dos aspectos modalizadores do género, mais vincados: o diálogo com
a divindade. A interpretação do sentido da providência divina virá a constituir
o método de aferição deste segundo parâmetro;
c) Três outras regras se condensam num terceiro
parâmetro, respectivamente "las costumbres del que revela, la
respectabilidad y la pertinencia de lo revelado"(XVII-fol.45v-47r). O
quadro de legitimação tende aqui a excluir tudo o que seja marginal à
comunidade. Entenda-se marginal como
nocivo à noção de "unidade religiosa" que F. Braudel (1984-II:187)
configura como indissociável da identidade Ibérica da Contra-Reforma. Assim, a
tradição, ou os "costumes" (cristãos), idealizam um passado
referencial que se actualiza no agora-aqui
da enunciação profética, sob a forma de "respeitabilidade" que, por
sua vez, surge como responsável pela "pertinência" do conteúdo da
profecia em causa. Um último parâmetro diz respeito ao modo e acto de
enunciação da profecia;
d) "...El carácter y el
modo de decir"(...)"de suerte que el que tenga algo de alocado,
soberbio, o inquieto, no ha de ser seguido"(XVIII-fol.47r-48r). Neste
parâmetro, é claro que se põem de parte as premonições vindas de consciências
religiosas mais extremadas e visionárias, próprias da massa dos acusados de alumbrados, a que atrás nos referimos.
São estas as regras que
acabam por sintetizar a codificação da ortodoxia cristã ibérica, na época em
causa. Podemos dizer que são algo maleáveis, susceptíveis de ambivalência
interpretativa (porventura intencional). No entanto, Horozco y Covarrubias,
insiste "en lo frequentes que son los casos de profetismo en que tiene que
intervenir la Inquisición"(XV-fol.42r-42v), como havíamos visto com o
caso exemplar (de ambivalência) das Trovas
de Bandarra. A imensa produção profética na Península Ibérica do século XVI,
faz-nos, porém, entrever uma situação algo similar à codificada pelo Islão: por
um lado, divórcio entre o real quotidiano e a prescrição geral da ortodoxia;
por outro lado, a compatibilidade prática entre o mesmo real quotidiano e a
ambiguidade (às vezes permissiva) da ortodoxia. Decerto que, retomando o
exemplo da minoria morisca sobretudo
de Aragão (região particularmente dada à astrologia judiciária), esta
ambivalência e estes parâmetros de Covarrubias terão uma única implicação: a
falsidade e a heresia total dos seus aljofores[170].
Além de escritos com grafemas proibidos e de serem oriundos de uma casta, não correspondem aos critérios
descritos por Covarrubias, para já não referir que os seus conteúdos são
corrosivamente contrários aos desígnios da própria ortodoxia cristã.
3. A persistência da prática profética
Para além de condicionantes
de natureza escatológica e relativas às ortodoxias, concluimos este estudo com
a exposição de um conjunto de três motivações que justificam e legitimam o acto
profético como um facto persistente, a saber: motivações contingentes
(relativas à fracção temporal em que as profecias se produzem), motivações
anteriores (codificadas previamente a essa fracção temporal) e motivações inconscientes
(se relativas a hierofanias que veículam).
3.1 Motivações contingentes
Este tipo de motivações
resultam da ordem do quotidiano e do presente vivido por uma dada comunidade. Como
F.Rosenthal refere (1983:79), a irreconciliação de uma comunidade com a
dimensão do presente, no fundo, a falta de domínio sobre o próprio curso do
tempo, traz consigo "an undercurrent of rebellion against the world order,
which may not always have been merely subconscious". A falta de segurança,
resultante da vacilação de crenças profundas e de atitudes tradicionais de uma
comunidade (é o caso da degenerescência morisca,
por exemplo) é, para F.D.Jimeno (1978:47), uma razão fundamental para que as
crenças astrológicas e a prática profética seja convocada "con renovada
tenacidad, buscando algo que"(...) "proporcione una medida de
seguridad ante el futuro y ante ese mundo en transformación en que se
encuentra".
Para além da revolta contra
a ordem do presente a que F. Rosenthal se refere, existem ainda outras razões
de ordem contigente, como as que correspondem a desígnios de propaganda e
simples manipulação de situações concretas que se tornaram crescentes após a
modalização de Joaquim de Flora, no Ocidente cristão. O. Niccoli (1990)
refere-se a estes factos e insere o fenómeno dos monstra, das cartas premonitórias, das adivinhações anónimas ou
forjadas em cortes - na transição do século XV para o XVI - como um único
sistema de propaganda e guerra política de dimensões pan-europeias (ibid.:59),
abrangendo, nomeadamente, a França, a Alemanha, a Espanha e o Norte de Itália.
As guerras religiosas, o envolvimento da reforma na criptoprofecia e as
profecias anti-luteranas integram, igualmente, este tipo de motivações
(D.Cantimori,1975:170 e sqqs.).
Podemos concluir, como acima
se referiu, que o século XVI comporta uma cultura do profético, a divinatio popularis a que O.Niccoli se
refere (1990:13). Neste contexto, a interpretação de signos, com que a
Divindade afecta a natureza ou as visões dos homens, constitui um complexo
cultural susceptível se ser apreendido como um todo pela população. E, neste âmbito, a literatura de profecias
converte-se em arma de guerra ou numa instituição que disputa convicções, senão
o próprio sentido do tempo. As motivações mais contingentes da persistência do
profético estão, pois, relacionadas com o impacto imediato existente entre um eu-comunidade e um outro-a História e o tempo adversos. A projecção desse eu actancial num cenário de renovado
domínio do tempo cria as condições para a prática do profético. Mas esta não se
fica pela perspectiva mais imediata e contingente; o ímpeto de salvação
colectiva é, também, um corolário indissociável da época e do presente concreto
e disfórico. No fundo, a expansão de dois tipos de esperança diferentes, sob a
forma de profecia: uma ligada às coisas imediatas e contingentes do mundo (amal), outra ligada às perspectivas do
divino e do além (rajâ`)[171],
ambas compatíveis e possíveis na visão, quer das ortodoxias, quer das
escatologias.
3.2 - Motivações anteriores
Como o nosso sub-título
indica, reportamo-nos agora a motivações que são, por natureza, anteriores à
fracção temporal onde a produção profética se actualiza e manifesta. Retomamos,
nessa ordem de ideias, uma questão antes aflorada e que se prende com o
contrato ético entre Deus e o homem, no que se entende ser uma correlação chave para religiões como o
Cristianismo e o Islão (T.Izutsu,1964:230). Esse contrato estabelece que, sendo
Deus criador o Deus da justiça e da misericórdia, actuando em relação ao homem
de um modo ético, logo os actos humanos devem, em correspondência, "be of
an ethical nature". Da natureza da resposta humana, no quadro deste
diálogo, dependerá a própria possibilidade de salvação. A questão que se põe é
a da codificação dos actos humanos, de modo que se possam separar os actos
conformes com esse contrato, daqueles que o não são. Essa codificação é
prescrita nas escrituras, mas será sempre, e inevitavelmente, actualizada pelas
ortodoxias, como atrás se viu. A dimensão ética de um tal contrato é, assim,
anterior à própria ideia de ortodoxia.
Esta é criada pelos homens,
por necessidade de ajustar o curso do tempo com a revelação inicial, aquela é a
realidade primordial onde a mensagem revelada se funda (na sua interacção com o
homem). Por outro lado, a ortodoxia é normativa e assegura, de modo instável, a
transição do profetismo[172]
ao legalismo, enquanto o contrato ético é o modelo interiorizado da pureza
original, que deve caracterizar as relações entre o homem e a divindade. Estas
distinções são, de certa forma, subjacentes à ideia cíclica de história
islâmica, a que J.-P.Charnay alude (1964:18) - isto é, a História vista como
uma sucessão de rupturas entre dois estados, um de purificação, outro de
"impureté" (caso do surgimento de um mahdi). Um tal modelo indicia uma "translation d'un état
éthiquement supérieur à un inférieur, ou inversement". No fundo, é a
necessidade de fazer reviver a natureza primeira do contrato ético que obriga a
mudanças de sentido por parte da própria ortodoxia.
A curiosidade humana perante
a natureza misericordiosa e, sobretudo, de justiça própria da divindade é,
inevitavelmente, desencadeada no âmbito deste contrato, pois a salvação nele se
encontra implicada. As pesquisas em torno da teodiceia, nomeadamente o
optimismo mu'tazilita de cariz leibniziano (E.Ormsby,1986:43) ou as correntes
que privilegiam a isâbah - a "appositeness"(ibid.:23) - caso de
al-Maturídi e al-Ghazâlí (ibid.:97), constituem especulações dogmáticas
decorrentes dessa mesma curiosidade. A
curiosidade humana pelo plano divino e pela natureza da justiça proposta por
Deus, constitui, assim, uma forma de o homem se acercar o mais possível da realidade
do contrato ético; de se aproximar o mais possível da divindade - e dos seus
mistérios - no seu diálogo com ela. No quadro da comunicação, suscitada por
este contrato ético, o homem tenta ultrapassar-se para desobstruir o
irrevelado; tal é a natureza da sua curiosidade. É até curioso, como salienta
N.Cohn (1980:233), que, no lado cristão, os prophetae
evoluam "ao longo dos tempos", deixando de se proclamarem "como
Deuses vivos" (caso de Tancelm e Eon, no séc. XI) para se proclamarem,
mais tarde, como imperadores dos últimos dias (caso dos pseudo-Fredericos
alemães, sobretudo do séc.XIII) e, finalmente, assumindo o seu posicionamento
enquanto homens, "contentando-se com o papel de percursores e profetas do
retorno de Cristo" (caso de Tomás Muntzer ou João de Leiden, já do séc. XVI).
Esta curiosidade ou
tentativa de o homem se aproximar da divindade pode ser considerada como uma
das mães do acto humano de
profetizar. A persistência desta curiosidade é tal, que a própria lei revelada
islâmica a prevê e perdoa na surata 5 (versículo 101, cf.IV-2). A natureza
ética do monoteísmo islâmico e, também, cristão contribui assim para a
persistência de um certo tipo de curiosidade humana e, por conseguinte, da sua
apetência pelo profético premonitório. De registar que o lexema latino curiositas, no século XVI, retém
significados que remontam a fontes patrísticas, quer de Santo Agostinho, quer
de João Cassiano[173]:
"it did not mean simply transgressing the limits set upon human knowledge
nor the study of magic, but a state of the passions that could entail both
sensitive and intellective faults" (E.Peters,1985:95). Mesmo a nível da
língua se reflectem, assim, semantizações que espelham normas da ortodoxia,
neste caso condenatórias da procura excessiva e persistente do homem, de que a
prática profética, entre muitas outras, também é modelo. No entanto, Ibn
Khaldún reitera:"les hommes sont naturellement portés à désirer connaitre
l'avenir"(...)"la curiosité est un sentiment naturel, inné chez
l'homme. Aussi, bien des gens souhaitent-ils en apprendre davantage par la voie
des rêves. Et l'on connait le succès des voyants (kâhin) auprès du peuple et des rois"(al-Muqqadima,ed.1967-I:678).
3.3 - Motivações relativas a
hierofanias
Vimos, até aqui, como
motivações para a persistência do profético, elementos contingentes e elementos
que se prendem com uma ligação anterior do homem à Divindade única.
Consideraremos, neste sub-título, as manifestaçöes que participam de
reminiscências do sagrado e que têm, directa ou indirectamente, o seu influxo
no fenómeno profético. Entendemos, aqui, por sagrado tudo o que, para M.Eliade,
integra uma hierofania: rito, mito, cosmogonia ou deus, constituindo as
hierofanias manifestações desse mesmo sagrado, "dans l'univers mental de
ceux qui l'ont reçu" (1975:23). Por outras palavras, se as religiões
instituem uma doxa e um corpo de
práticas, é nestas que o sagrado, anterior à própria institucionalização, se
manifesta sob forma de hierofania. Para uma religião, como o Islão, em que
"it is orthopraxy that matters most of all, not orthodoxy" (C. Van
Nieuwenhuijze,s/d:56), é normal que esta ordem de factores adquira uma certa
relevância. Esta duplicidade de níveis é salientada, também, por A.Abel:
"L'Islam, comme le christianisme de l'Ocident, est avant tout religion du
salut, et, au niveau de la pensée commune, magie toute puissante"
(1950:30).
Este tipo de pensamento
comum, que resiste à doutrina e à doxa,
é integrado por B.Wilson (1973:25) no que designa, no quadro da sua taxinomia,
por "salvation by thaumaturgy". O autor caracteriza do seguinte modo
esta resposta do homem ao mundo que o rodeia: "where doctrine is developed
it is often of little importance in the attainment of salvation". Os
elementos de salvação compreendem, neste quadro, vida depois da morte,
"assuagement of grief, restoration after loss, reassurance, the foresight
and avoidance of calamity"(...) "Miracles and oracles, rather than
the comprehension of new principles about life, are the instruments of
salvation in this case". O autor enquadra, quer o Islão, quer o
Cristianismo dentro desta modalidade do profético: "In Christianity
disciples for several generations were credited with such thaumaturgical
ability, and in the theory of sainthood it may be said to live still in the
Catolic Church. In Islam the same power has, unofficially but widely, been
credited to persist as a hereditary property"(ibid.:25).
Mais do que a recuperação de
símbólicas pré-cristãs e pré-islâmicas, o que está aqui em causa é a forma como o pensamento e a prática
comuns tratam o fenómeno religioso, sob a dupla perspectiva do presente e do
futuro (incluindo, aqui, o próprio elemento escatológico). A tese de Bryan
R.Wilson sublinha a importância do fluxo da prática premonitório-profética
nesse âmbito de uma "orthopraxy" comum, em ambos os mundos, o cristão
e o islâmico. Quase poderemos concluir que, para além das múltiplas
condicionantes que se põem à prática profética, e que neste capítulo tentámos
sistematizar, há a registar uma infra-estrutura humana capaz de preservar
registos que lhes são ancestrais e que, na circunstância, se prendem com
modelos de actos de fala, isto é, com o próprio discurso humano sob a forma (ou
a designação) de géneros. A persistência da sua variante profética, para além
de fenómenos como as escatologias e as ortodoxias, é, pois, um dado adquirido
no tempo e no espaço de que nos ocupamos (e não só), mas é também a permanente
actualização de uma matriz discursiva que, secularmente, se modalizou.
Esta nossa conclusão última
podia bem ser ilustrada por R.Habachi que, num interessante artigo
(1980:75-94), tenta definir as linhas mestras do pensamento e do ser
mediterrânico (incluindo-lhe a margem norte e a margem sul e aproximando-as,
tanto quanto possível). Diz o autor, a dado passo, que, em ambos os campos
coexiste uma noção ambígua de transcendência,
assim caracterizada: " une osmose assez trouble reste établie entre
ciel et terre, la toute-puissance du Dieu-Un et les énergies impersonnelles du
cosmos" (ibid.:79) "Mythes et superstitions survivent sous les rites
et les cultes, cherchant toujours à capter les forces mystérieuses en faveur de
desseins temporels"(...)"Le Méditerranéen fait confiance au temps
pour changer les situations plus qu'a l'initiative humaine"(ibid.:80).
Enquanto o tempo persiste, na sua qualidade de actante, a investir uma "self-fullfiling prophecy" que se
acompanha e em que se crê - o homem mediterrânico (e o da sua contígua
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ancestral de todo o acto profético.
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forma explícita: "La connaissance de l'heure est auprès
Dieu"(...)"L'homme ne sait point ce qui lui arrivera demain; l 'homme
ne sait dans quelle plague il mourra. Dieu seul est savant et instruit".
Outras suratas, apontando no mesmo sentido de ocultação, por exemplo: 7,53;
18,57; 31,34; 43,85, 78,17 etc. Da tradição de Bukhârí (cap.93, secção 10)
recolhemos o seguinte extracto:"Anas ben Mâlek a transmis ceci:"Alors
que le Prophète (à lui bénédiction et salut) et nous sortions de la mosquée,
voici que nous rencontrâmes un homme près du seuil de sa porte:"O Envoyé
de Dieu , à quand l 'Heure dernière ?" Le Très Saint Prophète lui
répondit:"Qu'as-tu préparé en vue de cela?" L'homme demeura un moment
comme interdit, puis reprit:"O envoyé de Dieu, je n'ai en vue de cela
préparé, ni beaucoup de jeunes, ni de prières, ni d'aumônes. Mais j'aime Dieu
et son Envoyé. - Tu seras, dit Mohammed, avec ceux que tu as aimés" (cit.
in G.Bousquet,1964:95).
[4]-Este mistério do quando indeterminado pode igualmente
relacionar-se com a realidade profética da iminência apocalíptica. Vimos isso
no caso das Epístolas paulistas e do Apocalipse de S. João (1995), mas
igualmente o Alcorão apresenta suratas em que o termo e o dia do julgamento são
anunciados muito para breve, por exemplo: "La connaissance de l'heure est
chez Dieu; et qui peut te dire si l'heure n'est pas imminente ?"(33,61) ou
ainda, 10,55; 21,1; 51,6; 52,7; 54,1; 70,7; 78,40 etc.
[5]-Na semiótica de C. Peirce,
os índices são signos da segundidade, isto é, actualizam e designam uma
realidade-objecto relacionando-se fisica e contiguamentemente com ela.
[6]-J. Machado,1980:310 e C.
Glassé,1991:115.
[7]-Sobre este facto, W.Madelung
(E.I., Vol. V, 1983:1230 e sqqs. Leiden)
[8]-Traduçäo, prefácio e notas
de V. Monteil (Beyrouth). O autor legitima a figura do Mahdí, enquanto figura escatológica, baseando-se na autoridade
do"sound tradition of the Sahih'"(Y.Haddad,1981:69)
[9]-Capítulo 60,Secção 50,
Tradiçäo nº1. O ad-Dajjâl tem, no entanto, uma característica física
(simbólica) que o diferencia do verdadeiro messias: é o seu único olho.
[10]- Cap.46, Secção 31:
A"Djeziya" traduz a capitação a ser paga pelos infiéis, porém, neste
momento - (como o indica a tradição nº2, Cap. 92-25 -"L'Heure n'arrivera
pas avant que le soleil ne se lève à l'Occident. Quand il se lèvera ainsi et
que les gens le verront, ils deviendront tous croyants") - todo o mundo já
é muçulmano e, por isso, Jesús, o
pode suprimir.
[11]-Comentário de J. Machado, 1980:120.
Texto da surata:"Il n'y aura pas un seul homme parmi ceux qui ont eu foi
dans les Ecritures qui ne croie en lui avant sa mort. Au jour de la
réssurrection, il (Jésus) témoignera contre eux".
[12]-Surata 4,156.
[13] “Il n´y aura pas un seul
homme parmi ceux qui ont eu une fois dans les Ecritures Qui ne croie en lui
avant as mort. Au jour de la réssurection, il (Jésus) témoignera contre eux”
[14]- Alfaqui e Muftí da aljama
de Segóvia, autor de uma traduçäo do Alcorão, patrpcinada por João de Segóvia
(1393-1400-1458).
[15]-Cit.in
L.Cardaillac,1977:287. Em ambos os manuscritos citados (BNM 9654 e 9074)
refere-se, igualmente, a morte de Jesús e o seu enterro junto a Maomé.
[16]-Segunda Epístola a Timóteo -
3,1.
[17]-Primeira Epístola de S.João-
4,4
[18]-idem,- 4,3 (Cf. N.Frye,1984:121).
[19] - No plural em Segunda
Epístola a Timóteo-3 e, no singular, individualizado, em Segunda Epístola aos
Tessalonicenses-2,8.
[20]-Esta última expressão da
Segunda Epístola aos Tessalonicenses (2,8), segundo o comentarista da TOB,
pode "preciser qu'il s'agit du premier instant de la
Parousie"(NT,1989:627).
[21]-Sobre este assunto,
J.-P-Charnay, 1968:17-19.
[22]-Gog é conhecido entre os
descendentes de Ruben, no Primeiro Livro das Crónicas (5,4); Magog é, em Gn
10,2, um dos filhos de Japhet. Em Ezequiel (38-39) ambos configuram actantes
fustigadores de Israel, acabando por serem semantizados como símbolos de
hostilidade face ao plano divino global.
[23]-Cf. Cap. II, noções de akhira e dunyâ e suas implicações na relação entre o agora-aqui desta vida terrena e o além. O espírito isotópico que, neste quadro, perpassa o texto
corânico pode ser resumido pelo conteúdo da surata 3,182:"Toute âme
goutera la mort. Vous recevrez votre récompense au jour de la réssurrection.
Celui qui aura évité le feu et qui entrera dans le paradis, celui-lá sera
bienheureux, car la vie d'ici-bas n'est qu úne jouissance trompeuse".
[24]- A surata 39,42 é pertinente
a este respeito:"C'est Dieu qui reçoit les âmes lorsque le moment de la
mort est venu. Il saisit par le sommeil, image de mort, ceux qui ne sont pas
encore destinés à mourrir. Is s'empare sans retour de l 'âme dont il a décidé
la mort, renvoie les autres, et leur permet d'y rester jusqu'au temps marqué.
Certes, il y a dans ceci des signes pour ceux qui réfléchissent". Sobre a
interpretação deste versículo refere Y.Haddad (1981:19-20): "Among
attemptes to interpret this verse, i.e., to determine the difference, if any,
between the departure of souls at death and during sleep, one frequently finds
analyses of distinction between nafs
and rúh as they apply to that aspect of humanity surviving
death."(...)"that taken by God during sleep is generally understood
to be nafs al-'aql wa'l-tamyíz, the
soul possessing the rational faculties of inteligence and discrimination. The rúh,
which in the condition of sleep remains attached to the body, is sometimes
refered to as the nafs al-hayât wa'l haraka (the soul possessing life and movement), that by which
life is bestowed on the individual. At death the connection of the spirit with
the body is severed completely, altough the spirit does not die". Assim, a
primeira referida, nafs al-'aql
wa'l-tamyíz, extingue-se na morte física individual (com as suas
propriedades racionais e outras faculdades criadoras ou mediadoras de acção)
enquanto que a segunda, "the life-infusing soul or spirit" (ibid.:20)
permanecerá até à hora final, a do julgamento. Isto apesar das complexidades
terminológicas entre nafs e rúh, a
que, naturalmente, não nos referiremos aprofundadamente neste contexto.
[25]- 2,259; 3,8; 4,59; 9,35;
17,99; 19,72 etc...
[26]- Imagem também presente no
Novo Testamento (Mt 18,8 e AP 19,20). A sua origem, mais remota, está
relacionada com o Vale de Gêhinnom, situado a sudoeste de Jerusalém, tido como local
profanado e sujo devido aos cultos a divindades condenadas (Jr 7,31; 19,56 ou
32,35). Após o exílio (587 A.C.), aí se queimavam cadáveres - o que deve ter
contribuído para associar o vale com as representações escatológicas mais
sombrias e dantescas. No Alcorão, e a propósito do castigo infernal: 4,120;
7,38; 9,35; 17,8; 17,65; 18,102; 20,76; 45,9, etc...
[27]- Igualmente muito repetido
este elemento simbólico, por exemplo nas suratas 10,4; 18,28; 20,20; 37,65; ou
44,46.
[28]-Cf. nota 36.
[29]-2,268; 3,13; 22,14; 22,23;
3,194; 10,9; 29,58, etc...
[30]-7,41; 16,33; 58,22; 61,12;
18,30; 37,44; 47,16, etc...
[31]-37,47; 38,52; 44,54; 55,56,
etc...
[32]-76,21; 56,15; 55,54; 44,53;
35,30; 22,23, etc...
[33]- Da surata sétima:"Et
lorsque leurs regards tourneront vers les habitants du feu, ils s'écrieront: O
notre Seigneur! ne nous place pas avec les pervers"(45) - "...ils
diront aux habitants du paradis: La paix soit avec vous! Les réprouvés n'y
entreront pas, bien qu'ils le désirent ardemment"(44). Referência às
insígnias dos habitantes do paraíso, que são brancas - ao contrário do negro
infernal (cf.nota 31).
[34]-Cap.46, Secção 1 (cit.in
G.Bousquet,1964:104).
[35]- Diz a tradição 12, da
secção 51, do Cap.81 do Saíh' de Bukharí:
"Lorsque les bienheureux entreront au Paradis et les réprouvés en Enfer,
Dieu dira: "S'il en est parmi eux qui aient dans le coeur le poids d'un
grain de moutarde de foi, qu'on les fasse sortir." Ils sortiront alors
tout brulés et carbonisés; on les jettera dans le fleuve de la vie et ils
renaitront alors comme pousse la graine de pourpier dans le limon du
torrent" (cit in G.Bousquet, 1964:105).
[36]-Referimo-nos, claro, à
ressurreição final e geral de todos os mortos. No quadro da interpretação
literal-milenária de Ap 20 estamos perante o que acima se designou por segunda
ressurreição. Sobre a cronologia referida cf. nota 51, sobre a relação entre a
pena dos condenados e o momento em que esta se começa a fazer sentir.
[37]-"Il n'est pas précisé
si ce jugement se situe à la ressurrection générale (...) ou après la mort
individuelle"(comentador TOB-N.T.,1989:529:nota r).
[38]-Cf.Jr 30,7; Ez 30,3; Am 5,18
e Os 1,5.
[39]-Comentário TOB-N.T.,1989:524,nota
o. Sublinhado nosso.
[40]-Acrescentemos igualmente RM 2,16
citado no parágrafo acima, a propósito da cronologia relativa do julgamento
final e ressurreição geral.
[41]-"Lors du renouvelement
de toutes choses, quand le Fils de l'homme siégera sur son trône de gloire,
vous qui m'avez suivi, vous siégerez vous aussi sur douze trônes pour juger les
douze tribus d'Israel".
[42]-O sofrimento dos ímpios
aparecendo ligado à simbólica do fogo: "Les tourments dans le feu et le
soufre" (Ap 14,10).
[43]-Cf. nota 29. Aqui como signo
de maldição eterna, com paratextos em Jr 7,31 e 19,6.
[44]-Do Hebraico, lugar dos
mortos, significando as portas o seu poder; no “Hadés” não se poderão albergar
os membros da comunidade messiânica reunida por Jesús.
[45]-Nome grego para designar os
infernos.
[46]-A opinião de Orígenes
(183-245) espalhou-se no Ocidente sob diversas matizes e foi denunciada por
Santo Agostinho no seu Enchiridion
(A.Cayré,1953-II:814).
[47]-Livro XXI,Cap.IX,2. "Il
n'impose pas sa manière de voir, ce point de la doctrine n'étant pas alors
élucidé" (ibid.:814).
[48]-Para Santo Agostinho, o suplício
do fogo inicia-se após a morte individual. Não há, portanto, a espera pela
ressurreição para que o julgamento possa fazer valer as suas consequências.
[49]-A cidade é cúbica, as
paredes de ouro e as pedras preciosas marcam igualmente presença. Cores como o
topázio, o ametista, safira, etc, ornam a geometria perfeita, centrada pelo
trono de Deus, de onde sai um rio que, entre dois braços, rodeia uma frondosa
árvore da vida ( retomando-se, assim, a descrição de Gn 2,10).
[50]-"...lui-même sera
sauvé, mais comme on l'est à travers le feu".
[51]-De acordo com o exposto por
C.A.O. van Nieuwenhuijze (cf.nota 3), T.Izutsu sublinha, no quadro desta
fractura entre o agora e o depois-eterno, que "the pivotal
point of all this is the eschatological concept of the Day of the Judgement,
with God Himself presiding over everything as the stern, strict and righteous
judge, before whom men stand only in silence with bowed heads. The image of
this decisive day should be held up constantly before the eyes of men in such a
way that it might lead them to absolute earnestness, instead of levity and
carelessness, in life. And this is the dominant note of the islamic
piety"(1964:234)
[52]-Cf.nota 8
[53]-Ver nota 49
[54]-Cf.nota 55,
T.Izutsu,1964:234 (Deus como juíz surpremo e único do julgamento final).
[55]-M.Palacios desenvolveu essa
temática profundamente (1943:193 a 261), na relação entre os níveis de castigo
e recompensa (224), na correspondência entre o templo da cidade santa ou a Ka'ba e o paraíso (223-226), ou ainda na
correspondência entre os sete jardins do paraíso (esquema do Futúhât de Ibn 'Arabí e os sete (233-4)
e os sete pisos do inferno (139). O autor (223) refere: "Este prurito de
correspondência simétrica es característico de la escatología musulmana: parece
como que se concibe el mundo de
ultratumba a imitación del mundo terreno".
[56]-É curioso, neste contexto,
salientar a surata 66,6 onde se atribuem aos anjos responsáveis pelo suplício
das vítimas, do inferno, atributos notoriamente humanos: a rudeza (galza)
e a dureza (shidda). (T.Fahd,1970:66).
[57]-Cf.nota 39. A surata 19,90
só contempla a possibilidade de intercessão para os que, antes, tenham feito
uma aliança com Deus. Sobre este assunto D.Masson, Le Coran, notas:1051.
[58]-Cf.nota 49.
[59]- Baseado numa definição em
Groupe d'entrevernes (1977:145), no quadro de um estudo semiótico de texto
escritural (evangélico).
[60]-Sobre a noção de acto de dizer, enquanto enunciação,
E.Benveniste (Problèmes de Linguistique Générale,1966:254 e sqqs.,Paris)
considera-a como "l'acte même de produire un énoncé". A enunciação
impõe, assim, um quadro específico de estudo, ou seja, o do discurso
apresentado como a sua "manifestation"(ibid.:80). A enunciação deve,
pois, ser lida no "cadre figuratif d'une accentuation de la relation discursive
au partenaire, (...) où deux figures (...) l'une source, l'autre but (...) sont
alternativement protagonistes de l'énontiation"(ibid:83-84). Sobre o
assunto, P.Dahlet(1991:312).
[61]-Sobre a articulação das
noções de type e token (lesisigno e sinsigno peirceanos) com com a de enunciação ao nível da actualização
(token ou sinsigno),
O.Ducrot,1984:368-9.
[62]-Linguagem: aqui entendida
como um conjunto de estruturas cognitivas e de aptidões potenciais que permitem
devedoras de recortes particulares sobre o continuum expressivo e de contéudo.
[63]-Segundo O.Ducrot, a
enunciação, enquanto acontecimento, "embora distinto da actividade
linguística, é visto como um acto, isto é, como imputável a um sujeito"
(1984:387).
[64]-E.Benveniste, 1976:73-76.
[65]- É a mesma diferença que
existe entre a segunda pessoa gramatical, que designa o segundo pólo de um dado
quadro comunicativo, e o(s) destinatário(s) que podem ultrapassar esse circuito
imediato e inevitável, criado pelo eu-tu
gramatical e pela circunstância que o circunscreve; (sobre este assunto,
E.Benveniste,1976:49 e sqqs., A natureza
dos pronomes, Introdução a uma prática literária).
Sobre a natureza projectiva
dos enunciados performativos, veja-se esta reflexão sobre as parábolas enquanto
enunciado que valem por acontecimento que deixam em aberto um acontecimento
futuro: "La prise en considération de la stratégie oblige à tenir compte
des procès d'énonciation. Les paraboles sont des actes de paroles. Elles
s'énoncent en des contextes divers: enseignement, avertissement, avertissement,
persuasion, conflit de pouvoir, promesse, annonce
prophétique. Ainsi, les paraboles viennent-elles à l'appui des paroles ou
actes performatifs". (G. de Entrevernes,1977:196-7).
[66]-Cf.nota 64.
[67]-"...esta
subjectividade, em nosso entender, quer a definamos em fenomenologia, quer em
psicologia"(...)"não é senão a emergência no ser de uma propriedade
fundamental da linguagem. É "ego" quem diz "ego".
Encontramos aqui o fundamento da subjectividade que se determina pelo estauto linguístico
da "pessoa""(E.Benveniste,1976:59).
[68]-O autor refere que tal é,
igualmente, o caso no Talmud:"Le
Talmud enseigne que la Loi de Moise
est min ha-shamayim, descendue des
Cieux, et donc inimitable, insurpassable"(H.Didier,1982:178).
[69]-"Et je vis, dans la
main droite de celui qui siège sur le trône, un livre écrit au-dedans et
au-dehors, scellé de sept sceaux"
[70]-"Ce Coran
glorieux" (85,21) "Est écrit sur une table gardée avec
soin"(85,22).
[71]-No quadro da discussão entre
o kalâm tradicional e o mu'tazilita, durante o século IX, estes defenderam que
a unicidade divina (tawhíd) era
incompatível com atributos, como a palavra divina. Atribuir a palavra divina a
Deus seria, nesta linha de ideias, antropomorfizar Deus, pois tal significaria
imputar-lhe atributos que são terrenos, do campo da criação e, portanto,
exteriores à divindade. Sobre os Mu'tazilitas:A. Nader,Le Système
Philosophique des Mu'tazila,1956,Beyrouth.
[72]-Surata 13,39:"La mère
du Livre".
[73]-Nomeadamente, enunciadores
que são anjos (3,37), o profeta tornado enunciador e criando diversos
destinatários (6,12; 8,1 ou 9,84), e ainda outros enunciadores como os infiéis
(45,23) e profetas anteriores: Salomão (27,16), Moisés (28,33) ou Abraão
(26,83), etc.
[74]-"Le Seigneur parle aux
hommes en paraboles, afin qu'ils réfléchissent" (14,30); o papel do
alegorizante, cuja ambiguidade significativa se deve à diferença de nível entre
o absoluto original divino e o Livro onde essa mensagem se humaniza, para que
possa tornar-se compreensível aos homens, é expressa na surata 3,5: "C'est
lui qui t'a envoyé. Parmi les versets qui le composent, les uns sont fermement
établis et contiennent les préceptes; ils sont la base du livre; les autres
sont allégoriques. Ceux qui ont du penchant à l'erreur dans leurs coeurs s'attachent
aux allégories par amour du schisme et par le désir de les interpréter; mais
Dieu seul en connait l'interprétation. Les hommes consommés dans la science
diront: Nous croyons au Livre, tout ce qu'il renferme vient de Dieu. Les hommes
sensés réfléchissent"
[75]-Segundo o testemunho
autorizado de M.Arkoun, as funçöes sintácticas de que o enunciador se serve
para convencer o seu alocutário, no quadro dos diálogos, são a interrogação, a
exclamação, a intimação e a acerssão. Destaque para esta última modalidade que
"oriente d'une manière évidente tout l'usage cognitif de la langue: cf. infidèles, incrèdules,
injustes, ennemis, coupables qui forment une catégorie disqualifiée par les
propos excessifs, insensés, arrogants qui leur sont prétés; inversement les croyants
sont ceux qui suivent le prophète". (1982:33-35).
[76]-Esta bipartição é reiterada
constantemente no Alcorão. Como exemplo, ficam aqui designadas algumas das
muitas suratas onde o contraste entre crentes e infiéis é objecto de descrição
e categorização: 2,166 versus 2,173; 2,259,v.2,255; 3,49 v. 3,50; 4,59 v. 4,71;
5,76 v.5,62; 8,37 v. 8,47; 16,29 v. 16,30; 27,92 v.27,91; 39,72 v.39,73; 47,20
v. 47,22; 58,9 v. 58,10 e 66.7 v. 66,8. (Em cada par, a primeira surata citada
refere-se aos infiéis e a segunda, por contraste denotativo, aos crentes).
[77]-Cf.notas 3 e 55 a este
respeito. Sobre o enraizamento progressivo desta realidade, A.Abel sublinha
(1950:7) que todos os homens, "du vulgaire ou savants, vivaient, de même
sorte, une même vie, où l'humble conformisme étatit un mérite, une vie,
qu'avant tout une grande anxiété habitait, une grande inquiétude issue d'un
mythe, le plus important, sans contexte, de tous leurs mythes vitaux, l'attente
du Jugement Dernier, d'un jugement dernier objectif, vingt fois décrit et
formulé, que le moindre événement, éclipse, parhélies, lueur créspuculaire,
aurore boréale (...) ou tremblement de terre, remémorait aussitôt à chacun. Le
monde arabe, à mésure que le temps avançait, le mettait davantage au centre de
ses préoccupations, en enrichissait, en développait les détails et les
thèmes." O autor refere depois as tentativas dos filósofos (como al-Fârâbí) ou dos autores das Ikhwân as-safâ,
de a humanidade poder caminhar neste
mundo na senda da cidade da harmonia. As frustrações de facto, ligadas a
estas tentativas, seriam corporizadas, segundo A.Abel, pelo próprio al-Ghazzâlí que "passait pour
avoir codifié, à l'aube du XIIe s., les détails de la Dernière Annonce. Chaque
instant de la réssurrection, de ses angoisses, de ses terreurs, avait, dans sa
"Perle Précieuse", si souvent reprise et imitée dans les années qui
suivirent, été décrit, expliqué, amplifié"(ibid:8). As descrições de Al-Ghazzâlí, ainda segundo A.Abel,
povoavam "le vide de l'Au-delá d'une foule tremblante de pêcheurs,
attendant, sous la menace qu'ouvrait la gueule horrible de la géhenne, cet
enfer qui était un monstre vivant, qu'il plut à Dieu de leur permettre de faire
leur paix avec lui."(ibid.:9).
[78]-O mistério da trindade é expresso,
de forma explícita em 1 Jn 5,6-7: "C'est lui qui est venu par l'eau et par
le sang, Jésus Christ, non avec l'eau seulement, mais avec l'eau et le sang; et
c'est l'Esprit qui rend témoignage, parce que l'Esprit est la vérité"(5,6)"C'est
qu'ils sont trois à rendre témoignage, L'Esprit, l'eau et le sang, et ces trois
convergent dans l'unique témoignage"(5,7). O comentador de TOB
(1989:754) refere a este propósito: "Jn veut dire que Dieu à suffisamment
acrédité son Fils devant les hommes, dans le grand procès qui l'oppose au
monde"(...)"Quant au témoignage intérieur de l'Esprit, il consiste à
manisfester au croyant la portée salvifique, la vérité, des faits ici
évoqués et à le conduire ainsi à la connaissance de Jésus Christ. L'Esprit est
donc la vérité, puisque nous savons que par lui est rendue présente et active
(...) la vérité apporté par Jésus".
[79]-"Nous enseignons la
sagesse de Dieu, mystérieuse et demeuré cachée, que Dieu, avant les siècles,
avait d'avance destinée a notre gloire" ("le mystère au sens
paulinien du mot, c.-à.-d., le secret du dessein de salut réalisé en
Christ", cTOB,1989:491).
[80]-"Litt. il se vida (ekenôsen). Cette Kénose
ou anéantissement n'implique pas que Jésus cesse d'être Égale à Dieu (...)
c'est dans son abaissement même qu'il révèle l'être (...) de Dieu. Les cinq
verbes suivants décrivent cet abaissement" cTOB,1989:584.
[81]-Cristo é gerado por Deus e
concebido em Maria, de acordo com um esquema de maternidade divina. Santo
Inácio foi o primeiro teólogo a defender este tipo de concepção virginal,
opondo-se ao docetismo, corrente que definia o corpo de Cristo como pura
aparência (A.Cayré,1953-I:44).
[82]-Sublinhado nosso
(ibid.:263).
[83]-Independentemente das
vastíssimas tradições sobre a vida e actos do Profeta, que acabam por configurar
contextos, cuja função última é aclarar o significado desse texto ( que Deus
fez descer à humanidade sob a forma de enunciado linguístico).
[84]-Em Lucas a ênfase é dada ao
cronotopo narrado; em João são enfatizados os acontecimentos da vida de Cristo,
como locus da manifestação de Deus
(mais do que a sua pré-existência) e, em Mateus, por exemplo, é a confirmação
escritural profética que é situada como objecto dos actos de Cristo. (fonte, TOB,1989:182,288
e 42)
[85]-cTOB,1989:23. Embora,
por volta de 170, os quatro evangelhos tenham já adquirido o estatuto de
literatura canónica. De referir, ainda, que as tradições orais tiveram um
período de formação de cerca de quatro décadas (fonte: ibid.:21 e 35).
[86]-Sublinhado nosso.
[87]-Pierre
Guiraud,1973:116:"...o homem é o veículo e a substância do signo, é ao
mesmo tempo o significante e o significado (...) o signo social, por outro
lado, é em geral um signo de participação". "Sob os termos de códigos
lógicos e estéticos consideraram-se até aqui as relações do homem com a
natureza"(ibid.:115).
[88]-A.F.Cayré,1953-I:44
[89]-"...semé corps animal,
on ressuscite corps spirituel. S'il y a un corps animal il y a aussi un corps
spiritual"(1 Co 15,44).
[90]-Na narração apostólica, a
ocorrência precede a prisão de Jesús. Na última ceia se encerra a aliança
aberta no Antigo Testamento (Ex 24,4-8) através da figura do sangue: "Ceci
est mon sang de l'Alliance, versé pour la multitude" ("pour
l'ensemble des hommes" - Mc 14,24). Antes
(Mc 14,22), Cristo pronunciara: "Prenez, ceci est mon corps"
(igualmente em Mt 26,26-29 e Lc 22,15-20); a relaçäo entre o pão e o corpo é
explicada em 1 Co 11,26: "...toutes les fois que vous mangez ce pain et
que vous buvez cette coupe, vous annoncez la mort du Seigneur, jusqu'à ce qu'il
vienne".
[91]-Cf.Cap.II-1. profecia
escatológica: "estabelece uma relação entre a primeira fase do fim dos
tempos e a história presente e imediatamente futura" (J.Le-Goff,1984:428).
[92]-sublinhado nosso, que
enfatiza o propósito escatológico do discurso, criado pela enunciaçäo cristã.
[93]-“Pré-existente” remete, neste âmbito, para o carácter eterno
da mensagem transmitida - anterior, portanto, a toda a existência humana e
comunicada (à humanidade) numa dada fracçäo histórica.
[94]-Independentemente das
discussões, no seio do Kalâm, acerca da
existência ou não de causas segundas e da sua natureza face à potência divina -
tida, tradicionalmente, como única e absoluta.
[95]-Para as correntes
pan-semióticas, todo o mundo natural se pode constituir como objecto científico
de estudo. Greimas e Courtés (1979) distinguem, neste contexto, as semióticas
do mundo natural das semióticas das línguas naturais; ambas constituem campos
de estudo anteriores ao homem, ou seja, realidades näo construídas por ele
(embora, por exemplo, a semiótica do espaço releve uma certa ambiguidade,
quanto a esta taxinomia: é o espaço desenhado pela erosão física, ou pelo acto
humano secular ?). A definição dada de mundo natural é pertinente, no quadro
desta reflexão (ibid.:233): "o mundo natural (...) apresenta-se ao homem
como um conjunto de qualidades sensíveis, dotado de certa
organização"(...)"é uma estrutura discursiva, pois apresenta-se no
eixo de uma relaçäo sujeito/objecto"(...)"O mundo natural é uma
linguagem figurativa cujas figuras - que encontramos de novo no plano do
conteúdo das línguas naturais - são feitas de qualidades sensíveis do mundo e
actuam directamente - sem mediação linguística - sobre o homem". De
referir que, separando realidade e a sua representação, o mundo natural não é o
mundo real: este último é o que, de facto existe, enquanto o mundo natural é o
que decorre da apreensão humana do mundo real. Assim sendo, o mundo natural é
um efeito de sentido, uma filtragem
da realidade que, no entanto, é significada e codificada pela vivência humana.
Se a semiótica considera a matriz dessa codificação a supra-semiótica (noção
hjelmsleviana que se refere à pensabilidade do mundo, às heranças míticas e
culturais), já, no caso em questão, a referência primeira assiste ao papel de
Deus, de facto o grande narrador deste discurso natural.
[96]-Quer no Ms.BNM 4944 (fols.
65v-67r, 72v, 90r-91r), quer no Ms.BNM 9074 (fol. 14v) se expressam estas
posições.
[97]-W.Watt refere (1991:37) que,
nos tempos pré-islâmicos, existe "little understanding of history or the historical
process". A enunciação corânica, por seu lado, näo codifica o elemento
diacrónico com continuidade e coerência narrativa: "When the Qur'ân
desbribed events in past religious history, it did so in an allusive way, as if
its audience already knew something about the events".
[98]-Esfera do Islão e esfera da
guerra, respectivamente: Traduzem a ideia de dois espaços oponentes,
designando o segundo aquele que não se enquadra dentro da profissão de fé
islâmica. A expansão dramática do Islão - nos primeiros dois séculos da sua
existência - criou a convicção de que a primeira dessas esferas acabaria, em
breve, por englobar o mundo na sua totalidade, possibilitando, assim, a
consumação do plano escatológico enunciado à humanidade, através da profecia de
Muhammad.
[99]-Sublinhado nosso.
[100]- Vem a propósito referir
como a visão cíclica da história, exposta por Ibn Khladún, se compatibiliza com
o parco significado que é atribuído ao evento histórico: "Ibn Khaldún's
view of history is essentially cyclical; there is change, but only within a
certain range of recurring possibilities. The impression one gets from reading Muqaddima
is that from an absolute perspective it doesn't matter very much what people
do, for a certain pattern will persist, a pattern of constant change without
real difference"(N.Booth,1970:19).
[101]-Cf.nota 106.
[102]-"Dieu efface ce qu'il
veut ou le mantient. La mère du Livre est entre ses mains". Referência a Umma al-Kitâb.
[103]-Sobre o espectro semântico,
aqui atribuído ao lexema "interpretante", cf. nota 3 do Cap.I.
[104]-Como refere, de outra forma
L.Massignon (1939:9):"...si la Chrétienité est, fondamentalement,
l'acceptation et l'imitation du Christ, avant l'aceptation de la Bible, en
revanche l'Islam est l'acceptation du Coran
avant l'imitation du prophète"
[105]-Cf.nota 96.
[106]-Nomeadamente 1.1 e 1.2
[107]-Sobre a metanoia dos
Evangelhos, N.Frye,1984:191 e 192; M.-M. Davy,1982:74.
[108]-A nível superficial, cada
palavra (lexema) integra um semema, entendido como uma polivalência de sentidos
disponíveis, capazes de se mobilizarem em cada situação concreta em que a
palavra é convocada. Cada semema integra, por sua vez, diversos núcleos
semáticos - cada um deles com uma dada amplitude semântica estável. Estes
núcleos constituem-se como receptáculos do real que, assim, representam. Cada
semema dispõe de um espectro semântico, composto pelos vários núcleos que o
integram. A palavra é, pois, um filtro da experiência humana. Esta encontra-se
representada de forma paradigmática (nos núcleos), embora a palavra, quando
convocada, só possibilite a realização (sintagmática) de uma parte do seu
espectro potencial (um núcleo ou alguns, mas nunca todos).
[109]-"The most serious of
all sins is the arrogant claim that anyone, human or spirit, is equal to God or
identified with him". (ibid.:71).
[110]-Consideram-se atributos como
a eternidade, a potência, o conhecimento e a vontade divinos. O takwín é um atributo eterno, ligado à
vontade divina, e que pressupõe as accçöes: criando, sabendo; Nada do que é
exterior à unicidade divina, tawhíd, se pode confundir com Deus.
[111]-O que é sujeito de hadat, ou, por outras palavras, o
que é efémero.
[112]-Filosofia escritural ou
teologia dogmática islâmica.
[113]-Designam-se, aqui, os
seguidores da filosofia grega (al-Fârâbí, Abu Bakr al-Razi, etc.).
[114]-in E.Edgar Elder,1950,Cap.V
do Credo de Najm al-Dín al-Nasafí
(comentado por Sa'd al-Dín al Taftâzâní),
que expressa e reitera expressões dos credos originais, relacionados com a
corrente de Ortodoxia popular (J.Schacht,1953:37-40) da qual Abú Hanifa
foi epónimo. Com raízes nos Murgi`itas (corrente
dominante de opinião na era Omáiada - 661-750 - J.Schacht, ibid:39), esta
corrente, desde cedo, encontrou como forma de expressão pequenos credos,
catecismos e tratados como o Kitâb al-'âlim wa`l-Muta`alim
(Schacht,1964:96-117), o Fiqh al Akbar-I J.(Wensinck,1965) e o Fiqh al-Absat (Muhammad
Zâhid al-Kautarí,1979,Cairo - que editou igualmente, em conjunto, o Fiqh
al-absat, o Kitâb al-'âlim
wa`l-Muta`alim e a Risâla 'ila `Utmân al-Battí, este último da
autoria real de Abú Hanifa -J.Schacht,EI-1960:123).
[115]Sublinhado nosso.
[116]-Neste âmbito, refere
C.Glassé (1991:391): O Tawhíd
"est au centre de l'Islam et, de fait, est le fondement du salut".
[117]-Para M.Hagerty "...el
Dios único de los hebreos y el de los árabes difiere algo en la modalidad de su
presentación, debida, probablemente a la experiencia desértica más intensa de
éstos. El hombre no es la parte más elevada de la naturaleza, como suponía el
griego; no ha sido hecho para el dominio de todo el creado, como sabía el
hebreo; sino que está en el mismo plano de las cosas. El hombre y el mundo son
elementos subordinados a algo impersonal y objetivo: Dios,
Destino"(ibid.:265:266).
[118]-Noção de M.Eliade (1975:23):
"Manifestation du sacré dans l'univers mental de ceux qui l'ont
reçu."
[119]-A hipótese de associação
entre o termo filho e "filhas de Allâh" é sugerida por D.Broadribb
(1969/70:68).
[120]Sublinhado nosso.
[121]Sublinhado nosso.
[122]-"Un Morisque expulsé
d'Espagne et réfugié en Tunisie évoque les démêlés de sa communauté avec
l'inquisition, et les explique en quelque sorte par leur refus de croire en la
Trinité"(ibid.:227).
[123]-Dicorsi sopra la prima
deca di Tito Livio.(cit. in The Discourses, trad. de
L.Walker,1970:249).
[124]-"L'un d'eux, appelé
Agabus, fit alors savoir, éclairé par l'Esprit, qu'une grande famine allait
régner dans le monde entier..."
[125]-Por exemplo, as profecias
ligadas ao Montanismo e aos Milenarismos nascentes.
[126]-"Elle avait deux cornes
comme un agneau, mais elle parlait comme un dragon" - referência
metafórica aos falsos profetas que, em Ap 16,13 - são referidos como espíritos
impuros e, denotativamente, referidos como "des faux prophètes".
[127]-in J.P.Machado,1980:505 .
[128]-H.Halm refere-se à
permanência destes grupos no seio de uma remota ortodoxia até que são,
definitivamente, dados como heréticos:"La sharí`a conçue comme un fardeau pesant, son abolition conçue comme
un acte de grâce divine, pour un bon musulman de telles idées devaient avoir
quelque chose de monstrueux. Cependant, des mouvements ou courants antinomistes de ce genre ne sont pas en
Islam aussi rares qu'on pourrait le supposer au premier abbord. Ils n'ont
seulement pas pu se maintenir contre les attaques des juristes qui, à partir du
IIe/VIIIe siècle, sont sortis vanqueurs de la lutte: les antinomistes furent
donc forcés d'abandonner le terrain" (1985:135). Sublinhado nosso.
[129]-São seitas shi'itas que
recusam a Lei (a sharí'a) e que
deíficam os Imâms. Um dos exemplos é a seita dos Aluítas da Síria. Não têm
mesquitas e o seu livro sagrado é o Livro das sombras, onde se pode ler:
"Il y a une foule d'hommes sur la terre, auxquels vous parlez et qui vous
parlent don Dieu a déjà enlevé les chaines et les liens sans que vous les
connaissiez"(cit.in H.Halm,1985:138/9).
[130]-O movimento surge com o
cisma, no seio do shi'ismo (após a morte do sexto Imâm, Ja`far Sâdiq, em 765), daí tendo surgido o imamismo
"duodécimain"e o ismaelismo "septimanien"
(H.Corbin,1986:115 e sqqs.). De certa forma, a Lei é, no caso Ismaelita, o
obstáclo à visão directa de Deus; assim a futura abolição da Lei não será senão
o restabelecimento da religião primordial. H.Halm (1985:140) considera estarmos
perante o "antinomisme latent des ismailiens".
[131]- A seita data do séc.XI e
declara o tanzíl e o ta'wíl ultrapassados (ou seja, o Islão
sunita e o Ismaelismo), proclamando o surgimentpo do novo e terceiro período, o
tawhíd, que pressupunha a abolição da
Lei e, portanto, a visão e adoração directa de Deus criador (H.Halm,1985:140-141).
[132]-H.Corbin,1986:265 (Cap.V,
sobre o sufismo) - "...à travers les siècles, la très grande majorité des
soufis se trouve dans le monde sunnite".
[133]-Trata-se de um artigo, onde
o Kitâb al-Tawhíd de
al-Maturídi é apresentado, pela primeira vez, à comunidade científica (New
sources for the history of Muhammadan theology in Studia Islamica,1953:23-42,
Oxford). De salientar que esse importante documento, hoje publicado (org. e tr.
F.Kholeif,1970 - 2. ed. 1982 -,Beyrouth), foi primeiro tornado público por
J.Schacht dois anos antes da publicação do referido artigo, nomeadamente em
1951, numa comunicação aprentada em Francês na Universidade de Bruxelas.
[134]-Ash`arí and the Ash`arites in Islamic Religious History,in SI,19,1964:18-
e sqqs., e, L'Islam Hanbalisant,in REI,42,1974-I,II:211
e sqqs.,III:45 e sqqs..
[135]- A escola Zahirita näo é
aqui mencionada devido à sua existência efémera, como aliás é o método de
G.Makdisi (1964 e 1974).. Fundada por Dâwúd Ibn Khalaf al-Isfahâní, o
literalista (819-855 ou 910). A esta escola pertenceu Ibn Hazm (1064) e o
próprio Ibn `Arabí.
[136]-Formada na Síria com al-Auzâ`í(m.774) e, depois, no Iraque
através de uma outra escola, sendo o seu representante mais famoso Abú-Hanífa (m.767). Influencia a escola
Maturidista (embora existissem no seu seio, igualmente, influências
mu'tazilitas) e, após a vinda progressiva dos Turcos para ocidente, passa a ter
crescente implantação, não só na Ásia central, como na Turquia
(W.Madelung,1968-71).
[137]- O Maliquismo "(...)
bases its doctrine on the Qur`ân, The Sunna and ijmâ'"(...)"For Mâlik, hadít is thus not the most important source, and personal
judgement, ra`y, is to be used in
parallel, when ijmâ'cannot provide
the answer to a question and only if this procedure does not injure the public
good (maslaha)"
(EI,1991-VI:279). Os Maliquitas apoiados por 'Abd al Rahmãn III, como refere M. Fierro (1991:129), "quienes lo
utilizaron como elementos legitimadores de sus pretensiones califales, se
constituyen en escuela oficial de al-Andalus durante el s. IV/X".
[138]- M.Khadduri (1961:32-40)
sintetiza as ideias fundamentais da Risâla
de Shâfi'í (m.820), o fundador da escola de direito em questão, afirmando:
"The Qur`ân, Shafi'í points out,
is the basis of legal knowledge.". Referindo-se ao segundo capítulo da Risâla, o autor dá atenção à noção de al-bayân: "Shafi'í says is a collective term which includes general principles
of law as well detailed rules"(ibid:33). A divisão de al-bayân, feita em cinco categorias, é a seguinte: "The first
consists of a specific legal provision in the text of the Qur`ân"(...)"the second includes certain provisions,
whose odes of observance are specified by an order of the prophet Muhammad"(..)"the third
consists of broad legal provisions which Muhammad
particularized. The fourth includes all the legal provisions laid by Muhammad in absence of a specific
Quranic text. The fifth and final category is comprised of ijtihâd (personal reasoning) by means of qiyâs (analogy)"(ibid.:34).
Acrescenta
ainda M.Khadduri: "Shafi'í's
method of reconciliation, called at-ta`wíl
(interpretation), encouraged the acceptance of many a tradition which otherwise
would have been in danger of being rejected"(...)"The latter part of
the Risâla deals briefly with ijmâ´ (consensus), qiyâs (analogy), ijtihâd
(personal reasoning), istihsân (juristic preference) and ikhtilâf (disagreement). Although these
are important jurisprudential subjects, Shâfi'í devotes much less space to them
thna to the Qur`ân and sunna" (ibid:37).
[139]-Fundada por Ahmad b.Hanbal (m.855), integrada
sobretudo por tradicionalistas, defende princípios de não inovação, cingindo-se
às fontes da lei mais originais, o Alcorão e a sunna.
[140]-Cf.nota 124.
[141]-Partidários de Jahm Ibn Safwân Abú Muhriz (m.745) e
defensores da inexistência de quaisquer atributos divinos, bem como de um
determinismo extremo. Para os partidários da jahmiyya não cabia ao homem qualquer comportamento que influisse
para a salvação. O seu radicalismo punha-os fora da natureza ética do próprio
Islão.
[142]-Muqadimma, cit. in T.Fahd,1966:50.
[143]-ibid:45.
[144]-M.J.Hagerty,1978:42-43.
[145]-Reunida por Khatíb
al-Bagdâdí, cit. in Goldziher,1952:171.
[146]-Aqui, no sentido de
testemunho (ibid.:174,n.3)
[147]-I.Goldziher refere-se a este
facto, do seguinte modo(1952:165-6): "On prenait plaisir à citer les
fables monstrueuses dont la tradition ornait aussi bien les légendes bibliques
que les embryons d'eschatologie contenus dans le Coran. Pour dénigrer les hadít, on exploita les passages
où les légendes et les superstitions populaires (khurâfât) étaient reproduites et incorporées au Credo musulman sous
forme d'informations émanant du Prophète. On tourna en ridicule les minutieuses
prescriptions de la Tradition touchant les détails les plus intimes de la vie
etc."
[148]-Por exemplo 21,5; 26,223;
69,41-42 e 31,5.
[149]-Tradicionalista da primeira
geração (m.732), judeu convertido ao Islão, "dépendant de Ka'b al-Ahbâr"(ibid.:67), que é o primeiro
"chainon de l'isnâd dans les
récits relatifs à l'histoire biblique"
[150]-cit in T.Fahd,1966:67-68.
[151]-Tal é a opinião de Mas'údí
(ibid.:63); para Ibn Khaldún há uma implicação simétrica: adivinhação é
"imperfection du contraire relativement à son contraire parfait" (
ibid.: 45-a revelação profética divina). Na VI Muqqadima, Ibn Khaldún refere,
entre outros, as posiçöes dos filósofos e de al-Ghazâlí. Assim, para Ibn Rushd,
premonição e profecia situam-se ao mesmo nível, pois Deus conhece os seres tal
como eles são. Por isso, se um profeta ou adivinho conhecem por Deus o futuro,
é porque a natureza do ser está conforme o próprio conhecimento eterno. Esta
revelação pode ter intermediário angélico ou outros, caso do sonho e até da
epilepsia. Para Maimonedes, seu discípulo, a profecia é emanação divina e
expande-se através do intelecto activo; é a manifestação mais alta e nobre da
espécie humana. O sonho e a prática premonitória, em geral, constituem um fruto
abortivo da profecia revelada por Deus aos homens. Para al-Ghazâlí, embora o
seu combate aos filósofos seja conhecido, o que é certo é que, meste ponto,
parece haver mum acordo formal. Para o autor, tudo tem uma causa e se se
conhecerem as causas também se determinarão as consequências. A natureza
humana, porém, não pode determinar todas as causas, devido às suas limitações.
Assim o acto de adivinhação, para além do da profecia pura, é possível. Ele é
possível pois existe uma precognição divina que o permite. É nesta condição que
o autor difere dos filósofos.
[152]-"prophetic
signs"(...)"used even for political ends - as can be seen repeatedly
under Leo X"(ibid.:12).
[153]-A data de limite de 1530,
para a época de divinatio popularis,
é o próprio objecto do estudo da autora (a bibliografia que comprova as
datações referentes às outras áreas em ibid:189:n.1).
[154]-(ibid.:13).
[155]-in Tratado de la Verdadera
y falsa prophecia. Hecho por Don Juan de Horozco Y Covarrubias. Arcediano de
Cuellar en la Santa Yglesia de Segovia, Segovia. Por Iuan de la Cuesta. Año
1588 (as cit. extraídas de J.C.Baroja,1978,37-42).
[156] O autor chega-nos a falar
acercas de “realeza sagrada” (1990:181).
[157]-Sobre este aspecto ver
M.Herrero Garcia (1966:Cap.1, sobre o auto-conceito de Espanha) e, para o caso
Português, a interessante Monarquia Lusitana (III,Livro 10,Cap.2), onde
o carácter predestinado e providencial do primeiro Rei de Portugal é teorizado
através do seu diálogo com Deus, na batalha de Ourique contra os mouros. Este é
um dos paratextos de um poderoso mito, que se enquadra dentro de um âmbito
ibérico de significação.
[158]-Ephemerides,
reeeditado em Veneza em 1522 (fonte O.Niccoli,1990:140).
[159] De realçar, nas obras em
causa, as ligações entre os textos proféticos, sobretudo entre Itália e
Espanha.
[160]-De De Libero Arbitrio,
V.9, cit in ibid:16.
[161]-Ediçäo de Florença de 1497.
[162]-Cit. in J.C.Baroja,1978:238.
[163]-Cit. in ibid.:238.
[164]in O.Niccoli, 1990.187
[165]-Sublinhado nosso.
[166]-Sobre Magdalena de la Cruz
cf. J.C.Baroja,1978:40,n.84.
[167]“...The classical and
Ciceronian culture that flourished at the papal court and in the circles around
it during the years of Leo X's papacy
and the early years of Clement VII favored this habit. Interest in the world of
classical antiquity brought with it a renewed fascination with the monstra, prodigia and portenta, a
fascination that popular divination, for its part, pursued
indefatigably"(O.Niccoli,1990;193).
[168] In 1955, Vol.VI.
[169]Cit in J.C.Baroja,1978:37-42.
[170]A obra do Jesuíta Benito
Pereira, Adversus astrólogos de Astromantia dirige-se particularmente a
Aragão, Valência e Catalunha. onde há imensos cultores da astrologia judiciária
(J.C.Baroja,1978:237).
[171]F.Rosenthal, numa das seis
conclusões do seu Sweeter than Hope
(Leiden,1983:139), foca a compatibilidade entre ambas as noçöes: "amal directed toward those very
insignificant and impermanent worldy benefits"(...)"did not conflit
with the view of God as the only permissible depository of true rajâ`".
[172]Profetismo, no sentido do
selo revelatório anunciado através de Muhammad
e do plano divino de redenção, ou boa nova, anunciada por Jesús Cristo.
[173]Nomeadamente o significado de
"forbidden intellectual inquiry and the more domestic vices of neglect of
self and excessive interest in the affairs of neighbours"(E.
Peters,1985:91).