As causas das questões ou o Estado à beira da sociedade de informação

Gustavo Cardoso, ISCTE

1998

 

1- Uma nova área de intervenção política e análise social

Lionel Jospin1 afirma ser imperiosa a entrada em força da França na sociedade de informação e assina um acordo com a multinacional IBM para a reconversão do sistema Minitel para a compatibilidade com a internet e o protocolo TCP/IP; Al Gore promove através do seu cargo de vice-presidente do Governo Federal Norte Americano a internet2 como o passaporte para o continuado desenvolvimento económico e tecnológico dos EUA; Mariano Gago através da Missão para a Sociedade de informação implementa medidas tendentes à realização de um Livro Verde sobre a sociedade de informação e dota as escolas dos diversos ciclos com ligação à internet.

Múltiplos são os exemplos da importância fundamental da actividade governamental na área de promoção da utilização e desenvolvimento das tecnologias de informação, como veremos no próximo capítulo, e é precisamente esta multiplicidade de actuações por parte do estado ou financiadas por este, que tem levado a que desde os anos 60 um conjunto diversificado de investigadores venham a desenvolver estudos em torno destas matérias, as quais Frank Webster denominou "teorias da sociedade de informação".3

As chamadas teorias da sociedade de informação partilham a ideia de que existe uma mudança em curso nas sociedades contemporâneas e que a mesma se deve ao papel preponderante da informação e comunicação.

No entanto, embora partilhando essa ideia, Webster defende que as opiniões dos investigadores tendem a repartir-se em função do grau e alcance das mudanças e da sua percepção do conceito de "informação".

Do mesmo modo que Umberto Eco4 para descrever as posições face aos efeitos da cultura de massas utiliza as definições de "apocalíptico" e "integrado", para designar respectivamente uma visão de radicalização de posições ou de integração no contexto vigente, a mesma dualidade é passível de ser encontrada nas abordagens em torno das teorias da sociedade de informação.

Por um lado encontramos os "apocalípticos" ou seja aqueles que defendem estarmos a viver uma situação de mudança radical de paradigmas nos mais diversos sectores da sociedade e que, portanto, é possível falar do surgimento de um novo tipo de sociedade, a sociedade de informação enquanto um novo estágio da evolução social.

Por outro lado, encontramos aqueles a que poderemos chamar de "integrados", os quais tal como os primeiros reconhecem a importância actual da informação e comunicação, mas encaram com reservas o surgimento de uma sociedade de informação. As transformações que ocorrem não representam rupturas com os modos de organização social existentes, são sim evoluções dentro de um quadro previamente estabelecido.

Segundo Webster, entre aqueles a que escolhemos denominar de "apocalípticos", podemos salientar um conjunto de autores que nas suas formulações teóricas protagonizam a emergência de um novo tipo de sociedade, a sociedade de informação, que emerge assim do anterior modelo, eles são: Daniel Bell (pós-industrialismo); Mark Poster (pós-modernismo); Michael Piore e Charles Sabel (especialização flexível); Manuel Castells (o modo informacional de desenvolvimento).

Entre os "integrados", ou seja aqueles que colocam o ênfase na continuidade, podemos apresentar as seguintes abordagens e autores: Herbert Schiller (neo-marxista); Alain Lipietz (teoria da regulação); David Harvey (acumulação flexível); Anthonny Giddens e David Lyon (estado, nação e violência); Jurgen Habermas, Nicholas Garnham (a esfera pública).

Continuando a sua tentativa de catalogação das diversas teorias formuladas em torno da importância da informação e comunicação na transformação social, Webster parte da análise dos discursos produzidos em torno do conceito de informação para distinguir, analíticamente, cinco definições de sociedade de informação, denominando-as: tecnológica; económica; ocupacional; espacial; cultural.

A visão tecnológica, partilhada por autores como Tofler e muito presente nos discursos dos media, é a de que os avanços nas áreas do processamento de informação, armazenamento, transmissão e convergência entre telecomunicações e informática levarão à sua directa aplicação em todos os campos da actividade social e a consequentes transformações. Trata-se de uma abordagem que se limita à descrição das inovações tecnológicas e à consequente previsão das suas possíveis implicações na sociedade. A ideia de sociedade de informação surge assim apenas ligada à constatação da inovação tecnológica e à quantificação da penetração destas tecnologias na sociedade.

Uma abordagem económica da sociedade de informação é geralmente realizada em torno dos conceitos da "economia da informação", ou seja, a disciplina económica que dirige os seus estudos a informação e consequentemente para a sua importância na criação de riqueza e desenvolvimento nas nossas sociedades. Uma das propostas de abordagem económica da sociedade de informação mais conhecidas é a de Porat5 na sua reformulação da categorização tradicional dos sectores de produção (industrial, serviços e agricultura) em função daquilo que na sua visão era o cada vez maior contributo dos sectores da sociedade, directa e indirectamente ligados à produção de informação para a criação de riqueza. Porat, propôs a criação de uma catalogação das actividades em função da existência de três sectores: um sector primário de informação, um sector secundário de informação e um sector não produtor de informação.

Pensar a sociedade de informação do ponto de vista ocupacional, tem geralmente implicita a visão de que será possível falar daquele tipo de sociedade quando o número de trabalhadores de informação suplantar o número de pessoas trabalhando em actividades não relacionadas com a mesma. Robert Reich,6 ex-secretário de estado do trabalho na Administração Clinton, apresenta na sua obra uma análise das transformações ocorridas na sociedade norte americana nas últimas décadas de onde ressalta uma visão do papel crescente da percentagem de trabalhadores, aos quais Reich denomina de "analistas simbólicos". Isto é, todos aqueles em cuja actividade está presente uma componente maioritária de análise e tratamento de informação da qual depende o sucesso da função desempenhada, como seja o trabalho desenvolvido por arquitectos, gestores, advogados, consultores, engenheiros, sociólogos, médicos, etc..

A ideia de sociedade de informação fundamentada numa análise espacial decorre do estudo das chamadas redes de informação e dos seus impactos na organização do tempo e do espaço. Dois autores que abordaram de modos complementares estas questões são Anthony Giddens7 e Manuel Castells.8 O primeiro chama-nos a atenção para a questão da compressão do tempo e espaço e das suas implicações para a vida em sociedade, Castells apresenta-nos a dualidade existente entre o espaço dos fluxos e o espaço dos lugares e as disparidades em termos de poder político e económico que essa situação implica.

Por último, a concepção de uma sociedade de informação baseada numa perspectiva cultural baseia-se na análise da quantidade de informação que hoje em dia é colocada à nossa disposição, através dos mais diversos media e cujas implicações estão presentes na nossa sociedade das mais diversas formas. Esta é a área de eleição para o estudo da comunicação e das implicações dos media na nossa sociedade e da nossa relação com eles. Estamos no campo da análise da implicação da qualidade, quantidade, difusão e interactividade da informação, este é o campo de estudo onde se desenvolvem inúmeras análises, desde a perspectiva da reflexividade da informação de Giddens,9 às questões do controle e vigilância de Foucault e Lyon até Habermas e à esfera pública.

Neste artigo não pretendemos analisar em profundidade a obra dos diversos autores atrás enunciados, nem em extensão a divisão analítica proposta por Webster, mas considera-se pertinente uma introdução que permita sustentar a lógica presente na análise do papel do estado na construção da sociedade de informação. Ou seja, o trabalho desenvolvido por Webster em torno das diversas abordagens das chamadas "teorias da sociedade de informação" tem o mérito de nos oferecer um quadro comparativo de análise, mas peca por uma excessiva estanquicidade dividindo o quadro teórico de análise do papel da informação, nas sociedades contemporâneas, em duas grandes famílias de pensamento opostas, "apocalípticos" e "integrados".

Na sua obra Information Society Theories, Webster afirma parecer-lhe ser mais correcto pensar as explicações para o papel da informação nas nossas sociedades, de um ponto de vista da continuidade histórica, pois considera não ser correcto falar na existência de uma sociedade de informação. Na sua opinião poderemos falar da existência de certos tipos de informação para fins definidos, para certos grupos, com dados tipos de interesses e que estão a desenvolver-se, no entanto tal não é suficiente para falarmos da existência de uma sociedade de informação.

Na perspectiva que preside a este artigo, a qual já teve oportunidade de ser desenvolvida em Para uma Sociologia do Ciberespaço,10 encontram-se pontos de contacto com o que Webster afirma, mas ao mesmo tempo surgem discordâncias na sua visão sobre as mudanças que ocorrem e o grau da sua amplitude.

Embora concordando com Webster quanto à pouca credibilidade de falarmos hoje sobre a existência de uma ou várias sociedades de informação, na perspectiva de ruptura e surgimento de um novo modelo de sociedade, discorda-se da sua visão de evolução na continuidade. Pois, assistimos hoje ao surgimento de sinais de transformação em diferentes áreas da sociedade. Sinais esses que não se limitam a mudanças pontuais, mas cujo impacto é significativo ao ponto de representarem transformações substanciais em sectores estratégicos, exercendo influência sob o todo do tecido social.

Assim, tal como Giddens afirma no seu livro As Consequências da Modernidade, encontramo-nos perante a mudança de alguns dos eixos que caracterizaram a modernidade, nomeadamente ao nível económico, naquilo que Castells denomina de passagem de um modo de desenvolvimento industrial para um modo de desenvolvimento informacional.

Esta mudança que se desenrola sobre dois dos eixos da modernidade -- o industrialismo e o capitalismo -- não pode deixar de ter influência sobre os demais, e portanto, ao contrário do que Webster defende, julgo existirem mudanças suficientemente radicais para merecerem a nossa atenção, mudanças essas que se desenrolam a par da evolução na continuidade de outras áreas da sociedade.

A visão que este artigo oferece é a de uma crescente radicalização em curso em alguns dos eixos da modernidade, cuja origem se encontra presente no papel que a informação e as redes de difusão daquela têm nas nossas sociedades, e que tenderão a exercer a sua influência de forma desigual sobre as restantes partes da sociedade.

A radicalização da modernidade a que nos referimos, embora ainda não permita falar na criação ou construção de uma sociedade de informação nos moldes em que muitos dos autores que tentam quantificar as mudanças em curso gostariam, permite-nos falar sem dúvida de uma "era da informação".

 

2- A informação: modos de desenvolvimento e produção

Se aceitarmos falar em "era da informação" teremos igualmente de nos interrogar sobre quais as forças motrizes que estarão a impulsionar as mudanças em curso na sociedade e que, como tal, condicionarão ou incentivarão a transformação de certas áreas em detrimento de outras, bem como dos papeis que cabem ao estado e aos restantes actores sociais.

Em The Rise of the Network Society Manuel Castells afirma que as nossas sociedades se encontram cada vez mais estruturadas à volta de uma oposição bipolar entre aquilo que ele designa por Net e Self. Estes dois centros de gravidade formam o seu eixo de análise.

Tal oposição bipolar resulta do que Castells denomina de "revolução das tecnologias de informação" e que no seu entender é a força por detrás das grandes transformações no final do milénio. No seu entender devemos tomar em atenção as inovações que as tecnologias de informação colocaram, nas últimas décadas, à nossa disposição pois a sua utilização está a transformar os nossos modos de vida e a sociedade.

Esta centralidade em torno da análise das tecnologias de informação não quer dizer que Castells defenda a ideia de que novas formas e processos sociais surjam como consequências directas da mudança tecnológica. No seu entender a tecnologia não determina a sociedade, nem a sociedade determina na totalidade qual a evolução tecnológica.

O dilema do determinismo tecnológico é para Castells provavelmente um falso problema, uma vez que para ele tecnologia é sociedade e a sociedade não pode ser percebida ou representada sem as suas ferramentas tecnológicas.

Como Castells salienta, a dimensão social da revolução tecnológica em curso parece levar em conta a "lei" proposta por Melvin Kranzberg11 e que é a seguinte : "A tecnologia não é boa, nem má, nem é também neutra.". É pois, uma força a ter em atenção, numa perspectiva de inquérito e não de fatalidade, na análise da complicada matriz de interacção entre as forças tecnológicas desenvolvidas pela nossa espécie e nós próprios.

Nesta análise as tecnologias de informação compreenderiam assim o conjunto de tecnologias desenvolvidas nas áreas da micro-electrónica, computadores (software e hardware), telecomunicações/difusão e ópto-electrónica em conjugação com a engenharia genética e as suas crescentes capacidades de manipulação de informação com origem nos genomas.

O modelo teórico subjacente a esta interacção entre relações sociais e tecnologia é representado pela dialéctica entre modos de produção e modos de desenvolvimento tendo como base o princípio de que as sociedades se encontram organizadas em torno de processos humanos, estruturadas num dado momento histórico através de relações de produção,12 experiência13 e poder.14

Os modos de produção são as relações sociais inerentes ao processo produtivo, como por exemplo as relações entre grupos e classes e a divisão do capital e trabalho. Os modos de produção são assim definidos pelo conjunto de relações estabelecidas com o objectivo de criar excedentes e regular a sua distribuição.

Desde a revolução industrial que assistimos à luta pela predominância entre dois modos de produção, o estatal e o capitalista, tendo a oposição entre os dois resultado na vitória do último e a sua legitimação enquanto modo de produção prevalecente e caracterizador de um dos eixos da modernidade.

Os modos de desenvolvimento, são por sua vez as premissas tecnológicas através das quais o trabalho age sobre a matéria por forma a gerar o produto.

As relações sociais de produção, ao definir os modos de produção e as relações técnicas de produção ao definirem os modos de desenvolvimento, não se sobrepõem mas interagem. São precisamente essas interacções de carácter complexo que, segundo Castells, constituem os elementos da dinâmica nas nossas sociedades.

Manuel Castells, refere que a evolução do modo de produção capitalista é fundamentalmente desencadeada a partir da pressão do capital privado para a maximização dos lucros. Já os modos de desenvolvimento tendem a evoluir não com base numa resposta aos pedidos vindos dos modos de produção ou de outras instâncias da sociedade, mas sim da interacção entre a descoberta científico/tecnológica e a sua capacidade de integração das mesmas nos processos organizativos e de gestão produtiva.

A lógica inerente à interacção, que originou e impulsiona o actual modo de desenvolvimento informacional, é definida por cinco características que, em conjunto, formam o "paradigma das tecnologias de informação":

·         a informação é a matéria prima bem como o produto final. As novas tecnologias agem sobre a informação e não sobre a matéria física;

·         porque a informação é parte integrante de todas as actividades humanas, essas tecnologias são transversais a todas as esferas da sociedade ;

·         as tecnologias de informação promovem uma lógica de rede, pois permitem-nos lidar com a complexidade e a incerteza. A tecnologia actualmente existente permite que a topologia de rede possa ser implementada em todos os tipos de processos e organizações;

·         a flexibilidade, isto porque não só a maioria dos processos é reversível mas também as organizações e as instituições podem ser reconfiguradas e modificadas, física e funcionalmente, ao utilizarem os componentes das tecnologias de informação;

·         as tecnologias específicas tendem a convergir para sistemas de elevada integração. A convergência das telecomunicações, informática e televisão, é a base dos novos sistemas de informação.15

Segundo Castells o processo de evolução deste modo de desenvolvimento decorre em três estágios diferenciados: a automatização das tarefas, através da racionalização dos processos existentes; a experimentação dos usos, através da criação de novos processos de realização das mesmas tarefas; e por último a reconfiguração das aplicações, através da criação de novos processos e novas tarefas.

Considerando a economia como a grande força mobilizadora das transformações sociais, Castells traça um quadro caracterizador da economia global, em que lhe atribuí características de uma cada vez maior interdependência, assimetrias, regionalização, um aumento na diversificação dentro de cada região, uma selectividade na inclusão dos intervenientes e ainda uma segmentação exclusionária tendo como resultado dessas características a criação de uma geometria variável que tende a dissolver a geografia histórica e económica tradicionalmente inerentes às diversas áreas participantes neste modelo.

Neste quadro caracterizador da economia global, encontramos um factor comum de ligação na diversidade regional e sectorial e que é a incorporação do novo modo de desenvolvimento informacional nos modos de produção. O resultado mais visível desta interacção é aquilo que Castells denomina de "espaço dos fluxos", ou seja, o espaço integrado das redes globais. Este "espaço dos fluxos" é assim constituído pelo conjunto de redes que constituem o ciberespaço16: as redes privadas, as intranets e extranets das empresas, as redes semi-públicas como o Multibanco, as redes fechadas e sistemas proprietários como as redes financeiras e as redes públicas de telecomunicações, o Minitel e a internet.

Para Castells é na relação entre as interacções que ocorrem no "espaço dos fluxos" e aquelas que ocorrem no "espaço dos lugares" que se estão a constituir novas formas de organização social. O surgimento dessas novas formas de organização social resulta assim de dois tipos de movimentos, por um lado pela independência entre esses dois espaços e ao mesmo tempo pela interdepêndencia que se forma entre eles.

O "espaço dos fluxos" é descrito como sendo composto por três níveis, que são respectivamente:

·         técnico, composto pelos circuitos de impulsos electrónicos (micro-electrónica, telecomunicações e hardware em geral) que constituem a infraestructura tecnológica das redes;

·         geográfico, isto é, a topologia dos espaços formados pelos "nós" e hubs17 da rede; os hubs são locais de interligação, estabelecendo a ligação da rede a locais específicos, com condições sociais e culturais específicas; os "nós" são por sua vez, as localizações estratégicas em torno das quais se criam uma série de actividades e organizações de carácter local mas que aproveitam as possibilidades oferecidas pela rede de actuar globalmente;

·         a social, ou seja a organização espacial da elite gestora da utilização das redes.

O espaço dos fluxos é assim o fundamento daquilo que Castells considera ser a lógica inerente às novas formas de organização social, a rede. Esta é aqui entendida não apenas na sua visão tecnológica, mas também na sua formulação social. Recorrendo aos exemplos de Castells, as redes estão presentes quando olhamos para os mercados de capitais, para os conselhos de ministros da União Europeia, para as redes criminosas e de tráfico ou para os fluxos financeiros que adquirem conglomerados mediáticos os quais por sua vez influenciam o poder político.

A sociedade em rede será assim não uma estrutura futura, mas aquela sociedade em que hoje vivemos. Ela é a estrutura social da "era da informação", pois tudo aquilo que gera poder, cria dinheiro ou informação acontece através da troca de fluxos em redes.

Partilhando a visão de Anthony Giddens sobre a alteração dos nossos conceitos de tempo e espaço, Castells chama a atenção para o facto de, no espaço dos fluxos, o tempo e o espaço apresentarem as características que ele denomina de timeless time e placeless space. Ou seja, o espaço dos fluxos dissolve a nossa concepção tradicional de tempo, ao quebrar a sua ordem sequencial de eventos através da possibilidade de tornar quase simultâneos -- o quase tempo real -- esses mesmos eventos. Das causas às consequências não existe no espaço dos fluxos uma visualização sequencial, mas sim a percepção de uma quase simultaneidade fruto, em muito, da possibilidade de várias pessoas interagirem em simultâneo sobre um mesmo evento.

De uma forma similar, a distância geográfica dissolve-se no espaço dos fluxos. Para Castells, neste espaço existem apenas duas medidas de distância. Numa lógica binária temos a "distância zero" -- dentro da rede -- e a "distância infinita" -- o estar fora da rede.

Desta constatação, Castells, numa tentativa de identificar as dinâmicas existentes entre o espaço dos fluxos e o espaço dos lugares, desenvolve uma teoria em torno do poder na "era da informação".

Enquanto as organizações se encontram localizadas em lugares e as suas componentes humanas e materiais são dependentes desse mesmo espaço, já a lógica organizacional o não é. A lógica organizacional não depende de nenhum espaço físico em particular, ela é sim dependente do espaço de fluxos que caracteriza as redes de informação.

Quanto mais as organizações dependerem, em última análise, dos fluxos e das redes, menos serão influenciadas pelos contextos sociais associados aos seus locais de origem. O que se traduz numa crescente independência entre a lógica organizacional e a lógica societal.

O poder tende a encontrar-se cada vez mais concentrado no espaço dos fluxos, expressando assim a lógica dominante na sociedade em rede. Castells exemplifica esta concentração crescente de poder no espaço dos fluxos recorrendo ao exemplo dos mercados financeiros globais, que têm vindo a transformar-se no evento central da nova economia, a qual destina à economia real um papel de produtora de excedentes monetários para o investimento nos mercados financeiros ou de ponto de aplicação dos ganhos obtidos nesses mesmos mercados.18

Assim, enquanto a lógica social parece moldar-se em torno do espaço dos fluxos, um espaço sem identidade definida, pois é global, culturalmente diversificado e radicalizador dos conceitos de espaço e tempo, as pessoas habitam o espaço dos lugares. As características e consequentemente as mudanças operadas nos modos de desenvolvimento e modos de produção vigentes tendem a influenciar não apenas os eixos económicos, mas também os políticos e sociais.

Como Castells refere em entrevista à revista online Upside,19 a existência deste novo modo de desenvolvimento informacional e a preponderância do espaço de fluxos sobre o espaço dos lugares tem como resultado uma crescente globalização, e embora esta não seja em si um mau fenómeno, pois representa a ideia de que todos podem comunicar com todos, comprar e vender globalmente e assim formar uma comunidade global, na realidade a globalização representa para uma grande parte da humanidade estar a ser-lhe retirado poder político e empobrecimento económico.

Estas pessoas, que habitam no espaço dos lugares e não participam no espaço dos fluxos, não possuem qualquer tipo de controle sobre os investimentos, não possuem a formação educacional necessária e são portanto "ultrapassadas" pelo poder dos fluxos globais de capitais. Não poderão inclusive, negociar com os seus empregadores porque estes possuem os meios para mudar as localizações das suas operações, recorrer ao outsourcing ou fazer vir fornecimentos e trabalhadores de outras localizações.

Esta dualidade, apelidada por Castells de "condição de esquizofrenia estrutural", introduz uma perturbação maciça nas mais diversas culturas ao nível do Globo, provocando crises de identidade nesses espaços definidos geográfica e historicamente.

O interesse de Castells em torno da questão das identidades, ou Self, reside no facto de ele considerar que existe uma correlação entre os vários tipos de identidades dominantes e as instituições sociais que formam a sociedade. Esta correlação leva-o a diferenciar três tipos de identidade:

·         a identidade de legitimação, introduzida pelas instituições dominantes da sociedade como forma de extensão e racionalização do seu domínio sobre os diversos actores sociais, são assim as identidades legitimadoras que tendem a dar forma às sociedades civis;20

·         a identidade de resistência, produzida por aqueles actores que se encontram numa posição ou condição de serem excluídos pela lógica de dominação, a identidade de resistência leva à formação de comunidades como forma de suportar as condições da opressão, esse é o caso dos Zapatistas ou das Milícias norte americanas;

·         a identidade projectada, fruto de movimentos proactivos cujo objectivo é a transformação da sociedade no seu todo e não apenas a criação de condições para a sua sobrevivência face aos actores dominantes; movimentos como o feminista e ambiental cabem nesta concepção de identidade projectada.

Para Castells a "encarnação" da identidade de legitimação nas nossas sociedades contemporâneas, o estado nação,21 encontra-se em perda de poder. Salientando no entanto que embora veja o seu poder diminuído tal não se reflecte directamente na sua capacidade de influência. Esta perda de poder advem da sua perda de soberania, fruto da globalização das actividades económicas estratégicas, dos media, das comunicações e também da globalização do crime e do "policiamento" militar ou para-militar.

O exemplo mais obvio desta perda de soberania pode ser encontrado nos mercados financeiros, os quais nos anos 80 cresceram para além da capacidade de qualquer banco central ou conjunto de bancos centrais -- como no caso da União Europeia -- exercer o seu controlo. O que levou à necessidade de interligar as moedas nacionais, o que implica a coordenação financeira retirando assim espaço de manobra para os governos nacionais formularem a sua política económica independentemente.

Outro aspecto da perda de poder, advém do surgimento de empresas globais as quais gerem os seus interesses em função dos diferenciais de custos dos benefícios sociais praticados pelos diversos estados, escolhendo a sua localização em função de onde ocorrem as situações de maior flexibilidade do mercado de trabalho e os menores salários, impondo assim aos estados limitações na gestão dos benefícios sociais do estado providência, sob pena de perderem investimentos dessas empresas que actuam não numa economia mundo mas sim numa economia global.

Também segundo Castells, ao viver hoje num mundo em turbulência onde o poder já não pode apenas ser medido em função das estruturas físicas, humanas e materiais que uma dada entidade tem à sua disposição, os centros políticos tal como os económicos, vêem o seu poder factual posto em causa ao serem, por vezes, obrigados a negociar com outras forças de menor dimensão mas que actuam em rede. Como no caso dos Zapatistas e do Governo mexicano ou dos grupos ecologistas como o Greenpeace e os Governos dos países mais desenvolvidos.

No entanto o estado nação continua a desempenhar um papel fundamental, pois ele é a única entidade com legitimação e sob a qual podem ser criados os mecanismos multilaterais que permitem enfrentar os problemas de carácter cada vez mais global.

Um exemplo desse papel é, como refere Anthony Giddens,22 a necessidade que os governos terão, mais cedo ou mais tarde, de abordar a regulação dos mercados financeiros globais sob pena de ver a economia global tornar-se cada vez mais em algo semelhante a uma "economia-casino". Regulação essa, que poderia ocorrer através da chamada taxa-tobin23 e do efeito que teria na redução das transacções e na possibilidade de criação de um fundo global para a diminuição das disparidades decorrentes da globalização.

Encontramo-nos perante uma situação onde por um lado o estado é impelido a tomar posições na arena internacional, pois enfrenta problemas globais cuja solução só pode ser encarada na mesma escala, e por outro lado vê a sua credibilidade ao nível interno diminuída devido aos constrangimentos que resultam precisamente das redes de acordos políticos globais e das entidades económicas que actuam no espaço global. As instituições da democracia são assim apanhadas numa "contradição fundamental". Manuel Castells sintetiza essa contradição afirmando que "Quanto mais os estados se direccionam para o comunalismo, menos eficazes se tornam enquanto co-agentes do sistema global de repartição de poder. Quanto mais triunfantes na escala global, menos representam os seus constituintes nacionais.",24 originando assim um cenário de crise da democracia.

Quanto mais o estado nação se retira face aos seus cidadãos, mais aumenta a necessidade de procurar identidades alternativas. Conforme refere Felix Stadler,25 encurralados entre a necessidade de articular identidades diversas e por vezes opostas e a necessidade de agir globalmente, os estados vêem esvaziar-se de sentido e legitimidade a sua acção, perdendo a sua capacidade de exercício de identidade de legitimação.

Embora Castells deposite esperança nas identidades projectadas e nas identidades de resistência, como fonte de surgimento de novas formas de identidade e de democracia, ele também aponta para a necessidade de o estado reformular a sua abordagem face às tecnologias de informação.26

Propõe em primeiro lugar que os estados não tentem legislar no sentido de controlar redes como a internet, pois para além de poder ser considerado um atentado à liberdade de expressão é igualmente uma atitude defensiva não indutora de grandes resultados.

A actuação deverá, pelo contrário, incidir sobre a aprendizagem do enorme potencial que possuem as redes públicas, como a internet, para revitalizar a democracia, promover a participação dos cidadãos e estimular o debate social, recusando a ideia de que as redes quando participadas pelos cidadãos retiram poder aos próprios estados.

O estado a par dos restantes actores sociais encontra-se hoje perante uma realidade social em transformação, numa sociedade em rede a qual implica a redefinição dos papeis desempenhados até agora.

Conforme é salientado por Castells no Prológo The Net and the Self, o estado possui a capacidade para sufocar o desenvolvimento de uma tecnologia ou para através da sua intervenção embarcar num processo de acelerada modernização tecnológica, com implicações na economia, no poder militar e no bem estar social num curto espaço de tempo. O estado é na realidade a única entidade com capacidade para expandir a utilização tecnológica num curto espaço de tempo às mais diversas áreas da sociedade, o que é passível de ser confirmado na análise da realidade internacional e também da portuguesa, quando verificamos o papel fundamental que o estado desempenhou nos dois projectos tecnológicos que melhor retratam o "paradigma das tecnologias de informação", a internet e o minitel.

Em ambos os casos o papel do estado foi o de financiador de projectos de investigação e o de criador de mercados que permitissem o desenvolvimento e a difusão das tecnologias de informação.

O estado na "era da informação" vive profundas contradições, pois por um lado foi durante as últimas décadas o indutor da difusão das tecnologias, financiador da sua investigação, criador dos seus mercados, hoje é ele próprio vítima desse processo, ao ver o seu poder diminuído fruto de uma deslocação do exercício do poder do espaço dos lugares para o espaço dos fluxos.

Na "era da informação" o papel do estado enfrenta três grandes áreas de ruptura, as quais implicam igualmente a sua intervenção:

·         a necessidade de fomentar o desenvolvimento das tecnologias de informação e a criação de mercados, sob pena de as empresas nacionais e os seus cidadãos não poderem competir no mercado global económico e de emprego;

·         a necessidade de controlar as transações monetárias que ocorrem no espaço dos fluxos, sob pena de ver cada vez mais diminuída a sua margem de acção na política económica interna e externa e a defesa da protecção social dos cidadãos;

·         lidar com a crise que a democracia enfrenta recorrendo ao próprio espaço onde o exercício dos poderes se define, ou seja o espaço dos fluxos.

Trata-se de o estado compreender que o seu poder se encontra questionado na sociedade em rede. "Que por cima dos fluxos de poder está o poder dos fluxos", os quais encerram em si imprevisibilidade. Sendo o estado a única entidade legitimada para actuar numa perspectiva global, cabe-lhe retomar a iniciativa e intervir de uma forma adaptada às dinâmicas sociais que caracterizam a sociedade em rede.

 

3- As políticas informacionais

Como se traduz então a intervenção do estado em torno das tecnologias de informação? Poster27 lembra-nos que a discussão sobre o impacto político das tecnologias e redes de informação, nomeadamente da internet, tem incidido sobre um grande número de assuntos: acesso, determinismo tecnológico, encriptação, comércio electrónico, propriedade intelectual, a esfera pública, descentralização, anarquia, género e etnicidade. Mas por outro lado, após uma leitura atenta dos media, dos sites institucionais28 e de estudos transnacionais como o de Truetzeschler,29 deparamo-nos com a existência de uma diferenciação entre as temáticas abordadas na discussão sobre as implicações políticas destas novas tecnologias e as reais preocupações dos policy-makers traduzidas na sua actuação legislativa.

Ao referirmo-nos às políticas informacionais, temos de, em primeiro lugar, ter presente que fruto do seu número de utilizadores e da sua aura mediática, grande parte da actuação política sobre as redes e tecnologias de informação tem escolhido a internet enquanto alvo preferencial.

Wolfang Truetzchler, identifica seis grandes áreas de intervenção do estado em torno das redes, nas suas utilizações e possibilidades: obscenidade, outros conteúdos ofensivos, aspectos económicos, privacidade, encriptação e acesso.

Por "obscenidade" entende-se, neste contexto, todo o tipo de pornografia30 disponível online. A atenção do estado para estas questões não representa uma inovação, pois um estudo atento da história dos mass media neste século31 levar-nos-ia a constatar que o debate sobre conteúdos ofensivos acompanhou as indústrias de massa em torno da pintura, os livros, gravações audio, filmes e mais tarde o vídeo, vídeotexto e a televisão pay-per-view. Levando-nos a concluir, que muitas das inovações nas tecnologias de informação e comunicação são experimentadas e desenvolvidas pela indústria de conteúdos para adultos.

No que respeita à abrangência da denominação "outros conteúdos ofensivos", a autora reporta-se ao conjunto de conteúdos que comportam ilegalidade em quase todos os países, como o assédio sexual via email, ameaças via email, conteúdos nazis ou defensores da supremacia racial, bem como conteúdos que em alguns países podem ser considerados ilegais como sejam os relacionados com drogas, jogo, satanismo, arquivos online sobre a fabricação de bombas, tácticas de subversão armada ou técnicas de arrombamento, entre outras.

Analisando as actuações de diversos estados, podemos encontrar duas tendências presentes em torno da definição das políticas sobre conteúdos ofensivos online: uma reguladora e outra libertária.

A reguladora encontrou tradução na publicação do CDA32 nos EUA e mais tarde do livro verde Ilegal and harmful content on the internet na União Europeia. Por sua vez as posições mais "libertárias" baseando a sua análise nas características da própria Internet, as quais limitam muito a efectiva possibilidade de controlo dos conteúdos,33 e na liberdade de expressão, defendem que o controle recaía sobre os próprios utilizadores, cabendo às forças da ordem actuarem com base no surgimento dos conteúdos e não na censura prévia a qual pode representar uma ameaça à liberdade de expressão. Pois, se para os conteúdos socialmente condenáveis, como por exemplo a pedofilia, é clara a fronteira entre a legalidade e a ilegalidade, outros conteúdos poderão sofrer censura prévia injustamente.

Esta controvérsia traduziu-se ao fim de dois anos de discussão nos EUA na rejeição do CDA pelo Supremo Tribunal e pela aprovação, no Congresso, de legislação dedicada ao combate da pornografia infantil, e pelo reconhecimento da liberdade de expressão face a restantes conteúdos remetendo para a utilização de filtros para o acesso aos conteúdos por forma a proteger os menores. No entanto, trata-se de uma polémica ainda não terminada quer nos EUA, quer na União Europeia, onde os países membros escolheram diversas formas de abordar o problema.

Quanto aos aspectos económicos que têm reclamado a atenção dos decisores políticos e da actuação do estado, aquelas podem ser sumarizadas em cinco pontos: fraude via computador, hacking, privacidade, encriptação e direitos de propriedade intelectual.

A previsão de que o comércio online poderá vir a valer entre 40 e 200 Biliões de doláres na primeira década do ano 2000 e a publicidade online cerca de 4 biliões de dólares pelo ano 2000, leva a que os estados se preocupem em criar as condições para a existência de confiança nas transações através das redes informáticas públicas.

A actuação dos estados procura, assim, assegurar a manutenção da confidencialidade da informação, a integridade da mesma durante a transmissão, a autenticação do emissor e a não repudiação do envio.

Procura-se assim gerir os direitos do consumidor online e criar a confiança para a entrada das empresas no comércio electrónico e o seu desenvolvimento, criando incentivos financeiros,34 protegendo os utilizadores do hacking35 (a possibilidade de intrusão em sistemas de informação) e procurando criar as condições legislativas e técnicas para a manutenção da confidencialidade, integridade, autenticação e não repudiação da informação. Para tal a encriptação e a respectiva atribuição de assinaturas digitais aos utilizadores surge como a solução óbvia procurada pelos estados. A encriptação reside na possibilidade de atribuir uma chave de identificação única, pertença de apenas uma pessoa ou entidade, assegurando ao emissor e receptor a privacidade e autenticação necessárias à comunicação mediada por computador.

No entanto, a encriptação levanta um conjunto de contradições ainda não resolvidas, mas que têm feito parte da agenda política internacional, nomeadamente ao nível da OCDE, G7, União Europeia e Estados Unidos. Isto porque do mesmo modo que assegura a privacidade nas comunicações pessoais e comerciais, a encriptação permite igualmente o segredo às entidades que constituem as redes criminosas globais, colocando teóricamente o estado e os cidadãos à mercê daquelas. A este pensamento opõem-se todas as organizações de defesa dos direitos dos cidadãos online, como por exemplo a EFF,36 que consideram ter o cidadão o direito de se proteger e de se colocar ao abrigo de todos aqueles que possuem interesse em exercer vigilância sobre si e constituir um modelo de panopticon, do big brother às little sisters.37

Embora a questão da encriptação seja fundamental para o exercício da privacidade no espaço dos fluxos, a privacidade exerce-se também através da protecção dos dados pessoais e das bases de dados. Daí que os estados, nomeadamente os europeus, tenham vindo a desenvolver uma política de protecção da privacidade dos cidadãos face às tecnologias de informação. Exemplos desta preocupação são as directivas europeias de protecção face à existências de base de dados e à gestão das mesmas.38

Os direitos de propriedade intelectual constituem outra das áreas de preocupação dos estados no que respeita às políticas informacionais, pelo que a World Intelectual Property Organization39 aprovou em 1996 dois tratados que reformam as convenções internacionais nesta área. O primeiro, WIPO copyright treaty, permite a transmissão e distribuição de artigos literários ou artísticos de acordo com a legislação de copyright vigente, traçando um quadro de reconciliação entre as normas europeias e americanas. Quanto ao segundo tratado, Treaty on Performance and Phonograms, protege, numa base, global a exploração de sons gravados através de outra forma que não a física, trata assim das questões colocadas pela recepção de música digital e sua gravação através da internet. Um terceiro tratado relativo à protecção de bases de dados não foi possível de aprovar devido aos diferentes graus de protecção que as mesmas sofrem nos EUA e na UE, mais fracos no primeiro e mais protegidas no segundo.

Relevante para as diferentes políticas informacionais é a questão do acesso. Quer estejamos a falar numa perspectiva de criação de consumidores ou do acesso dos cidadãos ao espaço dos fluxos, importa saber quantas pessoas acedem e quem são elas, por forma a delinear as políticas tendentes ao alargamento desse acesso.

As duas grandes linhas de influência parecem oscilar entre a necessidade de criação de um serviço público para o acesso à internet, na mesma linha do serviço público de telefone, ou na criação das condições para um acesso universal.

No entanto, Kurland e Egan40 sugerem que o acesso não se limita à questão tecnológica, mas igualmente à cultura existente nas redes que constituem o espaço dos fluxos, simbolizado pela internet. Aqueles apontam assim três tipos de barreiras ao acesso: educacionais, económicas e culturais.

As barreiras educacionais resultam do facto de a interacção social na internet requerer o domínio e familiaridade com um certo tipo de hardware e de software, o qual não pode ainda ser obtido em todas as instituições educativas41 As barreiras económicas são essencialmente fruto dos custos envolvidos em obter o software e hardware bem como os custos associados à utilização do telefone42 e ao acesso ao Internet Service Provider. Por último importa explicitar o que se entende por barreiras culturais, são as que derivam do facto de dominar um discurso masculino em muitos dos fora online, uma cultura predominantemente americana e o uso do inglês enquanto língua base para a comunicação na internet.

Tendo definido as áreas mais comuns de intervenção do estado em torno das chamadas políticas informacionais, a nossa atenção voltar-se-á agora para a caracterização do quadro de actuação do estado em Portugal e para uma análise dos discursos dos partidos com representação parlamentar sobre as suas representações em torno da sociedade de informação.

 

4- Criação e antecedentes da iniciativa nacional de informação em Portugal

Durante as duas últimas décadas os avanços na indústria de telecomunicações e computadores e a progressiva convergência entre os produtos e aplicações, desenvolvidos pelas duas áreas tecnológicas, levou à constatação por muitos dos governos nacionais, de que poderíamos estar face a um conjunto de mudanças fundamentais, que poderiam ter implicações a todos os níveis da sociedade.

Portugal, sendo um país membro da União Europeia, acompanhou o processo de elaboração e discussão do relatório "Europa e a sociedade de informação global", mais conhecido por relatório Bangemman,43 o qual foi apresentado no Conselho Europeu de Corfu em Junho de 1994.

O relatório Bangemman é um documento fundamental para se perceber o enquadramento de Portugal no desenvolvimento de uma sociedade de informação e da utilização da internet. Pois é no quadro definido pelo relatório Bangemman que a Comissão Europeia apresenta em Junho de 1994 o documento Europe's way to the information society44 onde são apresentadas as áreas fulcrais de intervenção e incentivo por parte dos governos nacionais e da comissão europeia. É neste documento que são definidas as seguintes linhas de acção:

·         a revisão do quadro de regulação da indústria de telecomunicações com o objectivo de promover um mercado europeu liberalizado.

·         desenvolvimento de redes, aplicações e novos serviços através do apoio a projectos piloto ao nível europeu;

·         estudo do impacto social e cultural da criação de uma sociedade de informação;

·         a promoção e publicitação do conceito e das práticas associadas à sociedade de informação.

Este plano de acção é fundamental para compreender o historial da sociedade de informação em Portugal porque é nele que no ponto II.2. se afirma -- pela primeira vez num plano de acção desenvolvido pelos diversos intervenientes europeus -- a aceitação de um standard tecnológico com origem nos Estados Unidos da América, a internet e o protocolo TCP/IP, e se infere do abandono da procura de uma alternativa tecnológica europeia para a construção da infraestrutura tecnológica da sociedade de informação na Europa.

É igualmente este plano de acção que irá acompanhar e enquadrar o desenvolvimento das políticas nacionais de construção de uma infraestrutura nacional de informação nos diversos países membros da União Europeia a partir de 1994.

Embora não possamos falar de um conceito único de sociedade de informação, pois ao nível nacional as especificidades culturais e sociais de cada um dos países membros e o contexto e orientações políticas dos seus governos condicionaram e condicionam o seu desenvolvimento e implementação, a realidade é que quase sem excepção os pontos incluídos no plano de acção Europe's way to the information society foram de uma forma ou outra tomados como ponto de partida para as reflexões que levaram à apresentação de "livros verdes", "iniciativas nacionais de informação" ou "planos de acção" para o aproveitamento das tecnologias de informação e comunicação como instrumentos de desenvolvimento das sociedades europeias. São exemplos deste retrato e da sua diversidade o caso dinamarquês e aquilo que podemos classificar de Information Welfare Society, a política implementada em França nos últimos anos pelo Primeiro Ministro Lionel Jospin na construção da sociedade de informação, o caso da Grã-Bretanha com a sua definição de política pública e de construção das "autoestradas da informação", a aposta integrada no multimédia no caso da Alemanha e que pode ser considerada como a terceira tentativa alemã de construção de uma sociedade de informação, e o caso português.

Em Portugal, quer as iniciativas públicas quer as para-públicas45 tiveram uma visibilidade bastante reduzida até 1995. Tal terá ficado a dever-se a duas ordens de grandeza. Por um lado, o ainda reduzido número de utilizadores de internet. Pois, embora o acesso em casa e no trabalho começasse a despontar, na sua maioria, os utilizadores de internet estavam ainda centrados nas universidades com acesso à RCCN46 e, por outro lado na estrutura do mercado de serviços electrónicos de informação em Portugal.

Importa salientar este último ponto, pois a situação do mercado de serviços electrónicos de informação irá também, posteriormente, condicionar o surgimento das iniciativas públicas de promoção da sociedade de informação e utilização da internet bem como da formação das entidades para-públicas e das suas futuras actividades.

Conforme é referido no relatório "O mercado de serviços electrónicos de informação (SEI) em Portugal" realizado pelo ISCTE/JNICT/DGXIII em 1995, "Parece ser consensual a constatação de que 1995 marca um salto qualitativo no mercado de SEI, em termos de volume de negócios, desenvolvimento de novas áreas e produtos e a emergência de novos públicos. É o ano da introdução em Portugal, do uso alargado da internet, despoletando um novo contexto de implicações (…)."

O desenvolvimento de novas áreas de negócio e produtos permitiu uma consolidação do sector produtivo nacional na área dos serviços electrónicos de informação e consequentemente criou o enquadramento necessário para que a partir deste momento se desse o surgimento de associações de defesa dos interesses desses mesmos produtores,47 fossem estas criadas com o intuito de promover os investimentos e servir como intermediárias na relação com o poder político ou destinadas à promoção e criação de mercado para os serviços electrónicos de informação.

O surgimento de novos públicos para os serviços electrónicos de informação em particular no segmento doméstico, dos quais a internet e os produtos multimédia são exemplos reconhecidos, permitiu igualmente lançar os alicerces daquilo que seriam as futuras intervenções das associações de defesa do consumidor de serviços electrónicos de informação ou das associações cívicas e protestos para a defesa dos direitos dos cidadãos no ciberespaço.

Em Portugal a atenção prestada ao tema sociedade de informação e à utilização da internet por parte dos intervenientes políticos foi, até à campanha eleitoral que levou à tomada de posse do XIII Governo Constitucional em 1995, bastante reduzida.

A campanha eleitoral para as eleições legislativas em 1995 trouxe à discussão pública as problemáticas relacionadas com a sociedade de informação e internet. Não só constituiu tema de debate, a exemplo do debate realizado na FCCN com a participação de candidatos integrados nas listas do Partido Socialista e Partido Comunista Português, como também surgiu associado a propostas políticas em panfletos e programas do PS e Partido Social Democrata.

Assim sendo os conceitos de "sociedade de informação" e "internet" são introduzidos no discurso político português não numa perspectiva de imparcialidade ou de benefício directo da utilização das tecnologias de informação na melhoria de vida dos cidadãos mas sim acompanhadas de uma carga ideológica simbólica a qual privilegia ora uma abordagem de carácter mais liberal, conservador ou social-democrata, conforme os protagonistas políticos que a utilizam.

No caso do partido mais votado nas eleições legislativas de 1995, o Partido Socialista apresentava no seu Programa Eleitoral de Governo do PS e da Nova Maioria no capítulo V -- "As políticas estruturais"- a referência à necessidade de apostar em políticas estruturais para a competitividade as quais referem como seu objectivo "apostar na sociedade de informação". Esta afirmação era explicitada através da chamada de atenção para a necessidade do "reforço da infra-estrutura científica e tecnológica" e do "desenvolvimento da oferta e utilização das tecnologias de informação". Salienta-se igualmente a referência explícita neste programa à utilização da internet, afirmando-se assim igualmente a aceitação desta tecnologia como elemento estruturante da divulgação das tecnologias de informação e promoção da construção de uma sociedade de informação em Portugal.

Após a vitória por parte do PS nas eleições legislativas de 1995, deu-se início à constituição do XIII Governo Constitucional e à formulação do seu programa de governo.

Conforme salienta Luís Vidigal48 num documento intitulado "Política de informação -- excertos do programa do XIII Governo Constitucional", existe uma presença da preocupação com a divulgação, produção e consumo de informação em todas as área de actuação do Governo. No entanto nas áreas do planeamento e administração do território e educação, ciência e cultura há referências explícitas à sociedade de informação e internet.

A inclusão nos programas eleitorais e de governo destes temas por parte do XIII governo constitucional terá, porventura, criado as condições necessárias para que o tema da sociedade de informação e da utilização da internet não fosse afastado do debate político nos anos seguintes. Um exemplo desta continuidade, pode também ser encontrado na análise das campanhas eleitorais pós-legislativas de 1995, onde as candidaturas, quer à Presidência da República quer às câmaras municipais, não deixaram de incluir entre os seus instrumentos de campanha páginas na internet. Apesar da eficácia na utilização dos meios variar entre os concorrentes, a mensagem pretendida pelos intervenientes políticos era transmitida, ou seja, a sua associação a uma imagem de modernidade e de antecipação de um futuro próximo em que as tecnologias de informação e comunicação desempenhariam um papel cada vez mais central.

No entanto, constata-se igualmente que a muitos dos intervenientes na criação da agenda política falta a cultura tecnológica necessária à participação no debate em torno destas questões o que poderá representar um entrave à construção das políticas de incentivo e promoção em torno das tecnologias de informação e comunicação.

Desta caracterização do caso português podemos reter a noção de que a ideia de sociedade de informação e a escolha da internet enquanto tecnologia paradigmática para a sua construção, foi incorporada com relativo sucesso no discurso do estado português, dando azo a um conjunto de medidas e iniciativas tendentes à consubstanciação das intenções apresentadas na campanha eleitoral e no programa de governo.

 

5- As políticas e as iniciativas públicas nacionais de incentivo ao desenvolvimento da sociedade de informação

Ao afirmar no seu programa de governo a atribuição de um lugar destacado à necessidade de reconhecimento político da emergência da sociedade de informação, o XIII Governo Constitucional teve de procurar uma fórmula capaz de coordenar uma área tão vasta como aquela abrangida pelos temas em debate em torno da sociedade de informação. Essa solução passou pelo mandatar do Ministério da Ciência e Tecnologia para o acompanhamento destas matérias através de:

·         promover um amplo debate nacional sobre o tema " sociedade de informação", tendo em vista a elaboração de um Livro Verde que, nomeadamente, contenha propostas de medidas a curto, médio e longo prazos, a ser presente à Assembleia da República;

·         preparar, em estreita colaboração com todos os ministérios, as medidas globais e sectoriais adequadas à concretização do Programa do Governo no domínio da sociedade de informação;

·         acompanhar e mandar avaliar o efeito das medidas tomadas pelo Governo no mesmo domínio;

·         identificar prospectivamente cenários internacionais, nos planos tecnológico e societal, com impacto previsível nas condições de desenvolvimento da sociedade de informação em Portugal;

·         assegurar a coordenação da informação e a preparação das posições dos delegados nacionais nos diversos programas científicos e tecnológicos de investigação da União Europeia directamente orientados para as políticas relevantes para a sociedade de informação.

É neste quadro que surge em 1996 a Missão para a Sociedade de Informação (MSI), destinada a apoiar o Ministro da Ciência e da Tecnologia na realização das tarefas atrás enunciadas.

O Livro Verde para a Sociedade de Informação é porventura a face publicamente mais conhecida da actuação da MSI. Por essa razão, optamos por enquadrar aquilo que foi até hoje a construção da iniciativa nacional de informação em Portugal através de uma análise das medidas nele propostas, implementadas, ou em execução, por parte das entidades públicas.

Ao analisar os capítulos do Livro Verde,49 nos seus pontos de situação da realidade portuguesa, nos exemplos de excelência referidos e nas medidas de acção propostas, existe a clara noção de que se trata de um documento que leva em consideração as especificidades portuguesas na construção de uma sociedade de informação.

Existe uma clara recusa de um modelo de cópia directa das intenções e modelos de acção presentes nos documentos produzidos na Comissão Europeia, sejam estes os do relatório Bangemman sejam os do Europe's Way to the Information Society.

Pelo contrário, dá-se início a um processo de consulta de informantes privilegiados e à discussão pública dos diversos Drafts na internet e em reuniões sectoriais, as quais se traduziram num documento de enquadramento onde as especificidades nacionais de Portugal se encontram presentes, onde um levantamento das capacidades nacionais na produção e utilização das tecnologias de informação é listado e onde também se apresentam medidas de acção para cada uma das áreas eleitas como prioritárias para a acção do XIII Governo Constitucional no cumprimento do seu objectivo de programa de governo.

Este não será o momento para um estudo qualitativo aprofundado das premissas contidas no articulado do Livro Verde mas uma primeira incursão exploratória parece indicar que se tentou produzir um documento em que se conseguisse um equilíbrio entre as teses expressas por muitos sectores quer na União Europeia (relatório Bangemman), quer em Portugal, de que a sociedade de informação é uma transformação liderada pelo mercado e pela tecnologia e que para catalizar as oportunidades contidas nessa mudança há que romper com práticas passadas (de subsídios públicos, apoios financeiros, dirigismo e políticas proteccionistas) e permitir a criação de um novo quadro de competição e a liberalização dos mercados (abordando questões como os direitos de propriedade intelectual, privacidade, encriptação e a situação de posse dos grupos de media). E as teses onde se expressa um outro conjunto de preocupações que acompanha o quadro político europeu e nacional nesta última metade da década, a saber: o emprego, educação, qualidade de vida.

O Livro Verde, da mesma forma que reconhece que uma significativa parcela do desenvolvimento, no caminho para uma sociedade de informação, passa e deverá ser controlada pelas forças do mercado, reconhece igualmente que o caminho para uma sociedade de informação deverá também constituir uma fonte de progresso económico e melhoria das condições de vida bem como de um melhor serviço prestado aos cidadão quer pelo sector público quer pelo sector privado.

Podemos assim sumarizar os objectivos do Livro Verde em 7 pontos chave:

·         assegurar quer o acesso à informação quer à sua livre circulação;

·         a criação e desenvolvimento de um mercado interno de serviços e conteúdos de informação;

·         fomentar a democracia e a escolha individual;

·         fortalecer a competitividade das empresas nacionais como meio de fortalecer a economia e a sociedade portuguesa;

·         contribuir para a formação pessoal dos cidadãos;

·         tornar o sector público mais transparente e facilitar o acesso e a prestação de serviços;

·         apoiar os membros da sociedade com necessidades especiais.

Nota-se, igualmente, que embora as políticas e iniciativas públicas sejam estruturadas com base nos alicerces dos planos de acção europeus para a construção da sociedade de informação e, como já foi referido, influenciadas pela conjuntura política vigente, não deixam também de ser condicionadas quer pelas características sociográficas50 da população portugesa quer pelo quadro do mercado nacional de serviços electrónicos de informação.

Uma clara constatação desta situação passa pela análise e comparação das medidas propostas no Livro Verde apresentado em Maio de 1997, com o estudo "O mercado de serviços electrónicos de informação (SEI) em Portugal" cujos dados remontam a 1994/95.

Constatamos que o quadro caracterizador da situação apresentada neste último continua a ser condicionante das medidas propostas no Livro Verde, ou seja, o quadro estrutural do mercado português de SEI, apesar da sua evolução positiva, não se reconfigurou a ponto de os problemas estruturais serem à data de Maio de 1997 diferentes daqueles que enfrentávamos em 1994/95.

O relatório "O mercado de serviços electrónicos de Informação (SEI) em Portugal" chama a atenção para um conjunto de pontos de entrave ao desenvolvimento do mercado de serviços electrónicos em Portugal que vimos igualmente a encontrar no próprio Livro Verde como bloqueios e os quais se procura solucionar. A saber:

·         a inexistência de uma política nacional concertada ao nível das infraestruturas de telecomunicações, do desenvolvimento de suportes informáticos e da indústria de conteúdos e comunicação;

·         a situação da informação em Portugal muito fragmentada e o seu acesso limitado;

·         a informação disponível não corresponde às expectativas;

·         a existência de resistências culturais e económicas à utilização profissional de SEI;

·         falta de enquadramento jurídico;

·         desadequação entre a oferta e a procura.

Pode-se, assim, constatar que as políticas e iniciativas públicas de promoção da sociedade de informação e da utilização da internet contidas no Livro Verde, incorporaram na sua formulação não apenas os factores conjunturais actuais mas também alguns dos problemas estruturais que parecem condicionar uma plena utilização das tecnologias de informação e comunicação no desenvolvimento nacional.

O Livro Verde encerra em si dois tipos diferenciados de medidas. Por um lado as medidas que explicitam objectivos concretos definidos, como seja o caso da colocação de computadores com ligação à internet em todas as escolas do 5.º ao 12.º anos ou da publicação electrónica do Diário da República. Por outro lado temos a enunciação de príncipios ou objectivos para os quais não são apresentadas de imediato as respectivas estratégias de implementação, de que é exemplo o "fomentar iniciativas de autarquias locais para a democratização do acesso à sociedade de informação" ou o "promover o teletrabalho na empresa e na administração pública.

Esta dualidade é porventura fruto da própria complexidade da adaptação do estado às questões que a construção de uma sociedade de informação representa. Pois a própria transversalidade das medidas de acção implica, na maioria dos casos, a repartição das competências ou a circulação de informação entre dois ou mais ministérios ou entidades por eles tuteladas, tornando assim as tarefas de implementação tendencialmente mais morosas e por vezes os resultados de menor amplitude.

De qualquer sorte, o Livro Verde enuncia 72 medidas tendentes a acelerar a construção de uma sociedade de informação em Portugal. Essas medidas constituem um objectivo que, como se afirma na introdução do Livro Verde, se pretende cumprir no quadro da actual legislatura, pelo que uma qualquer avaliação que se apresente neste momento será sempre de carácter parcelar e não definitivo.

A MSI finalizada a conclusão do Livro Verde, canalizou os seus esforços mais directos para a preparação de medidas legislativas e programas globais e sectoriais adequadas à concretização do Programa do Governo no domínio da sociedade de informação.

Coube assim à MSI iniciar a preparação dos seguintes programas e medidas legislativas tendentes à divulgação da sociedade de informação e utilização da internet:

·         iniciativa nacional para o comércio electrónico (criada por resolução do Conselho de Ministros de 6 de Agosto de 1998);

·         iniciativa nacional para os cidadãos com necessidades especiais na SI ( concluído o plano de acção tendente à apresentação à tutela, aguarda o seu envio a Conselho de Ministros) ;

·         programa cidades digitais (lançado em 10 de Fevereiro de 1998);

·         objectivo: estado aberto (medidas diversas em curso);

·         programa a escola informada (encontra-se em curso o alargamento da rede a outros níveis de ensino obrigatório e a entidades de carácter educativo e científico);

·         objectivo: acessibilidade à sociedade de informação (medidas diversas em preparação e implementadas).

Do conjunto das iniciativas atrás enunciadas optamos por neste artigo cingir a nossa análise à iniciativa nacional para o comércio electrónico. A qual pela importância que a sua formulação encerra e igualmente pela atenção que é conferida a esta temática, quer no quadro nacional quer internacional, representa no nosso entender a área de análise mais pertinente para o traçar do enquadramento do pensamento político sobre a construção da sociedade de informação em Portugal.

No âmbito da resolução que cria a Iniciativa Nacional para o Comércio Electrónico, a MSI foi igualmente incumbida da preparação e auscultação das entidades públicas e agentes económicos com relevância no quadro da definição de medidas legislativas e regulamentares necessárias ao pleno desenvolvimento e expansão do comércio electrónico.

O conjunto de reuniões e workshops realizadas tiveram como objectivos imediatos a preparação de material que permita a formulação de propostas legislativas que compreendam os seguintes pontos:

·         regime dos documentos electrónicos (de cujos pontos de discusão se salientam: a necessidade de acordar nas próprias definições, no conceito de cópia e no de transmissão dos documentos);

·         a utilização de assinaturas digitais (de cujos pontos de discussão se salientam: a sua autenticação, depósito e a sua obtenção);

·         autoridades de certificação (de cujos pontos de discussão se salientam: a definição de autoridade pública competente, acesso à actividade de autoridade de certificação, as suas obrigações, a protecção dos dados, a cessação de actividade e a responsabilidade);

·         os certificados digitais (de cujos pontos de discussão se salientam: as condições da emissão, o conteúdo dos certificados, a sua suspensão e revogação e a fiscalização das entidades emissoras);

·         a factura electrónica (de cujos pontos de discussão se salientam: a sua equivalência e valor probatório, a definição de cópia e original, a inclusão do IVA, a entidade emissora da autorização de utilização, fiscalização, listagens em suporte papel comprovativas de envio).

No quadro dos objectivos a que nos propusemos atingir com este documento, importa igualmente salientar que em termos da definição de incentivos, quer sejam de questões de enquadramento legislativo (como a encriptação ou as autoridades de certificação), quer se trate de programas de apoio financeiro, toda a actividade legislativa parece assentar no pressuposto de considerar como fundamental a utilização quer da internet quer do EDI51 como elementos dinamizadores do comércio electrónico em Portugal. Partilha-se assim, da ideia da utilização da internet enquanto standard e elemento fundamental para a divulgação do comércio electrónico entre consumidores e produtores e igualmente entre estes últimos, continuando o EDI a assumir um papel de relevo nas trocas entre empresas.

A Iniciativa Nacional para o Comércio Electrónico merece ainda uma chamada de atenção para os princípios subjacentes os quais têm reflexo não apenas na actividade comercial associada ao comércio electrónico, nas suas diversas formas, mas igualmente no campo social, político e cultural do quadro da utilização da internet em Portugal:

·         desenvolvimento do comércio electrónico assenta na iniciativa privada;

·         deverá criar-se um quadro regulamentar e jurídico favorável, que elimine as barreiras ao desenvolvimento do comércio electrónico (através do reconhecimento dos contratos efectuados por via electrónica e do seu valor probatório; reconhecimento jurídico da factura electrónica, assinatura digital e autoridades de certificação; adaptação do direito do consumo; garantia dos direitos de propriedade intelectual; o quadro legal da moeda digital);

·         afirma-se o princípio da não imposição de taxas discriminatórias na utilização das redes globais de informação (quer se trate de taxas extra ou dupla tributação de IVA);

·         garante-se o livre acesso e circulação das técnicas de cifragem;

·         rejeita-se qualquer tipo de censura aos conteúdos da internet (estimulando a auto-regulação);

·         apoia-se a existência de um sistema transparente de gestão dos nomes de domínios internet (assegurando igualmente uma participação europeia na entidade gestora do TLd genéricos);

·         cria-se um ambiente comercial favorável ao desenvolvimento do comércio electrónico (apoiando o princípio da utilização de normas de facto que não subvertam os mecanismos de concorrência leal);

·         incentiva-se a cooperação internacional no domínio do comércio electrónico (Portugal procurará nos fora internacionais defender as soluções que proporcionem ao comércio electrónico um enquadramento regulamentar coerente).

Este conjunto de princípios, caso venha a ser mantido como quadro de referência quer na implementação da Iniciativa Nacional para o Comércio Electrónico quer em outras actividades no quadro da sociedade de informação moldará, sem dúvida, as utilizações futuras em Portugal das tecnologias de informação em geral e da internet em particular. Pois poucos são os princípios aqui enunciados que representam questões de pacífica aceitação no quadro de debate internacional. A MSI e o Governo português ao assumirem estas posições, nomeadamente no que respeita às técnicas de cifragem, conteúdos, sistema de gestão de domínios, taxação de transações e assinaturas digitais, escolheram igualmente um modelo de abordagem da utilização da internet e por consequência optaram por uma via que aposta na auto-regulação e na liberdade de expressão e privacidade -- acompanhadas pela devida regulação e controlo das entidades públicas -, por oposição ao modelo que tem sido apanágio das administrações norte-americana e alemã, o qual privilegia a censura, e a liberdade de controle em detrimento da privacidade dos cidadãos.

 

6- Alguns contributos para uma caracterização da situação portugesa na "era da informação"

Foi até este ponto o objectivo deste artigo enunciar quais as características de actuação do estado e as propostas dos decisores políticos portugueses no quadro da sociedade de informação. O que vos propomos agora é o proceder a uma análise crítica dessas políticas e das iniciativas públicas e para-públicas nacionais de incentivo ao desenvolvimento da sociedade de informação, em particular, da internet.

Essa análise encontra-se sumariada nos pontos seguintes, os quais reflectem a perspectiva de que Portugal definiu e implementou uma iniciativa nacional de informação. A qual ao combinar as disponibilidades tecnológicas existentes, as particularidades do contexto socioecónomico português e a própria definição político-ideológica presente se traduziu num modelo que procura criar uma sociedade de informação baseada na procura de equilíbrio entre a necessidade de resposta às políticas liberalizantes que apostam no mercado enquanto entidade promotora dessa transformação e a necessidade de apostar no Estado na criação das condições que permitam a realização de uma Welfare Information Society. 52

Seguindo a formulação apresentada por Kahin53 podemos dizer que Portugal possuí uma iniciativa nacional de informação, que combina três eixos de implementação:      

·         a formulação de uma visão: a de sociedade de informação;

·         um quadro ou documento de enquadramento das políticas a prosseguir: presente no Livro Verde para a sociedade de informação

·         estratégias de implementação: os programas as iniciativas e as medidas destinadas à implementação das políticas definidas.

Como já foi referido, em Portugal, podemos encontrar indícios de presença no discurso político da preocupação com as temáticas da construção de uma sociedade de informação desde o processo eleitoral que conduziu à tomada de posse do XIII governo constitucional. Essa incorporação no discurso político criou as condições para que na prática legislativa fosse consagrada a atenção dada às implicações da sociedade de informação como no caso da revisão constitucional de 1997, em que foi consagrada em sede de Direitos, Liberdades e Garantias, o direito à privacidade nas redes electrónicas e também ao direito ao acesso por parte dos cidadãos a estas tecnologias ( Art. 34º e Art. 35º).

No entanto, conforme também já afloramos, o conceito de sociedade de informação não tem a mesma leitura e aplicação em todos os países. Pelo que também deveremos questionar-nos se em Portugal as próprias ideologias políticas encarnadas pelos diferentes partidos políticos também não condicionarão essa mesma construção da sociedade de informação.

A tentativa de enquadramento do pensamento político das diversas forças partidárias portuguesas face à sociedade de informação aqui apresentada não pretende ser extensiva, pois a ela falta analisar as posições de partidos com representação parlamentar como o CDS/PP e os Verdes, no entanto julgamos pertinente a apresentação dos resultados obtidos na análise de conteúdo do discurso dos restantes partidos (Governo PS, PSD e PCP), pois ela permite perceber quais as áreas de preocupação de cada orientação política, bem como as diferenças e proximidades existentes entre aquelas.54

O que procuramos perceber foi qual o seu posicionamento face àquilo que escolhemos designar de políticas informacionais, quais as barreiras que consideram existir ao acesso dos cidadãos a estas tecnologias e também qual o impacto da sociedade de informação em Portugal.

O que a análise do discurso nos permite em primeiro lugar apontar é que embora seja partilhada a enunciação das três barreiras ao acesso (cultural, educacional e económica) não existe coincidência entre os diversos intervenientes quanto o grau de importância que é atribuída àquelas. Assim para o PSD existe uma menor atenção para as barreiras culturais, enquanto para o PCP e para o Governo PS se assiste a um enunciar de igual atenção para o conjunto das três (culturais, educacionais e económicas).

Outro factor a assinalar no discurso do PSD refere-se à sua visão de que as gerações mais novas possuem já uma muito melhor formação que as anteriores na utilização das TIC, pelo que as barreiras educacionais ainda que abordadas são dadas como algo que vem sendo minorado. Também é interessante notar que no discurso do PSD é dada atenção à questão das barreiras entre os próprios utilizadores com acesso às TIC, ou seja entre os apelidados de "nómadas tecnologicamente equipados com o último GSM" e os outros, "a maioria cujo interface com a sociedade de informação é a caixa multibanco ou a TVCABO".

A visão do Governo PS sobre as barreiras incorpora a referência a um conjunto de bloqueios considerados estruturais e que são fruto da especificidade da sociedade portuguesa nomeadamente, o atraso científico tecnológico, o peso burocrático das instituições "desenvolvidas ao abrigo de um estado autoritário", uma economia cujo desenvolvimento se encontrava condicionado "por monopólios" e o "peso histórico" da falta de liberdade de informação.

Também quanto às políticas informacionais que deverão merecer a atenção dos responsáveis políticos, parece não existir consenso. Isto embora a questão do acesso dos cidadãos e da importância do desenvolvimento dos aspectos económicos das TIC55 congregue a atenção de todos, o que se ficará sem dúvida a dever ao que podemos designar por políticas não geradoras de polémica.

Praticamente ausentes de todos os discursos dos partidos ficam as questões em torno da "obscenidade" e "outros conteúdos ofensivos". No que respeita à privacidade, quer o PCP quer o Governo PS realçam essa questão. O PSD no que respeita à encriptação bem como à privacidade não as aborda na sua reflexão.

Outros dois pontos a destacar em torno do discurso produzido no que respeita às políticas informacionais são a preocupação do PCP com as implicações das tecnologias de informação na divisão internacional do trabalho e a visão explícita no discurso do Governo PS de que as políticas de acesso tem de ser desencadeadas em todas as frentes e não apenas ao nível da escola.

No entanto, quanto ao impacto da sociedade de informação parecem existir claramente pontos de aproximação entre os três intervenientes, apresentando esse impacto como algo de positivo, nas palavras do PSD "um factor de democratização e progresso", nas do PCP "representa sobretudo uma transformação prenhe de consequências positivas". No entanto tanto o PCP como o Governo PS partilham a sua preocupação face as utilizações positivas e negativas que a tecnologia pode ter, encarando como positiva a sociedade de informação não deixam de alertar para os seus perigos.

Aquilo que se poderá concluir deste trabalho de análise é que embora existindo diferenças de concepção quanto às áreas prioritárias de intervenção, não existe a recusa do objectivo de construção da sociedade de informação. Esta é vista como uma "inevitabilidade" para a qual nos temos de preparar. No entanto encontramos à esquerda do espectro político, nomeadamente no Governo do PS e PCP, uma maior atenção dada às questões mais relacionadas com os direitos e liberdades dos cidadãos (a privacidade, encriptação e mesmo os conteúdos). Bem como parece ser à esquerda que o discurso produzido parece encerrar uma maior estruturação e reflexão sobre esta temática.

Uma outra questão que deverá ser salientada é a noção de que à medida que se passa da enunciação dos problemas, para o tipo de medidas concretas com as quais o estado deverá intervir, as diferenças de discurso parecem aumentar fazendo surgir associadas ao discurso sobre a sociedade de informação as orientações políticas que normalmente aparecem associadas ao discurso de cada um dos partidos.

Esta constatação vai ao encontro daquilo que Giddens refere no seu livro Beyond Left and Right56 onde se afirma que embora possamos assistir a um esbater da separação tradicional entre a esquerda e a direita, continuam a existir áreas onde é evidente essa diferenciação, nomeadamente o modo como se olha para a igualdade de oportunidades dos cidadãos.57

É pois possível dizer que embora uma eventual alteração do quadro político no poder se possa traduzir numa alteração do quadro ideológico que actualmente define as políticas informacionais, essa mudança não porá em causa a ideia de construção de sociedade de informação. No quadro de actuação política do estado existe a formulação de uma visão: a de sociedade de informação e uma definição do quadro de enquadramento das políticas a prosseguir.

No que respeita às estratégias de implementação analisadas compreendem dois grandes conjuntos: as medidas com origem nos organismos públicos e aquelas que têm origem em associações cívicas ou de agentes económicos.

Do conjunto da análise das medidas de incentivo à implementação da sociedade de informação e à utilização da internet podemos enumerar as seguintes constatações:

·         standard internet está presente na grande maioria das iniciativas e medidas propostas;

·         as áreas mais desenvolvidas no quadro da implementação da sociedade de informação são sem dúvida a da educação e da ciência e tecnologia;

·         a implementação dos programas das Cidades Digitais58 e do PRO-Alentejo Digital representará a abertura uma nova área de intervenção, a da qualidade de vida dos cidadãos e a aposta na chegada da sociedade de informação às áreas do trabalho e do espaço cívico;

·         a iniciativa nacional para o comércio electrónico é apresentada como a próxima grande área de aposta de desenvolvimento da utilização da internet por parte as entidades públicas;

·         a actuação das associações cívicas como a FFE59 ou grupos de cidadãos em defesa dos direitos dos cidadãos online é um elemento a ter em atenção no desenvolvimento da sociedade de informação;

·         o papel desempenhado pelas associações de agentes económicos é uma complementariedade necessária para a promoção da sociedade de informação;

·         a adaptação do quadro legislativo, é encarada como fundamental para a conclusão da implementação de um conjunto de medidas nomeadamente assinatura digital, factura electrónica e autoridades de certificação;

·         encontram-se enunciados princípios de actuação na INCE60 que definem a posição portuguesa face a um conjunto de questões, não consensuais a nível internacional, como sejam: a criptografia, os conteúdos, assinaturas digitais, privacidade e direitos de autor;

·         no entanto, existe uma certa indefinição e fraco apoio quanto às medidas de incentivo à produção comercial de produtos multimédia, digitalização de conteúdos e à promoção no exterior de empresas portuguesas do sector multimédia;

·         no que respeita aos recursos humanos do sector público, a formação de quadros da administração pública para a utilização da internet ainda não atinge intensidade suficiente para podermos pensar numa inverteção da actual tendência de fraca literacia nesta área;

·         do quadro das medidas propostas no Livro Verde realça-se o facto de igual atenção ser dedicada às questões de promoção da participação dos cidadãos e qualidade de vida nas cidades e regiões, bem como à promoção do comércio electrónico e das actividades económicas ligadas às tecnologias de informação.

A visão de conjunto que é transmitida pela fórmula adoptada na criação da iniciativa nacional de informação em Portugal pode ser lida à luz da percepção, por parte do estado e dos actuais decisores políticos, de que qualquer mudança de paradigmas na sociedade, implica um compromisso entre a inovação e a continuidade. A propósito desta questão Anthony Giddens refere na sua entrevista à revista online Telepolis61 que hoje vivemos num mundo onde todos podem observar uma mudança tecnológica associada acompanhada por um outro conjunto de mudanças na sociedade. Algumas das quais encerram em si um potencial destrutivo -- quer para o ambiente quer para algumas formas de solidariedade social.

Daí que para Giddens, seja relevante assegurar até certo ponto, e em determinados contextos, continuidade, coesão e estabilidade face à mudança, ou seja, ao estado cabe percepcionar que associado à introdução das tecnologias de informação, não se pode deixar de ter presente as prováveis rupturas e desigualdades sociais que as mesmas introduzem.

O papel do estado é o de minorar essas mesmas desigualdades no mais curto espaço de tempo e com a maior eficácia possível proporcionando uma sociedade onde sentimento de segurança e estabilidade estejam presentes.

A escolha do modelo de Iniciativa Nacional de Informação em Portugal parece incidir na criação de uma sociedade de informação mas no contexto da actuação do estado providência, isto é, o que Annemarie Riis62 designou de Welfare Information Society e que se concretiza no apoio à inovação tecnológica tendo presente a necessidade de investir na conservação de certos modelos tendentes à promoção de igualdade de oportunidades ( educação, emprego, saúde ) entre os cidadãos.

 

O espaço dos fluxos e o papel do estado

Este artigo propôs-se a contribuir para a discussão em torno da sociedade de informação procurando discutir as possíveis "causas das questões" que colocamos hoje quando nos propomos tentar interpretar as implicações da "era da informação" à luz das "teorias da sociedade de informação".

De entre essas questões propusemos analisar quatro, tentando assim contribuir para a sua resposta. Que reais forças de transformação encerram a quantidade e disponibilidade de informação nas nossas sociedades? Como é influenciado o estado por essas forças de transformação? Qual a situação portuguesa? E que representações e práticas produz o estado face aos pontos de ruptura que na "era da informação" colocam em causa o seu poder?

Na tentativa de dar início às respostas propomos uma leitura das forças em acção a partir da análise proposta por Manuel Castells na trilogia Information Age: economy, society and culture, o qual considera que as transformações na nossa sociedadesão actualmente desencadeadas por uma oposição entre duas forças cuja influência se faz sentir em todas as esferas da sociedade, a Net e o self, isto é entre as redes e as identidades.

Fruto do surgimento de uma "sociedade rede" onde os fluxos de poder deixam de se centrar no espaço dos lugares para passarem para o espaço dos fluxos (um espaço definido técnica, geográfica e socialmente) o estado nação vê a sua actuação limitada pela necessidade de articular a sua acção entre o nível global e nacional. O estado tem de negociar num quadro de globalização com os restantes estados, com as empresas globais e inclusive com os grupos de pressão que actuam através do espaço dos fluxos, ao mesmo tempo que assegura as suas funções ao nível nacional na gestão do wellfare e no desenvolvimento económico, social e cultural.

Com base nesta leitura da realidade faz-se uma proposta de enquadramento da acção do Estado na "era da informação", através da enumeração das áreas prioritárias de resposta às ameaças que põem em causa o seu poder de acção:

·         a necessidade de fomentar o desenvolvimento das tecnologias de informação e a criação de mercados, sob pena de as empresas nacionais e os seus cidadãos não poderem competir no mercado global económico e de emprego;

·         a necessidade de controlar as transações monetárias que ocorrem no espaço dos fluxos, sob pena de ver cada vez mais diminuída a sua margem de acção na política económica interna e externa e a defesa da protecção social dos cidadãos;

·         lidar com a crise que a democracia enfrenta recorrendo ao próprio espaço onde o exercício dos poderes se define, ou seja o espaço dos fluxos.

Partindo da análise dos discursos políticos sobre a sociedade de informação em Portugal, provenientes dos diversos partidos, sobre o papel do estado face aos pontos atrás enunciados, ressalta em primeiro lugar o facto de haver uma quase unanimidade quanto à necessidade de o estado intervir na criação dos mercados de utilizadores e de produtos das TIC. Intervenção essa realizada através das políticas informacionais de fomento do acesso e das condições económicas para o desenvolvimento do comércio electrónico -- ou seja da investigação científica à legislação e apoios ao investimento nestas áreas.

No polo oposto da atenção encontramos a quase total omissão de referências ao controle dos fluxos financeiros a um nível global.

No que respeita à Democracia, tal como nos restantes países, embora esteja presente no discurso político de diversas formas, o aprofundamento da democracia através da utilização das tecnologias de informação em Portugal é essencialmente visto na perspectiva da disponibilização da informação. Uma visão algo redutora das possibilidades associadas às tecnologias de informação e também da resposta necessária às dinâmicas com que a globalização nos interpela.

No entanto, exemplos como os de Bolonha, Manchester e Berlim,63 bem como da capacidade de participação nos protestos64 através da internet e o caso do Projecto Terràvista,65 podem mostrar-nos como dar os primeiros passos no aprofundamento da democracia através do espaço dos fluxos. Esse será o desafio colocado a programas como as Cidades Digitais e o Alentejo Digital, bem como a todas as políticas promotoras do acesso à utilização das tecnologias de informação.

Um desafio que passa igualmente pela capacidade dos decisores políticos perceberem que se limitarem a sua actuação à esfera da criação de mercados e do acesso, esquecendo a necessidade de controlar as transações monetárias e de lidar com a crise que a democracia enfrenta, estarão a contribuir para a diminuição da sua própria capacidade de intervenção.

Uma discussão em torno do aprofundamento da democracia, terá de ser vista numa perspectiva global. Implica discutir não apenas como podem as tecnologias de informação ser utilizadas, como no caso do voto electrónico, mas como se deve adaptar o próprio sistema democrático às transformações que a constituição da "sociedade rede" nos coloca.

O estado "encontra-se à beira da sociedade de informação" no sentido em que sendo a sua acção fundamental para atingir esse objectivo, a construção da sociedade de informação implica ela própria um desgaste da capacidade de actuação do estado perante a sociedade.

Esse é o dilema que o estado tem de defrontar e sobre o qual todos devemos reflectir, pois um estado mais fraco, no contexto actual de globalização tende a representar igualmente menor estabilidade e segurança para os cidadãos.

Bibliografia

Livros

Tsagaroussianou, Roza, Cyberdemocracy, Technology, Cities and Civic Networks, London, Routeledge, 1998.

Mattelart, Armand, Theories of Communication, London, Sage, 1998.

Mcquail, Dennis, Media Policy, Euromedia Research Group, London, Sage, 1998.

Giddens, Anthony, Para além da esquerda e da direita, Oeiras, Celta, 1998.

Habermas, Jurgen, Between Facts and Norms : Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy, Cambridge, MA, MIT Press, 1996

Schiller, Herbert I., Information Inequality : The Deepening Social Crisis in America,New York, Routeledge, 1996.

Bell, Daniel, The Cultural Contradictions of Capitalism, New York, BasicBooks, 1996.

Michael J. Piore, Charles F. Sabel, The Second Industrial Divide : Possibilities for

Prosperity, New York, BasicBooks, 1984.

Harvey, David, The Condition of Postmodernity : An Enquiry into the Origins of Cultural Change, Oxford, Blackwell, 1997.

Castells, Manuel, The Rise of the Network Society (Castells, Manuel. Information Age, 1.), Oxford, Blackwell, 1997.

Castells, Manuel, The Power of Identity : The Information Age -- Economy, Society and Culture (Castells, Manuel. Information Age, 2.), Oxford, Blackwell, 1997.

Castells, Manuel, End of Millennium (Castells, Manuel. Information Age, V. 3,), Oxford,

Blackwell, 1998.

Giddens, Anthony, As Condições da Modernidade, Oeiras, Celta Editores, 1997.

Poster, Mark, Second Media Age, Cambridge, Polity, 1995.

Webster, Frank, Theories of the Information Society, London, Routeledge,1995.

Lyon, David, The Rise of the Surveilance Society,Cambridge, University of Minnesota Press, 1994.

Kahin, Brian et Keller, James, Public Access to the Internet, Cambridge, MA, MIT Press, 1995.

Kahin, Brian and Wilson, Ernest, National Information Infrastructure Initiatives: Vision and Policy Design, Cambridge, MA, MIT Press, 1996.

Lipietz, Alain, Towards a new economic order: postfordism, ecology and democracy, MITPress, 1994.

Nicholas Garnham:Capitalism and Communication : Global Culture and the Economics of Information (Media, Culture and Society), London, 1986.

Missão Para a Sociedade de informação, Livro Verde para a Sociedade de informação, Lisboa, MCT, 1997.

Cardoso, Gustavo: Para uma Sociologia do Ciberespaço, Oeiras, Celta Editores, 1998.

 

Gustavo Cardoso. Docente do Departamento de Ciências e Tecnologias de Informação do ISCTE na área da Sociologia das Tecnologias de Informação.