Crimes de paixão:
natureza selvagem, cultura e comunicação
(10º Capítulo de As aparições do deus
Dionísio na Idade Mídia)
Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal da Paraíba
Email: imago@netwaybbs.com.br
-Quando a juventude descobre a ficção política.
-Potência e velocidade das imagens.
-O som, o sentido e a fúria das massas.
-A estranha arte de acender e apagar as estrelas.
-Sade, Artaud, Bataille e a interpretação das culturas.
1. Quando a
juventude descobre a ficção política.
Um dos momentos mais fortes na
história recente do Brasil foi o surpreendente movimento social que terminou
provocando a deposição do Presidente da República, Fernando Collor de Melo,
acusado de corrupção, em 1993.
A importância deste acontecimento
provém de uma mobilização de diferentes grupos sociais que desceram às ruas,
para exigir a deposição de um Chefe de Estado, eleito pelo sufrágio universal
direto. Com outra tonalidade, as massas nas ruas lembravam a Passeata do Cem
Mil, em 1968, e o Movimento pelas Eleições Diretas, em 1986.
Uma leitura simplista das páginas
do jornalismo político, nos conduziria a uma compreensão incompleta deste
fenômeno. Poderíamos enxergar ali, uma manifestação da sociedade civil engajada
na luta pela defesa da democracia.
Entretanto, à luz de uma
psicologia das profundezas do social, esse acontecimento aparece distintamente
como um protesto do inconsciente coletivo, uma revolta das massas, diante de
uma situação de ultrage.
Numerosas interpretações se
oferecem para compreendermos a queda do Presidente Collor, fato histórico,
agenciamento sócio-político, que ultrapassou os limites de uma ocorrência
localizada, sendo partilhado pela opinião pública internacional.
A mídia certamente soube tirar
proveito do acontecimento e, teve a sua parte de responsabilidade na queda do
Presidente. Contudo, seria ingênuo interpretar esse fenômeno de modo mecânico.
O fato de Presidente Collor ter traído os acordos com os seus parceiros, a
emergência de uma nova ética dos poderes públicos em relação aos negócios de
corrupção política, a tomada de consciência da sociedade concernente à sua
potência são alguns dos fatores que fornecem as pistas para compreendermos este
fenômeno.
Num contexto simbólico de
tendências tão pluralistas, como o brasileiro, os meios de comunicação podem
influenciar os telespectadores, mas ao mesmo tempo, sabe-se que as mídias se
alimentam também do ruído do social para revitalizar suas redes e telas.
Durante o período que antecedeu a
deposição do Presidente, a Rede Globo difundia uma minissérie chamada "Anos
Rebeldes". Tinha-se a impressão, naquele momento que a emissora
quebrava um dos seus tabus. Considerada como sendo sempre fiel ao poder
político estabelecido, desde o regime militar, a rede acabou se reunindo às
camadas populares pela deposição do Presidente. Após ter hesitado, um pouco
atrasada em relação às emissoras concorrentes, a Rede Globo passou a divulgar
nos telejornais as manifestações populares que tomavam curso por todo o país.
Naquela época, a Rede Globo,
através da difusão da série "Anos Rebeldes", projetava a
história dos anos difíceis do regime militar no Brasil, de 1964 a 1984. Assim,
exibia-se aos telespectadores uma estranha simbiose, na qual as imagens do
"Brasil simulado" se misturavam com as imagens do "Brasil
real".
No "horário nobre", o
telejornal da Rede Globo mostrava as manifestações dos estudantes nas ruas, com
os rostos pintados em cores vivas, como tribos indígenas nos rituais de guerra.
Eles entoavam canções de protesto atualizadas pelo ritmo da moda, atraindo os
jovens de todas as partes do país. O "show de informações" dos
telejornais difundiram uma nova imagem do país, performatizando as imagens de
um "país real" em efervescência cívica. Neste conjunto espetacular,
as imagens e símbolos postos em cena representaram uma convergência das massas
que, enchendo ruidosamente as ruas, produziram a ritualização de um cortejo
semelhante à reaparição do deus Dionísio na praça pública. Vista pelos tubos de
televisão, aquela "conquista do presente" pela multidões, se
transformava num conjunto de imagens espetaculares, como uma ficção seriada.
Mas daquela vez, a tecnologia de alta definição da Rede Globo, reputada pela
sua comunicação "sem ruído", não chegou a desnaturar o ruído do social;
logo em seguida, o Presidente seria desposto.
Paralelamente, no horário das 22
horas, a série "Anos Rebeldes" relembrava o espectro dos
terríveis anos 70, no curso dos quais a juventude sinalizara à sociedade civil,
maneiras de enfrentar um regime político de exceção.
Poderíamos pensar, assistindo a
minissérie "Anos Rebeldes", que a juventude dos anos 90
aprendia como se manifestar politicamente. Assim, a encenação, a maquiagem e o
a virtualização característicos da indústria cultural, não pode esconder -desta
vez- o aspecto bizarro de um período histórico em turbulência.
2. Potência e
velocidade das imagens
Ocorre, entretanto, que o ritual
de participação social nas manifestações políticas, dentro e fora do vídeo, não
esgota a efervescência das pulsões subterrâneas do social.
Em primeiro lugar, o discurso
político tradicional não tem respondido muito bem às exigências das massas. O
que seduz as massas é a política-espetáculo ou um tipo de politização do
cotidiano que perpassa pelo crivo do imaginário da televisão. Os homens
políticos têm driblado a opinião pública e têm conseguido se eleger, simulando
que podem administrar o real a partir das regras que regem a hiperrealidade
cotidiana. Como os super-heróis, celebridades e estrelas do show business, os
políticos se apoiam nos artefatos industrial-tecnológicos e midiáticos para
conquistar o aval do seu eleitorado. Contudo, esta é uma estratégia que não
deixa de correr seus riscos; é preciso perceber que os processos midiáticos,
agregados aos dispositivos políticos, econômicos e culturais conhecem a arte de
acender e a pagar as estrelas.
Em segundo lugar a telenovela ou
a minissérie, como produto de uma "máquina de narciso"(1), está muito
próxima da região do desejo dos indivíduos do que o ritual da política.
Principalmente num contexto em que o princípio da ficção se tornou o princípio
da realidade. Na verdade, é o caráter de hiperrealidade do universo produzido
pela televisão, principalmente, que cria a sinergia entre as massas. A
hipertrofia da rede imaginária, o a lógica do motor, o excesso e a velocidade
das informações podem criar um tipo de inércia social e política, como escreve
Paul Virílio (2). Entretanto, os audiovisuais, a televisão, a telenovela podem
ser frequentemente "redes de dormir", mas podem também se tornar
"redes de despertar". Podem vir a ser, num dado momento (como aquele
do impeachment) "redes interativas" promovendo a gregação dos
indivíduos isolados e dispersos.
Contrariamente à
"marketologia pessimista" de Jean Baudrillard, percebemos que as
massas possuem potência e positividade (3). Sua relação com as formas políticas
tradicionais parece desequilibrada, mas elas se agilizam movidas pelas pulsões
desejantes e terminam por se inscrever ativamente na construção social da
realidade.
A política pode servir de
projeção dos desejos, revoltas e paixões oriundos do inconsciente coletivo.
Entretanto, o imaginário social é muito mais complexo e não poderia ser
explicado por uma antropologia reduzida apenas aos sistemas políticos,
econômicos ou culturais. Baudrillard (4) dizia que as massas surpreendem todas
as previsões, estatísticas e demonstrações; que os esforços dos sistemas
(ideológicos, políticos, religiosos...) para lhes controlar são inóquos; que
elas constituem sempre um fenômeno de outra ordem que escapa à compreensão
sistemática. Retomando o discurso do sociólogo e invertendo os termos de sua
argumentação, num sentido que se propõe mais compreensivo, dialógico e
abrangente, diríamos que o rádio, o cinema, a televisão ativam um certo sinal
de alerta no imaginário coletivo. Enfim, podemos comprender as percepções e
sensações dos indivíduos em sociedade a partir dos simulacros com os quais
interagem na televisão, e na ficção televisual.
Num certo sentido podemos
especular um exercício de comunicação comparada examinando as diversas formas
de recepção dos telespectadores diante da difusão da manifestação pelo
impedimento do Presidente, diante da exibição do voluntarismo patriótico dos
seus pais e avós, assim como, diante da notícia do assassinato de uma de suas
estrelas de TV prediletas.
3. O som, o
sentido e a fúria das massas
Entre a transmissão ao vivo, do
"Brasil real", às 20 horas, no "Jornal Nacional" e a
apresentação do passado histórico na ficção dos "Anos Rebeldes",
às 22 horas, abre-se um espaço para a inscrição do imaginário social de uma
camada importante da sociedade brasileira; este espaço é ocupado pela
telenovela.
Durante o período das
manifestações em favor da deposição do Presidente, havia um intervalo entre o
"Jornal Nacional" e a minissérie "Anos Rebeldes".
Nesse intervalo foram exibidos os capítulos de uma telenovela chamada "De
Corpo e Alma".
Os "strip-teases"
masculinos, os transplantes cardíacos, as questões raciais, o roubo de bêbês,
as discussões sobre a morte e o renascimento foram alguns dos ingredientes da
telenovela "De Corpo e Alma". Era uma narrativa que se iniciou
tratando de temas convencionais na ficção e que acabou -contra a vontade- por
se inscrever no quadro de um acontecimento dramático, que leva repensar as
relações entre a ficção e a realidade, considerando o apego do público pelo
universo televisual.
Já mencionamos que, no quadro
complexo dos processos midiáticos, as telenovelas constituem um vetor
importante de coesão social, em relação ao regime de imagens que elas
ressuscitam. Mas isto não é tudo! Ao lado das imagens visuais, as imagens
acústicas integram o repertório que estimula um tipo de sociabilidade em torno
das telenovelas.
É pertinente, num enfoque da
telenovela "De Corpo e Alma", fazer uma breve digressão para
destacar o prestígio da música, por dois motivos: primeiro porque a música
ocupa um lugar importante na alma do Brasil e isto se reflete nas telenovelas,
em que a música complementa a narrativa, conferindo-lhe um sentido mais amplo;
e depois, porque aqui, a música (particularmente como suporte da dança) irá
acentuar a presença da atriz Daniela Perez, a qual será vítima -na "vida
real"- de um crime, durante a exibição da telenovela "De Corpo e
Alma".
As trilhas sonoras, fundamentais
na criação das ilusões necessárias nas telenovelas, constituem, igualmente,
despertam para uma integração das tribos urbanas (5). A sonoridade no universo
das telenovelas é mais que uma partícula de realce, é essencial junto à recepção
do público. As estratégias de marketing musical, o estudo minucioso das
tendências, dos ritmos da moda e a experiência bem sucedida de um produto que
conquistou o mercado internacional, conjugados à paixão nacional pela música,
asseguram o sucesso das trilhas sonoras das telenovelas.
Num contexto de importante
produção musical, o mercado fonográfico e o gosto popular das massas realizam
um tipo de "contrato", cujo resultado é a profusão de estilos e
ritmos musicais diferentes. O som, o ritmo, a poética das canções brasileiras
animam os corpos no cotidiano nacional, aproximando diferentes sensibilidades,
tanto na intimidade dos lares quanto nos mega-concertos de música popular.
Escutando a música, podemos
experimentar a sensação de respirar na "ionosfera" (6), a qual,
segundo o filósofo Gaston Bachelard, define o espaço onde se reencontram
simbolicamente os amantes da música no rádio. O que se vê na ficção das imagens
televisuais é a realidade social que se aproxima, se comunica e, a música
aquece levando os atores sociais a dançarem na festa orgiástica do
espaço público.
Na sociedade de consumo, os ritos
e cultos das multidões, por exemplo, nos concertos musicais, assemelham-se a um
tipo de retorno à "agora"
grega, numa dimensão estética. A "agora" contemporânea não é mais o lugar da cena "teatralizada",
ela se modula, através da apresentação dos fenômenos midiáticos, que
ultrapassam o espaço estreito do vídeo eletrônico, e ganham o espaço público
onde os sujeitos se reencontram nas festas populares, banhados pela música,
como num ritual dionisíaco.
4. A estranha
arte de acender e apagar as estrelas
A difusão da telenovela "De
Corpo e Alma", além de todos os ingredientes comuns que animam o ritual e
a sinergia na cultura televisual, coincide com um momento de
"renovação" do ritmo musical brasileiro. Isto talvez seja um simples
efeito de moda, mas mostra uma série de tendências que nos permitem vislumbrar
aspectos importantes na cultura do cotidiano. O "axé music", o ritmo
da Bahia, penetrando nos espaços da mídia, reanimou o horário nobre das 20
horas e se disseminou por todo o Brasil.
"De Corpo e Alma"
é uma narrativa em que o galã se apaixona por uma jovem, pois ela havia
transplantado em seu corpo, o coração daquela a quem ele amou. Esta é uma
narrativa que poderia ultrapassar os limites da ficção banal.
O fio condutor da narrativa
possui analogia com a descrição das figuras lendárias de Orfeu ou de Dionísio,
os quais, segundo a mitologia grega, são familiares às regiões das profundezas,
do outro lado do mundo, o que excita a imaginação simbólica.
A exibição, na telenovela, de
crianças que são roubadas no berço e trocadas, desde o seu nascimento,
lembra-nos a infância do deus Dionísio, sempre perseguido pelos ciúmes da deusa
Hera. Além do mais, o confronto de etnias diferentes não está ausente no mito
dionisíaco. O deus errou por vários países, antes da sua consagração entre os
outros deuses do Olimpo. Todos estes elementos fazem da telenovela "De
Corpo e Alma" uma narrativa plena de significações que a situam num
rede simbólica muito vasta. Esta história cheia de paixões impossíveis onde o
"corpo" se inscreve como um signo que centraliza as outras
significações, circunscreve uma ambiência explosiva, em que se confrontam as
forças daimônicas, ctonianas, dionisíacas.
Num momento marcado pelas tensões
sócio-políticas do país, a telenovela "De Corpo e Alma" se
instaura como o depositório das paixões nacionais em efervescência. O fato
desta ficção ter terminado numa tragédia que sensibilizou o Brasil,
apresenta-nos uma coincidência que nos leva a refletir.
"De Corpo e Alma",
escrita por Glória Perez, a mãe da atriz Daniela Perez, exibe-nos o clássico
"desencontro marcado" entre a mocinha rica (a atriz Daniela Perez, no
papel do personagem "Yasmin") e o galã pobre (Guilherme de Pádua, no
papel de "Bira"). "Yasmin" é uma dançarina, que após a
falência da família, residente num bairro nobre do Rio de Janeiro, vê-se
obrigada a se instalar num subúrbio. "Bira" é um rapaz machista e
ciumento, um típico "latin lover" que não suporta ver a sua
"namoradinha" se exibir dançando em público. As disputas se tornam
freqüentes, as tensões e conflitos se sucedem, enquanto do outro lado do vídeo,
na intimidade caseira, o público vibra, toma partido, interage com paixão a cada
episódio da telenovela.
Entretanto... um acontecimento
inédito viria perturbar o Brasil. A realidade se antecipou à ficção. O ator
Guilherme de Pádua, intérprete do personagem "Bira", apaixonado e
ciumento, "confundindo" o personagem real de "Daniela Perez"
com o personagem fictício "Yasmin", assassinou a golpes de faca, a
jovem atriz.
Esta notícia escandalosa, que
veio à tona, simultaneamente, à divulgação do "impeachment" do
Presidente da República, obteve uma repercussão nacional que "quase"
eclipsou o acontecimento político.
O corpo social foi fortemente
tocado pelo assassinato da atriz Daniela Perez. Entre o corpo social (real) e o
corpo virtual (simbólico) da sociedade, projetado na telenovela, as fronteiras
são muito frágeis. Existe uma aproximação afetiva considerável entre o público
e a representação do real na ficção.
O crime contra Daniela Perez
talvez tenha tido uma repercussão tão importante, junto ao imaginário social,
quanto um acontecimento político como a deposição do Presidente da República. O
"impeachment" foi o resultado de uma longa luta com a participação de
setores importantes da sociedade. Contudo, ao lado do crime contra Daniela
Perez, o fato político tem uma significação simbólica análoga.
O país inteiro estava de luto e
chorava a morte de "Yasmin"/Daniela Perez. Reinava por toda a parte
um grande silêncio, um vazio imenso. Este vazio, este silêncio, entretanto,
incita-nos a pensar. Numerosos discursos virão se juntar ao fato, de modo a
agitar a imaginação do público. Saberemos, em seguida, que o assassino contara
com a cumplicidade da sua esposa. A imprensa deixara a entender que havia uma
ligação afetiva entre os dois atores, o que teria atiçado os rumores e
inquietitude das massas. O marido da vítima (o ator Raul Garzola) se mostrava
perturbado e a sua presença teria inflamado ainda mais o devaneio dos
telespectadores, que, com prazer, participavam deste episódio porque a atriz
Daniela/Yasmin era como uma "pessoa da família", com quem se
partilhava o jantar cotidiano, na intimidade caseira.
No que concerne à autora da
telenovela, a mãe da atriz assassinada, Glória Perez, teria sido ela quem -ao
menos num nível simbólico- forjou esta "realidade"; ela havia
aproximado Daniela/Yasmin de Guilherme/Bira, o assassino; ela havia construído
a estrêla, concedendo-lhe um papel sensual.
Este caso poderia se constituir
enquanto um produto da "comunicação sem objeto"(7), se o
considerássemos como uma história forjada pela mídia e ampliada pelos rumores
da imprensa do coração, como uma espécie de escândalo corriqueiro. Contudo,
esta seria uma maneira apressada de compreender a importância do fato social,
que atingiu em cheio as emoções coletivas, como um estouro no caso de amor e
ódio entre o público e a ficção. Seguindo este filão, suspeitamos que é por outro
viés que devemos orientar as nossas reflexões sobre a mídia.
5. Sade,
Artaud, Bataille e a interpretação das culturas
Na relação entre as imagens de
surpresa da mídia e a atração das massas, encontramos as chaves para
compreender o homem da sociedade midiatizada. O transe global, a atração social
em torno de um acontecimento macabro como o que liga Daniela Perez (a vítima) e
Guilherme de Pádua (o assassino) nos remete a uma rede simbólica que desafia a
antropologia. Há vários níveis de identificação entre o público e o assassino,
ou seja, o ator Guilherme, que interpreta o personagem de ficção, Bira. Existem
igualmente, identificações com a vítima, Daniela, na pele de
"Yasmin".
Uma leitura dionisíaca da telenovela,
isto é, um olhar antropológico aberto à compreensão das mitologias
contemporâneas, reconhece, neste episódio, o eco da imaginação mitológica
tradicional. Um enfoque atento não pode se permitir um olhar e uma escuta
inocentes, e afastar o caráter complexo, próprio ao homem e às relações
humanas. Uma aproximação da sociedade e da cultura, livre dos julgamentos de
valor, além do bem e do mal, deve considerar os afetos e as paixões que
conferem sentido ao social. Neste enfoque, é preciso considerar o emocional
coletivo sem distinções, inclusive no que concerne ao desejo de amar... até
matar.
À luz dos textos de Sade, Artaud
e Bataille, estes grandes dionisianos, podemos ir mais fundo na interpretação
das culturas (8). Se vislumbrarmos a ficção televisual mais de perto, na
"profundidade da sua superfície" midiatizada, descobrimos que, no
contexto supostamente apolíneo da mídia, as imagens dionisíacas estouram,
deflagrando o sentido que se agita nas camadas subterrâneas da cultura. Assim,
não podemos excluir uma interpretação dos afetos e das emoções coletivas que
inscrevem -simbolicamente- a participação do público no ritual dos crimes e da
violência, dentro e fora do vídeo.
NOTAS
1. MUNIZ SODRÉ. Máquina de Narciso.
Rio: Achiamé, 1984
3. Jean
BAUDRILLARD. A sombra das maiorias silenciosas, O fim do social e o
surgimento das massas. S. Paulo: Brasiliense, 1986.
4. IBIDEM.
5.M.MAFFESOLI.
O tempo das tribos. O declínio do individualismo na sociedade de massas.
Rio: Forense Universitária, 1987.
6.Para o filósofo Gaston
BACHELARD, a "ionosfera" consiste no espaço de repouso onde, durante
à noite, a comunidade dos amantes do rádio e da música se reencontra,
partilhando do sensível coletivo. Visualizamos esta experiência como um forma
de "sociabilidade" partilhada simbolicamente através da mídia e,
pensamos na sua contextualização em respeito à ficção televisual das
telenovelas. Cf. BACHELARD, G. "Devaneio e rádio" in ___ O direito
de sonhar. São Paulo: DIFEL, 1985, p.176-182.
7. JEUDY, H.P. La communication sans
objet, Paris: La lettre Volée, 1994.
8. Ver a propósito, M. FOUCAULT. As
palavras e as coisas. S.Paulo: Martins Fontes, 1984.