Dionísio, Ariane e Teseu nos Labirintos da Ficção

Uma leitura social da telenovela "O Casarão"

(8º Capítulo de "As aparições do deus Dionísio na Idade Mídia")

 

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal da Paraíba

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- Ficção e realidade dos "noveccento" na história do Brasil

- História oficial e histórias da vida privada

- A Terra, o Tempo e a Mulher

- O fim da idade de ouro dos barões do café

- Figuras da ficção, figuras dos mitos

O Casarão conta a história de três gerações que se estabeleceram no norte de São Paulo, à época da grande imigração para as terras férteis do café. Um casarão situa o foco da narrativa. Desde a sua construção no ano de 1900 até o ano de 1976, O Casarão conta uma saga familiar. A ação se passa em três épocas diferentes, quais sejam, de 1900 a 1910, de 1926 a 1936 e, enfim, no ano de 1976, o período de difusão da telenovela.

Trata-se de uma ficção que desmonta a narrativa convencional, intercalando épocas distintas, que perturba o fio condutor das histórias lineares. No relato, a terra, o tempo e a mulher ocupam o centro da cena.

Este grande afresco da televisão brasileira, que apresentou quase um século da história do Brasil, pôs em relevo as estruturas do poder patriarcal, a luta pela terra e a emancipação da mulher.

Cada um dos períodos de O Casarão (1900, os anos 20 e os anos 70) poderia muito bem constituir uma narrativa isolada: o espírito dominante e a conquista da terra, a ação do tempo e as marcas da História, o crescimento urbano e a emancipação feminina são quadros independentes na grande narrativa. O enredo de O Casarão se inscreve num contexto em que o poder patriarcal começa a se desagregar, ao mesmo tempo em que as mulheres constroem o seu espaço de liberdade. No interior de uma família burguesa de São Paulo, os valores conservadores são revirados pelas gerações mais jovens. A sonoridade, os efeitos especiais, o emprego das cores na telenovela permitem a realização de uma experiência estética sensível ao espírito das transformações.

No microcosmo social representado em O Casarão se agitam as tensões e conflitos que tomam rumos diferentes ao longo da história: o embate entre dominantes e dominados se projeta na ficção revelando as capilaridades do poder disseminados na sociedade. O exercício do poder político, as formas de resistência, a cooptação ou subversão da ordem projetados na ficção constituem elementos, que nos permitem vislumbrar o imaginário social e político brasileiro; consequentemente, se prestam ao repertório de uma "antropologia política".

Não existe O Casarão ou a "casa grande" sem a senzala, nem os sobrados sem os mocambos; como não existem os senhores sem os escravos. O percurso da telenovela expressa os ciclos de poder que se sustentam em torno desta metáfora que é O Casarão e, os desdobramentos deste fenômeno, sob a forma de resistências.

A primeira época de O Casarão (1900-1910) se caracteriza pela aura de grandeza, esplendor e glória que envolvem a "casa grande". Movimentam-se em cena o senhor e os seus empregados, a sinhazinha e os seus criados. A arquitetura pomposa do "casarão" é cúmplice do sistema de trabalho e das formas de exploração no curso da história. A câmera registra a organização do espaço privado, onde são tomadas as decisões e o espaço aberto do campo, ocupado por aqueles que trabalham e cumprem as ordens dos patrões.

Durante o segundo período (1926-1936) "O Casarão" resiste ao tempo, às lutas e paixões, assiste a expansão dos movimentos sociais e também o refinamento dos métodos de controle e dominação. O apogeu do "Casarão" à primeira vista é uma metáfora da evolução do ciclo do café e da cidade de São Paulo, mas é o espaço privado que se revela aos olhos na exibição da cena. São evidentes a concentração do poder, o desequilíbrio na partilha das riquezas, mas isto aparece em perspectiva porque no centro da cena, a turbulência das histórias de amor ocupa os espaços.

A terceira parte da telenovela, que se pretende atual (a telenovela foi realizada em 1976) projeta a decadência do "Casarão". A ficção traduz o fim da aristocracia rural. Não restam ali mais que lembranças da idade de ouro dos barões do café. "O Casarão" não é mais o signo da opulência e poder do passado; ele agora aparece como um cenário em ruínas. A grande cena de São Paulo, que se situa em 1976, desenrola-se em torno da "Avenida Paulista". A burguesia agrária cedeu terreno à burguesia industrial. As formas do poder político e econômico, assim como as formas de resistência se modificaram. .

Uma leitura social de "O Casarão" encontra passagens que podem levar à compreensão de alguns episódios da vida sócioeconômica e política de São Paulo e do Brasil. Nesta ficção historiográfica podemos encontrar pistas para compreender o Brasil contemporâneo. A virtude desta telenovela reside em atrair a curiosidade para uma investigação particular da História do Brasil. "O Casarão" é uma ficção importante na medida em que revela detalhes da vida privada brasileira e, consiste na contribuição a uma história do emocional coletivo brasileiro, cobrindo o período de quase um século.

A telenovela põe em destaque o personagem de Carolina, entretanto, é a história da mulher, que sustenta o argumento de "O Casarão". Em "O Casarão" encontramos os elementos para uma história da subjetividade feminina. Em cena, estão três mulheres (avó, mãe e neta) que representam um século durante o qual a mulher lutou pelo seu lugar na sociedade, assegurando sua liberdade e subjetividade.

As duas primeiras mulheres (em 1900-1910/1926-36) se deslocam num espaço de submissão às ordens do pai, do marido, do patrão. A terceira mulher (Lina, a neta) é um personagem rico que luta com perseverança na sociedade, no trabalho, nas suas ligações amorosas. Contudo, ela deverá se confrontar com a opressão da sociedade machista organizada pelas figuras masculinas do avô, do pai e do marido; fora de cena, Lina deverá enfrentar ainda os cortes dos censores, que perseguirão as imagens sugestivas de um triângulo amoroso. Mas a "nova" mulher irá tentar se rebelar; diferentemente das suas ancestrais, submetidas às regras do casamento convencional. Durante o ano de 1976, a telenovela "O Casarão" influenciou a vida de milhões de mulheres que buscavam fugir de casamentos infelizes. Por outro lado, como as influências entre a televisão e a sociedade são recíprocas, "O Casarão" pode representar a crise conjugal na telenovela porque a sociedade brasileira já tinha começado a amadurecer.

"O Casarão" não foi um grande sucesso de público. A fusão das três épocas, numa mesma narrativa, confundiu o público habituado às narrativas lineares e, a apresentação do triângulo no "horário nobre" atraiu inúmeras críticas junto às camadas conservadoras da sociedade.

É uma telenovela que pode ser vista em analogia com o filme "1900" (Bernardo Bertolucci, 1975). A epopéia de uma família poderosa, as tensões e conflitos entre patrões e empregados, a emergência dos movimentos sociais, os regimes autoritários, assim como a luta pela emancipação da mulher são alguns dos ingredientes comuns às duas narrativas.

"O Casarão" foi uma ficção televisual importante que perturbou o seu público. A representação da vida política se fez um tanto nublada, o que poderia levar o telespectador menos advertido a uma compreensão ligeira do período histórico, em que se descreve o apogeu e o declínio do café, fonte de riqueza e de poder, em São Paulo. "O Casarão" é importante pela maneira como arranha a superfície do problema dos poderes estabelecidos no Brasil, e também porque quebrou tabus e renovou a ficção. Entretanto, a importância desta ficção consiste em tocar às avessas num problema recente: O enfoque da emancipação da mulher na sociedade é pertinente também porque expõe o seu reverso, ou seja, o universo masculino num mundo em que a mulher mudou. Em síntese, a liberação do gênero feminino nos remete forçosamente a pensar sobre o perfil do homem que começou a perder as suas referências. Esta é uma discussão atual que concerne também ao papel dos homens na sociedade contemporânea e que foi enfocado de forma discreta, nos anos 70, pela telenovela "O Casarão".

Nos últimos capítulos, que focalizam as ruínas de "O Casarão", o marido de Carolina, Atílio se tornou senil e mantém atitudes bizarras: ele passa horas a fio remuendo uma banheira cheia de excrementos, os quais tenta transformar em ouro. Nesta figuração tragicômica, identificamos uma metáfora da decadência da idade do ouro dos barões do café, o declínio de uma classe social, o fim da burguesia agrária e de um estilo de vida. Podemos interpretar esta imagem também, como o crepúsculo do patrão habituado a dominar suas mulheres, como dominava os empregados e o gado.

Colocando a narrativa de "O Casarão" à luz da mitologia de Dionísio, percebemos convergências entre os personagens da ficção e os personagens da mitologia.

O personagem de João Maciel possui contornos análogos ao deus Dionísio; o personagem de Carolina, assemelha-se à figura de Ariane e o personagem de Atílio tem traços do personagem lendário de Teseu. João Maciel (Dionísio) é pintor, o seu universo se inscreve no domínio das artes, da intuição, do lúdico. Ele é intempestivo, um viajante que circula por lugares que lhe são desconhecidos; bebe, exalta-se, perturba o mundo à sua volta, escreve poemas de amôr à Carolina; não se adapta à rotina do trabalho, preferindo o prazer dos sentidos, é um hedonista.

A figura de Carolina nos permite imaginar alguém que constrói um fio (o fio de Ariane), o qual permitiria Atílio (Teseu) escapar do labirinto, no qual se perdeu (o mundo do poder, do dinheiro). Ao fim de tudo, nos capítulos decisivos, ele a "abandona" porque ficou senil, mal percebe a sua presença e se interessa apenas em tentar transformar fezes em ouro (eis o pote de ouro de Teseu).

Mesmo que de maneira velada, ao fim do percurso, no último capítulo, João Maciel (Dionísio) sempre amoroso de Carolina (Ariane) vem encontrá-la. Esta história, numa outra modulação e atualizada, nos anos 70, irá se repetir com a Lina (a neta), por quem se disputam dois homens (Estêvão e Jarbas).

Esta ficção que trocou a narrativa linear pela circularidade, registra o retorno do deus Dionísio na idade de ouro da mídia.