À sombra da comunicação e da informação

Gustavo Cardoso*, ISCTE

Novembro, 1999

 

Quatro geografias e quatro momentos. É da sua soma que este artigo nasce:

M0. Geografia: Lisboa, Março de 99, um artigo sobre o
Estado e Sociedade de Informação
M1. Geografia: Newcastle, Julho de 99, uma Conferência intitulada CyberSociety
M2. Geografia: Portugal, Outubro de 99, Eleições Legislativas
M3. Geografia: Irvine, Califórnia, Outubro de 99, Conferência de Mark Poster no ISCTE-Lisboa.

À escolha destas referências para início de texto não é alheia a percepção de que na época em que vivemos se assiste a uma radicalização das esferas do tempo e do espaço, num incremento de tendências que nos coloca entre a modernidade tardia de Giddens e a pós-modernidade de Baudrillard.

Vivemos na continuidade de um processo intimamente associado aos diversos media que conhecemos ao longo da história da humanidade, mas cujos efeitos se aceleram com a introdução dos primeiros Mass Media e que encontraram nas tecnologias de informação e comunicação contemporâneas a consagração dessa descontextualização espácio-temporal. Esse é o espaço de constituição dos chamados Novos Media, fruto de uma mescla de variáveis de causa/efeito de difícil individualização. 

Desde o final dos anos 80 que as indústrias, futurólogos e serviços associados às tecnologias de informação e comunicação nos chamam a atenção para as mudanças que estão ou estarão para ocorrer nas diversas esferas da sociedade por via de uma crescente convergência tecnológica e de uma imaterialização da economia. Os discursos de associação do progresso à transformação tecnológica são uma quase constante nas nossas sociedades europeias, pelo menos desde a revolução industrial, e o apelo que os mesmos desencadeiam junto de políticos e intelectuais são-no igualmente recorrentes. Não querendo aqui discutir se estaremos ou não a assistir a mudanças, sejam elas qualitativas ou quantitativas, pois acredito que as mesmas estão a ocorrer, embora selectivamente, a nível global e a uma velocidade até hoje não vivida, gostaria de salientar aqui outras características que julgo merecedoras de destaque. 

Não deixa de ser interessante notar que as maiores obras de pensamento reflexivo sobre as sociedades contemporâneas avançadas e sobre o papel das tecnologias de informação e comunicação surjam nos Estados Unidos da América - a potência militar e económica do final do milénio, defensora de um modelo liberal de economia - e partam da crítica do modelo marxista, não o recusando, mas adaptando-o às transformações vividas ao longo do século XX. Dois exemplos desse pensamento são Manuel Castells através da sua crítica ao modelo informacional de desenvolvimento na esfera económica e social e Mark Poster através do seu modo de informação na esfera cultural, os quais nos demonstram como procurar e identificar os pontos de mudança, não esquecendo de enunciar as possibilidades, mas também as limitações associadas à acção transformadora das tecnologias de informação e comunicação.

Mas se no discurso académico se faz referência às potencialidades e limitações da tecnologia e igualmente ao seu lado positivo e negativo, já no discurso político tal não surge, predominando o recurso à retórica sobre as possibilidades e sobre o lado positivo das transformações. Nesta breve incursão sobre o discurso político europeu e as tecnologias de informação e comunicação, tentarei demonstrar que, por um lado, tal como em muitas outras situações do discurso político, se assiste a uma colonização pelo discurso económico das esferas sociais e culturais, marginalizando assim aquelas que poderão ser as mais importantes consequências das transformações produzidas pelas tecnologias de informação e comunicação. Procuro igualmente demonstrar que se trata de um discurso político, na maioria das vezes desprovido da prática e que portanto é um discurso perigoso, pois promove algo que os próprios promotores desconhecem e que, para quem se situe na esfera exterior de análise, só poderá ser entendido enquanto continuação da procura de um novo arquétipo motivador que substitua as grandes ideologias do século XX: neste caso, o valor da comunicação e informação.

Manuel Castells e Mark Poster propõem-nos uma leitura das forças em acção, considerando que as transformações na nossa sociedade são actualmente desencadeadas por uma relação entre duas forças cuja influência se faz sentir em todas as esferas da sociedade, a Net e o Self, isto é as redes e as identidades. Estas mesmas forças desencadeiam tendências de ameaça e oportunidade ao alcance de todos os agentes sociais, incluindo o estado. Fruto do surgimento de uma "sociedade rede", onde os fluxos de poder deixam de se centrar no espaço dos lugares para passarem para o espaço dos fluxos (um espaço definido tecnica, geografica e socialmente), o estado-nação vê a sua actuação limitada pela necessidade de articular a sua acção entre o nível global e nacional. O estado tem de negociar num quadro de globalização com os restantes estados, com as empresas globais e inclusive com os grupos de pressão que actuam através do espaço dos fluxos, ao mesmo tempo que assegura as suas funções ao nível nacional na gestão do Welfare e no desenvolvimento económico, social e cultural.

Tomando como ponto de partida esta leitura, podemos identificar, entre outras, três áreas onde o papel do estado é questionado e onde consequentemente, se encontra um terreno fértil para a tomada de opções pelos agentes políticos; elas são respectivamente: 

1. A opção de fomentar o desenvolvimento das tecnologias de informação e a criação de mercados, sob pena de as empresas nacionais e os seus cidadãos não poderem competir no mercado global económico e de emprego;

2. A opção de controlar as transações monetárias que ocorrem no espaço dos fluxos, sob pena de ver cada vez mais diminuída a sua margem de acção na política económica interna e externa e a defesa da protecção social dos cidadãos;

3. A opção de lidar com as novas geografias, produzidas pelos sistemas de comunicação, que ultrapassam frequentemente as fronteiras e o âmbito de jurisdição dos estados-nação, questionando as fronteiras de soberania e a própria identidade nacional - isto é a formação de identidades sob o signo da emergência de uma cultura global.

No entanto, quando olhamos para o espectro político português, da direita à esquerda, ou mesmo para a maioria dos países da união europeia, aquilo com que nos deparamos no discurso dos agentes políticos é em primeiro lugar o facto de haver uma quase unanimidade quanto à necessidade de o estado intervir na criação dos mercados de utilizadores e de produtos das TIC. Intervenção essa realizada através das políticas informacionais de fomento do acesso e das condições económicas para o desenvolvimento do comércio electrónico - ou seja da investigação científica à legislação e apoios ao investimento nestas áreas.

No extremo oposto do grau de atenção, encontramos a quase total omissão de referências ao controle dos fluxos financeiros a um nível global e, quanto ao olhar do sistema político, à luz da criação de identidades a uma escala global, aquele guia-se meramente por uma perspectiva da disponibilização de mais informação. Este é o exemplo mais concreto da colonização dos restantes domínios da vida social pela esfera económica, colocando o ênfase no acesso e na criação de mercados, esquecendo aquelas que porventura serão as áreas de maior mudança: as sociais e cultural.





A batalha pelo acesso às tecnologias de informação e comunicação surge assim no discurso político enquanto nova bandeira do progresso, fazendo-nos por vezes lembrar - não sem uma certa comicidade anacrónica, os famosos slogans da revolução russa em que progresso era associado à fórmula "Sovietes+Electricidade=Progresso", substituídos agora pela ideia de "Democracia+Internet=Progresso". Fazendo-nos assim esquecer que as tecnologias de comunicação e informação não são um objectivo em si, mas sim utensílios a pôr ao serviço das ideias e das utopias de sociedade.





Este é o discurso que Kevin Robins denomina de tecnocultural, um discurso que nasce e milita entre as elites tecnológicas e económicas e que ao ser assimilado pelas elites políticas, se transforma no discurso corrente e visão unidimensional da ideia de "Sociedade de Informação". O discurso tecnocultural é um tipo de discurso que poderemos situar numa perspectiva da História das Tecnologias, vendo o mundo enquanto fruto da sucessão de tecnologias desligadas do contexto social onde as mesmas nascem e actuam, onde se focam os potenciais existentes nestas tecnologias mas não se faz referência às suas limitações. 

Um discurso que se pode rever nas visões de Bill Gates, Al Gore e mesmo nas linhas de pensamento oficial da União Europeia e dos seus governantes, uma linha que parece olhar para as relações através das redes, como a Internet, como novos espaços constituintes de um mundo baseado na informação. Segundo esta visão, todas as actividades humanas são passíveis de ser transpostas para um registo de informação: é esse o ideário de Bill Gates quando nos diz que "All business is information" e "New era is intelligence".

Estamos perante um espaço de empowerment, onde o desejo de domínio da natureza e do conhecimento pode ocorrer a par da construção de espaços insulados, defensivos ou protectores face às ameaças percebidas com origem no "mundo real". A criação de espaços selados permite o controle e a gestão do interface com o mundo, a auto-protecção. Um mundo em Rede, funcionando sob a forma de um sistema tecnológico, onde basta aceitar as regras previamente definidas para atingir o sucesso pretendido. É este igualmente um espaço onde a relação simbiótica entre homem e máquina domina. Um espaço onde a diferenciação social ocorre entre aqueles que aumentam as suas capacidades através da tecnologia e aqueles que o não fazem.

Enquanto discurso tecnológico, esta visão poderá ter a sua validade, embora discutível, mas o que nos deverá preocupar é o momento em que o mesmo transcende essa "agenda tecno-económica" para a esfera cultural e política. Quando transposta para o discurso político, esta é uma agenda que promove a comunicação como uma ferramenta para tornar o nosso mundo melhor, a criação de comunidades através do consenso. Disso é exemplo a ideia de retorno às pequenas comunidades ou a conversação global, de Al Gore, como formas de atingir a harmonia. 

Aquilo que proponho colocar à discussão é que este tipo de discurso encerra uma visão enganadora, pois não só parte de premissas discutíveis, as da historicidade tecnológica das nossas sociedades, como nos coloca perante a ideia de que a comunicação/informação é um objectivo em si e que, desde que todos a atinjamos, estaremos a criar um mundo melhor. Trata-se de um discurso em que o apelo ao novo se traduz, quando devidamente dissecado numa perspectiva extremamente conservadora, afastando-nos de tudo aquilo que efectivamente será novo. Mas este discurso político, partilhado de norte a sul da Europa, ora por governos socialistas ora conservadores, é o mesmo. Trata-se de um discurso sem objectivos concretos para a sociedade europeia que não a gestão de políticas pelo consenso e promoção da segurança e estabilidade dos seus cidadão - segurança económica, segurança nas competências para o trabalho, segurança na saúde, etc. 

Esta é a política das terceiras vias à esquerda e à direita. Por isso, é normal que tudo aquilo que é efectivamente causa de rupturas ou promotor de mudança seja moderado ou afastado do discurso. Daí a obsessão com a importância de obter conectividade, de ligar as pessoas entre si, de escolher a comunicação e o acesso, não como meios para algo, mas sim como objectivos em si. Procura-se um discurso de consensos, pois quem não estará de acordo com o progresso e com a comunicação entre todos ? Só que talvez essa seja só a metade do caminho, a metade consensual da transformação e que a verdadeira revolução esteja a ocorrer noutra esfera da sociedade: a da construção das identidades.

Mark Poster é um dos autores contemporâneos que chama a atenção para a necessidade de redefinir as questões a colocar na tentativa de encontrar respostas para as mudanças em curso nas nossas sociedades. Ele propõe assim a noção do modo de Informação enquanto chave para decifrar as transformações em curso no final do seculo XX - tal como Marx havia também proposto o modo de produção como ideia fundamental para a leitura das mudanças ocorridas no século XIX. Poster considera assim, que as transformações de maior importância não pertencem a esfera económico - política, mas sim à esfera cultural, isto é, ocorrem ao nível das identidades. 

Do mesmo modo que no século XIX a imprensa escrita teve um papel fundamental na formação da ideia do sujeito autónomo e racional, os novos media - em particular a Internet - estão, através das suas características, a promover um sujeito múltiplo, descentrado e disseminado. É aqui que se jogam as oportunidades e as ameaças destes novos meios que nos colocam perante uma nova forma de identidade que nos afasta da visão tradicionalista do sujeito na sociedade - ao permitirem a comunicação de muitos para muitos; a recepção simultânea, a alteração e redistribuição de objectos culturais; o afastamento do campo das relações territorializadas da modernidade, ou seja, o estado-nação; promovendo o contacto global instantâneo e colocando o sujeito moderno numa relação em rede.

Para Poster, a cultura ocidental tende a tornar invisível o papel mediador dos meios de comunicação, não levando em conta que as maquinas não são apenas transmissoras, mas participam activamente na produção de formas diferenciadas de cultura: do sujeito autónomo e racional da era da imprensa, ao sujeito passivo ou em busca dos 15 segundos de fama na era da televisão, ao sujeito criado na segunda era dos media. 

Se os media são eles mesmos produtores de cultura, então a Internet è igualmente: um meio que tende a complexificar os objectos culturais, através da possibilidade de copia ilimitada , um espaço que não corresponde ao do estado-nação e potenciadora de novos tipos de controle e vigilância, mas também de oportunidades para que cada um de nos possa de uma nova forma realizar escolhas, interagir com outros espaços e pessoas e formar novos sujeitos - e assim continuar a transformação social que e a constante da historia do Homem.

Este conjunto de transformações ocorre a par da procura do alargamento de mercados e do incentivo ao acesso promovido pelos Estados. Mas essa é uma produção essencialmente legislativa ou de apoios financeiros que não parece capaz de fugir à discussão sobre se a Internet deverá ser um sistema similar ao do telefone ou ao da televisão. Ora privilegiando, no caso da abordagem na óptica do telefone, a noção de acesso universal ou na esteira da televisão optando pela visão de serviço público, enaltecendo a possibilidade de criação de espaços de expressão e produção de conteúdos diversificados que espelhem a diversidade do todo que partilha o espaço do estado-nação.

Parece pois que o estado e os seus agentes, embora incorporando um discurso sobre a novidade e a transformação social promovidas pelas tecnologias de informação e comunicação, não conseguem percepcionar a amplitude e as esferas centrais de mudança.

Depois desta incursão pelo discurso e a acção dos agentes políticos sobre os impactos das tecnologias de informação e comunicação, a proposta que gostaria de deixar para reflexão é a de que a acção dos dirigentes políticos é comandada pela incorporação de um discurso, mas que esse é um discurso inconsequente, pois o seu potencial transformador é limitado. Trata-se de uma apropriação sem prática, e sem esta não será possível aos agentes políticos perceberem as transformações ao nível das identidades.

Para que o acesso ao conhecimento resulte numa reflexividade sobre a nossa própria forma de encarar o mundo, e consequentemente permita a sua transformação, é necessário participar na primeira pessoa. Só através da prática e da partilha desse mundo da comunicação e informação é que se podem percepcionar os alcances da tecnologia e os limites da sua utilização. Só assim se pode desenvolver um pensamento crítico partilhado por governantes e eleitores e recusar a importação de discursos sejam eles optimistas ou pessimistas, mas sem relação com a realidade.

Só pela prática e pela partilha do meio de comunicação se poderá discutir que progresso se pretende, questionar as empresas, o estado e os indivíduos sobre que papel têm as tecnologias de informação na construção das nossas sociedades, e recusar um falso ponto de partida que poderá fazer-nos comprar aparelhos e consumir informação, mas que no fim nos deixa com um gosto a vazio, confundindo o instrumento com a realização da obra. Como Paulo Portas e António Guterres demonstraram, em directo e na televisão com o caso da pergunta sobre o que é o "@" e a sua incapacidade de resposta, existe um longo caminho a trilhar.

Como podem os agentes políticos perceber as transformações se não têm a prática da utilização das tecnologias digitais e portanto são incapazes de perceber as mudanças que ocorrem ao nível das identidades nacionais e pessoais , ou a crítica aos modelos capitalistas de propriedade intelectual que a cópia ilegal de software e os novos movimentos sociais tecnológicos, como no caso do Linux, podem estar a promover?

Gostaria de terminar relembrando um texto de Bertolt Brecht que, na década de 30, havia visto na rádio o potencial de libertação e de expressão que hoje concebemos só existir na Internet e que escrevia em 1953, a propósito da repressão exercida pelo regime comunista sobre o levantamento popular de Berlim-Leste:

Após a insurreição de 17 de junho
O Secretário da União de Escritores
Fez distribuir panfletos na Alameda Estaline
Em que se lia que, por culpa sua,
O povo perdeu a confiança do governo
E só à custa de esforços redobrados
Poderá recuperá-la. Mas não seria
Mais simples para o Governo 
Dissolver o povo
E eleger outro?


Parafraseando Brecht, não seria mais conveniente para todos que, a par da discussão do acesso da população à Internet, se discutisse o acesso daqueles que fazem da política ocupação ou gosto, dos deputados, governo e demais eleitos?

"À sombra da comunicação e informação" é o título deste texto; ele é apropriado pois representa essa espécie de rendição face ao discurso tecno-económico por parte dos agentes políticos, mas também por muitos de nós, que nos deixamos seduzir pelas possibilidades e que, nessa sedução, confundimos o fim com o instrumento. Nós que perspectivamos o objectivo de um mundo melhor mas que olhamos esse mundo recorrendo apenas à mediação da tecnologia, sem nos apercebermos da sua influência sobre o olhar, e que assim tendemos a procurar a mudança na direcção errada, a confundir efeitos com causas, a olhar a comunicação e o acesso à informação como as novas utopias que tudo transformarão, sem perguntar: mudar, mas...o quê e como?


Bibliografia:

Mark Poster, A Segunda Era dos Media, Celta, Oeiras, 1999.
Anthony Giddens, As consequências da Modernidade, Celta,Oeiras,1995.
Jean Baudrillard, Radical Thought, Techsyl, <
http://www.hnet.uci.edu/mposter/syllabi/readings/radical>,(Novembro 1999)
Bertolt Brecht, Bertolt Brecht-Poesia, Textos,Teatro, Edições Dinossauro, Lisboa, 1999.
Enki Bilal, Visione di Fine Milenio, Hazard Edizione, Milano, 1999.
Kevin Robins, Times of the technoculture, Routledge, London, 1999.

* Docente na área das tecnologias de informação e comunicação no ISCTE
gustavo.cardoso@iscte.pt
http://www.cav.iscte.pt/~gustavo

Publicado na Revista online NON! em Nov.99