Hollywood com filtro no país da abertura

Uma leitura da telenovela "Dancing Days"

(9º Capítulo de As aparições do deus Dionísio na Idade Mídia)

 

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal da Paraíba

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1. Um retrato allegre da classe média brasileira no fim dos anos 70

No processo de globalização da economia, os parceiros comerciais do Brasil, no fim dos anos 70, não viam com bons olhos a permanência dos regimes autoritários na América Latina. Havia, naquele momento, pressões externas favoráveis à redemocratização do país. Várias instituições civis, tais como a Anistia Internacional, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e ABI (Associação Brasileira de Imprensa) entre outras, irão levar o Estado brasileiro a preparar as manobras para a "abertura política". Durante quase dez anos, a nação brasileira viveu sob o mito do "milagre econômico", o que traduz -a grosso modo- um conjunto de estratégias que permitiram a inserção das classes médias num mercado de consumo. Em consequência, naquele momento teve curso a expansão da cultura de massa no Brasil. No fim dos anos 70, o país conheceu a chamada "crise do milagre" econômico. Vários fatos importantes, como a crise no interior das forças armadas, irão motivar a abertura política. No plano sócioeconômico, endividamento, falências, suspensão do crédito e dos investimentos, ou seja, o retorno da crise econômica irá mostrar o verdadeiro rosto do milagre econômico e tocar fortemente a classe média. Veremos que estes acontecimentos repercutirão no comportamento, nos hábitos e costumes da sociedade.

Além do que, assistir-se-á no país a promulgação da anistia política, o retorno dos exilados políticos e a suspensão da censura prévia sobre os meios de comunicação; a circulação de novas informações terá curso no país, assim como diferentes maneiras de pensar as relações entre o indivíduo e a sociedade, a experiência política e cultural, enfim, temas que irão aquecer o imaginário do país. No que concerne à mídia, observa-se que neste período, a Rede Globo vive um período dos mais favoráveis. Através da telenovela "Dancing Days" (1) , a emissora irá catalizar a energia social que põe em efervescência a vida do país.

A narrativa de "Dancing Days" tentará realizar uma crítica social das classes médias do Brasil. Retomando a situação de uma ex-detenta, na sociedade conservadora, o autor tentará apresentar um microcosmo social do Brasil através do cotidiano dos habitantes do bairro de Copacabana. A ficção se desenvolve, em sua maior parte, no ambiente de uma luxuosa discoteca chamada "Dancing Days", onde se divertem os personagens da telenovela, figurantes da parcela rica da sociedade carioca. Esta é uma ficção que nos permite apreender uma poética urbana do Rio de Janeiro e, é pertinente relembrar que a música, ali, consiste num dos fatores responsáveis pelo "frenesi" que a telenovela causou junto ao público jovem, com a moda das discotecas.

O fio condutor de Dancing Days

Após 11 anos encarcerada pela participação em atos de terrorismo político, nos anos 60, Júlia é liberada da prisão sob condicional. O seu objetivo então será reconquistar a sua filha, Marisa, que estivera sob a guarda da tia Yolanda. Contudo, Yolanda se tornou grã-fina e quer tirar proveito num casamento de Marisa com um jovem afortunado; logo fará tudo para impedir a aproximação entre Júlia e Marisa. Júlia é a parte estranha que desestabiliza a ordem e por isso, sentirá na pele a exclusão social. Enquanto isso, o som e a fúria explodem no templo das discotecas, como fenômeno de transe e integração das tribos urbanas.

"Dancing Days" significa um momento importante no imaginário coletivo do Brasil porque coincide com a emergência de um novo estilo de música, de sensibilidade e de tribalização numa nova ambiência, em transe com as tecnologias audiovisuais. 1979 era o início da "abertura política". É uma narrativa que, no estilo de Gilberto Braga, mistura história e ficção, tentando se aproximar da pele, do cotidiano do Brasil. É interessante como Brasil é "mostrado" em "Dancing Days". É um simulacro do Brasil em festa, e em crise. Um "mundo visível" que se presta a diferentes orientações éticas e estéticas. A crítica alertara, na época, para o fato de que a vida do Rio de Janeiro (e do Brasil) se passa "muito além do Jardim Botânico". Criticava a exportação do estilo de vida carioca para o resto do país, ou seja, a absorção massiva dos hábitos e costumes pelas populações distantes do Rio e São Paulo. "Dancing Days" suscitou o modismo das discotecas e o repúdio dos puristas. O olhar sobre "Dancing Days", nos anos 70, se fez norteado pela crítica da "indústria cultural", como de praxe, e do "colonialismo cultural interno" (2). De certo modo, a ficção deu margem à rediscussão da importação do "estilo de vida americano". "Dancing Days" foi um telenovela criticada por manter sintonia com a estética, ideologia e técnica das produções de Hollywood; foi perseguida, passou pelo filtro da censura na época da abertura e, também foi uma das primeiras novelas tipo exportação que deu certo. Em todo o caso, "Dancing Days" suscitou -talvez mais do que outras telenovelas- as mais severas críticas sobre a cultura de massa (3).

2. "Bye Bye, Brasil", o cinema de olho na televisão, uma antropofagia estética

Hoje, um olhar advertido sobre a telenovela, atento para o mercado internacional das imagens, pode situar a telenovela em meio ao conjunto mais amplo de uma dinâmica audiovisual que reune criações como "Dancing Days" e o filme "Bye Bye Brasil".

"Bye Bye Brasil", realizado por Cacá Diegues, em 1979, trata com humor, do fenômeno de "destruição das culturas locais" e da "invasão da cultura norte-americana". Realizado à época de "Dancing Days", o filme "Bye Bye Brasil" é uma das produções brasileiras mais elaboradas. Sua visão nos permite uma compreensão das realizações audiovisuais do período e funciona, ao mesmo tempo, como uma crítica e aquecimento da cultura de massa que abrange produtos importantes como "Dancing Days". Consideramos que "Bye Bye Brasil" constitui um dispositivo de "antropofagia estética" porque devora os objetos da cultura de massa, deslocando-os do seu habitat "natural" e colocando-os em diálogo com as imagens diversas da cultura brasileira. Música, circo, teatro, televisão funcionam como combustível na estética do filme, que nos mostra o percurso de uma trupe intrépida, composta por quatro saltimbancos que viajam pelas estradas longínquas do país, a bordo de um caminhão transportando uma espécie de teatro mambembe, intitulada "Caravana Rollidei". Os personagens viajam pelos cantos distanciados dos grandes centros, pelas matas cerradas do país, no norte, nordeste e centro-oeste do Brasil, pelos lugares escondidos na imensidão do Brasil. Buscam as regiões ainda intocadas pelo ruído da mídia eletrônica, mas encontram por toda a parte os tentáculos das "escamas de peixe", ou seja, as antenas de televisão. Não há público possível para o teatro mambembe nos espaços minados pela antenas, pois ali, o público prefere assistir televisão. Através das lentes da câmara, a apresentação das culturas locais ganha outros matizes. Há cenas que levam a refletir sobre as visões barrocas do Brasil: os índios amazônicos, em regiões longínqüas, mostram-se, ao natural, curtindo rock e coca-cola; nas festas populares das cidades fronteiriças, a música típica é substituída pela música das discotecas; as pessoas recusam assistir os números do circo, do mágico e da bailarina, preferindo assistir "Dancing Days". "Bye Bye Brasil" mostra o Brasil no plural, ou seja, um país diferente daquele mostrado na telenovela das 20 horas. Ironicamente, "Dancing Days" cita Cacá Degues, autor do filme "Bye Bye Brasil". Nos tempos e espaços da mídia eletrônica realiza-se o fenômeno "intermidiático", ocasião para o diálogo imprevisto entre o gênero da telenovela e do cinema; o que só é possível num universo audiovisual em amadurecimento. Na "diferença" das repetições televisuais encontraremos novas redifusões de "Bye Bye Brasil" no "horário nobre" das 20 horas, partilhando a atenção daquele mesmo público ligado na emissão das telenovelas. É curioso perceber como a inscrição da mídia cinematográfica num suporte midiático como a televisão, abre as brechas para a inserção da tele-fissura que perturba a televisão convencional.

3. O êxtase da música, marketing e frenesi dionisíaco

A telenovela "Dancing Days" é uma das realizações que certamente levou mais longe, até aquele momento, o fenômeno do "merchandising"(4); quer dizer os produtos de consumo, outrora apresentados ao público, durante os intervalos da programação, no espaço habitualmente publicitário, daí em diante serão introduzidos no interior da própria telenovela. A publicidade terá se tornado uma das formas recentes da obra de arte ou a arte se tornou parte das peças publicitárias? Este fenômeno reaparecerá de modo persistente no contexto das telenovelas, no curso dos anos 80/90; assinalamos aqui o início de uma fase, a partir da qual, o imaginário popular vai conviver de modo frequente com os produtos da cultura de massa no cotidiano da ficção.

A telenovela "Dancing Days" disseminou o gênero musical da "discoteca", que explodiu no mercado fonográfico através das trilhas sonoras, invadindo as ondas do rádio. Uma das estratégias dos músicos brasileiros durante o período mais polarizado pelas músicas de discoteca é invadir as redes e difundir o seu produto. Diversos artistas populares do país produziram belas canções "realçando" e "frenetizando" o corpo auditivo das massas. No espaço rarefeito das músicas comerciais os artistas prepararam momentos de surpresa: sensíveis e inteligentes, tomaram os produtos abjetos da lixeira industrial e os transformaram em objetos poéticos que enriqueceram a experiência estética das massas; eis um exemplo de carnavalização no espaço da cultura midiática. Na mesma trilha sonora das telenovelas, encontramos músicas padronizadas de acordo com as expectativas do público médio, assim como, canções mas elaboradas para os ouvidos mais exigentes.

A ficção de "Dancing Days" é um signo da "mundialização cultural", um produto da cultura de massa internacional. Entretanto, esta telenovela possui componentes de um gênero tipicamente nacional. A "antropofagia estética"(5), presente nas provocações da Semana de Arte Moderna, de 1922, assim como na estética dos manifestos tropicalistas(6), e que hoje reaparece sob a forma do movimento Mangue Beat, em Pernambuco, é um procedimento que os autores atentos souberam adaptar às formas da cultura televisual.

A cena do reencontro entre as duas irmãs (Júlia e Yolanda) nos últimos capítulos de "Dancing Days" retoma a cena final do filme norte-americano "Momento de Decisão" (7). Esta cena, muito forte na dramaturgia televisual, é particularmente marcante, em relação ao confronto entre as imagens dionisíacas e as imagens prometêicas na estética do vídeo. Yolanda se situa no centro da cena prometêica: presa aos planos para o futuro, deseja casar a sobrinha com um rapaz rico e vive um mundo estruturado pelo mito da felicidade burguesa; quanto à Júlia, encarna a imagem dionisíaca, vive o presente, sua vida é cheia de turbulência. Deseja retomar a sua filha sob a guarda de Yolanda; neste fim deverá ultrapassar os obstáculos e descer aos infernos.

Por trás dos clichês que estruturam a representação de "Dancing Days" encontramos os símbolos que organizam a imaginação do público: o espírito do ruidoso Dionísio desordena a ambiência que será reestruturada ao fim da narrativa, e a nova desordem das paixões ressurgirá na próxima atração.

Além de todas as leituras possíveis de "Dancing Days" permanece a lembrança de uma telenovela popular que encantou o público à força das imagens e sons, e assim, afirmou o seu lugar na história da ficção brasileira. É uma telenovela de alma dionisíaca sobretudo porque se fez sob o signo da música e da dança.

Na passagem do milagre ecônomico à abertura política, apesar de todos os dispositivos técnicos e ideológicos que absorveram os signos presentes na estética do cinema de Hollywood deslocando-os, filtrando-os e os adaptando à moda da casa, "Dancing Days" propôs uma poética do Brasil urbano através das "escamas de peixe", das antenas de televisão. A criação de "Dancing Days" abriu também o espaço para a crítica de "Bye Bye Brasil" e... vice-e-versa.

Em meio às tensões entre a criação cultural, censura, curiosidade e exigência dos telespectadores face às novidades propostas, "Dancing Days" representa uma via privilegiada para compreender o estilo ficcional brasileiro no fim dos anos 70.

NOTAS:

(1) A telenovela "Dancing Days", realizada por Gilberto Braga, foi exibida pela Rede Globo, às 20 horas, de jul./78 a jan./79, durante a "abertura" ou distensão política.

(2) Ver a propósito, CAMPOS, Marta. Colonialismo cultural interno: O caso Nordeste. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 1986.

(3) Cf. KEHL, M. R. "Três ensaios sobre a telenovela" in Um país no ar. S. Paulo: Brasiliense, 1983.

(4) Cf. RAMOS, R. Grã-Finos na Globo, Cultura e merchandising na televisão. Petrópolis: Vozes, 1986.

(5) Ver ANDRADE, O. "A crise da filosofia messiânica" in ___ Obras completas. Marco Zero: Rio de Janeiro, 1950. Apresentação dos fundamentos filosóficos da antropofagia.

(6) Ver SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos. S.Paulo: Perspectiva, 1986.

(7) Cf. O filme norte-americano "Momento de Decisão", realizado por H. ROSS, em 1977, com Anne Bancroft e Shirley Maclaine.