Os Portais do Internet gatekeeping. (*)

 

Gustavo Cardoso, ISCTE

Abril de 2000

 

Num artigo intitulado Sulla Stampa publicado por Umberto Eco[1], em 1995 aquando de uma série de debates no senado italiano sobre a imprensa, aquele autor defende que na esfera da informação os anos 60 e 70 foram essencialmente caracterizados por dois tipos de debate: i) a diferença entre notícia e comentário e consequentemente a questão da objectividade e a par desta a imprensa enquanto instrumento do poder em função da posse por grupos económicos e influência dos partidos sobre a orientação política da imprensa. ii) e uma segunda esfera de debate que incidia em torno da relação entre jornais diários, semanários, rádio e televisão e a forma como a notícia tinha origem num e era ou não aprofundada no seguinte, ou seja, quem dominava a agenda noticiosa.

Serão os “velhos temas” enunciados por Umberto Eco igualmente actuais para o questionamento da Internet? Julgo que a resposta terá que ser que sim. Questões como a objectividade da informação, a posse dos meios de difusão (sejam eles portais ou páginas) e a influência dessa posse na recepção da informação ganham uma nova dimensão quando olhadas já não na dimensão dos 500 canais globais, da rádio que vai ao fundo do Mundo/Rua ou dos semanários e diários de referência mas sim à dimensão dos 800 milhões de páginas e da dezena de Portais nacionais e globais que contribuem para a construção das nossas representação da Internet enquanto espaço de Filtros, Montras e Notícias.

A questão da qualidade e quantidade de informação e da forma como lidar com ela são o ponto de partida para perceber que nem tudo se joga na questão do acesso às novas tecnologias de comunicação e informação e que para além da destreza na utilização da informática, o pensamento crítico e a dedução são ferramentas fundamentais para  as diversas dimensões da interacção social na sociedade em rede.

No princípio do novo século uma das linhas de questionamento que o surgimento da Internet pode promover gira em torno da quantidade de informação disponível. Lawrence e Giles[2] estimam que  a Internet albergasse  em 1999 cerca de 800 milhões de páginas distribuídas por 3 milhões de servidores, acessíveis a partir dos cerca de 4.3 Biliões[3] de endereços Internet existentes. Lawrence e Giles estimam igualmente que cerca de 88% da informação disponível seja de caracter “comercial” seguido de 6% de informação educativa/científica e de cerca de 2% de informação pornográfica.

A passagem de um universo de meios finito, o dos mass media, para um de possibilidades alargadas de criação de novos meios, coloca não só questões quanto a qual deverá ser o posicionamento dos mass media face à Internet mas também sobre como nos orientarmos num espaço que se assemelha mais à Biblioteca de Babel[4] de Jorge Luís Borges, um local onde se procura um princípio orientador, do que a qualquer uma das bibliotecas municipais ou universitárias a que tenhamos acesso.

Como procurar então informação na Internet e como nos orientarmos face ao extenso leque de opções disponíveis ?

Se a perspectiva utilitária e de entre ajuda presidiu ao surgimento dos primeiros serviços de busca na Internet pré-massificada, a perspectiva comercial tomou em breve conta da maioria destes serviços, como exemplificam os casos dos directórios Yahoo! e Sapo ambos criados no meio universitário e mais tarde tornados elementos centrais na chamada nova economia com aquisições ou valorizações bolsistas de grande dimensão financeira.

O que terá presidido ao interesse comercial face aos serviços de busca terá sido a mesma percepção que levou a criação destes mecanismos: a necessidade de orientação na Internet. Foi certamente essa percepção que levou a que através de uma lógica de estratégia comercial de consolidação de presença no mercado da Internet e da necessidade de fidelizar um produto genérico, o acesso à Internet (passível de apenas ser diferenciado em custo e qualidade de acesso), tenham surgido os portais.

Os Portais, ao surgirem não são já apenas motores ou directórios de informação, tem um valor comercial pelo facto de levarem até lá um extenso número de utilizadores, pelo que o comércio, a par de novos serviços e notícias, se vem juntar às suas funcionalidades iniciais.

Mas não bastará percepcionar o papel central dos Portais para a gestão da informação, importa igualmente ter presente que os mesmos actuam como gatekeepers, não tanto na perspectiva tradicional de utilização do termo, mais referenciada face à imprensa em geral, mas como filtros quer positivos quer negativos, ou seja, a pesquisa realizada por estes é feita com base em opções de valorização ou desvalorização de ocorrências. Isto é, por um lado como salientam Lawrence e Giles os seis maiores motores de pesquisa[5] conjugados apenas referenciam cerca de  60% do total da informação disponível na parte pública da web, ou seja todas aquelas páginas que não estejam protegidas por códigos de acesso ou por outro tipo de mecanismos de selecção.

À percepção de que 40% da informação pública produzida não é passível de ser indexada por opção ou limitação tecnológica dos motores vem juntar-se a questão de existir uma forte correlação entre as páginas que possuem referências entre si e a probabilidade de as mesmas serem indexadas. Ou seja, quanto maior número de links existir a apontar para uma determinada página, maiores as probabilidades de a mesma surgir referenciada num motor de busca.

Por último, importa igualmente referir que muitos dos próprios motores de pesquisa reajustam os seus resultados hierarquicamente em função das opções mais escolhidas nas utilizações anteriores.

As questões em torno daquilo a que optamos por designar por Internet gatekeeping afiguram-se assim centrais para a problematização da comunicação na Internet, pois quanto maior a quantidade de informação maior a necessidade de auxiliares de pesquisa. O que nos leva a uma segunda dimensão, a da filtragem, ou se preferirmos a da qualidade da informação.

No artigo De Guttenberg à Internet[6], Eco chama-nos à atenção para a questão de como procurar informação, que instrumentos utilizar na sua filtragem e como avaliar a qualidade da mesma. Embora bastante crítico quanto à capacidade dos instrumentos informáticos em possibilitar uma efectiva pesquisa da informação, Umberto Eco dá azo a sua ainda maior dúvida quanto à aplicabilidade das estratégias de ”dizimação da informação” perante um Mundo de informação diferenciada, onde o conhecimento directo de cada indivíduo e a análise lógica face a multiplicidade de assuntos não é humanamente possível. Consequentemente a capacidade de gestão das estratégias de validação da informação por parte dos utilizadores é substancialmente reduzida quando comparada com a utilização de outros meios de acesso à informação como a televisão.

A proposta que aqui gostava de deixar é a de que as teorias da recepção desenvolvidas no quadro dos estudos sobre a televisão são valiosos pontos de partida para o estudo de uma comunicação que, apesar de interactiva e incluindo uma dimensão de produção/consumo de informação, retoma no essencial muitos dos traços desenvolvidos nos trabalhos publicados sobre as teorias da recepção de Greg Philo, um dos membros do Glasgow Media Group.

A dimensão da pesquisa é como já vimos fundamental para a percepção dos processos de Internet Gatekeeping mas como já vimos as potencialidades do software não nos traduzem a totalidade da dimensão da filtragem sendo igualmente fundamental perspectivar como o posicionamento dos actores sociais face à recepção da informação age por forma a selecciona-la ou rejeita-la.

Greg Philo[1] aponta o papel da experiência directa, do uso da lógica, dos sistemas de valores individuais/grupais e da credibilidade da fonte como as dimensões onde se joga a aceitação ou não da mensagem:

 

a)      O papel da  experiência: a maior ou menor experiência directa com a realidade a que reporta a mensagem. Quando existe contacto directo a informação é por norma mais vezes questionada do que quando não há conhecimento directo.

b)      O uso da lógica: a percepção de uma mensagem anterior tomada como pouco credível ou uma contradição pode desencadear uma rejeição da mensagem.

c)      Sistemas de valores de grupo/individuais: caso uma mensagem se apresente como distante face às suas convicções ela pode igualmente ser mais facilmente rejeitada.

d)      Credibilidade da fonte: o utilizador assume-se igualmente enquanto credibilizador através da acreditação que confere às fontes de informação ao longo da sua relação e através da comunicação que estabelece com as suas redes de sociabilidade.

 

Qualquer uma destas dimensões nos pode ajudar a percepcionar que factores podem influir na filtragem que o utilizador faz face à informação com  que contacta na Internet. No entanto, se na generalidade elas podem ser aplicadas à Internet continua a existir uma questão não resolvida que é o facto de as teorias da recepção se vocacionarem para um dado tipo de informação que é o presente nos media de massa. Ou seja, um tipo de informação que tende a apresentar muitas vezes um caracter generalista, para um utilizador habituado a interagir com um número escasso de alternativas, na partilha dessas mesmas fontes com outros consumidores de informação e num sistema de media possuidor de regulação e de contraordenações.

Ora a Internet pela suas próprias características, apresenta a informação de caracter mais segmentado e menos generalista ao mesmo tempo que a qualidade não é assegurada por nenhuma entidade em particular sendo igualmente caracterizada por um o sistema de regulação extremamente ténue. Estas características transferem assim para o utilizador algumas das responsabilidades de validação da informação que estavam presentes no sistema dos mass media na dependência do estado ou na de empresas com responsabilidade pública.

Nos mass media a credibilização muitas vezes antecede ou acompanha a par e passo o evento informativo ou de entretenimento com o qual o utilizador contacta, mas no caso da Internet o processo tende a ser diferente. A credibilização e aceitação da informação é construída pelo utilizador a medida que interage com a informação. Se quisermos colocar uma hierarquização nas dimensões da recepção propostas por Greg Philo podemos sugerir que o papel da “experiência directa” e dos “sistemas de valores individuais/grupais” é porventura aquele que mais facilmente poderá ser utilizado pois são aqueles que são transportados para a realidade da Internet e que já se encontram formados a partir do seu exterior, enquanto o “uso da lógica” e da “credibilidade da fonte” se tornam menos influenciadores pois a possibilidade de construir ao longo do tempo uma relação causal entre factos afigura-se menos plausível, pois a busca de informação não é feita com base nas mesmas fontes, bem como a construção da credibilidade das fontes na Internet remete para redes de sociabilidade elas próprias inerentes à Internet ou à avaliação prévia por alguma outra entidade exterior à Internet  (as quais no caso de assuntos especializados tendem a ser diminutas).

Por outro lado, os mecanismos de validação que poderiam ter igualmente sido centrados em torno dos portais encontram-se ausentes pois mesmo quando algum utilizador fornece uma URL para registo, num directório ou motor de pesquisa, na maioria dos casos a única validação que é feita é de caracter temático e não de veracidade, razoabilidade ou suporte da informação aí contida.

O questionamento  em torno da qualidade da informação parece então seguir duas linhas complementares, por um lado se a validação deverá caber a entidades como os portais ou assumir um estatuto de regulação similar aos dos mass media (caso a tecnologia e a vontade da comunidade internacional o permita) ou se a Internet deverá continuar um espaço de regulação reduzida. Numa segunda linha de análise se os critérios de validação devem continuar a advir da experiência obtida ao longo do tempo na utilização da Internet ou se a par da chamada educação para os media se abre uma nova esfera de atenção para a educação: a da validação da Informação na Internet.

No essencial a questão que se coloca face à qualidade da informação na Internet é a de percebermos que também aqui, como face à televisão, existirão diversos factores que influenciam o modo como a mensagem é recebida e interpretada pelos utilizadores e se como tal é ou não rejeitada.

Como Castells[7] refere a sociedade em rede não terá obrigatóriamente como característica um modelo de produção de conhecimento e de igualdade de capacidades de lidar com a informação, ela poderá bem ser a sociedade daqueles que se encontram excluídos do acesso à informação a par da sociedade daqueles que são submergidos pela incapacidade de lidar com a quantidade e a selecção e só por último será uma sociedade de fruição plena para aqueles que detiverem a capacidade de deter os mecanismos de selecção, tratamento da informação e produção de conhecimento.

É através do seu Internet Service Provider que a partir de casa ou do trabalho o utilizador acede à Internet e o portal é o ponto de partida que por defeito lhe é oferecido ou que por comodidade escolhe para orientação e pesquisa, é o igualmente enquanto local de procura e prestação de serviços e notícias. 

Os Portais são o retrato do modelo de interface, ou Internet Gatekeeping, que o utilizador em geral possuí face à Internet. Da sua análise e compreensão da sua estrutura comunicativa e informativa estará muito da nossa percepção quanto à evolução do sistema dos media, ou sistema multimedia, e da própria sociedade na sua dimensão comunicativa.

 

(*) Embora este texto retome na sua essência a comunicação apresentada no congresso da APS em Coimbra em 19 de Abril de 2000, no quadro do projecto de investigação Ciberfaces (http://www.cav.iscte.pt), o seu  conteúdo expressa apenas a opinião pessoal do seu autor.

 

Gustavo Cardoso

Docente do ISCTE na área da Sociologia da Informação e Comunicação

http://www.cav.iscte.pt/~gustavo



[1] Philo, Greg ed., A Sociology of media power: key issues in audience reception research,  Message Received, col. Glasgow Media Group, Longman, 1999.



[1] Eco, Umberto, Sulla Stampa, Cinque scritti morali, Passaggi Bompiani, Milano, 1997.

[2] Lawrence et Giles, Acessibility of information on the web, Nature, Vol 40, 8 Julho 1999.

[3] O número total de IP’s não corresponde às utilizações uma vez que existem alguns não assigandos ou não utilizados.

[4] Jorge Luís Borge, Ficções, Teorema, lisboa, 1998.

[5] motores de pesquisa referidos são: Alta Vista; Excite; Hotbot; Infoseek; Lycos; Northern Light.

 

[7]Castells, Manuel, The rise of the networking society, Blackwell, London, 1996.