O Horror e o Humor dos Vampiros na Hora do Jantar

Estudos sobre Comunicação e Consciência Trágica

13º Capítulo de "As aparições do deus Dionísio na Idade Mídia"

 

Cláudio Cardoso de Paiva, UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

 

                           1. Mídia, Vampirismo e Renascimento

                       2. Os vampiros na literatura, no cinema e na televisão

3. A cultura de massa como cultura vampira

                          

   1. Mídia, Vampirismo e Renascimento

   Estudando as imagens da televisão, partimos de um ponto de vista que compreende favoravelmente as experiências fundamentais da estética, poética e catarse realizada pelos indivíduos, como demonstra JAUSS (1). Todavia, tais experiências aqui serão entrevistas em sua dialética concernente à "felicidade do jardim público", conforme escreve Voltaire, no seu Cândido (2). Isto é, consideramos positiva a experiência de fruição realizada pelos indivíduos, mas reconhecemos também que o sujeito só se realiza plenamente, irrigando os vasos comunicantes que asseguram a fertilidade do corpo social.

Dito isto, sublinhamos um tema ressurgente em nossos dias, às vésperas do fim de século e passagem do milênio, que solicita uma discussão mais detida, no que concerne às relações entre o individual e o coletivo. As experiências do homem diante da religião, remontam às relações entre o mesmo e o outro de maneira contundente. Na religião a experiência da alteridade, da relação com o outro, o diferente, o desconhecido se faz de forma radical. Aqui está em jogo de forma concreta a relação do ser com o mundo social e com o mundo cósmico. Ao mesmo tempo que funciona como liame entre os sujeitos, abre o espaço para a dúvida que assola o ser diante do nada. Implica numa integração com os outros, insere o indivíduo em comunidade, mas simultaneamente expõe o sujeito perante a a sua própria solidão e desejo de longevidade.

O retorno do místico-religioso, em nossos dias, consiste num fato social que possui uma força de sentido perceptível o suficiente para que possamos ignorá-lo. Seguimos os textos de Émile Durkheim e o seu conceito de "representação coletiva"(3), entendendo os sistemas religiosos como o reflexo de um tipo de "solidariedade", ou seja, como uma forma elementar de sociabilidade que reune os indivíduos em torno da idéia do divino.

   Num momento em que as formas da racionalidade tradicional entram em declínio, os sistemas religiosos tendem a reaparecer nas malhas do tecido social cimentando "novas" modulações de agregação social. Entretanto, é pertinente perceber, que na época da chamada "sociedade do espetáculo" (4) as "representações coletivas" cimentadas em torno dos fenômenos religiosos mudaram de forma. Hoje é difícil distinguir as estruturas essenciais que agregam as multidões solitárias no planeta. Na idade mídia, os mega-espetáculos de rock, o carnaval e as escolas de samba ou as finais do campeonato de futebol, como as manifestações religiosas, com seus milhares de ouvintes, fiéis, foliões e torcedores apresentam estruturas similares, de modo a tornar difícil uma distinção entre cada uma dessas manifestações coletivas. Este é um sintoma do liquidificador pós-moderno, em que tudo é espetacularizado, midiatizado e vale quando pesa no mercado de imagens e simulacros que se irradiam no cotidiano.

   Entretanto, há imagens no contexto da telenovela, as quais designamos como "imagens dionisíacas", que revelam uma espécie de religiosidade ou iluminação profana agregando os indivíduos e, remetendo, ao mesmo tempo, às idéias da morte e da vida após a morte. Por trás dos clichês se escondem sempre os arquétipos, escreve Gilbert Durand (5). As imagens podem parecer banais na televisão e nas telenovelas, devido à repetição, fragmentação e velocidade, que fazem parte da natureza da mídia. Mas despertam a atenção e fisgam o espectador por meio de imagens ancestrais. Em sintonia com diferentes emoções, paixões e afetividades, as imagens arcáicas retornam à atualidade dos meios de comunicação, através dos seus produtos, alertando para a memória no percurso da humanidade. As telas e redes trazem à tona significações enraizadas nas camadas profundas na memória coletiva. A coragem, o medo, o amor, o ódio, as pulsões de vida e pulsões de morte, por exemplo, sinalizam momentos de sintonia entre os indivíduos e as mídias, revelando, na verdade, elos primordiais inscritos no grande livro da vida.

As tecnologias são mecanismos funcionais, mas ao mesmo tempo, consistem em dispositivos da sensibilidade. São extensões do homem tanto em seu sentido material como no sentido psicológico; são extensões em nível fisiológico e mental, material e espiritual também. Paradoxalmente, existe profundidade à superfície do tecido imaginário dos sujeitos ligados às mídias. No cinema, no rádio, na televisão ou no computador, diariamente, encontramos séries de imagens que nos alertam para a percepção de algo consistente naquilo que aparentemente não tem sentido.

   Há uma cena no filme "Nosferatu", em que as pessoas estão morrendo devido à peste disseminada por vampiros e ratos. Mas dançam ao som de uma música que comemora o eterno ciclo da natureza, em que a morte, a vida e o renascimento são experiências inseparáveis. A natureza ali aparece sem véus, em sua dupla característica de destruição e vitalidade. A natureza, como entidade que contém uma dupla face vitalista e mortífera, algo em transformação, é um arquétipo permanente no imaginário coletivo. Porém, nesta mesma "zona de sentido" encontramos as pistas para perceber a imaginação da vida após a morte, da longevidade e da ações do homem diante do destino. Não só o cinema, mas também a televisão, nas telenovelas e ficções seriadas, virtualizam estas imagens dionisícas, com seu espectro de consciência trágica da realidade. Encontramos este tipo de percepção e sensibilidade, nas alegorias presentes na obra de Ariano Suassuna (e suas adaptações para a televisão). A religião ali surge como a concretude do religare, mas sem fé cega, sem ópio, nem alienação. Consiste numa agregação da comunidade de crentes ante às forças da natureza e do cosmos, sem ilusões, entretanto, no que respeita às leis do destino. A consciência trágica afirma a vida e se compraz ante à percepção artística que coloca em evidência a energia vital, e sua incidência sobre os seres e seu meio ambiente. Relembrando Nietzsche, o trágico traduz o entusiamo do vivo do sujeito, a afirmação da vida.

   Hoje as redes e telas podem atualizar as formas de percepção do trágico, muito embora, a publicidade, o telejornal e os programas de auditório, performatizem uma dramatização banal da vida. Malgrado o sentido esponjoso e disperso da maioria das ficções na TV, encontramos janelas para percebermos uma estética do trágico revitalizando o universo das mídias, remetendo às indagações essenciais da humanidade, que desconsertam o sentido daquilo que parece apenas mercadológico. Como a tragédia grega significou uma produção de sentido importante para os antigos, hoje tanto o universo do cinema quanto o da televisão respondem às expectativas estéticas das multidões do século XX.

 

2. Os vampiros na literatura, no cinema e na televisão

Nos anos 80, a escritora norte-americana Anne Rice revitalizou as histórias clássicas de vampiros (Drácula, Nosferatu & cia) através do livro "Entrevista com Vampiro" (6). Rice construiu o personagem "Lestat", um desmorto que conserva as emoções humanas em sua alma de vampiro. O livro se tornou "best seller" nos Estados Unidos e no Brasil, e após a sua adaptação para o cinema de Hollywood, os amantes das narrativas de horror puderam engrossar o repertório de contos malditos.

   A história nos conta o despertar do vampiro "Lestat", que após um sono de mais de 200 anos, é acordado em seu sarcófago pelo ruído tecnológico do século XX. As batidas do rock, o som e a fúria da mídia, assim como as canções diabólicas das tribos urbanas invocam o vampiro adormecido. (É sintomático o uso, na trilha sonora, da música dos Rolling Stones, celebrando o mal, na conclusão do filme). Ao despertar, Lestat se utiliza dos seus saberes e poderes, apropriando-se dos estilos musicais da moda, e torna-se um astro de rock, célebre por todo o planeta; utilizando-se das redes midiáticas para se projetar, além de publicar livros bem sucedidos, difundindo o mal pelo planeta, sendo consumido avidamente pelas massas.

   Encontramos alguns traços desta ficção literária (e cinematográfica) na estranha telenovela juvenil, "Vamp", exibida pela Rede Globo, no começo dos anos 90. "Vamp" nos parece pertinente para ilustrar como a cultura da televisão se apropria e recicla os temas misteriosos e macabros para atrair o público; mas em última instância se presta a uma interpretação da cultura produzida pelas mídias, como uma espécie de cultura vampira.

   À superfície de uma história banal, adaptada para a ficção televisual, entrevemos o simbolismo contido nos temas da morte, vampirismo e renascimento, assim como se representam, em nossos dias, as imagens do sagrado e do profano.

   A telenovela "Vamp" não é exatamente uma história de horror, ao contrário, tem como fio condutor um espírito bem humorado. As cenas de ficção se passam numa praia quente, iluminada e grande parte da narrativa é animada pelo burburinho das crianças que disputam a atenção do público com os vampiros.

   O autor da telenovela parece ter-se inspirado na ficção literária de Anne Rice para construir o seu personagem Natascha, uma cantora de rock, em trânsito pela Itália, que atrai a atenção de um vampiro que lhe oferece o sucesso em troca da sua alma. Pouco a pouco os personagens que a envolvem, sistematicamente se tornarão vampiros também.

   Examinando o corpo desta ficção despretenciosa, focalizamos alguns aspectos que nos parecem pertinentes para sugerir uma discussão.

   Remontando à idéia de uma ética fundamental à experiência estética (7), de olho nas adaptações -e transfusões- dos gêneros literários e audiovisuais, reencontramos o recurso da "carnavalização"(8) na montagem da telenovela "Vamp". Este recurso, freqüentemente revisitado na história da cultura, serve como um dos pilares de sustentação da narrativa. O acolhimento do repertório presente na imaginação dos contos de horror pela sensibilidade dos trópicos é singular. A atmosfera sombria e gelada, característica do habitat dos vampiros da Transilvânia, cede lugar ao cenário dos vampiros na ambiência calorosa de uma praia no litoral do Rio de Janeiro. Deste modo se mantém preservada a sensação de medo, que envolve o tema das criaturas do além, mas injetam-se algumas doses de humor numa situação originalmente tensa. A estética universal dos desmortos, tradicionalmente gótica, vertical e mórbida, ganha aqui novos contornos e novas direções, e se desterritorializa sob o impulso de uma ética da inversão e do carnavalesco. Os vampiros da Rede Globo vão morrer na praia. Os morcegos, sob a lua dos trópicos, refazem a liturgia dos contos de horror tradicionais, pelo viés do chiste, da piada.

   Relembramos Roland Barthes (9), a aventura semiológica e sua leitura crítica das mitologias da chamada sociedade burguesa, consideradas como "falas roubadas". Neste sentido a cultura popular de massa, e particularmente, a cultura propiciada pelas ficções televisuais constituiriam o universo privilegiado das "novas" mitologias. Se o mito é uma fala roubada, a ficção televisual das telenovelas, como um tipo de mitologia da sociedade de consumo, seria ela também uma fala roubada ou uma espécie de vampira ? Considerando que a cultura de massa se apropria dos signos da "alta cultura" e da "cultura popular", neste caso, poderíamos considerar a cultura de massa como uma "cultura vampira"? Sendo assim, ocorreria-nos questionar se ela teria ela uma alma?

   Ultrapassando a oposição anacrônica sobre a cultura de massa, focalizamos os produtos da cultura televisual, onde se inscrevem os videoclipes, a publicidade e as telenovelas, como um procedimento de sedução mas também de assédio que desafia a interpretação do "novo mundo" visível performatizado pelos audiovisuais.

   Um produto estandartizado, como a telenovela, mesmo num horário "inocente", como o das 19 horas, apresenta-nos alguns clichês e estereótipos importantes. Considerando que por trás de cada clichê se esconde um arquétipo revigorador, o personagem de Natascha, que possui parentesco simbólico com os personagens de Lestat, Drácula e Nosferatu, detém significações conseqüentes. No espaço efêmero de um videoclipe em tons vermelhos, como a telenovela "Vamp", podemos perceber o eco de uma simbologia antiga, que tem permanência no percurso das diferentes culturas. Natascha, como os seus ancestrais vampiros, tal qual a figura do deus Dionísio, representa uma entidade imaginária que traduz o mito da vida indestrutível (10); reune num mesmo intervalo simbólico a sombra de dois gigantes transcendentais, ou seja, a imagem especular da morte e a outra, da vida eterna.

 

3. A cultura de massas como cultura vampira

   No livro A Alma Atômica (HOCQUENGHEM e SCHÉRER, 1986) (11), num dos capítulos ironicamente intitulados "As bonecas têm uma alma?", os autores criam a oportunidade para uma reflexão sobre a dimensão imaterial presente nos corpos artificiais. Ocorre-nos pensar a cultura de massas como "cultura vampira", na medida em que suga a liquidez dos signos da tradição e ao mesmo tempo absorve as expressões da cultura popular, criando uma nova massa de significações cuja natureza é híbrida. Suspeitamos queé preciso superar velhos preconceitos e admitir que a cultura de massas exprime a sensibilidade do "homem das multidões" (como escreve Allan Poe). Convém dialogizar o sentido da polifonia gerada pelos meios de massa, sem esquecer que esta pode gerar informações sobre o ambiente dos indivíduos nas cidades, mas pode também atrofiar a sua "Experiência" (no sentido empregado por Walter Benjamin 12). As mídias absorvem também a parte de revolta do social, a contracultura, a dimensão de amor e a dimensão do ódio, devolvendo-o à percepção coletiva. De forma mais ampliada é preciso repensar uma ecologia da mídia, como algo que também se transforma. Isto é, as formas de midiatização entre os indivíduos e o mundo social e o mundo cósmico se modificam permanentemente.

   Então a cultura das mídias pode ser entendida como uma cultura vampira, mas que faz parte, ela também do eterno ciclo que envolve formas de integração e de exclusão. Relembramos que a consciência trágica, como assinala Nietzsche, é regida pelo entusiasmo, pela afirmação da vida. Então uma consciência trágica da comunicação, mobiliza-se pela persistência em fazer os indivíduos realizarem as suas experiências. O trágico alerta para se transpor o conformismo diante das imagens midiáticas, e alerta igualmente para a necessidade de interação como requisito do ato comunicativo.

   Retomamos o sentido vampiresco além da sua significação mórbida, mas procurando apreendê-lo enquanto signo de longevidade, de "experiência" que dribla às leis do destino. Em "Lestat, o Vampiro", Anne Rice descreve um vampiro que percebe a passagem dos séculos, a transitoriedade das gerações que se sucedem e a sua condição de "ser" atrelado a uma rede de sentido que também lhe escapa. Há algo de essencialmente trágico à condição dos vampiros e isto é perceptível nas imagens do cinema incarnadas por Drácula, Nosferatu, Lestat e também por Natascha na telenovela "Vamp". A condição dos desmortos, pelo viés da sublimação de uma estética "pós-gótica", paradoxalmente, pode remeter à condição dos seres humanos e suas "ilusões necessárias" acerca do além e das idéias do renascimento.

   O que está em jogo na chamada "idade mídia" ou "sociedade do espetáculo" é o estilo da estesia que se dissemina por todos os extratos da cultura. Para além dos prognósticos que apontam para uma "comunicação sem objeto (H.P.Jeudy, 1994) persiste em meio às telas e redes que performatizam a comunicação social algo essencialmente trágico, dionisíaco, lúdico e vitalista que é preciso apreender; algo que consiste num desafio para aqueles que se ocupam em decifrar o sentido da hiperrealidade cotidiana.

  

Notas:

(1)  JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978

(2)  VOLTAIRE. Candido ou o otimismo. Porto Alegre: L&PM, 1999.

(3) DURKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse, Le système totémique en Australie. Paris: Le Livre de Poche, 1991 (1912).

(4) DEBORD, G. Commentaires sur la société du spectacle. Gérard Lebovici, 1988.

(5) DURAND, G. Les structures anthropologiques de l'imaginaire. DENOD, 1980.

(6) RICE, Anne. Entrevista com vampiro. S. Paulo: Record, 1995.

(7) A idéia de uma ética da estética se faz presente no livro de Michel MAFFESOLI. No Fundo das Aparências, Por uma ética da estética. Petrópolis: Vozes, 1997.           

(8) BAKHTIN, Mikhail. François Rabelais e a cultura popular na idade média e no renascimento. Brasília: HUCITEC/Ed.UnB, 1985.

(9) BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.

(10) KERÉNYI, C. Dionysos, archetypal image of indestructible life, New Jersey: Princeton University Press, l976.

(11) HOCQUENGHEM, G; SCHÉRER, R. L'âme atomique. Paris: Albin Michel, 1986.

(12) BENJAMIN, W. "Experiência e Pobreza" in ___ Obras Escolhidas. Vol. I. S. Paulo: Brasiliense, 1985.

(13) JEUDY, H. P. La communication sans objet. Paris: La Lettre Volée, 1994.