Estética de massa, Tecnologia das imagens e Ficção brasileira

(Segundo Capítulo de "As aparições do deus Dionísio na Idade Midia")

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal da Paraíba

 

1. A Telenovela como Narrativa Pós-Moderna

Tornou-se lugar comum apresentar o Brasil através do samba, futebol e carnaval; o país é conhecido também pelo sabor da cachaça e culinária, magia do candoblé, natureza exuberante e miscigenação. A combinação destes ingredientes concede forma e qualidade à música, às artes plásticas, à literatura e ao cinema. Contudo, os pesquisadores apressados em definir uma identidade da cultura brasileira, insistem em pensar o Brasil nos termos de uma totalidade, o que dificilmente se sustentaria hoje. A visão folclórica dos brasilianistas, o olhar pessimista de alguns estudos tradicionais ou ainda as sínteses que tentaram enquadrar a realidade social nos termos de uma totalidade (econômica, política, histórica) constituem um enfoque distante do país. A realidade brasileira é sobretudo plural, exprime sempre um complexo de diferentes contradições, reflexos de colonização, modos de resistência e formas distintas de carnavalização do cotidiano. Na época da mundialização, as culturas locais instigam uma reflexão sobre a experiência cultural por outros prismas.

No interior do processo de globalização, a ficção brasileira permanece como produto típico de uma cultura no plural, que afirma sua particularidade no mercado internacional da ficção. Há quase trinta anos a telenovela se consolidou como um gênero no Brasil. Este produto considerado anteriormente como uma pobreza da cultura de massa, antes poluição do que oxigênio na ambiência cultural, revela-se doravante como um produto de qualidade e enfrenta os enlatados que inflacionam o mercado internacional. É pertinente lembrar, os seriados americanos jamais bateram recordes de audiência no Brasil, durante o chamado horário nobre.

As telenovelas são importantes também porque as melhores produções do gênero puderam suprir uma carência junto ao público médio brasileiro; note-se, por exemplo, que o livro, o cinema, o vídeo, os computadores e as parabólicas ainda são produtos caros e pouco acessíveis à população. Convém lembrar que a ficção televisual participa da difusão de obras literárias e cinematográficas essenciais na história da cultura.

Em suma, há alguns anos o Brasil se tornou conhecido no mundo inteiro pela ficção que produz. Este é um dado recente no que respeita à imagem do Brasil dentro e fora do território nacional. A audiência extraordinária das telenovelas brasileiras na China, em Portugal ou na Rússia é relevante no intercâmbio cultural entre estes diferentes países.

As telenovelas conquistaram o mercado internacional, principalmente porque o gênero ultrapassou a simples produção de imagens exóticas. A telenovela, como uma modulação da grande arte, pode ao mesmo tempo, acariciar e ferir, chocar e fazer sonhar, informar ou roubar a atenção pelo expediente da surpresa. A telenovela é uma narrativa pós-moderna que agrega os diversos gêneros de discursos no tempo e no espaço.

À diferença dos melodramas dos anos 50/60, as telenovelas hoje conseguem propor um repertório mais consistente às diversas camadas do grande público. Desde a exibição de O Direito de Nascer (1964) até Terra Nostra (1999/2000) as tecnologias audiovisuais se desenvolveram elaborando um produto de qualidade. Ao invés de reproduzir os modelos de Hollywood e o estilo de vida americano, a ficção do Brasil tem sido original na absorção das tensões e contradições da vida social, transformando-as em matéria poética. Produtos como "Gabriela, Cravo e Canela", "Roque Santeiro" ou "Chiquinha Gonzaga" são formas estéticas que revelam aspectos importantes da vida brasileira.

Algumas telenovelas realizadas pela Rede Manchete, tais como Carmem, Qorpo Santo, kananga do Japão ou Xica da Silva, por exemplo, abalaram o monopólio da Rede Globo apresentando trabalhos de qualidade. A telenovela participa das decisões públicas como um processo de eleição política (Eu Prometo) ou deposição de um Presidente da República (Anos Rebeldes); é capaz de absorver e difundir manifestações populares (Quem ama não mata) ou estimular a indiferença geral à política (Que rei sou eu?); pode igualmente interferir no cotidiano durante a exibição dos chamados "momentos decisivos". A telenovela pode derrapar na maneira como apresenta a dimensão política: a figuração dos parlamentares nas cenas de ficção ou a simulação do Movimento dos Sem Terra (O Rei do Gado) permitem leituras controversas. Todavia, as expressões do poder e potência das massas aparecem surpreendentemente em diversos registros da ficção.

Desprezadas anteriormente pela academia, que as considerava um simples divertimento, canal de alienação ou distante da vida inteligente, as telenovelas se tornaram uma importante fonte de reflexão. Após quarenta anos de difusão, este gênero atingiu um estatuto diferente, o que nos instiga a retomá-lo seriamente, também como pretexto para repensar o imaginário social brasileiro. A telenovela é um objeto de fruição estética das massas, que nos situa no foco dos debates sobre arte, técnica, comunicação e sociedade.

As telenovelas Beto Rockfeller, Bandeira 2 ou Cambalacho são apropriações de estilos e linguagens sociais que a televisão absorveu, transformou e devolveu à sociedade, sob a forma de sátira inteligente. A qualidade das telenovelas e minisséries brasileiras reside igualmente na participação de dramaturgos que, projetando as diferenças do Brasil no imenso território nacional, definiram novas formas de olhar o país, a sua cultura, a parte trágica e a parte de felicidade do social.

A ficção brasileira soube assimilar o repertório das camadas populares e produzir uma cultura local que interage no conjunto multiforme da cultura brasileira. Utilizando a qualidade técnica da mídia eletrônica e os melhores recursos humanos no domínio da dramaturgia, por meio de um processo de racionalização das imagens do social, atingiu a perfeição de um produto cultural que seduz o público do Brasil e do estrangeiro.

No Brasil, o campo da experiência simbólica realizada usualmente pelo cinema, enquanto arte tecnológica, é preenchido, em grande parte, pela televisão. As celebridades, amadas pelo público, pertencem antes à cena televisual que ao teatro ou cinema; isto resulta numa relação muito próxima entre o público e a televisão. Os telespectadores podem contemplar diariamente, no vídeo, a aparição das estrelas, os novos olimpianos (1), figuras mitológicas que fascinam o imaginário popular.

Reconstruída socialmente todos os dias, a telenovela abriga um repertório de temas e personagens que abrem canais para as identificações do público com as situações e personagens de ficção. Os eventos políticos (O Rei do Gado) e religiosos (Decadência) ou os tabus sociais, e a discriminação racista e sexual (A Próxima Vítima) se tornaram, há algum tempo, matéria de discussão na mídia. Isto faz a originalidade da telenovela: os fatos da cotidianos que geram a sinergia social são introduzidos sistematicamente no domínio da ficção, perturbando as relações entre o ficcional e o real.

2. Das óperas de sabão às Telenovelas e Minisséries

As telenovelas, como as óperas de sabão norte-americanas, surgiram de uma circunstância mercadológica bem precisa: os especialistas de marketing descobriram a delícia de poder misturar os tempos do trabalho e lazer das donas de casa. Formato e estilo se disseminaram tendo como referência simbólica, uma sensibilidade mediatizada pela estética do entretenimento. Contudo um certo espaço de transgressão da ordem doméstica já estava garantido do outro lado do vídeo. À medida que a sociedade foi se habituando à mudança dos valores culturais, no curso dos últimos 30 anos, as telenovelas passaram a difundir assuntos cujo tratamento exige sutileza. Os temas como aborto, drogas, racismo e violência passaram a ser focalizados nos diversos horários. Este deslocamento na ordem dos discursos da televisão leva a refletir sobre o problema da ética e comunicação. A telenovela abriu um rasgão no tecido simbólico da sociedade, exibindo as frestas por onde circulam os valores em transição da nossa cultura de passagem do século.

A ficção brasileira se distingue pela maneira como os discursos das personalidades políticas, líderes de opinião e gente com poder de decisão se infiltram no corpo da trama. As fronteiras entre ficção e realidade por vezes não são muito nítidas; a ficção é frequentemente povoada por personagens reais e exibe traços da aparência visível da realidade brasileira. A ficção não tem o compromisso de produzir um discurso com pretensões de verdade, no entanto, exibe uma verdade sedutora e seduzida que fustiga o domínio dos sonhos e do despertar, suscitando identificações por parte do público.

Ao longo dos anos 60/90 a ficção aprimorou sua linguagem, descobriu meios técnicos mais sofisticados, como a gravação das cenas externas e utilização de recursos como a computação gráfica, aperfeiçoando a dramaturgia na televisão; o estilo curto reapareceu como novidade. Mas, como se sabe, o combustível da televisão comercial é a publicidade; o custo da série curta é alto e os patrocinadores não podem obter a curto prazo o retorno dos seus investimentos nos reclames publicitários.

As ficções curtas, iniciadas com os Casos Especiais e refinadas com as Minisséries, consistem no esforço de uma produção mais elaborada, destinada a um público mais exigente. Só nos anos 90, com O Fim do Mundo (Dias Gomes), teremos uma telenovela em formato curto, no horário nobre, o que significa uma renovação do gênero. A adaptação de obras literárias, reoperadas a partir de inovações nos diálogos, no cenário e na forma de apresentação são trabalhos que atualizam a memória literária por meio da dramaturgia televisual brasileira. Vida e Morte de Severina, Grande Sertão, Veredas e Hilda Furacão, por exemplo, são peças importantes em meio ao filão das obras literárias adaptadas para a televisão que despertam junto às jovens gerações o interesse pela literatura.

As Séries Nacionais, no começo dos anos 80, configurando, então, uma nova tendência estética e mercadológica, definiram uma estratégia que consistia em exibir as imagens do Brasil, distanciadas do público anteriormente por questões estéticas e ideológicas. O slogan "o Brasil que você não vê" expressa o estilo na Rede Globo naqueles anos e sintetiza um novo estágio da "integração nacional". As séries. Carga Pesada, Plantão de Polícia e Malu Mulher servem de exemplo. O desafio de exibir a face "desconhecida" do Brasil poderia emperrar diante dos riscos de apresentar o outro, a diferença e a alteridade de forma estereotipada, propor uma visão moralista, ou ainda enfadar o público com a exibição de "culturas excêntricas". As séries enfrentaram os desafios, correram os riscos e eventualmente tropeçaram nos obstáculos, porém, inovaram no tratamento de temas estranhos ao universo da ficção. O cotidiano dos caminhoneiros nas estradas do Brasil, em Carga Pesada, a apresentação das histórias de crimes e casos policiais, na série Plantão de Polícia e os conflitos da mulher descasada (Malu Mulher) numa sociedade em metamorfose, sinalizaram um novo rumo da televisão.

Nos anos 90, A TV Globo, outra vez, viria inovar a paisagem audiovisual brasileira, com a série A justiceira, um trilher policial com requintes de violência tipo-exportação; deste modo a emissora acertaria os ponteiros nos tempos da globalização, quando a estética da violência e velocidade se tornariam objeto de culto nos quatro cantos do mundo.

Contudo a marca registrada da ficção brasileira na passagem do século será revisitar a história arcáica do país com as mais arrojadas tecnologias.

3. Os intelectuais e as ilusões necessárias

A ficção das telenovelas é contemporânea da falência das representações tradicionais do Brasil. "Está morta a concepção da sociedade brasileira como inocente, pastoril e pacífica"; esta visão nostálgica, gradualmente foi sendo substituída pela compreensão de um país multiforme, que reconhece na pele as suas contradições.

As novas formas de exclusão, a violência e as surpresas bizarras no cotidiano do Brasil atual têm sido apresentadas sistematicamente na ficção do vídeo. O reverso da imagem de um país em desenvolvimento são as imagens de horror e de medo. Entretanto, pelos mesmos processos midiáticos, enxergamos uma comunidade que partilha as esperanças e ilusões necessárias.

A televisão projeta uma espécie de coincidência de opostos: o sublime e o grotesco, as imagens do azar e da felicidade, o baixo infernal e o alto celestial que se misturam no cotidiano nacional são introduzidos na ficção do país. Assim, temos as imagens de um país que permanece vitalista, sem perder as esperanças; irremediavelmente maduro, através de uma sensibilidade trágica, afirma a vida e convive com todas as suas diferenças. A efervescência das imagens na televisão (nos telejornais e telenovelas) que não cessam de projetar o Brasil, em todos os seus antagonismos, levou os brasileiros a encararem a face polimorfa da sua cultura.

A aparência do Brasil exibida nas telenovelas, apesar de todos os filtros técnicos e ideológicos, acabou por permitir ao público enxergar o inverso do país da cordialidade. A ficção da televisão, sob a forma das telenovelas e minisséries, de maneira inédita, elaborou uma estética das massas, difundindo a complexidade da cultura brasileira para um público composto por milhões de pessoas. A usina de imagens constituída pela mídia eletrônica, aparece com toda potência na ficção das telenovelas, abrindo janelas através das quais se epifanizam os símbolos que orientam o imaginário social e fornecendo um meio de leitura da sociedade e da cultura brasileira.

Esta complexidade que os discursos oficiais, autorizados e institucionais, em sua versão apologética ou apocalíptica, tentaram demonstrar anteriormente através de um cogito científico positivista, é mostrada doravante, cotidianamente, sob diferentes ângulos, pela ficção das telenovelas. O maquinário teórico-conceitual tentara desmontar, dominar e explicar a complexidade da vida social, os paradoxos e os antagonismos, a pobreza e a riqueza do Brasil, mas esta pluralidade só se tornou mais evidente por meio da televisão. As explicações históricas, culturalistas ou marxistas dos pesquisadores engajados numa interpretação do Brasil, permaneceram sempre distantes e sem sedução para o público. Entretanto, a face dura e descontraída, o óbvio e o obtuso, os pedaços distintos que integram o hibridismo da paisagem sociocultural do país através de uma linguagem produzida pelas tecnologias das imagens atrairam a atenção do público. Este fenômeno é possível, entre outros motivos, porque o público se reconhece e se identifica com as formas da comunicação televisual. Apesar de tudo o que existe de ligeiro, difuso e fragmentado na apresentação do Brasil, por meio da ficção na TV, o público encontra estilos com os quais experimenta identificações. As tensões sociais, políticas, econômicas, étnicas, religiosas e linguísticas na geléia geral da cultura brasileira se projetam, inevitavelmente, na ficção das telenovelas. Este procedimento estético se tornou um vetor de comunhão e partilha das formas da sensibilidade, dos afetos e das emoções coletivas. Não é por acaso que a ficção, ontem um tema recusado e encoberto de preconceito pelos intelectuais, tornou-se hoje um assunto de interesse para os pesquisadores preocupados em apreender o sentido deste novo hiperrealismo brasileiro (2).

De início parece estranho caracterizar a telenovela, um simulacro rápido, efêmero e fragmentado, enquanto instrumento que permite uma compreensão da realidade social do país; mas esta forma híbrida de comunicação, que mistura os diferentes gêneros discursivos de uma maneira particular, propiciando a fusão entre a ficção, a História e os fatos diversos do cotidiano, não deixa de seduzir o público e desconsertar a hegemonia dos discursos explicativos sobre o Brasil.

A telenovela serve como alavanca metodológica para um enfoque antropológico da realidade brasileira porque se nutre do simbolismo que dinamiza todo o imaginário social e porque desempenha um papel particular na história da cultura brasileira. Um estudo arqueológico (3) sobre o gênero ficcional, reencontra correspondências entre a ficção das telenovelas e as narrativas de ficção das novelas de rádio, fotonovelas e teleteatro, precursores no hábito social de assistir as telenovelas.

4. Evolução Tecnológica e Capitanias Hereditárias

No princípio dos anos 70, cerca de uma década antes da Europa, a televisão brasileira já era difundia em rede nacional, por satélite; um grande investimento do governo militar, motivado pelas ideologias de "segurança" e "integração nacional". Conforme nos lembra Arnaldo Jabor (4), seguindo a velha tradição, que remonta ao período colonial das capitanias hereditárias, as redes de televisão foram distribuídas de uma maneira centralizadora e arbitrária. Assim nasceu o monopólio das telecomunicações e mais particularmente, dos audiovisuais no Brasil, como uma "repetição das relações entre senhores e escravos, tão características do Brasil tradicional"; as telecomunicações foram estruturadas da mesma maneira que as velhas usinas de açúcar do nordeste brasileiro. Isto significa a "concentração dos poderes de decisão, igualmente em matéria de audiovisual". A crítica ortodoxa não pode traduzir com fidedignidade as paixões populares pela televisão e pelas telenovelas que criaram uma espécie de "comunidade virtual. Há mais de uma década, mesmo os pesquisadores mais céticos já estão de acordo com relação ao seu aspecto positivo, sua competência comunicativa e qualidade técnica.

"Apesar do autoritarismo da sua institucionalização, a televisão é amada pelo povo, que a escolheu e que fez dela uma potência irrefutável", é isto também o que confere a sua importância como um dispositivo de produção, circulação e recepção dos bens simbólicos.

Uma análise da complexidade dos processos midiáticos no Brasil não pode ignorar as condições sócio-políticas e econômicas de sua emergência e desenvolvimento. Por outro lado, não se pode compreender a mídia ignorando as formas de interação simbólica existente entre a produção audiovisual e a sua recepção.

As telenovelas, em relação aos sistemas simbólicos, mantêm um papel semelhante àquele desempenhado pelo cinema de Hollywood no contexto da cultura de massa internacional; fazem parte de um fenômeno que traduz, em nível nacional, a fábrica de sonhos que perturba e excita o imaginário coletivo. Um olhar mais cuidadoso sobre a ficção brasileira revela que as telenovelas consistem num vetor privilegiado para a observação da cultura do país, porque através das telenovelas nos aproximamos do homem imaginário brasileiro, dos símbolos que organizam a vida em sociedade.

Numerosas enquetes sociológicas de envergadura, apoiadas em diferentes teorias e métodos têm analisado as telenovelas, de modo aprofundado. Entre estes estudos, há alguns já "clássicos", que são importantes (5); entretanto, observamos que mantêm a predisposição para demonstrar a "fragilidade" deste produto de comunicação. Muitas enquetes sofreram a marca ideológica do momento em que foram realizadas; hoje, considerando as condições que possibilitaram estas pesquisas, compreendemos o ponto de vista que as orientou e ali encontramos passagens pertinentes no enfoque de um tema importante (6)

A televisão se distingue das artes plásticas, teatro, literatura e cinema pelo seu estilo, pela maneira como desvela os assuntos que apresenta. Por outro lado, através da confronto, mistura e liquefação destes diversos gêneros é que se constrói a linguagem da mídia eletrônica e, por conseguinte, da ficção televisual. Consiste, portanto, num novo modo de expressão, a telenovela, que integra as outras narrativas. Segundo Mc Luhan, cada meio de comunicação tende a absorver o "meio antecedente", no que respeita à ordem da sua aparição na história da cultura, a telenovela, neste sentido, pode servir de exemplo.

Na passagem da literatura ao cinema, assim como do cinema à televisão, percebemos uma modificação, no que concerne ao modo de produção das imagens e às formas de sua recepção (7). Quer dizer, as técnicas de produção e de circulação, assim como o estilo de linguagem e a experiência de partilha das imagens na ficção televisual alteraram sensivelmente o estatuto da experiência comunicativa. A partir da expansão dos meios de comunicação, reconhecemos uma mudança importante na natureza da experiência estética, com tudo o que isto implica de ganhos e perdas; este é um dado relevante, na medida que a cultura contemporânea é inteiramente tocada pela ação dos audiovisuais.

Considerando as transformações que tiveram lugar desde a moda dos folhetins, novelas de rádio e fotonovelas até as ficções televisuais, constatamos importantes mutações no universo das trocas simbólicas. A paisagem da cidade e da vida cotidiana se modificaram quase silenciosamente, o estatuto do sujeito da experiência estética mudou e, houve também transformações no regime das imagens e linguagens que põem em diálogo o domínio da criação e o campo da recepção.

Na passagem das imagens literárias às imagens em movimento, do cinema e da televisão, uma revolução inteira aconteceu; a aparição de novos fenômenos apresentam desafios para uma interpretação da cultura em trânsito. As novas mídias fazem parte desta nova modalidade de hibridismo cultural e, neste quadro percebemos o convívio de gêneros discursivos distintos, num mesmo espaço e num mesmo tempo histórico. O jornalismo, a publicidade, a ficção, os programas de entrevistas e entretenimento, que compõem o novo espaço público, criaram uma paisagem inédita no meio ambiente audiovisual, que solicitam um enfoque atualizado das tendências em curso.

É preciso compreender as novas formas da experiência coletiva, neste novo estágio, em que já é possível falar de uma "moderna tradição brasileira". A mídia despertou, junto às massas, o interesse pela literatura, história, cinema..., em suma, por uma nova compreensão do mundo.

Cairam por terra os mitos, utopias e certezas que formaram as gerações dos últimos 30 anos. É preciso reconhecer a sensibilidade das novas gerações que atualizam a compreensão das suas raízes (no que respeita à tradição e à memória), e experimentam uma apreensão do mundo através das antenas do Brasil (isto é, a ligação do Brasil com suas diferentes regiões, através de diferentes formas de midiatização, em sintonia com todo o planeta).

A indústria cinematográfica conheceu um longo período de crise, embora tenha começado a renascer nos anos 90, a indústria editorial não encontrou ainda o seu público ideal e persiste no país uma taxa elevada de analfabetismo. Estas poderiam ser as causas que fazem da televisão brasileira, uma instituição importante. Entretanto, é preciso sondar de perto esta tecnologia de imagens, que revela a aparência visível da sensibilidade brasileira, para compreender as suas ligações com o imaginário coletivo.

Após 30 anos de experiência, os autores da ficção televisual brasileira, advindos da literatura e do teatro, descobriram um tipo de linguagem apropriada ao vídeo; conseguiram colocar em evidência diferentes possibilidades de comunicação entre os diversos segmentos sociais, numa sociedade cuja estratificação é cada vez mais perturbadora.

Notas

1.Encontramos a expressão "novos olimpianos" in MORIN, E. Les Stars, Op.cit.

2 No que concerne ao papel dos intelectuais à época dos audiovisuais, consultar JEUDY, H. P. Os ardis da comunicação, A eutanásia dos sábios, Rio, Imago, 1989.

3.Ver a propósito, "Uma arqueologia" da ficção televisual brasileira" in MATTELART, M & A. O carnaval das imagens, A Ficção na TV, Brasiliense, 1989.

4 JABOR, A. Brasil na cabeça, S.Paulo, Siciliano, 1995.

5.LEAL, O. F. A leitura social da Novela das Oito, Petrópolis: Vozes, 1986, 2a ed; KEHL; M.R. "Eu vi um Brasil na TV, Três ensaios sobre a telenovela" in COSTA, A.H; SIMÕES, I.F; KEHL, M.R. Um país no ar, História da TV brasileira em três canais, S.Paulo, Brasiliense/FUNARTE, 1986; RAMOS, R. Grã-Finos na Globo, Cultura e merchandising nas novelas, Petrópolis: Vozes, 1986; ORTIZ, R; BORELLI, S.H. S; RAMOS, J.M.O. Telenovela, História e Produção, S.Paulo: Brasiliense, 1989; ALMEIDA, D. P. Telenovela, O (in)discreto charme da burguesia, Maceió: EDUFAL, 1988; SHNEIER-MADANES, G. L'Amérique Latine et ses televisions, Du local au mondial, Paris: Anthropos/INA, 1995; AMORIM, E.A. História da telenovela, 1950-68, S.Paulo, IDART, s/d.; CAMPADELLI, S.Y.A. A telenovela, S.Paulo: Atica, 1985; MARCONDES FILHO, C. "Telenovela e a lógica do capital" in Quem manipula quem. Petrópolis, Vozes, 1986; NOVAES, A (Org.) A rede imaginária, S. Paulo, Cia das Letras, 1991. LASANI, C; RICHERI, G. "L'altro Mondo quotidiano, Telenovelas" in ___ TV Brasiliana e dintorni, Rome, ERJ/RAI, 1986; MADER, R. "Globo billage, Television in Brazil" in DOWNMUNT, T. Channels de resistence, Global television and local empowerment, London: Ed. British Film Institut/Channel 4, 1993.

6. É importante destacar o trabalho de importantes centros de pesquisas no Brasil, ocupados com a questão da ficção televisual, como o "Núcleo de Pesquisas sobre Telenovelas", da Escola de Comunicação e Artes, ECA/USP. Coord. AnaMaria FADUL; Maria Aparecida BACCEGA.

7 Cf. W. BENJAMIN "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica" in ROUANET, S.P. (Org.) Walter Benjamin, Obras Escolhidas, Vol.I. Magia e Técnica, Arte e Política. S.Paulo: Brasiliense, 1985.