História, Tempo e Media

Francisco Rui Cádima; Universidade Nova de Lisboa

1999

Trata-se essencialmente neste ensaio de desenvolver uma aproximação epistemológica à história da comunicação e dos media, o que significa que se pretende reflectir em torno de uma teoria do conhecimento, isto é, da construção de uma teoria em que não nos sentimos limitados aos «objectos» de comunicação em si, mas antes aos diversos modos de conhecimento desses mesmos objectos. No fundo, um quadro de síntese da teoria da história e da epistemologia da comunicação conducentes a uma epistemologia da história dos media e da comunicação.

Por outro lado, pretende-se desenvolver uma reflexão em torno da genealogia de estruturas historico-comunicacionais, das respectivas mediações simbólicas e tecnológicas e da emergência do campo dos media, reflexão ancorada num modelo de análise filiado na descrição intrínseca, arqueológica, dos documentos. Do mesmo modo se fará a análise de contextos, prácticas, regularidades, arquivos, e das condições de produção histórica do real comunicacional e da lei que orienta e suporta o aparecimento de enunciados como acontecimentos ou sistemas singulares.

Na abordagem dos diferentes tempos históricos, procurar-se-á problematizar a emergência de campos de mediação, designadamente a partir da interpretação das grandes mutações e na configuração das diferentes estruturas comunicacionais, tecnológicas e simbólicas. Nele se procurará, também, repensar as diferentes contribuições provenientes do âmbito da teoria da história, com relevância, quer para o trabalho historiográfico no campo dos media, quer para uma crítica da própria história enquanto grande narrativa na encruzilhada de saberes em crise.

Em análise estarão quer os macro acontecimentos e as grandes estruturas históricas, quer os micro fenómenos comunicacionais, do fait-divers (como fait d'histoire) aos meta-acontecimentos e à actualidade trágica. No estudo dos diferentes tempos históricos procurar-se-á problematizar o sentido da emergência - o sentido da história - de diferentes universos comunicacionais e respectivos campos mediáticos, a partir essencialmente da interpretação das grandes mutações observáveis nas linhas de fractura e na configuração das diferentes estruturas comunicacionais e culturais enquadradas, quer pela periodização clássica da história geral, quer pela sua reconfiguração a partir da emergência do paradigma historico-comunicacional.

Colocar-se-á então ao historiador o problema das condições de produção histórica - de um quadro legal, de um discurso, ou saber, de um relato événementielle, por exemplo. É através do trabalho arqueológico dos contextos, discursos e condições de possibilidade histórica, que se chegará à descrição intrínseca desses documentos, das formações discursivas em que se inserem, procurando as regularidades que se enunciam, a figura que se forma, a lei da raridade do seu acervo. Importará pois, em definitivo, trabalhar o campo das excisões que nos apelam à descoberta da lei do sistema que orientou o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares, produzindo dessa forma aquilo que é lícito chamar de real ou, pelo menos, as formas e o conteúdo da visibilidade desse real mediatizado.

Emergirá, nestas circuntâncias, um medium ou um acontecimento-monumento, configurado como produto de um contexto historico-cultural que lhe deu corpo segundo as relações de forças que aí detinham o poder e também em função das formações não-discursivas então estabelecidas, das condições de enunciação e contextos criados, dos efeitos assegurados por uma nova prosa do mundo que é, finalmente, uma nova ordem remitificadora do mundo.

Perante o conjunto de aporias explicitadas no âmbito da epistemologia e da teoria da história, a condição de possibilidade de uma história da comunicação, em particular, e apesar dos argumentos anti-narrativistas, resultará da confluência entre uma prática disciplinar que se pretende cada vez mais rigorosa, cada vez mais científica, e uma arte narrativa.

Pela impossibilidade de reificação do real, pela dificuldade de voltar ao social quando a realidade de que se fala é já discurso, pela falência da noção de documento, de prova, e inclusivamente pela falência da noção de testemunho, isto é, fundamentalmente, pela possibilidade de formas opostas de argumentação justificarem, pela razão e pela validade dos seus enunciados, um mesmo problema, verifica-se assim, também, a falência das modalidades de explicação/explicitação do real.

A questão é que nas ciências humanas se manipulam conceitos - de poder, de discurso, de classe, de legitimidade -, conceitos mais ou menos subtis, que, de facto, do ponto de vista da estabilização do estado morfológico das ciências humanas, não são ainda susceptíveis de uma definição intrínseca. Há, enfim, a asserção derridiana que defende não haver um termo que exprima satisfatoriamente uma concepção, há também a questão das «manipulações terminológicas que Habermas refere em A Ciência e a Técnica como Ideologia.2 Ambas concorrem, por assim dizer, para a necessária dessacralização do estado morfológico das humanísticas, sendo esta uma questão de fundo, que nos previne, por assim dizer, relativamente à aporia essencial das «grandes narrativas».

Mas vejamos através de alguns exemplos como se foi realizando a história através das suas múltiplas concretizações discursivas, procurando de alguma forma estabelecer um brevíssimo percurso da história-crónica à história-ciência.

Da cultural oral ficava-nos fundamentalmente a referência a um complexo processo enunciativo conhecido genericamente por Poemas Homéricos. Sabemos que apesar das sucessivas interpolações e reconstruções generativas - sensivelmente do século XX a.C. ao século VI a.C. -, os cantos da memória dos heróis pelos aedos homéricos ou os relatos orais, mais tarde estabilizados nos Poemas, nos fornecem informações mediadas, quer de Micenas e dos Minóicos, quer mesmo das invasões dóricas. Por exemplo, a historicidade da guerra de Tróia é verosímil, na Ilíada, ao tempo do «jovem» Homero, sendo as aventuras de Ulisses relatadas na Odisseia.

É sabido que para Aristóteles a origem da tragédia estava já contida na estrutura narrativa dos Poemas. Para outros autores, fora mesmo uma verdadeira enciclopédia do mundo antigo, ou inclusive um manual de filosofia. «A sua influência sobre toda a cultura grega, donde passa à latina, e desta a todas as culturas ocidentais dela derivadas, é um facto (…). São, por exemplo, o modelo, directo ou indirecto, de toda a poesia épica subsequente e influem consideravelmente na lírica (…)».3

Se os Poemas eram fundamentalmente um dos raros sistemas enunciativos de «reificação» de uma história mnemónica, oralizada, já na cultura alfabética, o exemplo das Histórias de Heródoto, dito «o pai da História», remetiam para uma mnemotécnica, que, como se sabe, designadamente desde o Fedro de Platão, conduzia os homens aos «exterior de si», mas no caso de Heródoto, nas Histórias e nos Inquéritos, nem por isso deixava de ser menos pertinente a utilização desse novo recurso: «Eis a exposição do inquérito (historiê) empreendido por Heródoto de Tourioi, para impedir que as acções cometidas pelos homens se apaguem da memória com o tempo, e que grandes e admiráveis feitos, levados a cabo tanto do lado dos Gregos, como dos lado dos bárbaros, cessem de ser nomeados».4 Mas os gregos tiveram outros grandes historiadores, ou «homens-memória» - é o caso de Tucídides, que foi o primeiro a substituir a interpretação mitológica tradicional da história por um novo tipo de pensamento histórico. «Il se peut, que l'absence de la forme fabulatoire de ma narration puisse sembler moins plaisante à l'oreille; mais certains désirent avoir une claire vision tant des événements qui sont advenus que de ceux qui, selon toute probabilité humaine, arriveront de la même façon ou tout au moins de façon similaire; que pour ceux-là mon histoire soit utile m'est suffisant. Et bien sûr elle a été composée non pas pour être entendue aujourd'hui, mais comme une possession éternelle».5 Para Tucídides, a história devia ser apenas «verdadeira» - ela é pesquisa da verdade, simultaneamente procura e inquérito judiciário. Recusa os prazeres de «ouvido», considerando que a história se dá como uma aquisição «para sempre».

O facto é que já Aristóteles referia que o saber autêntico tinha a haver com o universal, com as razões das coisas, e não com o acidental, o particular ou simples factos. Recorde-se a sua Poética:6 «L'historien et le poète, ne diffèrent pas par le fait qu'ils font leur récit l'un en vers, l'autre en prose. On aurait pu mettre l'oeuvre de Hérodote en vers et elle ne serait pas moins de l'histoire en vers qu'en prose. Ils se distinguent au contraire en ce que l'un raconte les événements qui sont arrivés, l'autre des événements qui pourraient arriver. Aussi la poésie est-elle plus philisophique et d'un caractère plus élevé que l'histoire car la poésie raconte plutôt le géneral, l'histoire le particulier».

Santo Agostinho, será, por assim dizer, o primeiro fundador de uma filosofia da história, embora no seu caso, os neo-platonismos se tenham convertido em redenção, em «revelação cristã», em simbolismo teológico ancorado na dualidade tempo vs. eternidade.

A emergência da história-crónica - e sobretudo dos textos que mais se aproximam de uma história moderna, como sucede no caso de Fernão Lopes,7 mais do que legitimar-se pela inviabilização do apagamento da memória, vem fundamentar os seus pressupostos na dualidade verdadeiro/falso, sendo certo que ele é também o cronista que não abdica desde logo da sua independência histórica e literária, comprovando factos e documentos, designadamente com a confrontação directa de outras fontes e crónicas anteriores . Recorde-se, apesar de tudo, o «programa» da Crónica de D. João I:8 «Mas mentira em este volume é muito afastada da nossa vontade», ou o «não certificar cousa salvo de muitos aprovada», referida designadamente por Borges Coelho no seu prólogo à Revolução de 1383 …9 Recorde-se também o próprio prólogo à Crónica de D. João I: «Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade de palavras e nom a certidom das estorias, desprazer-lhe-á de nosso razoado, muito ligeiro a eles d'ouvir, e nom sem gram trabalho a nós de ordenar».10

Será interessante ver também que nesta crónica medieval emergente, as fontes exteriores de Fernão Lopes, para além das portuguesas, referidas por múltiplos autores - de Alexandre Herculano11 a Aubrey Bell 12-, vão desde os cronistas franceses Villehardouin, Jean de Joinville, Jean Lebel e Froissart (Sécs XI-XIV) aos italianos, nomeadamente - Compagni, Guichardini, entre outros, passando pelos cronistas de Castela, como Lucas de Tuy, Rodrigo de Toledo, Ayala, o que significa estarmos perante um acervo discursivo sistemático na Europa medieval. Mas em termos de fontes intertextuais do grande cronista medieval, Peter Russel,13 por exemplo, remonta inclusivamente a plausibilidade dessas fontes a Aristóteles, Tito Lívio, Ovídio e Santo Agostinho.

Fernão Lopes foi, sem dúvida, mais do que o «pai» da historiografia portuguesa, «o primeiro dos historiadores modernos», na expressão de Peter Russel, o que teria sido conseguido com base não só na aplicação de um quadro de regras metodológicas rigorosas (Borges Coelho), como ainda por se ter suportado também no estudo da teoria e do método da história baseados na teoria aristotélica de causa e efeito (Peter Russel). Mas na opinião de outros foi também o primeiro «escritor em português».14

Aquilo a que habitualmente se chama uma «filosofia da história» aparece pela primeira vez com Hegel. Neste caso, ao contrário de Santo Agostinho, razão e fé pertencem a um sistema integrado, ou seja, ao saber, à possibilidade de conhecer, à comprensão intelectual, evoluindo assim da interpretação teológica para a interpretação lógica. Spengler, que de alguma maneira sofre a influência clara do sistema hegeliano, nomeadamente em O Declíneo do Ocidente,15 surge com novas propostas, desafiando modelos científicos e lógicos. Para Spengler, o desejo de escrever a história cientificamente continha uma contradição de fundo, na medida em que, segundo ele, a natureza deveria ser captada cientificamente, e a história poeticamente. Cassirer,16 reconhecendo essa dimensão «essencial» da história, - «l'historien ne fait pas que raconter mais il reconstruit le passé; il lui insuffle une nouvelle vie», considera que sem uma hermenêutica histórica, sem a arte da interpretação contida na história, a vida humana seria algo de muito pobre».

A aproximação à verdade - se não mesmo a reposição da verdade como totalidade -, é assim um dado presente em todo este percurso de narrativização da história e encontra o seu apogeu, mais para além da história-crónica, precisamente na afirmação de positivismos e historicismos. Da história transcendental de Bossuet,17 no século XVII, à histoire-bataille de Fustel de Coulanges no século XIX, consagra-se todo um sistema de referência a uma história total, inexpugnável. O historicismo alemão, por exemplo, de Leopold von Ranke e Simmel, considerava não haver outra realidade se não a história, sendo o seu objectivo, dar os acontecimentos do passado «como eles na realidade se passaram». Procurava a eliminação do erro pelo exercício da então chamada crítica histórica mas também pela confiança na intuição. A história era interpretada como uma história total, inquestionável, depositária da verdade absoluta.

Ainda no início do século XIX, a Cambridge Modern History considerava que o tempo da história definitiva estava próximo. Com o conhecimento dos grandes arquivos, com a abertura dos livros de chancelarias europeias, toda a informação estaria ao alcance do historiador.

Os primeiros sinais evidentes de mudança nesta concepção de história emergem sobretudo a partir da Escola dos Annales, com Lucien Febvre e Marc Bloch, que publicam a partir de 1929 os Annales d'Histoire Économique et Social É o tempo da interdisciplinariedade e da procura do rigor crítico e científico, feito na transversalidade entre a geografia, a linguística, a psicologia, a matemática. É o tempo, portanto, da emergência das ciências «auxiliares» da história, como por vezes se considerava.

Raymond Aron, em 1936, coloca claramente a questão: não existe uma realidade histórica elaborada antes da ciência, passível de ser reproduzida com fidelidade. A realidade histórica, por que é humana, é equívoca e inesgotável: «Je me confonds avec mon devenir comme l' humanité avec son histoire».18 Karl Popper, em A Miséria do Historicismo,19 um texto publicado inicialmente em Milão, em 1945, alertava para a negação dos ciclos, das repetições, da predicção, da previsibilidade do futuro, fazendo notar que a crença no destino histórico era pura superstição. Do seu ponto de vista, a história só podia ser teorética, o que significava uma nova oposição aos traços indisfarçáveis de historicismo existentes nas mais modernas teorias históricas: «Quase diríamos que os historicistas procuram compensar-se da perda de um mundo imutável apegando-se à crença de que é possível antecipar a mutação, pois que esta é governada por uma lei imutável».20

No caso britânico, a New Cambridge Modern History, nos anos 50, vem relembrar, através de sir George Clark, que o juízo histórico implica um testemunho pessoal e um ponto de vista subjectivo, não existindo verdade objectiva em história. E, em França, a partir do início dos anos 60, é Braudel que lidera a escola dos Annales. Tempo geográfico, tempo social e tempo individual marcam novas categorias históricas: muito longa duração, longa duração e tempo curto. O tempo individual, «curto», foi também considerado por Fernand Braudel como o «tempo do jornalista». E nesta identificação está também uma crítica à noção de acontecimento - a oscilação curta, rápida, nervosa, que retoma a histoire-événementielle. Braudel prefere as tendências seculares, as estruturas históricas de longa duração. «A história, dialéctica da durée, não é, à sua maneira, explicação do social em toda a sua realidade?».21 Da mesma forma, Paul Veyne,22 considera que o événement é a variável, o subproduto da construção do modelo invariante - «só interessa a determinação da invariante».

De alguma meneira, a crítica destas concepções pode ser estruturada com referência a vários autores. Por um lado, pela insustentável estabilidade das estruturas (Foucault); por outro lado, pela recuperação da noção de acontecimento (Pierre Nora) e ainda pela nomeação da história enquanto ficção, na perspectiva de Michel de Certeau e de muitos outros autores, como veremos - e não enquanto «explicação do social».

Daí a invocação da História Nova. Pierre Nora escreve por esse altura o texto «O retorno do acontecimento»23 , onde defende que os media fazem o acontecimento, sendo este «o maravilhoso das sociedades democráticas»: os media «dão ao discurso, à declaração, à conferência de imprensa a solene eficácia do gesto irreversível», e acrescentava: «donde esta impressão de jogo mais verdadeiro do que a realidade, de festa que a sociedade dá a si mesma através do grande acontecimento». Mas não só: os próprios mass media surgem então como os detentores do monopólio da história, uma vez que a actualidade, deste ponto de vista, não era mais do que o culminar de um novo fenómeno - o acontecimento, conceito por sua vez manipulado pelos historiadores do «instante», ou pelos técnicos do saber prático. A própria história das mentalidades cruza-se necessariamente com a questão do acontecimento numa vertigem crescente, no dizer de Alain Boureau.24 Mas a grande ferida narcísica da emergência dos media neste debate é porventura a questão da mediatização das representações, na medida em que esta mediação contextual elimina a possibilidade de uma representação transparente do real, o que implica que esse «real» não seja nada mais senão, justamente, o próprio contexto de mediação.25

Em Braudel, a estabilidade das grandes estruturas históricas, na longue durée, surge assim claramente questionada não só por aquilo a que Foucault designou de irrupção dos acontecimentos, mas também por todo um complexo teórico que reintroduz a questão do fragmentário nas práticas e nas teorias da história. É o caso da escola italiana, de Ginzburg e da «micro-história»,26 por exemplo, é também o caso de Marc Ferro que considera, nos Annales, o fait-divers, não como um órfão de história, mas antes como objecto de história privilegiado, como uma necessidade da história,27 mesmo apesar de, enquanto facto excepcional, ou curiosidade, se poder considerá-lo um événement sans événement, uma informação total, imanente, que contém em si todo o seu saber sendo percebido de igual modo por todos. Não reenvia para nada mais a não ser para si mesmo. Tudo é dado no fait-divers. Aliás, trata-se de uma questão emergente fundamentalmente no quadro do desenvolvimento do próprio sistema dos media: «son retour en force, aujourd'hui, dans les médias e dans les sciences sociales, s'inscrit dans le même mouvement: valorisation du privé, recherche de l'intime, fascination du secret, goût pour l'autobiographie, le détail, triomphe du sujet».28 Questões, aliás, já referidas anteriormente pelo próprio Aron no quadro de um novo conceito de história baseado sobre o conceito de événements: «accidents, hasards ou rencontres, qui ne se produisent plutôt qu'ils ne sont et qui échappent définitivement à la raison».29

Acontecimento e documento são assim dois conceitos inultrapassáveis na redefinição do quadro conceptual da epistemologia da história. Mas a questão fundamental já a havia colocado Michel Foucault nesta altura, mais concretamente no final dos anos 60, através dos procedimentos metodológicos e da argumentação epistemológica expostos na Arqueologia do Saber.30 É neste texto que Foucault, melhor que qualquer outro, contribui definitivamente, do nosso ponto de vista, para a recusa do velho dogma da continuidade e da totalidade históricas. Mas não só. Através deste novo discurso do método histórico, os documentos deixam de se poder subordinar a um simples agenciamento clássico de crítica interna e externa, para passarem a ser descritos, decompostos e redistribuídos no seu interior: «Elle (l'histoire) l'organise, le découpe, le distribue, l'ordonne, le répartit en niveaux, établit des séries, distingue ce qui est pertinent de ce qui ne l'est pas, repère des éléments, définit des unités, décrit des relations».31 Acima de tudo, Foucault coloca o problema ao nível de um inventário de esquecimentos, o que acaba por conferir ao seu discurso a actualidade da crítica da história do presente e sobretudo do tempo «curto» do jornalista.

A massa documental, os acervos discursivos, são seguidos por Foucault não como um acumular de textos, mas enquanto práticas, nas sua regras intrínsecas, na sua especificidade própria, através de uma complexa análise das modalidades de enunciação e dos contextos, estabelecendo a lei dos sistemas, as regras dessas formações discursivas. Esse conjunto de «práticas», são interpretados em regra como «traços verbais», como formações recorrentes e homogéneas constituindo «o invariante comum» de um conjunto de traços.

No campo da epistemologia da história, e designadmanete na perspectiva de uma epistemologia da história dos media torna-se essencial reconhecer que é o modo de questionamento do documento, é o trabalho no arquivo e a sua lei, que nos podem conduzir a uma outra forma de apropriação do real. No fundo, tal como defendia Legoff, o documento é «o produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder».32

Aliás, é muito clara a passagem em que Foucault expõe, de forma cabal, o cerne da questão:33 «(…) De nos jours, l'histoire, c'est ce qui transforme les documents en monuments, et qui, là où on déchiffrait des traces laissées par les hommes, là où on essayait de reconnaître en creux ce qu'ils avaient été, déploie une masse d'éléments qu'il s'agit d'isoler, de grouper, de rendre pertinents, de mettre en relations, de constituer en ensembles (...) L'histoire de nos jours, tend à l'archéologie, - à la description intrinsèque du monument» .

Para além da perspectiva foucaultiana, importa considerar outras propostas para a constituição de uma teoria e de um saber histórico. No quadro epistemológico e conceptual de uma teoria da história dos media terão ainda que se enquadrar novas temáticas como, por exemplo, a questão da formação histórica e o conceito de esfera pública burguesa no âmbito de uma teoria crítica da sociedade, não só porque - questão polémica, a pensar sobretudo em Foucault, Artaud, Clavel, etc., -, nas sociedades das Luzes, nos cenáculos e nas esferas francs-maçons, por exemplo, se podia exercer os princípios da igualdade política - e, também, de exclusão -, de uma sociedade futura,34 mas porque, concordando sobretudo com Louis Quéré, designadamente em Des miroirs équivoques - Aux origines de la communication moderne,35 onde se procura complementar insuficiências metodológicas, «impotências» das próprias ciências sociais, nomeadamente no quadro da crise das grandes narrativas e também perante a emergência de uma nova questão da contemporaneidade - a questão comunicaccional .

E essa complementaridade, Quéré entende-a como um projecto epistemológico alternativo e fá-la sobretudo na perspectiva da análise das mediações técnicas e simbólicas do campo comunicacional, recorrendo ao que designa de uma teoria do espaço público que permita a reconstrução dos objectos deslocados pela análise empírico-analítica, pelos sociologismos, e historicismos, elucidando prioritariamente o discurso interpretativo e normativo sobre o social. A proposta de Quéré vai, no entanto, mais longe, procurando «elucidar o processo de instituição ou de especificação histórico-cultural dos suportes da operacionalidade da comunicação»,36 e, por assim dizer, causas e consequências do «programa» fundador da própria comunicação e dos modelos culturais. Trata-se, em suma, não só de uma analítica do espaço público, mas, também, de uma preocupação pelas dimensões pragmática, histórico-cultural e do campo da teoria da recepção.

Na sequência da crise do paradigma clássico, uma outra temática surge com enorme importância vindo reacentuar aquilo que já havia ficado claro a partir dos pressupostos foucaultianos na Arqueologia do Saber. Trata-se da questão do fim da dicotomia récit de fiction/récit historique, aliás questão que se enquadra na hermenêutica ricoeuriana desde finais dos anos 60 também, nomeadamnete desde que Paul Ricoeur publicou a sua obra sobre O Conflito das Interpretações,37 onde anunciava, de certo modo, a ruptura com o estruturalismo. Aqui, a questão essencial é a questão do contexto. Para Ricoeur, a linguagem não é somente uma língua, susceptível de taxinomia e de semiologia, mas é também um dizer. Na linguagem alguém se dirige a alguém para lhe falar de alguma coisa, o que significa que a linguagem contém sempre um sujeito, um mundo e uma audiência.

A questão da narrativa histórica sempre preocupou Ricoeur. No seu livro Histoire et Vérité (1955) 38 abordava já a crise da história e do conceito de verdade de um ponto de vista hermenêutico. Mais tarde, em A Metáfora Viva (1975) 39 considera a metáfora como o poder através do qual o discurso pode reescrever a realidade, de uma forma «suprema», aliás.

A grande obra de Ricoeur, Temps et Récit, 40 aprofunda a questão do acto de narrar e a reciprocidade entre narratividade e temporalidade. Considera a narrativa como a guardiã do «tempo», uma vez que a experiência temporal apenas pode ser narrada.

Na análise da narratividade, do que se trata é de pensar um «impossível» (precisamente o acto de narrar), preservando a diversidade irredutível dos usos de linguagem, enfim, do que se trata é de reunir as formas e as modalidades do jogo de narrar, disseminadas em géneros literários cada vez mais específicos, separados em narrativas com uma pretensão à verdade, como a história, e em narrativas de ficção.

A unidade funcional deste campo espartilhado é o seu carácter temporal. A narrativa é uma re-figuração da experiência, que, no fundo, contém já em si própria uma estrutura pré-narrativa, feita de «histórias» que procuram ser narradas. A questão é, afinal, a identidade estrutural entre a historiografia e a narrativa de ficção. Daí, no fundo a necessidade de atenuar as diferenças apriorísticas de regime narrativo entre ficção e história. Tal como Barthes no texto «Le discours de l'histoire» 41, onde se questiona essa separação, essa diferença entre narração histórica e géneros como a epopeia, o romance, o drama… No fundo, é na permuta entre história e ficção que a nossa historicidade é levada à linguagem.

Desta forma, tratando a qualidade temporal da experiência como referente comum da história e da ficção, Ricoeur constitui um problema único, a saber, ficção, história e tempo, filiados na muthos aristotélica, na mise-en-intrigue clássica, na selecção/distribuição teleológica dos acontecimentos e das acções narradas, tanto para a história como para a ficção.

A narrativa é ainda a guardiã do tempo humano e é a história enquanto narrativa que reinscreve o tempo vivido sobre o tempo cósmico e a memória, cabendo à ficção resolver o que é negligenciado pelo tempo vivido. O mesmo é dizer, se a dimensão mimética da ficção conduz ao essencial, a dimensão ficcional da história conduz ao possível.

As condições de possibilidade da história dos media são então as condições de possibilidade de questionamento dos novos documentos, da sua lei e das condições e contextos históricos em que foram enunciados.
 
 

Notas:

1. Patrick Gardiner, Prefácio do antologista para a edição portuguesa de Teorias da História, F. C. G., Lisboa, 1984, p. XXXVIII.

2. Jürgen Hebermas, La Technique et la Science comme Idéologie, Denoel, Paris, 1973.

3. Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I Vol., Cultura Grega, 4ª edição, FCG, Lisboa, 1976, pp. 121-122.

4.Ver «Heródoto», de F. Hartog, Dictionnaire des Sciences Historiques, de André Burguière, PUF, Paris, 1986.

5. Tucídides, La Guerre du Péloponnèse, L. I, chap. XXII, Paris, Les Belles Lettres, 1968-1975, sg., a tradução de Ernst Cassirer, in L'Idée de l'Histoire, Cerf, Paris, 1988.

6. Aristóteles, La Poétique, Cap. 9, 51a/b, tradução e notas de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, Éditions du Seuil, 1980.

7. Embora Oliveira Marques considere, por exemplo, que a crónica de D. João I vale mais como romance histórico de alto nível literário, concede que o cronista «combinou o inevitável louvor aos vencedores com um relato franco dos acontecimentos e dos seres humanos, que o tornou espantosamente 'moderno' e científico» - História de Portugal, Vol. I, p. 277. Ainda sobre esta questão e sobre a história-crónica ver o estudo de Joaquim Barradas de Carvalho, Da História-Crónica à História-Ciência, Livros Horizonte, Lisboa, 1976.

8. Crónica de D. João I de Fernão Lopes, Apresentação crítica, selecção e notas de Teresa Amado, Seara Nova, Editorial Comunicação, Lisboa, 1980.

9. António Borges Coelho, Prólogo de A Revolução de 1383, Seara Nova, Lisboa, 1977.

10.Crónica de D. João I de Fernão Lopes, op. cit., p. 78.

11. Alexandre Herculano, Opúsculos, Tomo V, Bertrand, Lisboa, s/d.

12 Aubrey Bell, Fernão Lopes, edições Imprensa da Universidade, Coimbra, 1931.

13. Peter Russel, As fontes de Fernão Lopes, Coimbra, 1941.

14. Ver a apresentação crítica de Teresa Amado da Crónica de D. João I de Fernão Lopes, op. cit., p. 20.

15. Oswald Spengler, Le Déclin de l'Occident - Esquisse d'une morphologie de l'histoire universelle, Éditions Gallimard, 1978.

16. Ernst Cassirer, «Séminaire sur la philosophie de l'Histoire», L'Idée de L'Histoire, Les Éditions du Cerf, Paris, 1988, p. 85.

17. Veja-se, por exemplo, de Jacques-Bénigne Bossuet, o seu Discours sur l'histoire universelle, Flammarion, Paris, 1966, designadamente o capítulo final, «(…) ou l'on montre qu'il faut tout rapporter a une providence», p. 427.

18. Raymond Aron, Introduction à la philosophie de l'histoire - Essai sur les limites de l'objectivité historique, Éditions Gallimard, Paris, 1978, p. 12

19. Karl Popper, A Miséria do Historicismo, Cultrix, São Paulo, 1980. Aliás, o livro é dedicado à memória de homens e mulheres que «tombaram vítimas da crença fascista e comunista em Inexoráveis Leis de Destino Histórico».

20. Popper, op. cit., p. 125.

21. Fernand Braudel, Écrits sur l'Histoire, Flammarion, Paris, 1969, p. 61.

22. Paul Veyne, «L'inventaire des différences», lição proferida no Collège de France, 1976.

23. Pierre Nora, «O regresso do acontecimento», Fazer História, Vol. I, Bertrand, Lisboa, pp.

24. Alain Boureau, «Propositions pour une histoire restreinte des mentalités», Annales ESC, nov.-déc. 1989, nº6, pp. 1491-1504.

25. Sobre esta questão ver, por exemplo, o texto de Marike Finlay Pelinski, «Pour une épistémologie de la communication: au-delà de la représentation et vers la pratique», Communication/Information, Vol. V. nº 2/3 pp. 3-34.

26. Ver o «Manifesto» de Carlo Ginzburg e Carlo Poni, Le Débat, nº 17, 1981.

27. Marc Ferro, «Fait divers, fait d'histoire», Annales ESC, Juillet-Aout 1983, pp. 821-826. Sobre a questão da estrutura do fait divers, ver nomeadamente Annales o artigo de Roland Barthes, «Structure du fait divers», Essais Critiques, Paris Éditions du Seuil, 1964.

28. Michelle Perrot, «Fait divers et histoire au XIXe. Siècle», Annales, Juillet-Aout, 1983, pp. 917.

29. Raymond Aron, op. cit., p. 20.

30. Michel Foucault, L'Archéologie du Savoir, Gallimard, Paris, 1969.

31. Foucault, op. cit., p. 14.

32. Jacques Legoff, «Documento-Monumento», Enciclopédia Einaudi, Vol. 1, Memória-História, p. 102, Lisboa, IN-CM, 1984.

33. Foucault, op. cit., p. 131.

34. É o caso de Jürgen Habermas. Veja-se, nomeadamente, «'L'Espace Public', 30 ans après», Quaderni, nº 18, automne 1992, pp. 161-191.

35. Louis Quéré, Des miroirs équivoques - Aux origines de la communication moderne, Aubier Montaigne, Paris, 1982.

36. Quéré, op. cit., p. 46.

37. Paul Ricoeur, Le Conflit des Interprétations, Éditions du Seuil, Paris, 1969.

38. Paul Ricoeur, Histoire et Vérité, Éditions du Seuil, Paris, 1955.

39. Paul Ricoeur, La Métaphore Vive, Éditions du Seuil, 1975.

40. Paul Ricoeur, Temps et Récit, 3 Vols., Éditions du Seuil, Paris, 1983-1985.

41. Roland Barthes, Poétique, Février de 1982.