TEXTO INTELIGENTE
E QUALIDADE (QUASE) ZERO

João Canavilhas1

Índice

Introdução

Uma das discussões recorrentes no campo da análise de conteúdos é o da avaliação da qualidade de um produto jornalístico. Existem algumas ferramentas, como a Escala de Kayser, que permitem quantificar a valorização de uma notícia mas neste, como noutros casos, a avaliação restringe-se ao campo quantitativo. A Escala de Kayser, por exemplo, limita-se à análise de três campos: a localização da notícia, a titulação e a paginação. Importa, pois, definir critérios que permitam fazer uma análise qualitativa da notícia embora exista desde logo a dificuldade em definir o termo Qualidade quando associado a um produto jornalístico.
De uma forma geral, por ``Qualidade'' entende-se a adequação de um produto/serviço às necessidades de uso e à satisfação das expectativas do cliente. Mas é possível particularizar esta definição para o campo do jornalismo, criando assim um mecanismo que possa avaliar a qualidade percebida de um produto jornalístico, como um diário, por exemplo. Os quatro critérios que se seguem são uma proposta de grelha para avaliação de produtos jornalísticos:
- Valor - presença de elementos informativos raros e/ou exclusivos.
- Conformidade - consonância com as regras fundamentais do jornalismo (pluralidade de fontes, profundidade, informação complementar, técnicas de redacção)
- Regularidade - manutenção de características uniformes ao longo do tempo.
- Adequação ao uso - exploração de todas as potencialidades técnicas do meio oferecendo, aos utilizadores um acesso intuitivo e universal.
Este conjunto de critérios pode ser desdobrado num conjunto de questões avaliadas segundo uma determinada escala, conduzindo assim a um instrumento de avaliação qualitativa no campo do jornalísmo.
Mas mesmo que esta escala possa medir a qualidade do produto emitido e, portanto, a qualidade do emissor, fica por perceber até que ponto ela pode ser válida para avaliar a qualidade na recepção.

Qualidade no processo de recepção

As relações entre jornalista (profissional) e leitor (cliente) são diferentes das relações estabelecidas para outras profissões. O jornalista não oferece os seus serviços a um particular, mas a um conjunto de pessoas, entendendo essa missão como um serviço público.
Os jornalistas desenvolvem o seu trabalho de acordo com a percepção que têm dos gostos e interesses da sua audiência. Noelle-Neumann [1995] fala mesmo de uma ``consonância irreal'' para descrever a forma estereotipada como os jornalistas percepcionam a sua audiência.
Na verdade, a possibilidade de se conhecer um público amplo, heterogéneo e disperso afigura-se-me como algo potencialmente impossível. E apesar do crescente aparecimento de publicações especializadas, e da consequente segmentação dos públicos, subsiste uma manifesta heterogeneidade nas audiências. Permanece assim a dificuldade em conhecer a audiência e, consequentemente, definir os limites a partir dos quais se pode falar em Qualidade na perspectiva do receptor.

Qualidade e Satisfação

Entende-se que um produto tem qualidade (Q) sempre que as suas características correspondem às expectativas (E) que o consumidor tem em relação ao produto. Isto é, o produto tem qualidade quando as expectativas se confirmam, ou melhor, sempre que se consegue a satisfação (S) do consumidor.
Se quisermos traduzir esta ideia em termos matemáticos podemos dizer que Q=E/S ou seja, a Qualidade é igual ao quociente entre a Expectativa e a Satisfação. A Qualidade é Óptima quando o quociente é igual a um (1), caminhando-se para a Qualidade Total à medida que o valor se aproxima de zero, sendo impossível atingir essa qualidade pela impossibilidade matemática do quociente referido ser igual a zero.
Assim, se a Qualidade Óptima é passível de ser atingida em qualquer meio de comunicação, já a qualidade total obriga esse meio a ter um conjunto de características que permitam a superação das expectativas.
Se pensarmos num jornal, por exemplo, a profundidade com que é tratado o tema estará sempre relacionado com ao espaço que o editor marcou para esse trabalho. Independentemente da vontade e dos conhecimentos do jornalista, a qualidade da notícia estará sempre condicionada ao espaço disponível. Isto obriga o jornalista a recorrer ao que Gaye Tuchman [1976] chamou de ``news judgement'' (perspicácia profissional) e às técnicas jornalísticas, como a da pirâmide invertida, para estruturar a notícia. E ainda que o espaço não condicionasse a notícia, seria impossível enriquecer este trabalho em jornal já que lhe faltará sempre o som, a imagem em movimento e a rapidez de outros meios.
Na rádio também falta a imagem, o que faz com que o relato de uma dada situação fique sempre prisioneiro das palavras. Para além disso a rádio é um meio muito etéreo, o que dificulta a reconstrução da mensagem.
A televisão é outro meio sujeito a um vasto conjunto de condicionalismos. É também um meio etéreo, obedece a um complexo processo na construção da realidade e obriga o receptor a ficar preso a um esquema estrutural montado pelo jornalista. Igualmente importante é o facto de não permitir ao leitor o aprofundamento do assunto por recurso a arquivos, por exemplo.
É neste contexto que surge um novo meio, a Internet, e o jornalismo que lhe está associado, o webjornalismo. Graças às características e potencialidades deste novo meio é possível atingir níveis de Qualidade óptimos na medida em que, potencialmente, a notícia consegue satisfazer e/ou ultrapassar as expectativas do receptor por não estar sujeito a nenhum dos condicionalismos antes enunciados.
O webjornalismo tem por base aquilo a que passarei a chamar ``texto inteligente'', um conjunto composto por palavras, imagens, sons e hiperligações. Este conjunto forma um todo coerente, dinâ-
mico e suficientemente flexível para que cada leitor possa ter o seu próprio percurso de leitura e satisfaça a sua vontade de aprofundar um assunto.
Mas quais são as características deste ``texto inteligente''? Como se integram e são lidos os elementos verbais e não verbais?

Linguagem verbal

A componente mais desenvolvida do jornalismo na internet é o texto verbal escrito. Desde logo se verifica que, neste campo, não há qualquer semelhança com a linguagem verbal escrita utilizada pela rádio ou pela televisão, já que em ambos casos a possibilidade de leitura dos textos só acontece quando integrados com os vivos (televisão) ou os registos magnéticos (rádio).
Por outro lado há um afastamento claro daquela que é uma técnica fundamental do jornalismo escrito: a técnica da pirâmide invertida. Neste novo jornalismo a técnica utilizada é a de blocos de texto ligados electronicamente entre si. O que, de certa forma, vai de encontro ao ideal de textualidade definido por Roland Barthes como um texto composto por blocos de palavras (ou de imagens) unidos electronicamente em múltiplos trajectos e conjunções infinitas.

``No texto ideal abundam as redes que actuam entre si sem que nenhuma possa impor-se às outras; este texto é uma galáxia de significantes e não uma estrutura de significados; não tem princípio, mas diversas vias de acesso, sem que nenhuma delas possa classificar-se como principal; os códigos que mobiliza estendem-se até onde a vista pode alcançar (...)'' [Barthes, 1970, p. 11-12]

Esta definição coincide, inegavelmente, com o conceito de hipertexto, expressão definida por Theodor H. Nelson2 como ``uma escrita não sequencial'', uma série de blocos de texto ligados entre si por links que permitem ao utilizador seguir diferentes itinerários de leitura.
Mas estes links não ligam apenas textos, no sentido de texto verbal. Jacques Derrida3 defende a inclusão de elementos visuais na escrita, como forma de escapar às limitações da linearidade. De certa forma, o texto impresso já inclui alguns elementos visuais, como o espaçamento entre palavras, os diversos tipos e tamanhos de letras, a disposição do texto no papel ou até as notas de rodapé.
Mas a leitura hipertextual levanta também potenciais dificuldades, como a obrigatoriedade de efectuar uma leitura não linear. Gregory Ulmer4 refere que a linearidade é o resultado de quatro séculos de imposição de um determinado tipo de texto, defendendo que esta alteração representa a negação do carácter multidimensional do pensamento simbólico originalmente evidente na escritura não linear. Pictogramas e hieróglifos representam uma inscrição directa dos significados do pensamento, perdida com a sua supressão nos textos.
A característica multidimensional e não linear do texto é recuperada com o hipertexto, já que ele integra e liga entre si elementos verbais e não verbais num todo coerente de navegação livre. Imagine-se a introdução de um ícone no meio de um texto para indicar a existência de um vídeo ou de uma foto relativa ao assunto e análise. Neste caso o leitor terá que executar uma acção, clicar no ícone, para aceder a esse elemento multimédia, interrompendo a leitura para ver uma nova janela. Esta quebra no ritmo de leitura poderia corresponder à rotura do raciocínio, o que se tornaria prejudicial na medida em que poderia alterar a percepção da notícia.

``Se por um lado a leitura de um texto implica um trabalho específico de imaginação, por outro lado, a percepção das imagens não prescinde da capacidade de elaboração de um discurso.'' [Rodrigues, 1999; p. 122]

Podemos assim entender que perante um texto ou imagem se verifica imediatamente uma associação mental entre os dois campos. Assim, a disponibilização de um complemento informativo permite ao indivíduo recorrer a ele sem que isso provoque alterações no esquema mental de percepção da notícia. O hipertexto assume-se assim como um complexo de caminhos onde cada um pode seguir o seu caminho, isto é, fazer a sua própria construção da notícia. Mas as potencialidades do hipertexto não se esgotam nesta libertação do utilizador.

``O que distingue o telefone dos outros grandes média é o seu carácter descentralizado e a sua capacidade universal de inverter as posições de emissor e receptor (...) No passado recente, a única tecnologia que tem imitado a estrutura democrática do telefone é a internet (...)'' [Poster, 2000, pp. 38-39]

Isto significa que a internet oferece ao jornalista a possibilidade de falar COM o leitor, em lugar de falar PARA o leitor. E ao falar com o leitor, o jornalista está a dar-lhe a possibilidade de fazer parte da notícia, participando na sua construção através do correio electrónico ou dos grupos de discussão.
Jornalista e leitor assumem um papel duplo, tornando-se simultaneamente emissor e receptor, contribuindo para o enriquecimento da notícia através de opiniões ou até com outros links. A notícia torna-se numa espiral, gerando-se a si própria e multipli-
cando-se num emaranhado de opiniões e links que a tornam num produto sempre inacabado.
Mas para lá da linguagem verbal escrita, há ainda a linguagem verbal na sua forma mais básica: a oralidade. E se no campo do texto escrito o webjornalismo vai buscar algumas das características ao jornal impresso, no caso do texto oral é a rádio a fornecer algumas das suas especificidades. A base da linguagem informativa radiofónica é o seu sentido intertextual e polifónico: a notícia tem a voz do jornalista, mas também a voz de eventuais intervenientes no acontecimento que, desta forma, confirmam o conteúdo do texto do jornalista.
Umberto Eco defende que o texto é ``uma sucessão de formas significantes que esperam ser preenchidas''.5preenchimento é quase sempre efectuado com outros textos. Pierce chama-lhes os ``interpretantes'' do primeiro texto.6É justamente o que se verifica na linguagem radiofónica, quando o registo magnético (RM, ou RD - registo digital) interpreta a palavra dita pelo jornalista, isto é, confirma o texto introdutório ao registo previamente gravado. São estes ``interpretantes'', sob a forma de sons, que o webjornal pode ir buscar ao jornalismo radiofónico, conseguindo desta forma tornar a sua própria mensagem verbal textual mais sintética.

Linguagem Não Verbal

No campo da linguagem não verbal, o webjornalismo vai buscar a imagem em movimento à televisão. No entanto existe uma diferença fundamental entre a imagem em movimento usada pela televisão e aquela que é usada no webjornalismo. Na informação televisiva a imagem pode ser sincrónica ou não sincrónica. Considera-se que é sincrónica sempre que a cada imagem corresponde um som que percebemos ser o original da fonte. É o caso dos chamados ``vivos''. Por negação, considera-se a imagem não sincrónica sempre que o som não corresponde à fonte que o produz, embora tenha uma ligação semântica. É o caso das imagens que ``pintam'' as peças.
No webjornalismo a imagem em movimento assume apenas o carácter sincrónico, pois funciona como ``interpretante'', tal como acontece com o registo magnético no caso do jornalismo radiofó-
nico.

Conclusão

Considerando que toda a linguagem é ``um conjunto sistemático de signos cujo uso gera a codificação de mensagens num processo comunicativo interactivo entre emissor e receptor'' [Balsere, 1996, p. 18] importa definir de que forma cada meio codifica a sua mensagem, para se definir se existe uma linguagem para o novo meio.
O jornalismo impresso codifica a sua mensagem mediante a linguagem verbal escrita. A utilização de signos não verbais reduz-se aos diferentes tipos e tamanhos de letra e estes elementos não têm qualquer carga informativa, sendo puramente estéticos. Fotografias e gráficos assumem um carácter complementar raramente afectando o carácter informativo do texto.
O jornalismo radiofónico codifica também mediante a linguagem verbal, mas, neste caso, utilizando o nível oral. Também aqui existem outros elementos não verbais, como o silêncio, o som ambiente ou a música, mas trata-se mais uma vez de elementos não informativos ou de fraco carácter informativo. O jornalismo televisivo, pelo seu lado, codifica com base na linguagem verbal referida para os meios anteriores, e, sobretudo, recorrendo à linguagem não verbal da imagem em movimento.
O webjornalismo codifica com base na linguagem verbal - oral e escrita - e na linguagem não verbal. Até aqui parece não se distinguir do jornalismo televisivo, no entanto há uma a diferença fundamental: a possibilidade de uso de hiperligações e a participação do leitor na elaboração da notícia. Este conjunto de elementos verbais e não verbais, o "texto inteligente", permite que a notícia adquira o formato de uma espiral. Assim, dependendo apenas do leitor, a notícia poderá continuar a responder continuamente às expectativas do leitor, sendo que a cada momento na paragem da leitura encontraremos um leitor para quem a qualidade óptima foi atingida.

Bibliografia

Balsebre, Armand. El Lenguage Radiofónico. Ed. Cátedra, Madrid, 1996
Barthes, Roland. S/Z. Ed. Du Seuil, Paris, 1970
Eco, Umberto. Os limites da interpretação, Difel 82, Lisboa, 1992
Jespers, Jean-Jacques. Jornalismo Televisivo. Minerva, Coimbra, 1998
Landow, George P. Hipertext. The convergence of contemporary critical theory and technology. Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1992
Lochard, Guy e Solages, Jean-Claude. La communication télévisuelle. Armand Colin, Paris, 1998
Murad, Angéle. Oportunidades e desafios para o jornalismo na internet in Ciberlegenda, n^o 2, 1999
Noelle-Neumann, e, La espiral del silencio, Paidos, Barcelona, 1995
Peltzer, Gonzalo, Jornalismo Iconográfico. Planeta Editora, Lisboa, 1992
Poster, Mark. A Segunda Era dos Média. Celta, Oeiras, 2000
Rodrigues, Adriano Duarte. Comunicação e Cultura. Presença, Lisboa, 1994
ulmer, Gregory L. Applied Grammatology: Post(e)-Pedagogy from Jacques Derrida to Joseph Bueys. Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1985


Notas de rodapé

... Canavilhas1
Universidade da Beira Interior
... Nelson2
citado por Landow, George P., Hipertexto, 1992, p. 15
... Derrida3
idem, p. 61
... Ulmer4
citado por Landow, George P., Hipertexto, 1992, pp 61-62
... preenchidas''.5
citado em Balsere, Armand, El Lenguage Radiofónico, 1996, p. 164
... texto.6
Idem