Estética de massa,
Tecnologia das imagens e Ficção brasileira
(Segundo Capítulo de "As aparições do deus
Dionísio na Idade Midia")
Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade
Federal da Paraíba
1. A
Telenovela como Narrativa Pós-Moderna
Tornou-se lugar comum apresentar
o Brasil através do samba, futebol e carnaval; o país é conhecido também pelo
sabor da cachaça e culinária, magia do candoblé, natureza exuberante e
miscigenação. A combinação destes ingredientes concede forma e qualidade à
música, às artes plásticas, à literatura e ao cinema. Contudo, os pesquisadores
apressados em definir uma identidade da cultura brasileira, insistem em
pensar o Brasil nos termos de uma totalidade, o que dificilmente se sustentaria
hoje. A visão folclórica dos brasilianistas, o olhar pessimista de alguns
estudos tradicionais ou ainda as sínteses que tentaram enquadrar a realidade
social nos termos de uma totalidade (econômica, política, histórica) constituem
um enfoque distante do país. A realidade brasileira é sobretudo plural, exprime
sempre um complexo de diferentes contradições, reflexos de colonização, modos
de resistência e formas distintas de carnavalização do cotidiano. Na época da mundialização,
as culturas locais instigam uma reflexão sobre a experiência cultural
por outros prismas.
No interior do processo de globalização,
a ficção brasileira permanece como produto típico de uma cultura no plural,
que afirma sua particularidade no mercado internacional da ficção. Há quase
trinta anos a telenovela se consolidou como um gênero no Brasil. Este produto
considerado anteriormente como uma pobreza da cultura de massa, antes poluição
do que oxigênio na ambiência cultural, revela-se doravante como um produto de
qualidade e enfrenta os enlatados que inflacionam o mercado
internacional. É pertinente lembrar, os seriados americanos jamais bateram recordes
de audiência no Brasil, durante o chamado horário nobre.
As telenovelas são importantes
também porque as melhores produções do gênero puderam suprir uma carência junto
ao público médio brasileiro; note-se, por exemplo, que o livro, o cinema, o
vídeo, os computadores e as parabólicas ainda são produtos caros e pouco
acessíveis à população. Convém lembrar que a ficção televisual participa da
difusão de obras literárias e cinematográficas essenciais na história da
cultura.
Em suma, há alguns anos o Brasil
se tornou conhecido no mundo inteiro pela ficção que produz. Este é um dado
recente no que respeita à imagem do Brasil dentro e fora do território
nacional. A audiência extraordinária das telenovelas brasileiras na China, em
Portugal ou na Rússia é relevante no intercâmbio cultural entre estes
diferentes países.
As telenovelas conquistaram o
mercado internacional, principalmente porque o gênero ultrapassou a simples
produção de imagens exóticas. A telenovela, como uma modulação da grande
arte, pode ao mesmo tempo, acariciar e ferir, chocar e fazer sonhar,
informar ou roubar a atenção pelo expediente da surpresa. A telenovela é uma
narrativa pós-moderna que agrega os diversos gêneros de discursos no tempo e no
espaço.
À diferença dos melodramas dos
anos 50/60, as telenovelas hoje conseguem propor um repertório mais consistente
às diversas camadas do grande público. Desde a exibição de O Direito de
Nascer (1964) até Terra Nostra (1999/2000) as tecnologias
audiovisuais se desenvolveram elaborando um produto de qualidade. Ao invés de
reproduzir os modelos de Hollywood e o estilo de vida americano, a
ficção do Brasil tem sido original na absorção das tensões e contradições da
vida social, transformando-as em matéria poética. Produtos como "Gabriela,
Cravo e Canela", "Roque Santeiro" ou "Chiquinha
Gonzaga" são formas estéticas que revelam aspectos importantes da vida
brasileira.
Algumas telenovelas realizadas
pela Rede Manchete, tais como Carmem, Qorpo Santo, kananga do
Japão ou Xica da Silva, por exemplo, abalaram o monopólio da Rede
Globo apresentando trabalhos de qualidade. A telenovela participa das decisões
públicas como um processo de eleição política (Eu Prometo) ou deposição
de um Presidente da República (Anos Rebeldes); é capaz de absorver e
difundir manifestações populares (Quem ama não mata) ou estimular a
indiferença geral à política (Que rei sou eu?); pode igualmente
interferir no cotidiano durante a exibição dos chamados "momentos
decisivos". A telenovela pode derrapar na maneira como apresenta a dimensão
política: a figuração dos parlamentares nas cenas de ficção ou a simulação do
Movimento dos Sem Terra (O Rei do Gado) permitem leituras controversas. Todavia,
as expressões do poder e potência das massas aparecem surpreendentemente em
diversos registros da ficção.
Desprezadas anteriormente pela
academia, que as considerava um simples divertimento, canal de alienação ou
distante da vida inteligente, as telenovelas se tornaram uma importante fonte
de reflexão. Após quarenta anos de difusão, este gênero atingiu um estatuto
diferente, o que nos instiga a retomá-lo seriamente, também como pretexto para
repensar o imaginário social brasileiro. A telenovela é um objeto de fruição
estética das massas, que nos situa no foco dos debates sobre arte, técnica, comunicação
e sociedade.
As telenovelas Beto Rockfeller,
Bandeira 2 ou Cambalacho são apropriações de estilos e linguagens
sociais que a televisão absorveu, transformou e devolveu à sociedade, sob a
forma de sátira inteligente. A qualidade das telenovelas e minisséries
brasileiras reside igualmente na participação de dramaturgos que, projetando as
diferenças do Brasil no imenso território nacional, definiram novas formas de
olhar o país, a sua cultura, a parte trágica e a parte de felicidade do social.
A ficção brasileira soube
assimilar o repertório das camadas populares e produzir uma cultura local
que interage no conjunto multiforme da cultura brasileira. Utilizando a
qualidade técnica da mídia eletrônica e os melhores recursos humanos no domínio
da dramaturgia, por meio de um processo de racionalização das imagens do
social, atingiu a perfeição de um produto cultural que seduz o público do
Brasil e do estrangeiro.
No Brasil, o campo da experiência
simbólica realizada usualmente pelo cinema, enquanto arte tecnológica, é
preenchido, em grande parte, pela televisão. As celebridades, amadas pelo
público, pertencem antes à cena televisual que ao teatro ou cinema; isto
resulta numa relação muito próxima entre o público e a televisão. Os
telespectadores podem contemplar diariamente, no vídeo, a aparição das
estrelas, os novos olimpianos (1), figuras mitológicas que fascinam o
imaginário popular.
Reconstruída socialmente todos os
dias, a telenovela abriga um repertório de temas e personagens que abrem canais
para as identificações do público com as situações e personagens de ficção. Os
eventos políticos (O Rei do Gado) e religiosos (Decadência) ou os
tabus sociais, e a discriminação racista e sexual (A Próxima Vítima) se
tornaram, há algum tempo, matéria de discussão na mídia. Isto faz a
originalidade da telenovela: os fatos da cotidianos que geram a sinergia
social são introduzidos sistematicamente no domínio da ficção, perturbando as
relações entre o ficcional e o real.
2. Das óperas
de sabão às Telenovelas e Minisséries
As telenovelas, como as óperas
de sabão norte-americanas, surgiram de uma circunstância mercadológica bem
precisa: os especialistas de marketing descobriram a delícia de poder misturar
os tempos do trabalho e lazer das donas de casa. Formato e estilo se
disseminaram tendo como referência simbólica, uma sensibilidade mediatizada
pela estética do entretenimento. Contudo um certo espaço de transgressão da
ordem doméstica já estava garantido do outro lado do vídeo. À medida que a
sociedade foi se habituando à mudança dos valores culturais, no curso dos
últimos 30 anos, as telenovelas passaram a difundir assuntos cujo tratamento
exige sutileza. Os temas como aborto, drogas, racismo e violência passaram a
ser focalizados nos diversos horários. Este deslocamento na ordem dos discursos
da televisão leva a refletir sobre o problema da ética e comunicação. A
telenovela abriu um rasgão no tecido simbólico da sociedade, exibindo as
frestas por onde circulam os valores em transição da nossa cultura de passagem
do século.
A ficção brasileira se distingue
pela maneira como os discursos das personalidades políticas, líderes de opinião
e gente com poder de decisão se infiltram no corpo da trama. As fronteiras
entre ficção e realidade por vezes não são muito nítidas; a ficção é
frequentemente povoada por personagens reais e exibe traços da aparência
visível da realidade brasileira. A ficção não tem o compromisso de produzir um
discurso com pretensões de verdade, no entanto, exibe uma verdade sedutora e
seduzida que fustiga o domínio dos sonhos e do despertar, suscitando
identificações por parte do público.
Ao longo dos anos 60/90 a ficção
aprimorou sua linguagem, descobriu meios técnicos mais sofisticados, como a
gravação das cenas externas e utilização de recursos como a computação gráfica,
aperfeiçoando a dramaturgia na televisão; o estilo curto reapareceu como
novidade. Mas, como se sabe, o combustível da televisão comercial é a
publicidade; o custo da série curta é alto e os patrocinadores não podem obter
a curto prazo o retorno dos seus investimentos nos reclames publicitários.
As ficções curtas, iniciadas com
os Casos Especiais e refinadas com as Minisséries, consistem no
esforço de uma produção mais elaborada, destinada a um público mais exigente. Só
nos anos 90, com O Fim do Mundo (Dias Gomes), teremos uma telenovela em
formato curto, no horário nobre, o que significa uma renovação do gênero. A
adaptação de obras literárias, reoperadas a partir de inovações nos diálogos,
no cenário e na forma de apresentação são trabalhos que atualizam a memória
literária por meio da dramaturgia televisual brasileira. Vida e Morte de
Severina, Grande Sertão, Veredas e Hilda Furacão,
por exemplo, são peças importantes em meio ao filão das obras literárias
adaptadas para a televisão que despertam junto às jovens gerações o interesse
pela literatura.
As Séries Nacionais, no
começo dos anos 80, configurando, então, uma nova tendência estética e
mercadológica, definiram uma estratégia que consistia em exibir as imagens do
Brasil, distanciadas do público anteriormente por questões estéticas e
ideológicas. O slogan "o Brasil que você não vê" expressa o
estilo na Rede Globo naqueles anos e sintetiza um novo estágio da
"integração nacional". As séries. Carga Pesada, Plantão de
Polícia e Malu Mulher servem de exemplo. O desafio de exibir a face
"desconhecida" do Brasil poderia emperrar diante dos riscos de
apresentar o outro, a diferença e a alteridade de forma
estereotipada, propor uma visão moralista, ou ainda enfadar o público com a
exibição de "culturas excêntricas". As séries enfrentaram os
desafios, correram os riscos e eventualmente tropeçaram nos obstáculos, porém,
inovaram no tratamento de temas estranhos ao universo da ficção. O cotidiano
dos caminhoneiros nas estradas do Brasil, em Carga Pesada, a
apresentação das histórias de crimes e casos policiais, na série Plantão de
Polícia e os conflitos da mulher descasada (Malu Mulher) numa
sociedade em metamorfose, sinalizaram um novo rumo da televisão.
Nos anos 90, A TV Globo, outra
vez, viria inovar a paisagem audiovisual brasileira, com a série A
justiceira, um trilher policial com requintes de violência tipo-exportação;
deste modo a emissora acertaria os ponteiros nos tempos da globalização, quando
a estética da violência e velocidade se tornariam objeto de culto nos quatro
cantos do mundo.
Contudo a marca registrada da
ficção brasileira na passagem do século será revisitar a história arcáica do
país com as mais arrojadas tecnologias.
3. Os
intelectuais e as ilusões necessárias
A ficção das telenovelas é
contemporânea da falência das representações tradicionais do Brasil. "Está
morta a concepção da sociedade brasileira como inocente, pastoril e
pacífica"; esta visão nostálgica, gradualmente foi sendo substituída pela
compreensão de um país multiforme, que reconhece na pele as suas contradições.
As novas formas de exclusão, a
violência e as surpresas bizarras no cotidiano do Brasil atual têm sido
apresentadas sistematicamente na ficção do vídeo. O reverso da imagem de um
país em desenvolvimento são as imagens de horror e de medo. Entretanto, pelos
mesmos processos midiáticos, enxergamos uma comunidade que partilha as
esperanças e ilusões necessárias.
A televisão projeta uma espécie
de coincidência de opostos: o sublime e o grotesco, as imagens do azar e
da felicidade, o baixo infernal e o alto celestial que se misturam no cotidiano
nacional são introduzidos na ficção do país. Assim, temos as imagens de um país
que permanece vitalista, sem perder as esperanças; irremediavelmente maduro,
através de uma sensibilidade trágica, afirma a vida e convive com todas as suas
diferenças. A efervescência das imagens na televisão (nos telejornais e
telenovelas) que não cessam de projetar o Brasil, em todos os seus
antagonismos, levou os brasileiros a encararem a face polimorfa da sua cultura.
A aparência do Brasil exibida nas
telenovelas, apesar de todos os filtros técnicos e ideológicos, acabou por
permitir ao público enxergar o inverso do país da cordialidade. A ficção
da televisão, sob a forma das telenovelas e minisséries, de maneira inédita,
elaborou uma estética das massas, difundindo a complexidade da cultura
brasileira para um público composto por milhões de pessoas. A usina de imagens
constituída pela mídia eletrônica, aparece com toda potência na ficção das
telenovelas, abrindo janelas através das quais se epifanizam os símbolos que
orientam o imaginário social e fornecendo um meio de leitura da sociedade e da
cultura brasileira.
Esta complexidade que os
discursos oficiais, autorizados e institucionais, em sua versão apologética ou
apocalíptica, tentaram demonstrar anteriormente através de um cogito científico
positivista, é mostrada doravante, cotidianamente, sob diferentes ângulos, pela
ficção das telenovelas. O maquinário teórico-conceitual tentara desmontar,
dominar e explicar a complexidade da vida social, os paradoxos e os
antagonismos, a pobreza e a riqueza do Brasil, mas esta pluralidade só se
tornou mais evidente por meio da televisão. As explicações históricas,
culturalistas ou marxistas dos pesquisadores engajados numa interpretação do
Brasil, permaneceram sempre distantes e sem sedução para o público. Entretanto,
a face dura e descontraída, o óbvio e o obtuso, os pedaços distintos que
integram o hibridismo da paisagem sociocultural do país através de uma
linguagem produzida pelas tecnologias das imagens atrairam a atenção do
público. Este fenômeno é possível, entre outros motivos, porque o público se
reconhece e se identifica com as formas da comunicação televisual. Apesar de
tudo o que existe de ligeiro, difuso e fragmentado na apresentação do Brasil,
por meio da ficção na TV, o público encontra estilos com os quais experimenta
identificações. As tensões sociais, políticas, econômicas, étnicas, religiosas
e linguísticas na geléia geral da cultura brasileira se projetam,
inevitavelmente, na ficção das telenovelas. Este procedimento estético se
tornou um vetor de comunhão e partilha das formas da sensibilidade, dos afetos
e das emoções coletivas. Não é por acaso que a ficção, ontem um tema recusado e
encoberto de preconceito pelos intelectuais, tornou-se hoje um assunto de
interesse para os pesquisadores preocupados em apreender o sentido deste novo
hiperrealismo brasileiro (2).
De início parece estranho
caracterizar a telenovela, um simulacro rápido, efêmero e fragmentado, enquanto
instrumento que permite uma compreensão da realidade social do país; mas esta
forma híbrida de comunicação, que mistura os diferentes gêneros discursivos de
uma maneira particular, propiciando a fusão entre a ficção, a História e os
fatos diversos do cotidiano, não deixa de seduzir o público e desconsertar a
hegemonia dos discursos explicativos sobre o Brasil.
A telenovela serve como alavanca
metodológica para um enfoque antropológico da realidade brasileira porque se
nutre do simbolismo que dinamiza todo o imaginário social e porque desempenha
um papel particular na história da cultura brasileira. Um estudo arqueológico
(3) sobre o gênero ficcional, reencontra correspondências entre a ficção das
telenovelas e as narrativas de ficção das novelas de rádio, fotonovelas e
teleteatro, precursores no hábito social de assistir as telenovelas.
4. Evolução
Tecnológica e Capitanias Hereditárias
No princípio dos anos 70, cerca
de uma década antes da Europa, a televisão brasileira já era difundia em rede
nacional, por satélite; um grande investimento do governo militar, motivado
pelas ideologias de "segurança" e "integração nacional". Conforme
nos lembra Arnaldo Jabor (4), seguindo a velha tradição, que remonta ao período
colonial das capitanias hereditárias, as redes de televisão foram distribuídas
de uma maneira centralizadora e arbitrária. Assim nasceu o monopólio das
telecomunicações e mais particularmente, dos audiovisuais no Brasil, como uma
"repetição das relações entre senhores e escravos, tão características do
Brasil tradicional"; as telecomunicações foram estruturadas da mesma
maneira que as velhas usinas de açúcar do nordeste brasileiro. Isto significa a
"concentração dos poderes de decisão, igualmente em matéria de
audiovisual". A crítica ortodoxa não pode traduzir com fidedignidade as
paixões populares pela televisão e pelas telenovelas que criaram uma espécie de
"comunidade virtual. Há mais de uma década, mesmo os pesquisadores mais
céticos já estão de acordo com relação ao seu aspecto positivo, sua competência
comunicativa e qualidade técnica.
"Apesar do autoritarismo da
sua institucionalização, a televisão é amada pelo povo, que a escolheu e que
fez dela uma potência irrefutável", é isto também o que confere a sua
importância como um dispositivo de produção, circulação e recepção dos bens
simbólicos.
Uma análise da complexidade dos
processos midiáticos no Brasil não pode ignorar as condições sócio-políticas e
econômicas de sua emergência e desenvolvimento. Por outro lado, não se pode
compreender a mídia ignorando as formas de interação simbólica existente entre
a produção audiovisual e a sua recepção.
As telenovelas, em relação aos
sistemas simbólicos, mantêm um papel semelhante àquele desempenhado pelo cinema
de Hollywood no contexto da cultura de massa internacional; fazem parte de um
fenômeno que traduz, em nível nacional, a fábrica de sonhos que perturba e
excita o imaginário coletivo. Um olhar mais cuidadoso sobre a ficção brasileira
revela que as telenovelas consistem num vetor privilegiado para a observação da
cultura do país, porque através das telenovelas nos aproximamos do homem
imaginário brasileiro, dos símbolos que organizam a vida em sociedade.
Numerosas enquetes sociológicas
de envergadura, apoiadas em diferentes teorias e métodos têm analisado as
telenovelas, de modo aprofundado. Entre estes estudos, há alguns já
"clássicos", que são importantes (5); entretanto, observamos que
mantêm a predisposição para demonstrar a "fragilidade" deste produto
de comunicação. Muitas enquetes sofreram a marca ideológica do momento em que
foram realizadas; hoje, considerando as condições que possibilitaram estas
pesquisas, compreendemos o ponto de vista que as orientou e ali encontramos
passagens pertinentes no enfoque de um tema importante (6)
A televisão se distingue das
artes plásticas, teatro, literatura e cinema pelo seu estilo, pela maneira como
desvela os assuntos que apresenta. Por outro lado, através da confronto,
mistura e liquefação destes diversos gêneros é que se constrói a linguagem da
mídia eletrônica e, por conseguinte, da ficção televisual. Consiste, portanto,
num novo modo de expressão, a telenovela, que integra as outras narrativas. Segundo
Mc Luhan, cada meio de comunicação tende a absorver o "meio antecedente",
no que respeita à ordem da sua aparição na história da cultura, a telenovela,
neste sentido, pode servir de exemplo.
Na passagem da literatura ao
cinema, assim como do cinema à televisão, percebemos uma modificação, no que
concerne ao modo de produção das imagens e às formas de sua recepção (7). Quer
dizer, as técnicas de produção e de circulação, assim como o estilo de
linguagem e a experiência de partilha das imagens na ficção televisual
alteraram sensivelmente o estatuto da experiência comunicativa. A partir da
expansão dos meios de comunicação, reconhecemos uma mudança importante na
natureza da experiência estética, com tudo o que isto implica de ganhos e
perdas; este é um dado relevante, na medida que a cultura contemporânea é
inteiramente tocada pela ação dos audiovisuais.
Considerando as transformações
que tiveram lugar desde a moda dos folhetins, novelas de rádio e
fotonovelas até as ficções televisuais, constatamos importantes mutações no
universo das trocas simbólicas. A paisagem da cidade e da vida cotidiana se
modificaram quase silenciosamente, o estatuto do sujeito da experiência
estética mudou e, houve também transformações no regime das imagens e
linguagens que põem em diálogo o domínio da criação e o campo da recepção.
Na passagem das imagens
literárias às imagens em movimento, do cinema e da televisão, uma revolução
inteira aconteceu; a aparição de novos fenômenos apresentam desafios para uma
interpretação da cultura em trânsito. As novas mídias fazem parte desta nova
modalidade de hibridismo cultural e, neste quadro percebemos o convívio de
gêneros discursivos distintos, num mesmo espaço e num mesmo tempo histórico. O
jornalismo, a publicidade, a ficção, os programas de entrevistas e
entretenimento, que compõem o novo espaço público, criaram uma paisagem
inédita no meio ambiente audiovisual, que solicitam um enfoque atualizado das
tendências em curso.
É preciso compreender as novas
formas da experiência coletiva, neste novo estágio, em que já é possível falar
de uma "moderna tradição brasileira". A mídia despertou, junto às
massas, o interesse pela literatura, história, cinema..., em suma, por uma nova
compreensão do mundo.
Cairam por terra os mitos,
utopias e certezas que formaram as gerações dos últimos 30 anos. É preciso
reconhecer a sensibilidade das novas gerações que atualizam a compreensão das
suas raízes (no que respeita à tradição e à memória), e experimentam uma
apreensão do mundo através das antenas do Brasil (isto é, a ligação do Brasil
com suas diferentes regiões, através de diferentes formas de midiatização, em
sintonia com todo o planeta).
A indústria cinematográfica
conheceu um longo período de crise, embora tenha começado a renascer nos anos
90, a indústria editorial não encontrou ainda o seu público ideal e persiste no
país uma taxa elevada de analfabetismo. Estas poderiam ser as causas que fazem
da televisão brasileira, uma instituição importante. Entretanto, é preciso
sondar de perto esta tecnologia de imagens, que revela a aparência visível da
sensibilidade brasileira, para compreender as suas ligações com o imaginário
coletivo.
Após 30 anos de experiência, os
autores da ficção televisual brasileira, advindos da literatura e do teatro,
descobriram um tipo de linguagem apropriada ao vídeo; conseguiram colocar em
evidência diferentes possibilidades de comunicação entre os diversos segmentos
sociais, numa sociedade cuja estratificação é cada vez mais perturbadora.
Notas
1.Encontramos a expressão
"novos olimpianos" in MORIN, E. Les Stars, Op.cit.
2 No que concerne ao papel dos
intelectuais à época dos audiovisuais, consultar JEUDY, H. P. Os ardis da
comunicação, A eutanásia dos sábios, Rio, Imago, 1989.
3.Ver a propósito, "Uma
arqueologia" da ficção televisual brasileira" in MATTELART, M &
A. O carnaval das imagens, A Ficção na TV, Brasiliense, 1989.
4 JABOR, A. Brasil na cabeça,
S.Paulo, Siciliano, 1995.
5.LEAL, O. F. A leitura social da Novela das Oito, Petrópolis: Vozes, 1986, 2a ed; KEHL; M.R. "Eu vi um Brasil na TV, Três ensaios sobre a telenovela" in COSTA, A.H; SIMÕES, I.F; KEHL, M.R. Um país no ar, História da TV brasileira em três canais, S.Paulo, Brasiliense/FUNARTE, 1986; RAMOS, R. Grã-Finos na Globo, Cultura e merchandising nas novelas, Petrópolis: Vozes, 1986; ORTIZ, R; BORELLI, S.H. S; RAMOS, J.M.O. Telenovela, História e Produção, S.Paulo: Brasiliense, 1989; ALMEIDA, D. P. Telenovela, O (in)discreto charme da burguesia, Maceió: EDUFAL, 1988; SHNEIER-MADANES, G. L'Amérique Latine et ses televisions, Du local au mondial, Paris: Anthropos/INA, 1995; AMORIM, E.A. História da telenovela, 1950-68, S.Paulo, IDART, s/d.; CAMPADELLI, S.Y.A. A telenovela, S.Paulo: Atica, 1985; MARCONDES FILHO, C. "Telenovela e a lógica do capital" in Quem manipula quem. Petrópolis, Vozes, 1986; NOVAES, A (Org.) A rede imaginária, S. Paulo, Cia das Letras, 1991. LASANI, C; RICHERI, G. "L'altro Mondo quotidiano, Telenovelas" in ___ TV Brasiliana e dintorni, Rome, ERJ/RAI, 1986; MADER, R. "Globo billage, Television in Brazil" in DOWNMUNT, T. Channels de resistence, Global television and local empowerment, London: Ed. British Film Institut/Channel 4, 1993.
6. É importante destacar o
trabalho de importantes centros de pesquisas no Brasil, ocupados com a questão
da ficção televisual, como o "Núcleo de Pesquisas sobre Telenovelas",
da Escola de Comunicação e Artes, ECA/USP. Coord. AnaMaria FADUL; Maria
Aparecida BACCEGA.
7 Cf. W. BENJAMIN "A obra de
arte na época de sua reprodutibilidade técnica" in ROUANET, S.P. (Org.) Walter
Benjamin, Obras Escolhidas, Vol.I. Magia e Técnica, Arte e Política.
S.Paulo: Brasiliense, 1985.