Walter Benjamin e a Imaginação Cibernética:

Experiência e Comunicabilidade na Era do Virtual

 

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal de Paraíba

 

Email: imago@netwaybbs.com.br

 

1 Introdução

2 O singular de Benjamin, a percepção de uma cultura no plural

3 As imagens virtuais têm aura?

4 Emanações barrocas na época do virtual

5 Figuras da sorte, figuras do azar: os clichês na Internet

6 Amor e ódio ao vivo e "on line"

7 Das redes de dormir às redes da imaginação criadora

8 Indústria cultural, contracultura e culturas excêntricas

9 Tecnologias de comunicação e novas formas de percepção

10 Fim de Partida

 

  1. Introdução

Propomos um exercício de sondagem sobre a cibercultura, colocando em perspectiva a experiência de agregação dos indivíduos na época das auto-estradas da informação. Para isso, um recuo na história da cultura se faz necessário. Encontramos as bases interpretativas para decifrar a realidade virtual nos livros de Walter Benjamin (1892-1940), um filósofo que pensa o século XIX com as antenas ligadas na modernidade do século XX. Sua percepção aguçada fornece elementos para uma discussão crítica e recepção das questões emergentes sobre arte, sociedade e tecnologias do século XXI.

Partimos do pressuposto que na passagem do fim do século passado há imagens e figuras que podem ajudar a entender o nosso fim de século. A figura do "flanador", solitário que passeia fascinado pelos objetos da grande cidade (mas esquivo ao espírito capitalista), redescoberto por Benjamin, na obra poética de Baudelaire, possui afinidades com a figura do internauta. O primeiro é um viajante atento e transeunte desconfiado que apreende o sentido dos objetos além da sua dimensão mercadológica; o segundo é um navegador curioso, cúmplice da agilidade, pesquisador interativo que busca nos objetos virtuais, algo além da sua condição efêmera e transitória.

A descrição feita por Benjamin, dos interiores, praças e passagens na obra "Paris, Capital do Século XIX", por exemplo, pode estimular, um olhar sobre as "páginas eletrônicas" como passagens virtuais para uma atualidade exuberante, na Terra-Pátria cibernética do século XX. Para Benjamin, as vivências e narrativas dos indivíduos na modernidade, se norteiam por uma busca de sentido inscrito nas imagens, através de uma memória coletiva que desperta para um estilo de vida mais pleno; é isto que o filósofo traduz por experiência. Ele acredita no retorno das imagens do passado como um despertar, atualização e partilha do presente, livrando os homens de uma experiência empobrecida.

A Internet pode ser um meio de despertar, de atualização e partilha, mas que impõe desafios. Perguntamos, por exemplo, em que medida a Internet, como uma "árvore de conhecimento" pode revigorar a experiência de sociabilidade e inteligência coletiva? Como a imaginação cibernética pode politizar o cotidiano? Como esta máquina do virtual pode atualizar e fecundar a experiência das culturas locais no contexto da velocidade global? Estas questões serão formuladas, em diversos registros, ao longo do texto que tem vista observar as formas de Experiência e Comunicabilidade na sociedade contemporânea.

Considerando a realidade dos países em desenvolvimento, constatamos que as redes permitiram, favoravelmente, o acesso à informação global e a ligação entre os países, numa escala planetária. Contudo, o que as novas tecnologias trazem de inovador é um despertar através da pesquisa, que lhe permite participar ativamente de uma produção de sentido.

Pensar o coletivo e a Internet no contexto dos países em desenvolvimento, remete à história mal resolvida entre a esfera pública e a esfera privada. Hoje, quando há um visível declínio das formas de socialização (família, escola, sociedade civil etc.), os meios de comunicação, particularmente a Internet, enquanto instâncias de diálogo entre a "intimidade e a publicidade", constituem veículos geradores de experiências interativas e de novas formas de sociabilidade. As noções de "experiência e comunicação", para Benjamin possuem um sentido convergente, isto é, traduzem a idéia de transmissão e partilha de uma mensagem; esta é uma das linhas mestras que norteiam a nossa argumentação.

A Internet, como dispositivo de informação, traz novos desafios para o debate sobre educação, ética e sociabilidade, porque o seu aparecimento coincide com a disseminação da violência, de uma forma generalizada. As redes de informação levaram a uma retomada da discussão sobre integração e exclusão social, não somente porque a tribo dos "sem micro" remete à tribo dos "sem terra", mas porque a Internet acena para a possibilidade de integrar os excluídos numa experiência de partilha coletiva. Os "paraísos artificiais" da Internet relembram a utopia de uma "felicidade do jardim público", forjada por Voltaire. Hoje, uma estratégia de comunicação social orientada por um projeto de "cultivo do jardim público" precisa enfrentar a nova desordem das relações entre o Estado, a sociedade, o mercado e as novas tecnologias. A discussão é inadiável e remete efetivamente a um debate sobre a nova ordem internacional da informação, e num plano mais complexo, diz respeito às relações entre economia e política no contexto atual da mundialização. Um artigo, sob a forma de ensaio, evidentemente não poderia esgotar uma discussão do problema. A nossa proposta, no momento, consiste em mapear alguns elementos que estimulem uma reflexão sobre o imaginário social formado pelo conjunto de figuras e símbolos que estruturam a percepção dos indivíduos. Assim, caminhamos contra o vento num terreno considerado propício à evolução de tendências individualizantes e narcisistas, que é o espaço da realidade virtual. Contudo, ali encontramos formas de agregação e sociabilidade, atração coletiva, novos meios de territorialização e subjetividade ligados pelo sentimento dos indivíduos de pertencer a uma comunidade.

 

2. O singular de Benjamin: a percepção de uma cultura no plural,

Retomamos as contribuições de Walter Benjamin, cujo repertório de estudos, particularmente, "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica" (1936) tem sido recorrente na pesquisa sobre arte e sociedade, e recentemente tem iluminado as ciências da informação e da comunicação, numa perspectiva humanística. Tendo sido "catalogado" como membro da controvertida "Escola de Frankfurt", juntamente com Adorno, Horkheimer, Marcuse e Habermas, seus textos constituem uma ferramenta teórico-metodológica importante para uma "antropologia da comunicação", na perspectiva de uma Teoria Crítica. Todavia, Benjamin permanece enquanto um marco referencial porque os seus ensaios se distinguem daqueles dos seus "companheiros de escola", pelo seu potencial de atualização das formas culturais emergentes, assim como, pelo caráter de prognóstico das suas análises. Julgamos pertinente remontar a Benjamin para um enfoque da chamada cibercultura, colocando em perspectiva as formas de "experiência e pobreza" na época da realidade virtual por vários motivos:

- Em primeiro lugar porque a expansão das novas "máquinas de comunicar" coincide com a reaparição das representações religiosas, no fim de milênio, justo quando a racionalidade técnica parece reger a nova des-ordem do mundo. A reemergência do místico-religioso configura aquilo que alguns autores definem provisoriamente como um retorno do barroco, onde a razão e a fé, a ciência e a mitologia, o sagrado e o profano se reencontram. Isto permite compreender o computador de modo mais abrangente, ou seja, como instrumento técnico que calcula, quantifica e performatiza as estruturas do mundo pragmático, mas também como um novo tótem em torno do qual os indivíduos (e tribos) prestam reverência, cultivando-o como objeto sagrado, e que expressa a idéia de "religação", comunhão e êxtase face à epifania das imagens geradas pelas redes.

- Depois porque a propagada "crise dos paradigmas" referenciais para pensarmos as questões da sociedade e cultura pode ser discutida à luz dos textos sobre a "modernidade e os modernos", em que o filósofo focaliza as experiências de passagem do século XIX ao século XX. O singular na obra de Benjamin é despertar para a percepção da "cultura no plural" (sua parte material, mística, psicológica e social) mas sempre dirigida pela idéia de agregação coletiva.

- E, finalmente, porque Benjamin sempre buscou transcender as limitações de um pensamento ressentido e pessimista com prejuízos para a percepção. O seu conceito de "aura" e "reprodução mecânica", as alegorias do anjo e da História, assim como as figuras do "flanador", do "colecionador" ou da "prostituta", ao seu ver, não traduzem as formas de mercantilização, são antes expressões que condensam, simultaneamente, a dinâmica da vida material e emanação do espírito coletivo, a parte obscura e brilhante da vida.

No ensaio "A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica", encontramos a figura de Benjamin como filósofo marxista, mas também um iniciado na cabala e astrologia, que soube enxergar na imanência dos acontecimentos mais banais, uma "aura", a sua parte de transcendência. Mirando os objetos de consumo, Benjamin descobre a sua face oculta, que extrapola sua mera condição utilitária; ali o autor pode contemplar o seu lado simultaneamente mágico e memorial, que desperta reminiscências do passado. Sem saudosismo, descobre ali a oportunidade de resgatar uma experiência, os vestígios de uma tradição de comunicabilidade. Neste mesmo contexto, no ensaio "O narrador" (1936), nas figuras "do marinheiro mercante" e do "artesão sedentário", Benjamin encontra os sujeitos que transmitem uma experiência de tradição, refazendo os laços com a comunidade.

As noções de "aura" e "tradição", (ecos da influência mística), e o conceito de "superestrutura" (de influência marxista) para tratar dos produtos culturais, não limitam o seu percurso filosófico: Benjamin não acredita em sínteses. Ele percebe que a modernidade cultural (produto do capitalismo) constrói e destrói coisas belas, isto é, promove experiência e pobreza: os seus estudos sobre a paisagem urbana da cidade no século XIX, podem demonstrá-lo. Ali abrem-se janelas para pensarmos o estatuto da experiência, num estágio em que a dinâmica das trocas materiais e simbólicas se tornou mais complexa.

Pensamos no simbolismo do cinema, televisão e Internet como campo possível para o gozo da experiência de que Benjamin fala. Ainda no ensaio sobre "A obra de arte...", o filósofo descobre o caráter fecundo das tecnologias audiovisuais. O cinema contribui para a perda da "aura" dos objetos estéticos, mas consiste numa tecnologia revolucionária, que desperta uma nova percepção dos indivíduos, podendo transformá-los em espectadores ativos.

 

3. As imagens virtuais têm aura?

Escolher Walter Benjamin como fio condutor para um ensaio sobre a cibercultura me parece uma estratégia feliz porque as iluminações do autor, de saída, já desmontam a perspectiva dividida dos "apocalípticos e integrados" que vêm as novas tecnologias da informação e comunicação, respectivamente, como prenúncios do "fim do mundo" ou como uma "terra prometida".

Orientado por uma concepção que abrange o arcaico e o ultra-moderno, Benjamin exerce uma imaginação criadora apreendendo "o vivo do sujeito", sem se limitar aos dogmas da teleologia, nem reduções do marxismo; o filósofo se agiliza transversalmente atento para o devir das sociedades e culturas. Sua percepção e experiência do mundo compreende as inovações tecnológicas do seu tempo (a fotografia, o rádio, o cinema) de forma dialética. Isto é, impõe uma visão crítica, reconhecendo os efeitos de uma estratégia mercadológica que favorece a reprodução mecânica, cópia e falseamento das obras culturais, ou seja, como sintomas de decadência, mas ao mesmo tempo as percebe como vetores de experiências estéticas enriquecedoras, alavancas que abrem as portas da percepção para uma nova contemplação da realidade. A sua técnica de descrever o cotidiano sob a forma de "mosaicos", nos estudos sobre Baudelaire ou no "Trabalho das Passagens" (1927-1939) antecipam de algum modo o estilo das narrativas do jornalismo atual marcado pelo grafismo, a estética ligeira dos videoclipes e as inscrições pós-modernas nas páginas da Internet. O autor apreende nos objetos e tecnologias modernas a fulguração do instante em que o espírito se ilumina, no encontro com as imagens antigas que atualizam o presente. Benjamin sinaliza para a percepção do "hic et nunc" (o aqui e agora) da experiência cultural e comunicativa. Neste sentido, compreendemos que o acesso aos sites de astrologia, sexo, jogos, revistas de moda, jornais do cotidiano, em sua aparente trivialidade, realiza a felicidade instantânea dos internautas. Mesmo que passageiras, as sensações de bem estar dos indivíduos plugados na rede, entram em sintonia com uma camada de significação, cujo simbolismo se estrutura promovendo um êxtase semelhante aquele experimentado pelos rituais antigos. O internauta, consumidor de imagens, através de uma "iluminação profana", reencontra-se ali com "entidades imaginárias" que animam o seu cotidiano. Sob as palavras, imagens figurativas ou discursos verbais que o encantam; as vozes ancestrais são ressuscitadas agora pela parafernália cibernética a que está conectado. Benjamin, dedica especial atenção às imagens auditivas; anteriores à sua forma visível, que para o filósofo, carregam consigo uma mensagem cuja origem é remota, mas que favorece uma conexão imediata com as formas dinâmicas do presente. Sob o seu significado visível, há imagens significantes que criam laços e conferem um certo espírito de comunicabilidade aos objetos de consumo. Benjamin despreza o que os objetos simbolizam e propõe um método "alegórico" para decifrar o seu verdadeiro sentido; a alegoria, para o filósofo traduz a realidade histórica de modo mais concreto que sua versão oficial ou instituída, consiste numa estratégia de comunicação que permite flagrar o real em permanente transformação.

São os rastros, pistas e sinais deixados pelos ancestrais no longo texto do mundo que atualizam e transformam em "comunidade afetiva" os indivíduos anônimos por trás do vidro dos computadores. Os textos de Jung, Bachelard, Gilbert Durand e mais recentemente, Michel Maffesoli, têm contribuído, para a sustentação de um argumento que busca focalizar, respectivamente, "o homem e seus símbolos", a "poética da natureza" inscrita na vida cotidiana, a "imaginação criadora" e a "contemplação do mundo" imaginal na perspectiva de uma sociabilidade. Estas contribuições têm instigado trabalhos férteis que procuram se orientar metodologicamente nos domínios de uma "antropologia da informação e da comunicacão". Contudo, é o entusiasmo das gerações mais recentes, que utilizam os computadores e a Internet de modo criativo, realizando pesquisas conseqüentes, que nos estimulam a considerarmos pertinente a recepção destas novas tecnologias.

 

4. Emanações barrocas na era do virtual

Na sua "Pequena História da Fotografia" (1931) Benjamin denuncia as formas do falso na fotografia que substitui a pintura figurativa, limitada pela função medíocre de apenas retratar os personagens ilustres, mas não se furta ao elogio da fotografia como descoberta de novas formas de visibilidade e imaginação criadora. O ensaio é fascinante porque desperta a faculdade de julgar o objeto estético além da sua mera roupagem tecnológica. Com a evolução das técnicas fotográficas, o artista (como produtor) e o diletante da fotografia (enquanto consumidor) perceberão que o flash da câmara fotográfica tem o poder de resgatar imagens belas, ainda não congeladas pela estética convencional. As tecnologias audiovisuais evoluíram bastante e, hoje, uma poética tecnológica traduz a estética do feio, do irregular e insólito com traços bonitos e ângulos sensíveis criando novos laços com a percepção coletiva.

Encontramos já no texto "As origens do drama barroco alemão", sua tese recusada pela Universidade de Frankfurt (1928), algumas sugestões para tratar a convivência do antigo e o novo, gerando formas de experiência e comunicabilidade em Benjamin.

As novas imagens produzidas pelas "máquinas de visão" (câmara fotográfica, televisão, computador) com suas técnicas arrojadas, procedimentos de multimídia, hipertextos etc, promovem um certo efeito que alguns autores, como Umberto Eco ou Michel Maffesoli, compreendem como "barroquização". É uma forma de compreensão que serve de parâmetro para repensarmos a ética e estética numa época em que as tecnologias da informação e comunicação estão por toda parte. Estas imagens atendem a um apelo coletivo de vozes distantes. O público solicita a aparição do belo, mas deseja contemplar a "feiúra" explícita no vídeo. As tribos urbanas refazem uma crença perdida no tempo, onde os simulacros de Deus e do diabo reaparecem como projeção da falta de referências na passagem do milênio; mas ao mesmo tempo se comprazem na felicidade imediata e rotineira dos objetos de consumo. Tais imagens fornecem ilusionismo e impressões de mobilidade. A imaginação tribal projeta a matéria orgânica no contexto inorgânico dos suportes materiais; solicita as expressões do vivo, mas se mantém curiosa pela natureza morta que relembra a condição de finitude dos homens. Do "alto celestial" ao "baixo infernal" e vice e versa, as imagens respondem às aparências de necessidade e às leis do desejo. As imagens barrocas parecem sempre prontas a se reciclar e retornar ao "mundo visível", como nas telas de Caravaggio, no cinema de Greenaway, nos videoclipes da MTV ou nas páginas coloridas da Internet. Atendendo às vicissitudes do espírito e às "dobras da alma", sempre voltam sob as diversas modulações da "mana cotidiana".

 

5. Figuras da sorte , figuras do azar: os clichês na Internet

Os personagens recuperados por Benjamin na poesia de Baudelaire, como o jogador, o colecionador e o flanador, em sua aparente efemeridade, incarnam arquétipos que reaparecem na crônica da cidade como o "zapista", o internauta ou o ciberpunk. São importantes como referência para os indivíduos que recusam a "via de mão única" e a normatização das mídias, buscando outros caminhos, novas formas de alteridade e exercício da subjetividade. Entretanto, em nossa época, quando se fala em declínio da razão e retorno das formas místico-religiosas, é a figura do "corcundinha", reminiscência dos contos de fada alemães, presente nos textos de Benjamin, que nos parece pertinente para uma reflexão das figuras da sorte e figuras do azar que perseguem o imaginário coletivo. O filósofo, apresenta o "corcundinha" como alegoria dos revezes do destino e vários estudos biográficos são plenos de referências sobre esta imagem que o teriam acompanhado desde a infância. Significando a má sorte, o desajeitado, o corcundinha é um personagem que durante muito tempo perseguiu a imaginação do filósofo, conforme podemos ler em seus textos para crianças:

"Vou à minha adega/ beber meu vinho/ Lá está um corcundinha/ Pegou minha garrafinha/ Vou à minha cozinha/ cozinhar minha sopinha/ Lá está um corcundinha/ Quebrou minha panelinha".

É conhecido o percurso de Benjamin marcado pelas surpresas desagradáveis e trapaças da sorte (a recusa pela academia, os desencontros no amor, o suicídio sob pressão dos nazistas). Benjamin parece incarnar o personagem de má-sorte. Como lembram alguns textos mais recentes, a trajetória do filósofo leva a pensar em "como se tornar famoso cometendo tantos erros". A questão da fama póstuma de Benjamin, relembra que o mesmo já gozava de prestígio entre os seus pares, como demonstra Hanna Arendt em seu estudo sobre o filósofo: "A fama póstuma, não comercial, não lucrativa é precedida pelo mais alto reconhecimento entre os seus pares". Como no exemplo de Kafka ou do próprio Benjamin reconhecido por Adorno e Scholem, assim como por Brecht. A questão da fama oscila, como escreve Hanna Arendt, entre "uma semana de capa de revista ou o esplendor de um nome duradouro". O assunto relembra a afirmação de Michel Foucault: "A gente escreve para ser amado", e por outro lado, faz remontar à idéia dos "15 minutos de fama", formulada pelo artista Andy Warhol. Hoje, a questão da fama, da projeção e do reconhecimento, na perspectiva das redes adquirem novos contornos; a interatividade propiciada pela Internet, produz os instantes de fama "on line", ou seja, possibilita a sensação de presença, participação e pertencimento nos tempos do efêmero e do provisório.

No que respeita ainda à sorte e ao acaso, em seu texto sobre "Roberto Walser" (1929), o filósofo lembra que para aquele escritor "... caminhar sem destino constituía o ponto central de sua vida de exclusão e de seus livros maravilhosos". Ocorre-nos lembrar a figura do surfista da Internet, o que se reafirma no trecho a seguir: "Não encontrar o caminho numa cidade não é muito importante, mas perder-se numa cidade, como as pessoas se perdem numa floresta, exige prática..." Não é difícil encontrar nas entrelinhas, espécies arquetípicas da cibercidade: os usuários, em meio ao labirinto dos sites, nas malhas da rede são leitores dos mapas da cibercidade, que sabem como se perder. Os mapas, as cartografias, as passagens... descritas nos textos de Benjamin, hoje se configuram sob a forma das redes.

Na "nova" episteme há lugar para uma "sabedoria encantada", sob a orientação de uma "razão sensível"? É possível o resgate de uma percepção que foge às limitações da mera funcionalidade técnica? Teria chegado a vez de uma "sensibilidade técnica" atenta à aura e espectro das imagens e sons promovidos pelos novos meios de comunicação?

Um mapeamento dos objetos do cotidiano reencontra no desenho dos objetos de comunicação, ao mesmo tempo, objetos técnicos e objetos estéticos, objetos de consumo e também de culto. A nova "mana" ou emanação cotidiana, com seus bons e maus presságios, se realiza através dos sistemas da telefonia e antenas parabólicas, performatizando os novos estilos da vida material e mística na cibersociedade. Nos jornais e revistas, no telejornal e na ficção das telenovelas, nas estruturas da vida vivida, inscrevem-se as formas de experiência e pobreza do cotidiano. O simpático Tamagoshi, o bicho virtual, as esteiras ergométricas, os controle-remotos, enfim, os objetos tecnológicos, recorrendo a Mc Luhan, são extensões do homem pós-moderno. Relembrando Muniz Sodré, pertencem ao circuito das "máquinas de narciso" e, ao mesmo tempo, constituem vetores do "social irradiado" na cidade.

Benjamin nos desperta para contemplar o novo naquilo que contém de antigo, e transversalmente, instiga à contemplação do antigo, como algo que atualiza a compreensão do novo. Daí, todo estereótipo consiste na emanação de um arquétipo. Esta perspectiva pode inovar e ultrapassar preconceitos: o clichê, o banal, o provisório têm algo a nos dizer sobre a cultura emergente em relação à sua história pregressa, assim, como os objetos antigos já trazem consigo, potencialmente, a expressão do êxtase nos objetos da atualidade.

 

6. Amor e ódio ao vivo e on line

Uma das motivações deste ensaio é repensar o estilo de vida dos indivíduos nas cidades durante a passagem do milênio, considerando os níveis da experiência e comunicabilidade. Assim, encontramos trancado a sete chaves na intimidade dos condomínios fechados, o homem pós-moderno que se comunica com o mundo à distância; mas para ele tudo está, ao mesmo tempo, longe e perto. A "condição pós-moderna" impõe a necessidade das tecnologias de vigilância, controle e prevenção. Aids, violência, vírus cibernético são aspectos do novo mal estar da civilização. A intolerância, a indiferença e o ódio, como diz Edgar Morin, são dados empíricos evidentes nos dias atuais (ontem Auschwitz e Sibéria; mais recentemente, Bósnia, Iraque, África e, enfim Kosovo). O ódio, a violência, o descaso social são ingredientes permanentes na crônica do Brasil: Goianobyl, Carandiru, Candelária, queimada dos índios e mendigos na cidades, massacre dos sem-terra no norte, indústria da fome no Nordeste são índices regressivos da Terra-Pátria em desmoronamento. São imagens do mundo em decomposição, cujos clichês inscritos na exibição midiática reaparecem como projeção dos arquétipos do "fim do mundo".

O sintoma destas inquietações se expressa através das " máquinas de comunicar": do outro lado do vidro, os indivíduos ligados nas redes, buscam o sentido da vida num universo que parece em declínio. A idéia de felicidade na sociedade do espetáculo é efêmera, as religações entre os indivíduos são transitórias. Contudo, as imagens grotescas ou sublimes não cessam de refazer os laços sociais, aproximando indivíduos distantes no tempo e espaço; na época da Internet a felicidade está por um fio. O simbolismo e a materialidade das relações atuais entre os indivíduos revelam estilos de experiência e comunicabilidade que não podem ser ignorados.

A ligação entre o espírito e a manifestação material, isto interessava bastante a Walter Benjamin. Ele tinha interesse na "correlação entre uma cena de rua, uma especulação da bolsa de valores, um poema, um pensamento... a linha oculta que reune e permite ao historiador reconhecer que pertencem ao mesmo período histórico". Adorno criticava a apresentação aberta de atualidades como Benjamin fazia; mas o autor estava interessado em "capturar o retrato da História nas representações mais insignificantes da realidade". Tinha paixão pelo pequeno, pelo minúsculo, paixão pelo micro.

 

7. Das redes de dormir às redes da imaginação criadora

Como expõe Sérgio Paulo Rouanet, no ensaio "As galerias do sonho", Benjamin tinha afinidades eletivas com Proust, Kafka e Goethe. Em Proust encontra a noção de "reminiscência" e "memória involuntária" para construir as suas alegorias do cotidiano. Em Kafka, particularmente, Benjamin espreita as imagens dos campos em ruínas, áreas de desastre, montes de escombros. O seu interesse se volta para a realidade manifesta nas expressões idiomáticas da linguagem cotidiana. As influências que sofreu de Goethe refletem simpatia pela poética sem desprezar a filosofia (seja ela metafísica ou dialética). Benjamin sofreu ainda influências de Brecht e sua idéia do "pensamento cru", e assimilou muitas sugestões da sua amada russa, Asja Lacis. A estas influências irão se opor Adorno, que lhe sustentava em Paris com os recursos da "Escola de Frankfurt" (transferida para Nova Iorque) e Gershom Scholem, companheiro das leituras teológicas; o primeiro era esquivo à estética do "realismo social" e reprovava a sua falta de "trabalho do conceito", o segundo, recusava as explicações materialistas. Benjamin, entretanto, como filósofo que era, permaneceu atento a uma razão perceptiva, auditiva, algo próximo do que hoje Michel Maffesoli chama de "razão sensível". Tanto o "flanador", como o "anjo da História" chamam atenção para uma outra percepção do percurso histórico. São personagens que, refazendo as palavras do filósofo, "remontam os cacos da História". Nas suas famosas teses sobre filosofia da História (1940), onde se inscreve a figura do anjo, lemos que "a verdadeira imagem do passado perpassa veloz". Em contraste com a atividade apressada nos tempos do capitalismo (quando tempo é dinheiro), o "flanador" e o "colecionador" percorrem caminhos opostos ao ritmo da mercadoria, resgatando nas imagens cotidianas, as expressões de uma experiência de comunicabilidade. Não é difícil encontramos uma analogia entre aqueles personagens descritos em Paris do século XIX e as figuras contemporâneas do "shoppista" (o andarilho curioso dos shopping centers), o "zapista" (ágil manipulador do controle remoto da televisão) ou do internauta (que "viaja" durante horas a fio na rede da Internet).

Benjamin se interessa pela aparência, pela aparição, pelo visível, numa palavra, o que se mostra à percepção. Isto tem conexão com o seu conceito de "aura": algo essencialmente religioso. Podemos apreender o seu eco hoje, no contexto das mitologias contemporâneas: as imagens da publicidade, no shopping center, na televisão. Pensamos a propósito, na "auréola" mítica que envolve as estrelas do cinema e da televisão. As imagens sublimes ou trágicas na dramaturgia cotidiana da televisão emanam um tipo de visibilidade que provoca a "experiência de choque", promovendo uma catarse junto à percepção do telespectador. Os ídolos e personagens famosos nas salas de "bate papo" da rede, sempre causam rebuliço. A visão, a aparência, a epifania das imagens do computador criando a conexão em rede, refazendo os laços entre as tribos e sensibilidades convergentes possuem algo dessa natureza essencialmente mítica ou encantada.

Parece um paradoxo escrever sobre Benjamin sob o signo de uma sabedoria encantada (Adorno certamente não gostaria desta imagem). Benjamin era dialético, e não podemos esquecer a influência exercida por Gershom Scholem (e da mística judáica) sobre sua mentalidade; sempre fora fundamentalmente norteado por uma perspectiva poética. Benjamin se orienta menos por uma epistemologia (isto é, pela lógica científica limitada por uma "razão abstrata") e mais por uma direção estética: as percepções é que lhe são caras. Numa ligeira digressão, ocorre-nos pensar que para o filósofo a imagem (imago) ou melhor, a imagem acústica tem um significado de alcance mais duradouro do que a letra. No que respeita à potência das "imagens", Walter Benjamin e o filósofo Gilles Deleuze (embora em registros diferentes) possuem "geografias de pensamento" que se nivelam em vários pontos: não é de se estranhar o fascínio que ambos tinham pela literatura de Proust.

Espreitamos as possibilidades de um projeto estético (e ético-político) que sem recair nas teias de uma razão dualista, pudesse apreender as novas tecnologias como dispositivos que vieram para ficar e exigem o agenciamento de novos hábitos de pensar, falar e agir, tendo em vista as novas formas de experiência dos indivíduos e tribos urbanas nos tempos da globalização, e de modo particular, no contexto da realidade virtual ou da cibercultura.

Percorrendo o cenário urbano no século XIX, Benjamin, encontra em Baudelaire e seus personagens alegóricos, as pistas para pensar aquele período de passagem. Além do "flanador", o "colecionador", o "dândi", a "prostituta" e o "apache" são tipos sociais que o poeta encontra na ruas de Paris, e me parecem arquétipos do "homem que não virou suco" em meio às engrenagens do sistema capitalista. Caminham, segundo Benjamin, num ritmo próprio. Reencontramos, uma analogia da figura do "flanador" no estilo do internauta, que surfa na Internet, "zipando" (comprimindo as informações num disquete e lhes conferindo nova significação). Os objetos de consumo para o colecionador do século XIX como hoje, para o shoppista no século XX (em seu passeio pelas livrarias virtuais e fazendo compras "on line"), não indicam apenas o sintoma de uma reificação, alienação, mercantilização. São antes objetos de fruição estética, objetos de comunicação. Distintamente da lógica do burguês, os objetos para o colecionador, como para o internauta e o shoppista, são antes elementos de paixão, emoção, devoção, do que simples instrumentos utilitários (tomemos como exemplo os CDs, vídeos-cassetes e games interativos que se revelam como objetos de paixão dos shoppistas); ali, o valor diletante supera o valor de uso. O "dândi" do século passado encontra a sua versão hoje, na expressão dos sujeitos que desprezam a televisão, mas se deleitam numa viagem virtual pelos sites dos museus excêntricos e das obras raras. Encontramos ainda os traços da "prostituição" nas salas eróticas, que constituem experiências de sensualidade num contexto mercadológico, mas que proporcionam o usufruto das interações prazeirosas do "sexo virtual".

 

8. Indústria cultural, contracultura e culturas excêntricas.

Hoje as salas de bate-papo da Internet diante do internauta emanam algo da ordem do misterioso, do excêntrico, vetores de uma experiência única e autêntica para os usuários. É certo que a "indústria cultural" mantém em perpétuo estado de alerta as suas estratégias de absorção, cooptação e inversão (como diagnosticara Adorno); mas o que está em jogo aqui é a maneira como os usuários adequam e se apropriam dos objetos, mensagens, propostas, realizando experiências que lhes conferem prazer. Uma viagem pela Internet oferece ao usuário sites excêntricos que, se não surpreendem, definem os níveis de distinção das tribos que possuem alguns traços das experiências contraculturais dos seus pais e avós dos anos 60/70. Os sites "PQP", "Banana loca" ou "Embromation Society" se não têm mais o poder de chocar, numa sociedade que já absorveu todos os gêneros de transgressão e demonstra simpatia face aos discursos dos jovens, apresentam intervalos de humor no circuito do consumo. Empiricamente, é possível catalogar tendências de estilos e gostos distintos dos usuários da rede: salas de ecologia, esoterismo, gays, astrologia, darks, medicina alternativa entre outros compõem o repertório múltiplo e diversificado dos internautas. Contra o típico, o usual, o classificável existe doravante a oportunidade de escolha, fora dos padrões convencionais; reside ali o lugar de exercício da subjetividade e de uma virtual cidadania: o internauta é um cidadão virtual. A idéia pode ser antiga, mas a escolha é atualizada todos os dias, distintamente e de forma autêntica e renovada: o acesso aos sites consiste numa experiência do presente. O internauta coleciona amigos virtuais, como o colecionador de Benjamin o fazia com os livros e objetos de arte do passado: é uma experiência atual que realizada com assiduidade revela um tipo de culto; o internauta tem traços do místico diante dos ídolos e imagens sagradas, o computador representa uma espécie de tótem contemporâneo. O sentido da Internet só pode ser compreendido com clareza pelos homens que encaram o presente com firmeza e sem ressentimento.

O bate-papo na Internet, o que chamam de "namoro virtual", (agora, quando ainda não temos o videofone) chama a atenção pelo retorno da "imagem acústica" (imago), como no tempo forte da literatura quando a imaginação criadora se incumbia de "realizar" os personagens, os indivíduos, as figuras e tipos sociais. Benjamin dizia que "a verdade é um fenômeno acústico". Para ele "a verdade do objeto está em sua riqueza e estranheza" em relação ao circuito mercadológico. Afirma ainda que "a verdade é um desafio às épocas em que as referências são esponjosas e flutuantes", o que se aplica perfeitamente à nossa época de fim do século e passagem do milênio.

Em sua visão crítica da passagem do século XIX, pelo viés da poesia de Baudelaire, Benjamin realiza o seu mapeamento da cidade de Paris, o centro da vida cosmopolita e encontra nos jornais, na publicidade e nos folhetins a matéria viva para contemplar a cidade, o homem e o espírito do tempo. Ali se depara com a informação curta e brusca que concorre (e ultrapassa) o relato minucioso, comedido. Seria exagero enxergar ali a previsão dos sites na rede de informações atual?

Prestando atenção ao fluxo urbano, sempre por intermédio da poética de Baudelaire, Benjamin descreve os tipos humanos e sociais, meticulosamente, "desde o vendedor ambulante até o amante da ópera". O passeio do "flanador" como o do surfista da Internet, em nossos dias, funciona "como um remédio infalível contra o tédio". As galerias ontem (e hoje as salas virtuais de leitura, assim como as salas de "Bate Papo") significam um meio termo entre a casa e a rua. Como o "flanador", o internauta também sofre na pele o preconceito. Uma análise dos discursos dos internautas encontraria ali circunstâncias de pobreza moral e intolerância , o que revela traços de uma mentalidade excludente, cujos efeitos podemos pressentir na rua, na mídia eletrônica e também na comunicação "on line".

 

9. Tecnologias da comunicação e experiências multissensoriais

Retomando o tema da "experiência e pobreza" concernente aos sentidos, Benjamin cita o filósofo alemão Georg Simmel: "As relações humanas nas grandes cidades se distinguem pela preponderância da atividade visual sobre a auditiva devido aos meios de transporte. Antes do desenvolvimento destes meios não havia o confronto dos olhares no ônibus, no bonde, no trem" (e no metrô, acrescentaríamos). "Segundo Goethe, todos carregam consigo um segredo". O homem continua sendo uma ameaça: a idéia de encontrar um amigo virtual pode ser excitante, mas inspira, muitas vezes, receio. O homem virtual se assusta diante do homem real: a parte orgânica, a parte animal do "cyborg" o leva a se manter em estado de alerta, e por vezes, a atacar. Os signos de fragilidade e pobreza do animal urbano podem ser observados no cinema e na televisão, assim como na vida "on line". As imagens eletrônicas e cibernéticas podem ser vistas como janelas para compreendermos a conjunção entre o afetual e o emocional coletivo (ou seja, a parte de riqueza do ser humano), mas as "máquinas de comunicar" também viciam: sem rádio, sem televisão ou imagens do computador o indivíduo sofre porque então, a sua solidão ressurge ampliada. A vida retorna ao estado normal, em preto e branco (a sua parcela de pobreza).

Sob outro prisma, curiosamente, como na paisagem urbana da modernidade descrita por Benjamin, as tribos urbanas atuais não se misturam na floresta da rede cibernética, agrupam-se por afinidade, como na "vida real". Nas redes existem sociabilidade, preferências e cumplicidades como na rua vista por Baudelaire e comentada por Benjamin.

Muitas falas dos internautas equivalem às matérias noticiosas. A diferença é que, como na literatura contemporânea, ali no ciberespaço, a noção de tempo e espaço é abolida. E se assemelha, em quase tudo à vida vivida, assim como às cenas da crônica policial. Através do noticiário da rede, os indivíduos se ligam aos fatos como nos romances de Alan Poe: o "maníaco do parque" ou "o vírus Melissa"... tudo aparece aqui como uma experiência diferente, quando a realidade, a ficção, a vida real e virtual se misturam formando aquilo que Umberto Eco chama de "irrealidade cotidiana". Não podemos esquecer que o jornal, o rádio, a televisão são contemporâneos do micro: estes veículos não desaparecerem da cena da cidade, ainda que pouco a pouco venham sendo absorvidos pelo novo veículo. Mc Luhan mostrou que cada meio de comunicação contém potencialmente o seu meio subsequente, no que respeita à sua inscrição no percurso histórico da cultura.

Há um modo próprio de ver as coisas da parte do homem de vida pública domiciliado na cidade. A mídia produz ou amplia uma "cultura de eventos" (o que implica no índice regressivo que destitui o sujeito do ato de usufruir sua própria experiência). Por outro lado, a Internet, inegavelmente abre a possibilidade do espectador intervir, participar do acontecimento midiático. Talvez o caso dos programas de debates e entrevistas na televisão, que mantém "aberto" um sistema de comunicação com o público não seja um bom exemplo de interação porque ali ainda existe uma certa diretividade sobre o diálogo. Mas, também não podemos deixar de ali observar, um dispositivo potencial de interatividade. Neste sentido, é exemplar o caso do telespectador que invadiu o espaço da Rede Globo, durante o programa infanto-juvenil "Malhação" (exibido pela Rede Globo) e quebrando o protocolo do "padrão global de qualidade", acusou o presidente da empresa, Sr. Roberto Marinho, de "traficante". O esquema de proposta interativa permitiu um agenciamento surpreendente que fugiu ao controle da emissora. O exemplo não é muito elegante, mas serve para mostrar as brechas num sistema fechado que, como explica Luiz Beltran, se marca pelo caráter de uma "comunicação vertical", onde a participação do telespectador é mínima. Em todo o caso, guardadas as reservas, podemos entrever algumas formas de "interatividade", ainda que de modo incipiente, na programação da TV aberta que começa a se modificar depois da Internet . Relembramos a propósito, os programas "Jô Soares, Onze e Meia" e o "Sem Censura" (exibido pela TV Educativa), além do "Barraco MTV".

Na época da "realidade virtual", encontramos todo um arsenal de dispositivos que empiricamente podem se prestar para um registro de época. Como sugere Arlindo Machado as "tecnologias de vigilância" são dispositivos disciplinares forjados enquanto tecnologias da segurança que asseguram a ordem social, política e econômica. São equipamentos que asseguram a ordem e segurança pública; contudo, é no espaço privado que aparecem de modo mais eficiente e são vias de mão dupla. São inumeráveis: outrora tínhamos a assinatura, a fotografia, a impressão digital na carteira de identidade; doravante, tais dispositivos se sofisticaram: cartões de crédito, códigos e senhas se multiplicam registrando e seguindo as pistas do "homem na multidão". Uma experiência que significa segurança para aqueles que estão inseridos no mercado e um "alerta" para os excluídos do processo de produção e consumo. O internauta (como o flanador) não se sente seguro em seu tempo. A vida real "off line" assusta. Os homens reais não inspiram confiança. Os avisos de segurança, assim como os riscos proliferam. Violência e insegurança são índices regressivos que atestam a pobreza da experiência dos homens do nosso tempo. O medo impera. Medo do blecaute, do bug milenar, dos vírus. Existe o luxo do correio sentimental "on line" para todas as idades, cores, gêneros e preferências; em contraposição existe o congestionamento das linhas, lentidão dos serviços telefônicos e alto custo das operações.

O passeio do usuário pela Internet, como a caminhada do transeunte no século XIX, contém um efeito enebriante. Benjamin falava sobre os efeitos inebriantes do haxixe, no sentido de experimentar outras formas de percepção. Uma multidão de internautas (são milhares em circulação todos os dias pelas auto-estradas da informação) experimenta um tipo de ebriedade religiosa, como o flanador ou o shoppista na grande cidade. Os encontros do flanador com outros sujeitos, (como os encontros do internauta) são efêmeros, no entanto, sempre fundam um tipo de arborescência, cujas ramificações se prolongam. Benjamin lembra a grande cidade como uma floresta, o que serve como metáfora para a ecologia da cibercultura. A propósito, Pierre Lévy fala em "árvores do conhecimento", André Lemos, recorrendo a Deleuze, fala em "rizoma". A rede aparece como uma imensa floresta à disposição dos usuários, com toda a sua dimensão de risco e fascínio. No repertório de Benjamin/Baudelaire, encontramos ainda o personagem do "apache", que tem uma certa significação do homem selvagem (Benjamin tinha fascínio pela figura do índio). Este personagem mantém um tipo de provocação e rebeldia. Mas o "outsider" na versão informática é a figura do cyberpunk, o assustador "hacker": perigo em potencial, porque tem o poder de disseminar o vírus no computador e desestabilizar todo o sistema. O bug do milênio e os "rackers" são as figuras terríveis da realidade virtual. As intempéries do mundo natural se refazem hoje nas redes.

 

10. Fim de partida

O que há de sólido no debate intelectual contemporâneo é a constatação de que as novas "máquinas de comunicar" modificaram completamente as estruturas da vida cotidiana; para além da ciberfilia ou ciberfobia dos contemporâneos todos parecem de acordo que não podemos ignorar o efeito performativo das novas tecnologias. É chegado o momento de enfrentar os novos "jogos de linguagem" do nosso tempo marcado pela virtualidade. É o Fim de Partida para uma concepção de mundo definida pela onipresença do mesmo. O desafio que se apresenta doravante é estabelecer um tipo unicidade (nos termos barrocos da estética de Benjamin) que agrupe as aparentes dispersões da "cultura global". Arte, ciência, técnica ou política, qualquer que seja o campo da ação pragmática que se define como objeto de contemplação, deve se definir em torno do homem em conexão com suas extensões e vetores de sociabilidade.

Dentre as inúmeras imagens no plural de Benjamin, encontramos o jovem orientado pela idéia de iluminação mística e o Benjamin maduro, face à tirania do fascismo, que se norteia pelo materialismo histórico como claridade para os tempos sombrios. As afinidades eletivas de Walter Benjamin são controvertidas, contudo as leituras de seus intérpretes, na diversidade de suas posições filosóficas ou políticas, revelam um tipo de pensamento nômade (no sentido empregado por Deleuze). Atenta à concretude da experiência na fulguração de um momento passageiro, sua percepção estética atualiza o passado, lançando luzes para o futuro que se tornou presente:

Hoje, às vesperas de um novo milênio, quando o tempo é transformado pela velocidade, reencontramos o Benjamin pensador do instante. A sua idéia de tratar o antigo como se fosse novo e o novo como expressão do antigo é algo estimulante e animador:

Primeiro porque instiga a pensar a outra face, a diferença, naquilo que parece apenas clonagem e repetição; depois porque a passagem recíproca entre o antigo e o novo revela um espírito comunitário que agrega indivíduos isolados no tempo e espaço e, finalmente, porque encontra naquilo que parecia morte e melancolia, expressões da experiência e comunicabilidade, sinais do vitalismo e instantes de felicidade.

 

 

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