Recepção e Compreensão da Imagens: Problemas de
Ficção e Metodologia Científica
(Terceiro Capítulo de "As aparições do deus Dionísio na Idade
Midia")
Cláudio Cardoso de Paiva,
Universidade Federal da Paraíba
1. As bases
interpretativas de uma antropologia da comunicação
O nosso argumento sobre a
televisão na sociedade brasileira, é resultado de uma pesquisa (1), cuja
estratégia metodológica coloca a telenovela em perspectiva para realizar uma
interpretação da cultura brasileira. Partimos do pressuposto que a contemplação
das imagens, figuras e símbolos que estruturam a ficção televisual brasileira,
consiste numa forma de compreensão do imaginário social. Dito isto, é
pertinente especificar a nossa área de interesse, que circunscreve o domínio
das tecnologias da comunicação e imaginário social. Absorvendo as sugestões da
sociologia (2), e de modo mais abrangente, da antropologia (3), estruturamos as
nossas bases interpretativas atentas aos fenômenos da comunicação. Neste
sentido, aliamos as contribuições advindas de diferentes domínios do
conhecimento para apreender o sentido das imagens televisuais, o que define
antes uma postura hermenêutica, interpretativa, do que uma metodologia
legitimada a priori pela função crítica e espírito de negação.
As telenovelas podem ser vistas
como séries, cuja disposição permite mostrar as faces do Brasil em toda sua
potência, exibindo as formas híbridas que caracterizam a cultura brasileira;
mesmo assépticas, maquiadas e produzidas para o gosto mediano das massas, as
imagens do Brasil são apresentadas de modo surpreendente na ficção. Como a
sociedade brasileira é sempre uma matéria explosiva, a ficção não poderia
jamais esconder seu aspecto de turbulência. Num país cuja cultura é tão
passional, a um só tempo afetiva e violenta, onde os crimes pela defesa da
honra são cometidos à luz do dia, as histórias de amor não poderiam ser sempre
adocicadas (4). Num ambiente onde o desequilíbrio e a estratificação
socioeconômica se tornam cada vez mais graves, um enfoque "realista"
da sociedade não poderia camuflar as tensões e conflitos cotidianos;
considerando o fenômeno das crianças desaparecidas, que tem atraído a atenção
do mundo inteiro, percebemos que um recorte da realidade brasileira não poderia
negligenciar a parte maldita do social (5). A imagem convencional do Brasil
habituada a exibir um país onde os seus habitantes levam a vida com humor e
esperança, apesar das adversidades, agora tem de conviver com o flagrante de um
Brasil violento, quase à beira de uma guerra civil. As imagens dos conflitos de
terra no Brasil, já chegaram à rede imaginária da televisão, virando do avesso
as características do melodrama (5). A ficção televisual, fundada sob o signo
de uma estética romântica, transformou-se substancialmente, e hoje, projeta um
quadro que nos parece barroco, pela maneira como se conjugam os contrastes de
riqueza e pobreza, do exuberante e precário, do arcáico e ultra-moderno.
2. O dionisismo
e as formas de agregação coletiva
Partimos de um ponto de vista
estético para compreender o homem em sociedade e elegemos a noção de imagens
dionisíacas para traduzir a complexidade da cultura brasileira. Retomamos o mito do deus grego Dionísio (ou Baco,
na terminologia latina) para focalizar o imaginário social brasileiro, e
seguindo este fio, observamos as tribos urbanas na contra-luz dos sincretismos
religiosos, sensualidade e cultura de natureza selvagem. Situamos estas imagens
no contexto das tecnologias da imagem e da comunicação, no domínio da ficção
televisual; tal empresa parece um contra-senso, em princípio porque a mídia
eletrônica é vista antes como instância de individualização do que vetor de
sociabilidade; depois porque a mídia tende a neutralizar os conflitos e mostrar
as imagens do social de forma espetacular. Além do mais, a televisão,
privilegiando o olhar sobre os demais sentidos, estimularia uma experiência
mais apolínea (harmônica) do que dionisíaca (impulsiva). Entretanto, o nosso desafio
é mostrar que apesar de todos os cuidados técnicos e ideológicos da mídia,
reencontramos no espaço das telenovelas a possibilidade de flagrar a expressão
do dionisíaco, uma experiência multissensorial, com todos os termos de perigo e violência que povoam a vida social, sem
descartar, seu outro lado, sua parte de fascínio e beleza.
A expansão dos audiovisuais,
inegavelmente, gerou novas formas de vizibilidade e dizibilidade;
as visões, experiências e linguagens do mundo se modificaram radicalmente, com
os audiovisuais. Tornou-se banal designar o nosso tempo como uma
"civilização da imagem"; contudo, apenas recentemente, começamos a
nos acostumar com o novo ambiente; a sua composição estética e mitológica,
fundada sobre a imagística do cinema e da televisão possui positividade pois
possibilita uma compreensão da realidade e leva-nos a repensá-la por novos
prismas.
O estilo de apresentação das
telenovelas, como as antigas mitologias, constrói-se ao lado dos discursos da
História, da política ou da ciência. A ficção é, portanto, um campo de produção
de sentido, que revela aspectos importantes da realidade; mas, é diferente,
repetimos, de uma retórica preocupada em produzir um discurso de
"verdade", como o telejornal. Em toda a sua ambigüidade (de verdades
e mentiras) é um tipo de narrativa que revela o estilo do narrador
pós-moderno (7) em que a memória coletiva, a partilha, a transmissão de uma
experiência e a participação social têm um lugar importante.
Distinguir as instâncias da representação
e da apresentação implica no risco de designar simplesmente a disputa
entre uma perspectiva estética moderna (caracterizada pela paródia, crítica e
denúncia das formas do falso) e uma perspectiva pós-moderna (caracterizada por
uma percepção atenta às múltiplas aparências do real). A questão, entretanto,
se coloca num contexto conceitual mais complexo e se situa além da comunicação
social e do mundo visível produzindo pela mídia contemporânea.
A filosofia moderna de Marx
afirmou no século XIX a necessidade de livrar os homens imersos numa
"falsa representação da realidade"(8), cortando o mundo em dois
pedaços: assim teríamos uma consciência do "mundo real" se opondo à
alienação ou simulação (9) da realidade. Um longo filão de pensadores vê as
imagens e os simulacros como uma forma de alienação. Por outro lado, a
"filosofia a golpes de martelo", inaugurada por Nietzsche (10),
questionando os fundamentos dos valores morais (inclusive no campo da linguagem
e da estética), pôs em crise as certezas modernas. A civilização, doravante,
teria de rever os critério que definem as noções de verdade. Na segunda metade
do século XX, a mudança dos paradigmas filosóficos e científicos, como tradução
das experiência atuais, propõe uma nova epistemologia, sublinhando a crise
da representação(11) e a inscrição do simulacro (ou aparência) como uma
instância que possui a sua própria lógica de sentido(12), autonomia e
positividade. O cinema e a televisão, enquanto um modo de exibição das imagens
em movimento, modificaram completamente o estatuto da representação
moderna. Os meios de comunicação não representam mais o real, eles criam,
entretanto, uma nova aparência de realidade. A mídia instaurou um mundo
imaginal(13), um mundo visível, cuja emanação perturba a imaginação
coletiva. As imagens se tornaram autônomas, modificaram radicalmente as
experiências dos contemporâneos e isto é apenas o prenúncio do que virá com a
realidade virtual.
No contexto da cultura
brasileira, a ficção televisual se estrutura segundo um simbolismo que não pode
mais ser reduzido a uma mimesis (imitação) ou falsa representação
(simulacro perverso) da realidade. Grande parte do mundo sensível é produto de simulacros
cujas conseqüências fecundas não podem ser desconsideradas (14). A ficção
televisual é hiperreal; na profundeza de sua aparência, abriga as emoções
coletivas e particulariza um tipo de comunicação
social importante. A ficção televisual apresenta uma espécie de mitologia que
responde às solicitações das massas. A maneira como a ficção participa das
questões ético-políticas e das estruturas da vida cotidiana (inclusive dos
jogos, da moda, dos costumes...) a situa como um campo de referências estéticas
e mitológicas importantes. O nosso enfoque sobre a cultura brasileira consiste
em tratar as telenovelas à luz de uma razão sensível às mitologias
contemporâneas; isto implica num esforço em compreender como a ficção
televisual assimila as tensões entre a construção apolínea da civilização e as
pulsões dionisíacas da cultura.
3. Uma
antropologia compreensiva
Espreitar o homem em sociedade,
considerando as suas experiências místico-religiosas, ecológicas, sensuais e
mitológicas, coloca-nos no domínio de uma antropologia interpretativa
que define uma postura hermenêutica atenta à compreensão do real em toda
sua pluralidade. Ocupando-nos da ficção televisual, percebemos que ela nos
observa, ao mesmo tempo em que é observada. Partimos do pressuposto que na
construção imaginal da sociedade, existe uma reciprocidade entre o
sujeito e o objeto da experiência estética. O sujeito é moldado pelo ambiente
em que vive, ao mesmo tempo em que modifica este ambiente; existe aí uma
interação (ou interatividade) que pode nortear também a nossa relação com o
universo paralelo, com a realidade virtual das máquinas de visão (do cinema, da
televisão e do computador).
A noção de neutralidade
científica não se sustenta, quando se reconhecece que o sujeito do
conhecimento mantém uma relação recíproca com o seu objeto; uma antropologia
conduzida por uma razão sensível se distingue de uma perspectiva
utilitarista ou movida pelo espírito de negação e percebe os níveis de
complexidade existentes entre o sujeito e o objeto do conhecimento. O
investimento emocional, antes que o determinismo ideológico, sinaliza um tipo
trabalho favorecido pela compreensão mútua entre sujeito e objeto do
conhecimento: Numa lembrança feliz, recorremos ao filósofo Gaston Bachelard,
para quem "É preciso que uma causa sentimental, que uma causa do coração
se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida
mutante da luz" (15).
O nosso esforço de pensar as
questões da mídia e sociedade pelo viés de uma antropologia interpretativa,
encontra contribuições importantes na sociologia compreensiva (proposta
por Michel Maffesoli) (16), em que o emocional, os sentimentos, os afetos são
considerados importantes na hora da análise. A presença cotidiana e
ritualística das telenovelas, sua circulação nos diversos espaços da percepção
social, assim como o enfoque das questões fundamentais no debate cultural, constituem
fatores que fazem da ficção uma fonte importante nos estudos sobre a cultura
brasileira.
A perspectiva de uma epistemologia
compreensiva (17) se aproxima de uma fenomenologia, em que se estabelece a
comunicação entre o sujeito e o objeto de contemplação. É esta integração ou
simbiose que produz a compreensão. A perspectiva de pesquisa fisgada pela
obsessão de dominar o objeto do conhecimento, cede lugar a uma disposição para
se superar junto com ele (18).
O mito de Dionísio, como já
assinalamos, exprime as formas da agregação e do dinamismo social (19), e o seu
caráter multiforme favorece uma compreensão do hibridismo da cultura, que
enfim, estimula um enfoque da cultura a partir do seu lado trágico (20)
e vitalista. Dionísio, o deus da máscara e do teatro, permite
compreender a dramaturgia televisual brasileira, cuja efervescência,
aproxima-se a cada dia da pele do Brasil. A interpretação da cultura
brasileira, através da televisão, das telenovelas e por intermédio do mito de
Dionísio, exige o rigor de uma epistemologia sensível à efervescência
cotidiana, o que um racionalismo abstrato e distante do seu objeto não poderia
demonstrar.
Em nossa interpretação, colocamos
em discussão as explicações tradicionais do Brasil, que insistem em pensar o
país nos termos de uma totalidade ou sob a forma do dilema. O desafio que se
impõe é pensar a pluralidade do Brasil, onde cohabitam o computador e a enxada,
sem recair nas armadilhas de uma razão dualista. Uma sociologia compreensiva
atenta, simultaneamente, à pluralidade e ao vitalismo social pode estimular uma
reflexão. Neste sentido, o termo coincidência dos opostos, em
particular, parece-nos pertinente, pois leva a pensar sobre a simbiose entre
formas "quase antagônicas": de um lado os discursos pragmáticos da
História, do jornalismo e da crônica, e de outro, o discurso intimista e
ficcional das telenovelas. A noção de coincidência dos opostos nos
permite pensar uma antropologia das imagens atenta ao encontro e diálogo
entre a ficção televisual e as histórias cotidianas.
4.
Contribuições de uma epistemologia poética
O nosso procedimento
metodológico, inspira-se nas contribuições de Bachelard que, buscando
transcender as limitações do positivismo do seu tempo, empenhou-se no esforço
de inscrever um modo de contemplação, além da grande divisão entre o homem
diurno da ciência e o homem noturno da poesia(22). Absorvendo esta
inspiração, o nosso enfoque das mitologias contemporâneas, constituídas pela
ficção televisual é sensível também às contribuições de uma epistemologia
poética.
As telenovelas são narrativas
cotidianas que se constroem a partir de uma espécie de tensão com os discursos
da História. Em nosso enfoque, colocamos em evidência algumas passagens da História
do Brasil que inspiraram as histórias ficcionais. Contudo, a telenovela
consiste num trabalho que considera as histórias da intimidade, como uma
maneira de narrar a história da cultura; um estímulo para situamos a nossa
interpretação no domínio de uma antropologia do intimismo. O livro de
Bachelard, "A terra e os devaneios da vontade, Ensaio sobre as imagens
da intimidade", parece-nos pertinente como uma espécie de prolegômenos
para uma epistemologia da intimidade. As raízes, da casa,
do mar e da floresta, por exemplo, são signos que despertam para
uma outra forma de pensar a diversidade da cultura do atual e cotidiano.
A noção teleológica da História,
em crise, solicita um olhar atualizado sobre a virada do século; entretanto, a
idéia de pensar as "Raízes e Antenas do Brasil" pode ser estratégica
para enfocar um breve percurso da história da cultura brasileira. Primeiro para
mostrar, como as experiências ético-políticas e estéticas no Brasil se
constituiram antes, durante e após o regime militar e, em seguida, para mostrar
como se expressam as relações entre a organização técnica apolínea ou prometêica
(22) e as pulsões dionisíacas do social. As imagens dionisíacas, com
tudo o que contêm de vigor e exuberância, mostram-se visíveis, por exemplo, ao
focalizarmos as formas do hibridismo e da mestiçagem cultural do Brasil. Estas
formas nos permitem formular as bases interpretativas para uma
compreensão da cultura televisual brasileira.
Revisitamos o mito de Dionísio,
na obra de Pierre Grimal(23), o qual, embora conciso, é importante numa
exposição do mito e rito do deus Dionísio, fio condutor da nossa argumentação. Destacamos
episódios que nos parecem importantes e nos servirão como indícios para
compreender o simbolismo da cultura brasileira, que entendemos como dionisíaca.
Assim, os signos do renascimento, da metamorfose, do êxtase
místico e religioso, assim como aqueles do eterno retorno e da vida
indestrutível, presentes na transposição do texto de Grimal, são valiosos
numa interpretação da ficção brasileira.
Parece-nos conseqüente observar o
desempenho da mídia no contexto da sociedade brasileira para indicar o seu
papel cultural e mostrar como o "ruído" do social intervém na rede
midiática, alterando os termos clássicos de uma visão teórica funcional e mecânica
da comunicação. Uma antropologia da comunicação social promove um
deslocamento epistemológico importante, ao demonstrar a maneira como o estilo
da ficção traduz o estilo da sociedade. Optamos por um enfoque interpretativo
mais abrangente, em que a intuição ocupa um lugar tão decisivo quanto à dedução.
Um olhar atento à complexidade da
televisão, permite distinguir as noções de comunicação do grotesco(24), escatologia
estética e imagens dionisíacas, que traduzem, respectivamente, a
projeção dos signos de "mau gosto" desafinando a estética
convencional, as imagens horrendas e abjetas como produtos de um esquema
sensacionalista e, enfim, a reaparição das figuras de selvagens, freqüentemente
desterritorializadas pelo processo civilizatório.
5. Interpretação
e Recepção das Telenovelas
Todos os textos já implicam num
tipo de hermenêutica, uma forma de perceber e interpretar; a ficção, neste
sentido, consiste numa produção, recepção e interpretação de narrativas cuja
linha evolutiva persiste, permanentemente, em íntima relação com as outras
narrativas do cotidiano. As narrativas, como interpretações, demonstram ser
possível, perceber o regime de imagens que estruturam as ficções
televisuais. A idéia de uma interpretação da cultura brasileira, pelo viés da
ficção televisual, levou-nos a uma leitura das telenovelas, séries e
minisséries, o que nos permitiu encontrar alguns aspectos importantes da
cultura presentes na elaboração deste gênero ficcional. Constatamos a
permanência dos temas concernentes às formas místico-religiosas, ao prazer dos
sentidos, às forças da natureza e ao vitalismo da cultura, e às narrativas
históricas e mitológicas. São referências importantes que exprimem o caráter
híbrido, mestiço, pluralista da cultura, por conseguinte, do imaginário social,
e estão presentes em diversas passagens do mito de Dionísio. Realizamos um
deslocamento, tomando de empréstimo as imagens presentes na mitologia antiga e
utilizando-as para pensar as mitologias contemporâneas. Enfim, a nossa reflexão
sobre o homem em sociedade, colocando em perspectiva as mitologias, situa-nos
no âmbito de uma antropologia dos mitos contemporâneos.
No contexto da telenovela, a
irregularidade dos jogos de ilusão de ótica, a coincidência das imagens
católicas e imagens pagãs, a mistura entre as narrativas literárias e
cinematográficas, e a apropriação das linguagens do videoclipe, quadrinhos e
publicidade, nos estimulam a perceber a ficção televisual como uma espécie de barroquização
midiática(25).
Encontramos na tese de doutorado
de Camile Paglia (Personas Sexuais, 1990), algumas observações que podem
sinalizar direções, no que concerne à sensibilidade barroca e suas projeções na
vida cotidiana.
"A
metamorfose é o princípio dionisíaco do ilusionismo barroco. Bernin chega a
colocar quatro serpentes gigantescas, onduladas, ostensivamente pagãs, para
sustentar o palium da cristandade. A obra suprema do barroco, Santa Tereza
D'Avila, uma paródia sexual das anunciações do renascimento, não faz do
andrógeno armado que um cômico provocador de toucador. A vítima orgásmica é
levada por uma nuvem dionisíaca. A mulher, com toda a sua vibrante
interioridade, coloca-se no centro da cena"(26).
O princípio que dirige a nossa
análise, situa a sociologia compreensiva no contexto mais amplo de uma antropologia
da comunicação, isto é, a preocupação em apreender o homem e seus
símbolos, na sociedade midiatizada. Optamos, igualmente, por uma leitura da
recepção e interpretação das mitologias no cotidiano brasileiro. Nosso
percurso, que tem em vista uma compreensão da realidade brasileira, aproxima-se
do objeto de conhecimento, as imagens audiovisuais e percebe o contágio
recíproco entre produtor e consumidor nas redes de significação. Uma razão
sensível à potência das imagens dionisíacas exibidas no vídeo apreende a
dimensão sensual, afetiva e emocional e, portanto, estética do mundo visível. Uma
razão abstrata, ali não veria nada além de alienação e simulacros perversos da
realidade.
NOTAS:
1.Tese de Doutorado em Ciências
Sociais defendida na Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, em
28.12.1995, sob a rubrica Les Images Dionisíaques dans le Contexte de la
Culture de Masse, Une Interprétation Esthétique de la Fiction Televisuelle
Bresilienne, com orientação do Prof. Michel MAFFESOLI.
2. Cf. MAFFESOLI, M. O
Conhecimento Comum, Compêndio de sociologia
compreensiva. S. Paulo: Brasiliense, 1988; ___ No fundo das aparências,
Por uma ética da estética, Petrópolis: Vozes, 1994; ___ A contemplação do
mundo, Tratado de Estilo. Porto Alegre: Sulinas 1997.
3. Cf. JUNG, C.G. O homem e
seus símbolos, Rio: Imago, 1977; ELIADE, M. O sagrado e o profano,
1957; BACHELARD, G. O ar e as canções, Ensaio sobre a imaginação do
movimento, 1942; ___ A água e os sonhos, Ensaio sobre a imaginação da
matéria, 1942; ___ A terra e os devaneios da vontade, 1947; ___ A
terra e os devaneios do repouso, 1948; A psicanálise do fogo, 1949;
editados no Brasil pela ed. Martins Fontes. DURAND, G. As estruturas
antropológicas do imaginário, 1969; ___ A imaginação simbólica,
1964; ___ O imaginário, Ensaio sobre as ciências e a filosofia da
imagem, 1994.
4. Tomamos como exemplo a série
"Quem ama não mata" e a telenovela "Gabriela",
em que o problema dos crimes passionais está no centro da cena.
5. Lembramos a propósito a
telenovela "Explode Coração" (Glória Perez, 1996), que trata
do assunto das crianças desaparecidas e dos menores abandonados.
6.Um dos temas da telenovela
"O Rei do Gado" (Benedito Ruy Barbosa, 1997).
7.Consultar o ensaio de W
Benjamin "O Narrador, Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov"
in ROUANET, S.P. (Org.) Walter Benjamin, Obras Escolhidas, Op.cit.
p.197-221. No referido ensaio o autor nos fala sobre a arte de narrar,
atividade na qual o "marinheiro viajante" e o " negociante
sedentário" são mestres. É interessante observar que "o
narrador" mudou de forma, nos espaços e tempos contemporâneos; Silviano
SANTIAGO, num estudo instigante, demonstra-nos os estágios desta mudança e
anuncia a "aparição" do "narrador pós-moderno". Cf.
SANTIAGO, S. "O narrador pós-moderno" in ___ Nas Malhas da Letras,
S.Paulo: Companhia das Letras, 1989. Utilizamos este "insight" para
pensar a cultura e a ficção televisual das telenovelas. As novelas de rádio e,
posteriormente, as telenovelas, inauguram um novo estilo de narrador. O romance
de Mário Vargas Llosa nos dá um exemplo de como a ficção, à época da mídia,
participa (do relato) da "experiência" de mundo e do imaginário
coletivo. Cf. Tia Júlia e o Escrevinhador.
8.MARX, K. L'idéologie allemande in ___ Philosophie, Paris: Gallimard, 1994.
9.Jean BAUDRILLARD, herdeiro da
filosofia hegeliana e da crítica marxista, é o exemplo de um autor que,
apoiando-se na noção de "simulacro", interpreta a "sociedade de
consumo" dividida entre o "mundo simulado" e o "mundo
real". Consultar, a propósito, O Sistema dos objetos, S. Paulo:
Editora Perspectiva; A Sociedade de Consumo, op.cit. Les changes
symboliques et la mort, Paris: Gallimard, 1976; Simulacros e
Simulação, Relógio D'água, 1991; A sombra das maiorias silenciosas,
Op. Cit. E, ainda os seus trabalhos mais recentes, quais sejam, A
transparência do Mal, Ensaio
sobre os fenômenos extremos, Campinas: Papirus, 1990; e, Le Crime Parfait, Paris: Galilée,
1995. Apesar da sua perspectiva "pessimista", em relação à cultura
contemporânea, considerada inteiramente dissolvida nas "simulações e
simulacros", o autor nos sinaliza referências importantes para refletirmos
sobre o personagem de ficção e sobre a simbiose entre a ficção e realidade. Entretanto,
ao invés de "simulacro", como cópia canhestra do real, utilizamos a
noção de "aparência", para contemplar as imagens da televisão;
o que não nos impede de nos servirmos do instrumental teórico-conceitual de
autores que sustentam posturas divergentes. Sobre a noção de "aparência",
ler MAFFESOLI, M. No fundo das aparências, op.cit.
10.NIETZSCHE, F. A Genealogia
da moral, S.Paulo: Ed. Moares.
11 Ver a propósito, FOUCAULT, M. As
palavras e as coisas, S.Paulo: Martins Fontes, 1981, 2a ed. Consultar,
particularmente, os capítulos III e IV, respectivamente, "Representar",
p. 61-92, e "Os limites da representação", p. 231-264.
12.Cf. DELEUZE, G. Lógica do
Sentido, S. Paulo: Perspectiva, 1969; ___ Cinema, a imagem-tempo, S. Paulo:
Brasiliense, 198_
13.MAFFESOLI, M. A
contemplação do mundo, op.cit.
14 Ver a propósito SANTIAGO, S.
"Alfabetização, leitura e sociedade de massa" in NOVAES, A. (Org.) A
rede imaginária, op.cit.
15.BACHELARD, G. A água e os
sonhos,
op.cit..
16.Cf. MAFFESOLI, M. O
conhecimento comum, Op.cit.
17 Encontramos estímulo para pensar
uma epistemologia da comunicação, no texto de Michel MAFFESOLI, "Télévision,
culture e post-modernité" produzido pela "Association Télévision
et Culture", publicado por ocasião do colóquio "Reinventing
Télévision, Worls Conference, Paris, 15 a 19 de Setembro, 1995.
18 Encontramos esta perspectiva
em MORIN, E. La méthode, Paris, Seuil, 1977.
19 Cf. MAFFESOLI, M. A sombra
de Dionísio, Op.cit.
20 Para apreender o sentido
"trágico" na ambiência cotidiana, que dirige o nosso enfoque e
argumentação, consultar NIETZSCHE, F. A origem da tragédia, Op.cit.;
SIMMEL, G. La tragédie de la culture, Paris, Rivage, 1988; e, LUKÀCS, G.
L'âme et les Formes, Paris, 1911. Empregamos o trágico aqui no sentido
de uma afirmação e enfrentamento do presente, em distinção ao drama feliz de um
amanhã que canta.
21 Encontramos esta expressão nos
trabalhos de G. BACHELARD, caracterizados em seu duplo aspecto, a saber, o
científico e o poético. No que concerne à epistemologia proposta por este
filósofo, ela pode iluminar um enfoque das relações entre o sujeito e o objeto
do conhecimento científico. As noções propostas pelo autor, tais como
"ruptura", "deslocamento", "obstáculo" e
"vigilância" epistemológicos, permitem-nos compreender o que o
filósofo entende por "psicanálise do conhecimento científico". Assim,
podemos distinguir as formas da percepção imediata e a opinião que perturbam o
conhecimento objetivo. Cf. BACHELARD, G. O racionalismo aplicado, Rio:
Zahar, 1985. O outro aspecto da obra de Bachelard, a fonte poética, tem uma
importância fundamental em nossa pesquisa. O seu estudo sobre os símbolos, em
correlação com os elementos da natureza, e sobre o imaginário, é sugestivo para
uma análise. Bachelard divide o sujeito como "homem diurno da
ciência" e "homem noturno da poesia", leva a pensarmos o
imaginário, como um conceito próximo das narrativas mitopoéticas e, distante
dos discursos científicos. Podemos, entretanto, compreender esta divisão, como
uma estratégia do filósofo em ruptura com o espírito positivista da sua época. O
seu trabalho, contudo, é pioneiro no domínio das "ciências do
imaginário", e tem propiciado estudos notáveis no campo da produção
acadêmica. Ver, a propósito, DURAND, G. "Les herméneutiques
instauratrices" in L'imagination symbolique, Paris: PUF, Quadrige,
n° 51, 1984, p. 62-85.
22 No livro de M. MAFFESOLI, A
sombra de Dionísio, Op.cit., a dualidade entre Apolo e Dionísio é
importante; contudo, o autor não a considera como uma tensão tão grave quanto
àquela anunciada no intempestivo livro de NIETZSCHE, A origem da tragédia,
Op.cit. Aqui, o confronto se inscreve de modo mais acentuado entre o espírito
de Dionísio e o de Prometeu. Segundo Maffesoli, "o dionisismo é antes de
tudo, uma maneira de enfocar o problema da socialidade", ou seja, "a
expressão cotidiana e tangível da solidariedade de base, o societal em
ato". Cf. A sombra de Dionísio, Op.cit. p.14. O autor escreve que
"a civilização ou a domesticação dos costumes é antes de tudo fundada
sobre isto que se convencionou chamar de individuação"; o autor nos mostra
ainda que o dionisismo se opõe à moral econômica, a qual funciona sempre em
função do amanhã que virá... ou seja, sob o signo de Prometeu". p.26.
23 GRIMAL, P. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine, PUF, 1969.
24 Cf. MUNIZ SODRÉ, A comunicação
do grotesco, Petrópolis: Vozes, 1980. Ver também, SODRÉ, M. O social
irradiado, 1995. O autor realiza um estudo sobre a utilização das imagens
do grotesco na programação televisual. Opondo-se às imagens adocicadas,
apolíneas, edulcoradas da televisão, a difusão das imagens consideradas como
"obscenas" ou de "mau gosto" pelo público burguês,
constitui o fenômeno que o autor interpreta como a "comunicação do
grotesco". A "escatologia estética" designa o repertório das
imagens abjetas, presentes no jornalismo sensacionalista, nos filmes que fazem
apelo à violência, enfim, as cenas de sangue, de corpos mutilados ou de
excrementos. A este respeito, encontramos análises consequentes nos textos de
AUCLAIR, G. Le mana quotidien, Structures et fonctions du fait divers,
Paris: Anthropos, 1970; KRISTEVA, J. Les pouvoirs de l'horreur, essai
sur l'abjection, Paris: Seuil, 1980; e, DUCLOS, D. O complexo do lobisomem,
O fascínio pela violência na cultura americana, Paris: La Découverte, 1994.
25. Vide "A baroquização do
mundo" in No fundo das aparências, Op.cit. p.151-186. MAFFESOLI
utiliza o barroco como uma "alavanca metodológica" para compreender a
exuberância, o excesso, os contrastes, as aparências do nosso tempo. p.154.
26 Cf. PAGLIA, C. Personas
Sexuais, Arte e Decadência de Nefertite a Émilie Dickinson, S.Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p.165.