AS APARIÇÕES DO DEUS DIONISIO NA IDADE MIDIA

Telenovela e ficção seriada no Brasil do século XX

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal de Paraíba

 

 I. Introdução

Às portas do século XXI, as máquinas de visão parecem saturar os espaços e tempos da cidade; freqüentemente, a sua velocidade é apontada como fator de regressão e quase tudo contribui para colocá-las sob suspeita. A televisão ainda é vista como cúmplice na tentativa de assassinato do real; isto é, ao fabricar cópias ou simulacros da realidade, provocaria uma "desrealização" do mundo (1). Uma leitura apressada só pode perceber as imagens no vídeo como alienação. Na idade mídia, como na idade média, os indivíduos parecem conservar o medo de perder a alma para o diabo. No imaginário ocidental, como sugere o filme Poltergeist (Spielberg, 1984), o diabo e a técnica parecem surgir em parceria, enviando o espectro do mal pelo pontilhado das imagens da televisão.

A crítica radical dos meios de comunicação através do conceito de indústria cultural, proposto por Adorno e Horkheimer (2), significa um momento pessimista dos pensadores, e ainda hoje, contribui para estigmatizar as imagens da televisão. Por outro lado, a noção de cultura de massa, difundida pelos norte-americanos, para designar a cultura produzida pelas tecnologias de comunicação, presta-se à dispersão e generalidade; hoje, após revisões importantes, esta noção se mostra frágil ante a diversidade da cultura do atual e cotidiano. Por outro lado, Mc Luhan (3), o profeta da mídia, autor do slogan "aldeia global", considera positiva a dimensão estética e cognitiva da cultura de massa, em articulação com a sensibilidade pop, percebendo os objetos de consumo como fontes de expressão artística. Para ele, os media podem ser frios ou quentes, em relação à sua potência comunicativa, sua forma comunica tanto quanto o seu conteúdo, e favorecem a participação multissensorial do público.

Num outro registro, o semiólogo Umberto Eco (4), decifrando a cultura de massa, coloca em discussão o problema do código e do repertório dos indivíduos, distinguindo os diferentes níveis desta cultura, e critica o extremismo dos apocalípticos e integrados.

Diversos autores têm proposto novas perspectivas; o sociólogo brasileiro Renato Ortiz (5), por exemplo, sugere o uso da noção de "cultura internacional popular de massa", e ao invés de globalização, interpreta a cultura contemporânea inscrita nos termos de uma mundialização cultural.

Recentemente, novas correntes teóricas tem buscado enfocar a cultura de massa sob o prisma do receptor, telespectador e leitor como elemento ativo no contexto comunicacional, enfatizando o aspecto das mediações culturais. Convém não se superestimar o papel do usuário no contexto da comunicação de massa. Contudo, esta perspectiva que privilegia as formas de utilização do receptor não pode ser negligenciada. Convém assinalar a importância dos estudos etnográficos e etnológicos (a rigor, antropológicos), que buscam destacar o papel das culturas locais, no processo de apreensão dos bens simbólicos.

Atualmente, as novas tecnologias audiovisuais têm se expandido significativamente, gerando profundas mudanças na paisagem cultural como mostram distintamente Jean Baudrillard (6) e Paul Virilio (7). De certo modo, assistimos hoje o fim da comunicação massiva e o advento de novos estilos de comunicação, a partir da Internet, TVs a cabo e antenas parabólicas. O uso de termos como cibercultura, por um autor como Pierre Lévy (8), traduz modificações importantes nas teorias e práticas da comunicação e da cultura. Contudo, no momento, tratando ainda da TV aberta, buscamos repensar a modalidade de cultura, como um produto de comunicação veiculado pelas telenovelas (9). A ficção mostra como a mídia pode ser um meio de percepção das experiências do cotidiano. Esta perspectiva não é recente, mas pode atualizar o debate, considerando as interações simbólicas existentes entre a mídia e a sociedade.

II. A ficção como experiência estética e mitólogica

Elegemos o mito do deus grego Dionísio, como referência para pensar a cultura contemporânea, em que a mídia se inscreve de modo importante. Primeiro porque este mito encarna, desde a aurora dos tempos, um duplo aspecto de fascínio e violência, como ocorre, aliás, com as imagens da televisão em nossos dias; depois porque o dionisismo consiste num tipo de culto revelador das formas híbridas e do sincretismo, que como veremos, é semelhante, em vários aspectos, ao sincretismo cultural brasileiro. Enfim, porque Dionísio representa uma mitologia que traduz as pulsões selvagens da civilização ocidental e, hoje, sob uma nova modulação, serviria como estratégia para repensarmos a desordem da cultura quando o modelo de racionalidade entrou em crise.

Interessamo-nos pela ficção da telenovela brasileira como pretexto para refletir sobre a mídia e a sociedade, numa perspectiva dionisíaca, que se desenha sob o signo do coletivo e onde o imaginário social ocupa um lugar importante. Empregamos a noção de imagens dionisíacas, para designar a aparição das imagens de choque e arrebatamento que revigoram o imaginário coletivo. Assim, no universo midiático dominado pelas repetições, as imagens dionisíacas estabelecem uma certa diferença que agita a paisagem audiovisual, como uma arte tecnológica que revitaliza o ambiente convencional.

A figura do deus Dionísio revela a face extrema, grave e incontornável da vida. O dionisismo representa o êxtase, as paixões e o entusiasmo, e também o júbilo e prazer do cotidiano, sem ocultar o aspecto de violência e destruição da vida. No espaço midiático em que as experiências fundamentais da estética, poética e catarse aparecem ligeiras, a ficção abre um intervalo, onde explodem as imagens dionisíacas. Por um triz, num videoclipe, telenovela e publicidade bem feita, a TV pode vir a ser vetor de uma obra de arte.

O termo dionisíaco, tomado de empréstimo ao domínio da reflexão filosófica, presente nos estudos sobre estética e crítica literária, assim como nas ciências sociais, parece-nos expressivo para designar a cultura plural em curso, em que termos antagonistas, como o sublime e o grotesco aparecem vizinhos no ato de contemplação.

O hedonismo, misticismo e erotismo, assim como a exibição no vídeo, dos conflitos sociais, violência, guerra das tribos na selva de pedra, em emergência por todo o planeta, permitem-nos pensar que nos encontramos face a um novo renascimento do deus Dionísio com todo o seu aspecto de maravilha e de horror. O interesse pelo dionisismo nos permite definir uma nova perspectiva diante da mídia e nos aproximar do caráter híbrido da cultura brasileira. A imagem dionisíaca revela a parte de desordem e de ruído do social que invade de modo provocante os meios de comunicação.

III. Um novo olhar sobre a televisão

A realidade forjada pela televisão é fruto de um processo tecnológico que se pretende harmônico e transparente; entretanto, o ruído do social, penetrando no espaço da mídia, modifica este projeto de harmonia e de transparência.

No universo da cultura brasileira, a mídia ultrapassa a simples produção de passatempo. A ficção brasileira, por exemplo, faz o público atingir o êxtase diante das imagens. Mesmo sendo um produto tecnológico, provoca experiências de ordem religiosa e estética, e performatiza um tipo de mitologia contemporânea, na medida que consiste numa realidade paralela que alimenta o imaginário social. É de ordem religiosa, em seu aspecto epifânico, de aparição, implicando numa comunhão entre os telespectadores; é também objeto de culto, semelhante às religiões tradicionais. É, igualmente, um fenômeno de ordem estética pois desencadeia a atração social, os afetos e emoções coletivas, através da forma das imagens.

Para Edgar Morin, "As estrelas" da televisão são seres que participam, ao mesmo tempo, do humano e do divino, são análogos em alguns traços aos heróis das mitologias ou aos deuses do Olimpo, suscitando um tipo de culto, um tipo de religião". Sem abrir mão de uma perspectiva crítica, Morin compreende a cultura de massa como parte integrante da complexidade cultural contemporânea: isto já aparecia com clareza nos trabalhos "O Cinema e o homem imaginário" (1956) e "O espírito do tempo" vol.I e II (1962-1976).

Propomos uma aproximação das sensações, da sensibilidade, das paixões sociais, que concedem forma e estética à sociabilidade contemporânea. Analisar os produtos de comunicação em sua dimensão estética, leva-nos a tratá-los como bens simbólicos, cuja leitura, é pertinente no esforço de repensar a cultura. A repetição do ritual cotidiano dos telespectadores face à televisão, a mistura dos fatos reais e ficcionais, as formas de recepção e adequação do público face às proposições midiáticas são fenômenos que remetem a uma compreensão da ética e estética que estruturam a sociedade.

Focalizamos o simbolismo que estrutura o imaginário coletivo para apreender o caráter diversificado da sociedade, do qual ele é uma projeção. Este simbolismo pode ser observado em toda sua potência ao contemplarmos as formas do sincretismo religioso, o emocional coletivo, a sensualidade, o caráter lúdico e hedonista desta cultura. O conjunto destes elementos se exprime objetivamente na projeção das artes e da literatura, na poética das canções, na ficção do cinema e da televisão, na maneira como se definem os ritos e mitos contemporâneos. Estes elementos permitem identificar o espírito sensivelmente dionisíaco que organiza toda a vida em sociedade.

IV. As máquinas de visão e as pulsões selvagens do social

A mídia eletrônica é marcada pelas regras da organização tecnoburocrática e pelas determinações da sociedade de consumo. O trabalho realizado pela mídia se perfaz sob o signo do efêmero, da velocidade e da fragmentação. A televisão, enquanto instrumento de mediação do gosto, tende a por em harmonia as diferenças e diluir as tensões sociais para atingir o consenso. Ela é, deste modo, um veículo de projeção das imagens de natureza apolínea, que traduz vontade de harmonia, ordenação e transparência. No entanto, um olhar mais atento sobre essas imagens pode perceber uma comunicação de natureza diferente. Em meio à ordem, clareza e alta definição da tela eletrônica, na comunicação que se pretende sem ruído, explode, cotidianamente, o ruído das imagens dionisíacas. A televisão pode ser vista apenas como uma fábrica de simulacros e como geradora de uma irrealidade cotidiana, entretanto, um olhar mais apurado pode perceber que o processo da comunicação é mais dinâmico. As fontes de que jorram as imagens da televisão advêm das pulsões subterrâneas da cultura, cujo despertar gera a dinâmica e vitalismo do social. Assim, a ficção televisual encontra a matéria prima que assegura o seu funcionamento na substância viva da cultura.

A ficção das telenovelas se perfaz cotidianamente na proximidade da energia e vitalidade das massas. É um tipo de obra aberta, cujo discurso em construção, contamina as massas e é reciprocamente contaminado por estas. A exibição da sociedade, por meio de uma estética realista, define a natureza do discurso de ficção das telenovelas, e estabelece um tipo de sincronicidade entre os tempos da ficção e os tempos da realidade. Os discursos de ficção da mídia, a despeito da vontade de transparência e do empenho em produzir uma comunicação sem ruído, são invadidos pela parte de sombra e ruído da sociedade. Consequentemente, a construção apolínea (harmônica, linear e ordenada) que caracteriza os meios de comunicação, torna-se desordenada pelas pulsões dionisíacas do social.

Propomos uma leitura da ficção, observando o seu caráter mitológico e buscando transcender a compreensão deste gênero como um vetor de manipulação e alienação. A telenovela brasileira é um campo de produção dos mitos na sociedade contemporânea; diríamos que as narrativas de ficção na TV, possuem uma significação análoga às narrativas da mitologia antiga. O século XXI escreverá que a televisão e o cinema, significam para o século XX o que a tragédia grega significou para os antigos.

No berço da civilização ocidental, as narrativas mitopoéticas coexistiram com os discursos e práticas da Educação, do Direito e da Medicina. As mitologias antigas serviram como uma forma de compreensão e como um campo de produção de sentido. Se os gregos não acreditavam nos seus mitos, a linguagem da sua vida cotidiana era repleta de alusões aos deuses e heróis. Esta circunstância, na aurora da civilização ocidental, instiga-nos a compreender as narrativas das telenovelas de modo semelhante à mitologia antiga, como vetor de produção de imagens e discursos, cuja significação encontra eco junto ao imaginário social.

V. Ecologias e Antropologias da Comunicação

A expansão dos meios de comunicação pôs em marcha uma série de exigências, dentre as quais o desenvolvimento de pesquisas sobre o tema. Os atuais enfoques percebem essa nova realidade experimentada como uma segunda natureza, o que sugere pensar que nos encontramos ante uma nova ecologia da comunicação. Focalizamos o homem e suas novas relações na sociedade e na cultura, seguindo o referencial de uma antropologia de olho nas mitologias contemporâneas. As formas atuais das mitologias, presentes na música urbana, na publicidade e no cinema, reaparecem no contexto de alta definição da televisão, no espaço da mídia, e a disposição para lhes compreender situa um campo de conhecimento que circunscreve os limites de uma antropologia da comunicação. Esta perspectiva nos permite contemplar, descrever, mostrar os diferentes aspectos do lúdico, do afetivo, do trágico, do sublime e do grotesco, instâncias que tocam o domínio do humano, isto é, do antropológico, no universo das imagens da televisão.

A telenovela, como uma modulação recente do teatro, da literatura ou do cinema, consiste num produto de comunicação que exerce influência sobre o imaginário coletivo, absorve a efervescência social e a redistribui através das redes. Contra a concepção da mídia como um canal de comunicação sem objeto ou da arte em suas formas desossadas, compreendemos a telenovela como um lugar de passagem das imagens dionisíacas, que podem traduzir o sublime e o trágico na cultura do século XX.

BIBLIOGRAFIA:

1.BAUDRILLARD, J. Le crime parfait. Paris: Galilée, 1994.

2 ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, Rio: Zahar, 1985.

3 MC LUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem, S. Paulo: Cultrix, 1979, 5a ed; ___ A galáxia de Gutemberg, S. Paulo: Cia Editora Nacional/Ed.USP, 1972. Para um enfoque da "cultura pop" na sociedade de massa, ver Mc LUHAN & QUENTIN FIORI, Os meios são as massagens, Um Inventário de Efeitos, Rio de Janeiro: Record, 1969; e igualmente, ___ Guerra e Paz na aldeia global, Rio: Record,1971.

4 Os ensaios de Umberto ECO sobre a literatura, linguagem e comunicação são inovadores em seu enfoque, e têm permitido estudos relevantes. Cf. ECO, U. Apocalípticos e Integrados, S. Paulo: Perspectiva, 1979; A obra aberta, São Paulo, Ed. Perspectiva; Viagem na irrealidade cotidiana, Rio: Nova Fronteira, 1984; sugerimos consultar neste livro, particularmente, o ensaio "Cogito interruptus", p. 289-308, uma crítica interessante sobre os trabalhos de Mc Luhan. No romance "O Nome da Rosa", ECO se utiliza dos "clichês" do cinema, da televisão e da literatura de massa, construindo uma obra de fôlego. No "Posfácio ao Nome da Rosa", 1986, breviário teórico sobre o romance, o autor faz uso dos recursos da "intertextualidade", "paródia" e "pastiche". Para uma leitura atualizada sobre o uso destas noções, ver HUTCHEON, L. Poética do pós moderno, Rio: Imago, 1991.

5 ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira, S. Paulo: Brasiliense, 1988; _____ Mundialização e cultura, S.Paulo: Brasiliense, 1994.

6 Cf. BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo, Lisboa: Ed. 70, 1979;

7. Cf. VIRILIO, P. Velocidade e Política (199_); Máquinas de Visão (199_); ___ A arte e o motor, 199_; Inércia Polar, 199_.

8. LÉVY, P. Cibercultura, Rio: Ed. 34, 1999.

9 É instigante, neste sentido, a leitura de MUNIZ SODRÉ, Repensando a cultura, a comunicação e seus produtos, Petrópolis: Vozes, 1996.

8 NIETZSCHE, F. A Origem da Tragédia, S. Paulo: Editora Moraes, 1984.

9 PAGLIA, C. Personas Sexuaes, Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson, S. Paulo: Companhia das Letras, 1992.

10.MAFFESOLI, M. A Sombra de Dionísio, Contribuição a uma sociologia da orgia, Rio: Graal, 1985

11 Empregamos a palavra "ruído", deslocando a noção utilizada nos estudos pioneiros norte-americanos, sobre teoria da informação. A "comunicação sem ruído" designaria a comunicação util, ordenada, transparente. Numa perspectiva atenta à recepção das mensagens, o ruído revela a parte vitalista da cultura; isto é, o ruído emperra a comunicação maquínica, mas energiza a comunicação social. Ver a propósito as teorias da informação e da comunicação in WEAVER, W; SHANNON, C. "Teoria matemática da comunicação" in COHN, G. (Org.) Comunicação e Indústria Cultural, S. Paulo: Ed. Nacional/EDUSP, 1971. Para uma consulta atualizada das noções e conceitos da "teoria da informação", consultar BOUGNOUX, D. Introdução às ciências da informação e da comunicação, Petrópolis: Vozes, 1994. Utilizamos a noção de "ruído" como energia e vitalismo, em sua sintonia com a efervescência social das "tribos urbanas" que povoam o espaço cotidiano. Cf. M. MAFFESOLI, O tempo das tribos, Rio: Forense Univ., 1987.

12 A interpretação das mitologias da sociedade contemporânea, enquanto forma semelhante à mitologia grega, ou seja, no seu caráter estético e religioso, pode ser entrevista in MORIN, E. Les Stars: Paris, Seuil, 1972, p. 8; assim como na obra Cultura de massa no século XX, O espírito do tempo. Vol. 1 Neurose, Volume 2, Necrose. Rio: Forense Universitária, 1976.

14 Utilizamos -particularmente- as noções de imagens "apolíneas" e "dionisíacas" tomadas de empréstimo do célebre ensaio de F. NIETZSCHE , A origem da tragédia, op.cit. Estas noções, em Nietzsche não se opõem radicalmente, são antes complementares; significam momentos distintos das experiências ética e estética. Retomamos estas imagens, caras ao filósofo, como ponto de partida para pensar a ordem, simetria e conclusão que inspiram as "imagens apolíneas" e, igualmente, o entusiasmo, êxtase e arrebatamento que definem as "imagens dionisíacas"

15 VEYNE, P. Acreditavam os deuses nos seus mitos? S. Paulo: Brasiliense, 1984.