A participação do Estado no mercado de TV por assinatura

 

Valério Cruz Brittos,  Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

 

Introdução

A globalização impõe mudanças nas atuações do Estado e das corporações privadas, frente à abertura de mercados, desregulamentação e privatização que se sucedem progressivamente na maioria das localidades deste Planeta, em escalas diferenciadas. O Estado modifica-se, não se constituindo mais naquele ente viabilizador de infra-estruturas materiais para ingresso e continuidade empresariais, como ocorreu no pós-Guerra, forçando a iniciativa privada, por sua vez, a mudar sua relação com a máquina pública, não esperando o mesmo tipo de contribuição que contou no passado. Contudo, acredita-se que, fortemente alterada, ainda verifica-se uma colaboração do Estado com os interesses particulares.

Este estudo tem como principal objetivo realizar uma abordagem inicial sobre a participação do Estado brasileiro na formação e estruturação do mercado interno de televisão por assinatura, partindo-se do pressuposto que essa ação ocorre especialmente através da viabilização de documentos legais em consonância com os propósitos empresariais. Destaca-se que a participação estatal atual diferencia-se de sua atuação na consolidação da TV aberta brasileira, quando foi decisiva, com um projeto nacional para o setor, envolvendo legislação  favorável aos grupos econômicos, mas também construção de infra-estrutura física. Hoje as decisões ocorrem basicamente a partir da ação mundial, sem um projeto específico para a área.

Inicialmente, vai-se lembrar que, no Brasil, a ligação Estado-empresários remonta ao período inicial da industrialização, a Revolução de 30, muito antes da consolidação das indústrias midiáticas. Por um lado, o país historicamente privilegiou negociações com o mundo econômico pouco explícitas e não raro nada coletivistas; por outro, apesar do ideário liberalizante da globalização ter entre os empresários seus mais ardorosos defensores, nada imede que, na arena da negociação, o conjunto empresarial lute para a obtenção de benefícios. Mas, como a hegemonia prevê absorção de anseios de outros grupamentos, há espaço para avanços sociais, apesar do comprometimento elitista original do Estado.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, vai-se estudar precipuamente os documentos legais que regulamentam o setor, editados pelos Poderes Executivo e Legislativo entre 1988, quando foi iniciada a normatização da área, até 30 de setembro de 1998, data estipulada como limite para o encerramento da coleta de dados desta investigação. Na legislação inclui-se todo tipo de ato normativo, editais e processos relativos a outorgas de operações de televisão a cabo, em suas diversas denominações. Além disso, serão realizadas revisão bibliográfica, para a compreensão da interação Estado-empresários e da caminhada da TV paga, consulta a revistas especializadas no noticiário midiático e busca via Internet de informação sobre o tema.

Cooptação e envolvimento

A pouca nitidez das conversações entre Estado e empresas - que na maioria das vezes deveria ser multilateral, recrutando trabalhadores e sociedade civil - origina-se no momento fundante da industrialização nacional, desencadeada por Getúlio Vargas, em 1930. De acordo com Eli Diniz, prevaleceram estruturas de controle do Estado sobre a sociedade, recorrendo-se ao modelo corporativo de intermediação de interesses, com a integração dos organismos sindicais e patronais a uma ordenação vertical hierárquica e centralizada, tendo no ápice organizações de cúpula ligadas ao Executivo, com agentes estatais e empresários decidindo sobre as políticas industriais, sem articulação com atores como trabalhadores e partidos.[1]

Mesmo assim, no final dos anos 70 as elites econômicas desencadearam aguda campanha contra a estatização da economia, retomada posteriormente sob o manto neoliberal. A defesa do mercado e do fim da internvenção não redundou, no entanto, na proposição de um projeto econômico para o país, ou seja, na apresentação de uma proposta que pensasse o coletivo. Na prática, os empresários seguiram a mesma lógica de obter benefícios do Estado. A demanda pelo recuo do Estado no plano da regulamentação da economia coexistia com esforços pela concessão indiscriminada de incentivos, isenções e subsídios, reserva de mercado e proteção estatal para amparar setores em dificuldade ou em implantação.[2]

É inegável que, a partir da Nova República, sucederam-se tentativas de agregar trabalhadores e segmentos da sociedade civil à discussão,[3] reunindo-os em discussões abertas sobre questões gerais, como a série de sinalizações e propostas de estabelecimento de um pacto social, aos moldes do de Moncloa, espanhol, e sobre questões específicas, como a realidade das câmaras setoriais[4] e as audiências públicas, a exemplo da que culminou, após muitas discussões no Congresso Nacional, na Lei do Cabo. Se muitos privilégios mantêm-se, e outros são renovados, é porque a questão transcende o corporativismo estatal, embora este efetivamente tenha contribuído para criar uma cultura da dependência do Estado.

Acontece que o desenvolvimento da atividade empresarial, em não poucos casos, requer infra-estrutura, o que vinha sendo suprido pelo Estado, no Brasil, desde os anos 30, ante a falta de recursos do capital privado. Hoje os conglomerados e alianças transnacionais suprem a montagem estatal da infra-estrutura física, mas seguem necessitando de legislação favorável. Isso requer articulação de benefícios junto ao Estado, o que não pode ser aberta. Essa articulação também consubstancia-se em candidaturas de empresários a cargos eletivos e participação direta em instâncias estatais, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o que atesta que o Estado ainda cumpre papéis necessários.

A ligação Estado-empresário remete à origem do Estado. Na tradição marxista, o Estado é concebido como instrumento da dominação de classe, expressão da capacidade de uma delas de se impor sobre o conjunto social. Tal entendimento deve ser completado com as posições de Gramsci, que afasta a tendência de determinismo econômico e destaca a importância das possibilidades do processo político. Nesse sentido, identificam-se as disputas políticas pelo controle estatal, de forma que os governantes muitas vezes vão além dos grupos que são inicialmente ligados, para obter posições. O Estado representa interesses de classe, mas, no jogo político, também demanda das classes que se coadunem a seus propósitos.

Deve-se atentar para o conceito gramsciano de hegemonia, de forma que a conquista e o exercício do poder requerem negociação com os dominados, não sendo só imposição. Para Gramsci, a classe hegemônica deve tornar-se protagonista também de reivindicações que são de outros estratos sociais, unificando através da ideologia e mantendo articulado grupo de forças heterogêneas, assim realizando-se a hegemonia enquanto descobre mediações, ligações com outras forças, encontra vínculos também culturais e faz valer no campo cultural suas posições.[5] Essa ampliação contra o determinismo econômico permite que se clareie os eventuais descompassos que se reproduzem entre as ações estatais e das elites econômicas.

Quanto à cultura, suas corporações e dirigentes via de regra recebem um tratamento mais privilegiado do Estado, pois são fundamentais para a construção e manutenção da hegemonia. Na visão de Gramsci, hegemonia inclui, além do partido, outras instituições da sociedade civil que tenham nexo com a cultura, de forma que a teoria da hegemonia liga-se não apenas a uma teoria do partido e do Estado, mas engloba a concepção da sociedade civil.[6] Assim, na análise da formação do mercado de televisão paga, deve-se atentar para três fatores: que Estado e empresário têm uma base comum e tendem a convergir interesses, que a noção de hegemonia indica que anseios de outras classes são assumidos pelo Estado e que as corporações de cultura têm suas reivindicações tratadas com mais atenção pelo aparato estatal.

Não se trata, portanto, de uma relação simétrica, no que se refere a Estado e grupos econômicos, mesmo que esses efetivamente inclusive tenham contribuído pecuniariamente para que os dirigentes cheguem ao Governo. Deve ser considerado também que, no poder, as elites governante e burocrática podem entrar em choque com os grupos econômicos, tentando vôos autônomos, em dadas circunstâncias. A profissionalização da política, no momento em que cria uma burocracia para atuar na máquina estatal, contribui para que o processo decisório leve em conta critérios gerais, embora a neutralidade inexista e a legislação, a forma fundamental de comunicação do Estado, esteja impregnada das relações de sobreposição vigentes.

Se, na especificidade da industrialização brasileira, o Estado assumiu posições de liderança, mais lantentes nos períodos getulista de 30 a 45 e do golpe de 64, não se pode reivindicar que tal movimentação tenha ocorrido de forma autônoma, que não representasse os interesses dos grupos dominantes. Em dados momentos, evidentemente, isso contrariou algumas pretensões de parte das elites, mas o objetivo maior do poder econômico estava assegurado. Assim é que, no período da mais recente ditadura militar do país, os empresários de televisão eventualmente sentiam-se contrariados com a ação da censura, mas eram (bem) recompensados com um forte apoio, que possibilizou a maximização de seus lucros.

Verifica-se uma conjugação de interesses entre as elites e o Estado, pela ligação entre eles. Estudando a relação Estado e empresários no período inicial de industrialização nacional, Eli Diniz observa que alargamento da esfera de ação estatal e consolidação do setor privado da economia não foram percebidos como objetivos contraditórios, senão que solidários, na construção da sociedade industrial brasileira, convergindo teóricos autoritários e lideranças empresariais.[7] À idéia de que o Estado, nos períodos autoritários, cooptou o empresariado, o qual contribuiu com seus interesses e aceitou as ditaduras, deve ser contraposta com o raciocínio de que isso também indica a permeabilidade estatal à visão dos grupos econômicos.

Em sua análise do processo decisório, Charles Lindblon reconhece que os empresários exercem um papel privilegiado na barganha junto aos formuladores de política pública.[8] Sendo o capitalismo baseado no sistema de mercado e em empresas privadas, os atores que os controlam desfrutam de posições distintas. Trata-se de um jogo onde o privilégio do poder econômico garante influências assimétricas, mas, mesmo assim, a necessidade de construção da hegemonia abre brechas para outros agentes. Se os dominados passam a integrar a política, seu discurso em boa medida deve ser assimilado pela estrutura estatal, na construção da hegemonia, apesar da tendência secular de elitismo das deliberações públicas.

Por isso, nem toda decisão estatal vai ao encontro direto das classes dominantes. Além de tudo, os parlamentos são compostos de forma ampla, de maneira que vários setores são representados, inclusive os trabalhadores. A pluralidade de posições acirra-se nas sociedades complexas, onde o número de membros dos legislativos dilata-se e os interesses tornam-se difusos, embora também cresça a tendência de autonomização dos eleitos e a maioria conservadora. Tudo isso dificulta uma análise linear da dominação do Estado refletindo-se em postura única favorável a seus controladores, apesar de reconhecer-se que o capital e seus detentores são os senhores do capitalismo, o que é acirrado no momento atual da globalização.

A globalização neoliberalizante traz em seu bojo a passagem de um Estado intervencionista, o qual produz bens e serviços e controla os ciclos econômicos, para um ator estatal que transfere ao mercado grande parte de suas atividades, afastando-se muito também do papel fiscalizatório.[9] Como o mercado não é uma força isenta, ocorre é a transferência para o setor privado de várias tarefas que poderiam requerer um olhar social, o que é agravado quando poucas imposições existem para que à lógica do lucro some-se a do interesse público. Na sociedade contemporânea globalizada o Estado segue favorecendo o particular, através da legislação desregulamentadora e privatizações, que atendem o poder econômico.

A exacerbação da globalização não elimina todas as funções do Estado, que permanece uma entidade viva, capaz de contemplar interesses. Agora são impostos deslocamentos ao Estado, o qual mais diretamente relaciona-se e é influenciado por organismos e objetivos externos à realidade nacional, que necessariamente devem ser considerados no processo de tomada de decisões. Mas o Estado não é a “vítima” do processo de globalização, pois concordar com isso significa não ver seu caráter de classe e seu papel nesta fase da transnacionalização do capitalismo.[10] Com isso, assinala-se que, reconfigurado, o Estado mantem-se como um organismo produtor de sentidos no jogo capitalista contemporâneo.

A batalha do cabo

A chegada da TV paga no Brasil poderia ter ocorrido cerca de 15 anos antes, o que só não se concretizou devido à pressão política e econômica de empresas da área de equipamento e das grandes redes de televisão aberta sobre os governos militares. Assim, em 1974, o ministro das Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira, negou-se a autorizar a implantação de um projeto piloto de TV a cabo, que visava desenvolver tecnologia nacional e estudo sobre seu impacto social. A negativa ocorreu porque autoridades do Ministério das Comunicações já haviam preparado um regulamento para o serviço, junto com alguns empresários de radiodifusão, que desenvolviam projetos para várias cidades.[11]

Como a articulação foi denunciada, a tentativa de implantar televisão a cabo por decreto foi suspensa, no Governo Ernesto Geisel, transcorrendo outras manobras no Governo João Figueiredo. Até esse momento o Estado colaborou com os interesses particularistas da indústria midiática e de equipamentos não fazendo, ou seja, não implantando a TV a cabo no sentido proposto por entidades da sociedade civil e mesmo efetivamente não permitindo o ingresso dessa modalidade de transmissão televisiva no país, já que de certa forma era temido seu efeito sobre a televisão aberta, preocupação, aliás, comprovada pertinente, considerando-se a lógica empresarial, já que hoje há uma grande migração de audiência de uma para outra.

A participação estatal só mudou para o rumo do fazer, melhor dizendo, permitir que se implantasse a TV a cabo, no Governo José Sarney. Mesmo assim a ação foi mais na criação de precedentes e situações de fato, que desembocaram na regulamentação por portaria ministerial. A  portaria nº 143, de 21 de junho de 1988, do Gabinete do Ministro das Comunicações, estabelecia o “Serviço de Recepção de Sinais de TV via Satélite e sua Distribuição por Meios Físicos a Usuários”, permitindo, na prática, o início da televisão a cabo no país, sem discussão pública, nem enquadramento legal entre os serviços de radiodifusão ou de telecomunicações, embora podendo utilizar-se da infra-estrutura de serviços públicos.

Quatro empresas implantaram redes de cabo com base nessa portaria, recebendo facilmente autorizações. Para fornecer um instrumento que propiciasse maior segurança aos empresários, outra portaria foi editada no Governo Sarney, a de nº 250, de 13 de dezembro de 1989, assinada pelo ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, viabilizando o serviço “Distribuição de Sinais de TV por Meios Físicos - DISTV”, que ainda não permitia geração própria de programas. No Governo Collor, além do reconhecimento das autorizações liberadas com base na portaria nº 143 como sendo de DISTV, ocorreram, entre novembro de 1990 e julho de 1991, 98 outorgas, prevalecendo concentrações vertical e cruzada.[12]

Uma característica do primeiro tempo da televisão paga no país é que muitos grupos que se propunham e eram autorizados a instalar as redes não eram corporações tradicionais da área áudio-visual. O Estado contribuiu com a iniciativa privada através da criação de um fato irreversível e consumado, um amparo jurídico que, não sendo submetido à discussão pública, permitiu a outorga de autorizações de operação de televisão a cabo de forma bastante simplificada, não estabelecendo obrigações, como transmissão de produtos de interesse público. Para receber uma autorização, bastava atender dois requisitos, apresentar os atos constitutivos da empresa e um projeto; ganhava quem chegasse primeiro.[13]

Com a Lei do Cabo, muda o processo de outorga, os critérios para a distribuição de concessões e a responsabilidade dos beneficiados. Mas essa evolução só ocorreu por pressão da sociedade civil, de forma que, pelo Executivo, o texto legal sobre televisão a cabo também seria num caminho de maior facilidade aos grupos de comunicação, novamente convergindo objetivos. Publicada através da Portaria nº 51, de três de junho de 1991, a prosposta de norma de TV a cabo definia-a como serviço especial, equiparando-a a atividades como transmissão de sinais horários. O pretendido era regulamentá-la via portaria, que não passa pelo Congresso.

Foi a partir da convocação de audiências públicas, uma prática, aliás, instituída pelo conturbado e abreviado Governo Fernando Collor, que o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação passou a articular vários setores sociais em busca de uma lei de TV a cabo democrática, pois a proposta não atendia os interesses públicos, na medida em que excluia a União, os estados, os municípios, as fundações e as universidades do direito de explorar o serviço, permitia o controle de até 44 operações, não restringia a propriedade cruzada e autorizava o Minicom a encaminhar decisões sem licitação e cassar autorizações.[14]

O Fórum centrou sua ação em torno de três conceitos, controle público, desestatização e reprivatização (após modificado para rede única, rede pública e participação da sociedade), propondo a definição da televisão a cabo como serviço de telecomunicações, a criação de um Conselho Federal de Cabodifusão e a existência de canais gratuitos e de livre acesso, o que foi traduzido em um projeto de lei, apresentado ao Congresso Nacional em 30 de outubro de 1991, pelo deputado Tilden Santiago (PT/MG). O projeto foi um marco na mudança de relações, pois em torno dele Estado, empresários e entidades da sociedade civil tiveram que discutir publicamente, buscando acordos e fugindo da regra de acertos privados.

Convergência e concentração

O resultado da negociação, a Lei nº 8.977, de seis de janeiro de 1995, é um documento que distoa da tradição brasileira de parceria entre dois únicos atores, Estado e empresariado, por isso trazendo inovações de interesse social, como a idéia de canais de acesso público e institucionais. Esse texto legal determina que as operadoras de TV a cabo utilizem as redes de transporte das companhias de telefonia, infra-estrutura construída pelo Estado e, quando a lei foi promulgada, ainda de sua propriedade. Mas isso não representa uma contribuição estatal semelhante às concedidas pelos governos militares às corporações de televisão aberta, nos anos 60 e 70, como a construção do sistema de microondas para transmissão nacional.

No caso do cabo, a infra-estrutura já existia e a decisão de rede única para telefonia e TV deve-se principalmente à insistência das entidades da sociedade civil, que temiam a viabilização de malhas para concorrer com as então operadoras estatais de telecomunicações. Hoje essa preocupação perde sentido, na proporção que a Telecomunicações Brasileira S. A. (Telebrás) foi privatizada e ainda haverão segundas redes, a serem desenvolvidas pelas futuras autorizadas, as chamadas empresas-espelho. A convergência tecnológica e de serviços, somando-se grupos das áreas de provimento de acesso à Internet, de distribuição de serviços de base telefônica e de fornecimento de televisão a cabo, é um caminho que o país vai trilhar.

O fornecimento dos três serviços por uma mesma empresa e via uma única rede encontra empecilho legal, mas deve ser atenuada pela Lei Geral de Comunicação de Massa, em tramitação no Congresso e é uma trilha admitida pelo próprio órgão criado para fiscalização do setor, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). No entanto, mais do que leis desconectadas ou eventuais redes de banda larga desarticuladas, o que falta ao Brasil, na área de telecomunicações, é uma política definida e própria, que considere o processo de globalização, o qual sugere proposições concatenadas com vários imperativos, inclusive dos blocos regionais, mas não deixe de priorizar os interesses sociais.

Na verdade, a idéia de rede única nunca funcionou totalmente, tanto que muitas operadoras de cabo construíram redes de transporte próprias, para transmissão de imagem e áudio televisivos. Essas redes poderão ser locadas às autorizadas que vão competir com as atuais teles, as quais, nesses casos, não precisarão construir novas redes.[15] Isso esbarra na Lei do Cabo, a qual estipula que as redes instalaladas pelas operadoras deverão ser utilizandas exclusivamente para prestação de serviços de televisão a cabo.[16] Contudo, esse impedimento deve ser derrubado logo e a Anatel tem anunciado uma postura permissiva, pois empresários e Estado mostram-se estimulados pelas possibilidades da convergência.

Diante disso, outra barreira legal, a determinação da Lei do Cabo de que concessionária de TV a cabo deve ter como atividade principal a prestação desse serviço, igualmente deverá ser eliminada. Assim, um grupo que detém operadora de televisão a cabo também poderá atuar como autorizado de telecomunicações. Enquanto isso não ocorre, a montagem de estruturas societárias diferentes permite que um mesmo grupo opere televisão a cabo e telecomunicações, via uma mesma rede. No caso das empresas de telecomunicações já existentes, o contrato de concessão reitera a Lei do Cabo, estipulando que quem for concessionário de telefonia fixa não pode ser de TV a cabo. Mas está clara a intenção da Anatel de alterar este dispositivo.

Já o provimento de acesso à Internet mediante rede de cabo, considerado um serviço de valor adicionado, ainda não tem uma posicão final da Anatel. Quando isso for permitido, o que é uma tendência, até porque os empresários de televisão a cabo estão pressionando a Anatel, e essa articulação costuma presentar resultados positivos, o cruzamento de serviços poderá desenvolver-se de duas formas.[17] Isso poderá efetuar-se com a operadora de TV a cabo cedendo parte da capacidade da rede para outra empresa, proprietária do provedor, ou criando seu próprio provedor, em um e outro caso dependendo das liberações legais semelhantes às da telefonia, da rede e de que uma concessionária de cabo detenha outra empresa.[18]

A idéia de rede pública possibilita o acesso de qualquer interessado ao sistema de transporte de TV a cabo, um grande passo democratizante, num país onde os proprietários dos veículos sempre limitaram a participação na programação da mídia. Isso é viabilizado através dos canais de acesso público e da destinação de 30% do limite da rede para produtos não ligados à operadora. Ressalva-se que a aprovação da Lei foi demorada, basicamente devido a ações protelatórias do Minicom e dos empresários, já que a situação beneficiava-os, pois criava uma condição de fato, onde autorizações de DISTV, tecnologia que visava unicamente a melhoria da recepção dos sinais da televisão aberta, eram utilizadas como TV a cabo.[19]

A concentração da propriedade é uma tendência mundial que se repete no Brasil e, apesar das tentativas do Fórum, na Lei do Cabo não foi limitada. Único diploma restritivo, a Norma complementar do serviço de TV a cabo, nº 13/96, é favorável aos empresários, pois não coloca termo à propriedade cruzada e só contabiliza, para estabelecer um máximo de concessões, áreas sem concorrência, o que vai acabar nas grandes cidades. Já os editais de televisão a cabo publicados em 1997 (para 144 cidades), os quais lançaram preços baixos às licitações, determinaram perda de pontos aos grupos que atuam em várias mídias, dentro e fora da área de concessão, gerando ações judiciais, que estão atrasando o fim do processo.[20]

Quanto às outras tecnologias de TV por assinatura, nem nos editais de MMDS (para 92 cidades), lançados com os do cabo, há limitação à concentração,. A conseqüência do processo inicial de distribuição de autorizações, das lacunas da legislação atual e da não-restrição à venda de outorgas é que o Grupo Globo, principal corporação de televisão aberta, é também o líder em toda a cadeia econômica de TV paga, atuando como produtor, programador, distribuidor e operador. A posição da Globo só não será ampliada a partir das novas outorgas porque essa corporação retirou muitas de suas propostas, atitude igualmente tomada pelo grupo Abril e os consórcios Latinvest, Opportunity e Tecsat/Tectelcom.

Como resultado da concentração de poder em empresas que já detinham posições de lideranças em outros negócios midiáticos, a segunda corporação mais forte de televisão por assinatura é um conglomerado que também já exercia atividade na área cultural e com posição proeminente, o grupo Abril, que, vindo do setor de publicações, está, a exemplo da Globo, presente em todos os momentos do processo da TV paga. Essas corporações dominam o negócio da televisão por assinatura, detendo autorizações ou fornecendo programação para outras operadoras, as quais se tornam suas afiliadas. A concentração agrava-se quando envolve meios de comunicação, sendo seu papel central na estruturação do viver contemporâneo.

Ao mesmo tempo, não há como negar que houve avanços, consubstanciados na Lei do Cabo, o que reforça a idéia de que a discussão pública entre múltiplos atores é o caminho para privilegiar o interesse público. Quando saiu-se do círculo restrito Estado-empresários, dentre outros pontos positivos, ganhou-se um processo licitatório com quesitos objetivos de julgamento. Todavia, o avanço no campo das comunicações é anterior à Lei do Cabo, remetendo-se à Constituição Federal de 1988, que acabou com o livre arbítrio do presidente da República sobre a outorga de concessões de TV aberta, que precisam passar pelo Congresso, e determinou que canais de radiodifusão só podem ser cassados mediante decisão judicial.

No entanto, até pequenos impulsos democráticos, como o que partilha a decisão sobre concessões de televisão aberta e rádio com o Legislativo, podem acabar, se aprovada emenda constitucional em tramitação. Constata-se que a participação do Parlamento na tomada de decisões colabora para que se saia do círculo de decisões empresários-Estado, já que aquele poder é mais aberto à demanda externa, mas não há uma garantia de que resultarão medidas de proveito público, pois a composição do Congresso tende a ser conservadora. Assim é que a maioria das leis acolhe os propósitos concentradores da iniciativa privada, até porque, na conjuntura atual, é difícil ampla mobilização contra medidas que sigam a cartilha neoliberal.

Mesmo na Lei do Cabo, considerado o instrumento sobre comunicações mais democrático do Brasil, a iniciativa privada foi quem mais ganhou. Evelin Maciel, que estudou todos os passos que envolveram a elaboração desse instrumento, raciocina nesse sentido, embora considere-o um avanço democrático considerável. Para ela, os empresários foram os que mais conseguiram impor suas preferências aos demais agentes, mantendo sua posição de ator privilegiado no jogo de poder e, desta forma, vencendo em praticamente todas as principais disputas, como a propriedade da rede física, a ausência de restrições à concentração de operações e a transformação das autorizações de DISTV em concessões de TV a cabo.[21]

Sem discussão

Antes de legislar sobre cabo, o Governo regulamentou, sem discussão, via o decreto nº 95.744, de 23 de fevereiro de 1988, o “Serviço Especial de Televisão por Assinatura (TVA)”, tratando de transmissões por UHF codificado e satélite,[22] estabelecidas como serviços especiais, equiparadas ao de sinal horário, sem correspondência pública. A falta de dicussão chegou à regulamentação da modalidade de televisão paga MMDS,[23] inicialmente criada como “Canais para Sistema de Circuito Fechado de Televisão com Utilização de Radioenlace (CFTV)”, pela portaria nº 41, de nove de fevereiro de 1994. A regulamentação como MMDS ocorreu imediatamente, por meio da portaria nº 43, de 10 de fevereiro de 1994.[24]

A regulamentação do MMDS e do DTH é totalmente liberal, não havendo limite à concentração da propriedade ou necessidade de transmissão de canais públicos. Como portaria não é considerada instrumento adequado para regulamentação desse serviço, pois ele ser análogo à radiodifusão, em 1996 o texto que trata de MMDS foi alvo de ação direta de inconstitucionalidade, pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), sem sucesso. Antes foi tentada, igualmente sem êxito, como ocorreu com o cabo, sua regulamentação através de lei, por intermédio do projeto da deputada Irma Passoni (PT/SP), nº 156/95, que resultou no substitutivo do deputado Nilmário Miranda (PT/MG).

Murilo Ramos denuncia que o círculo restrito e coincidente de políticos, burocratas e empresários  foi o responsável pelas decisões constituidoras do mercado de TV por assinatura no Brasil:

“Assim, nesse emaranhado de siglas retiradas de obscuras portarias e decretos gestados na intimidade da relação entre políticos com interesses diretos no negócio, empresários associados direta ou indiretamente a esses interesses e a tenoburocracia ministerial, estava a base técnico-normativa para profundas alterações estruturais na economia-política dos meios de comunicação de massa no Brasil. Siglas novas dando ares de modernidade aos velhos modos oligárquicos de se fazer política nas comunicações brasileiras”.[25]

Neste rumo, a obtenção de permissão para o serviço de DTH era automática, uma falta de controle do público sobre o privado autorizada pela portaria nº 230, de 1991, que foi revogada pela portaria nº 281, de 1995. Mas as exigências seguem mínimas, de forma que a Anatel tem liberado todas as autorizações de DTH solicitadas, visando impedir a estruturação de um mercado de venda de operações. As obrigatoriedades são basicamente iniciar a operar em 24 meses e pagar R$ 470 mil. Os consórcios DirecTV e Sky nem pagaram. Através das portarias nº 88 e 89, de 23 de abril de 1996, o direito que os grupos TVA e NetSat, integrantes de um e outro consórcio, respetivamente, detinham de explorar DBS foi estendido ao DTH.

Esses privilégios do Estado à obtenção de permissão de DTH são confirmados pela norma nº 008/97. Por ela, é criado o Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura via Satélite (DTH) como modalidade de serviço especial, ficando estabelecido que as entidades interessadas em sua exploração deverão apresentar requerimento para obter permissão, podendo haver publicação de edital. O Regulamento dos Serviços Especiais, que trata, dentre outras tecnologias, de duas que envolvem TV paga, MMDS e DTH, da mesma forma consagra princípios não-restritivos à atuação empresarial, como a cobrança pelo direito de exploração, processo simplificado de outorga e irrestrições ao capital estrangeiro.[26]

O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação tentou regulamentar o DTH através de lei, o que permitiria a ampla discussão de suas bases, através de um espaço de manifestação democrática como o Congresso Nacional. Mas, demonstrando como o caso do cabo foi isolado e de difícil reprodução, o projeto de lei do apresentado pelo deputado Jacques Wagner, em 23 de julho de 1996, não obteve apoio para discussão nem pelo Estado, envolvendo Executivo e maioria legislativa, nem pela iniciativa privada. Atente-se que a impossibilidade foi de sua tramitação efetiva, a exemplo do MMDS, ou seja, a proposta parou antes de chegar ao debate sobre seu conteúdo, quando poderia ser emendado.

Espaços privados

Além da possibilidade de operação de sistemas de televisão por satélite, atualmente o capital privado pode também atuar na exploração direta de um satélite. É o Serviço de Transporte de Sinais de Telecomunicações por Satélite (STS), tratado na Lei Mínima, de 18 de junho de 1996,[27] que organiza alguns serviços de telecomunicações. Essa Lei também é liberalizante, não restringindo a participação de corporações transnacionais, apesar de permitir (não obrigar) que, até metade de 1999, o Executivo limite essa presença a não mais que 49% do capital votante. A Lei nº 9.285, de 19 de julho de 1996, que institui o serviço, o Regulamento e a Norma do STS mantêm o mesmo princípio de exigências mínimas.

Esses instrumentos revelam-se menos plurais do que a Lei do Cabo por não terem sido discutidos com a sociedade. Outra medida que somaria para a democratização das decisões envolvendo as mídias seria a instalação do Conselho de Comunicação Social, criado pelo artigo 224 da Constituição Federal, instituído pela Lei nº 8.389, de 30 de dezembro de 1991, e a maior vitória na Constituinte da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação, entidade que originou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, desencadeador da Lei do Cabo. Embora o Conselho ainda não tenha sido instalado e, por isso, não atrapalhe os empresários, uma emenda constitucional está propondo sua extinção.

A falta diálogo público foi levado ao máximo na tramitação da Lei Geral de Telecomunicações, de nº 9472/97. Como a discussão ficou restrita ao Minicom, que apresentou um projeto pronto ao Parlamento, estabelecendo um prazo de apenas três meses para votação, acabaram sendo beneficiados os grupos que tradicionalmente relacionam-se com o Estado facilmente. Essa lei, que, em grande parte, substitui o Código Brasileiro de Telecomunicações, além de criar a Anatel, a responsável, agora, pela legislação e outorga na área de telecomunicações, consagra que concessões, autorizações ou permissões serão sempre a título oneroso, trocando-se o critério político por outro, do puro poder econômico.

A Lei Geral ratifica que o MMDS e o DTH devem ser outorgados sem prazo determinado e mediante autorização, um processo simplificado, e abre caminho para que, na Lei de Comunicação de Massa, a TV a cabo receba o mesmo tratamento, o que facilita muito a agilização de negócios diretamente junto às instâncias estatais. Isso ocorre devido à classificação dos serviços de telecomunicações, quanto ao regime de sua prestação, em públicos e privados, este o caso da televisão a cabo. Pior ainda: sendo de regime privado, não há qualquer limite ao número de autorizações, o que já ocorre com o DTH e o MMDS.[28] Reflexo dos tempos globalizados, a Lei Geral não estabelece limites ao capital estrangeiro.

Se vingarem os propósitos do Executivo e dos empresariado de televisão por assinatura, a Lei de Comunicação de Massa, que possivelmente será votada e sancionada em 1999, deve retroceder todos os avanços obtidos pela Lei do Cabo. Devem acabar, quanto ao cabo, conquistas como a exigência que 30% dos canais tecnicamente disponíveis sejam reservados a terceiros e as restrições à participação do capital estrangeiro, sendo liberalizadas de direito a construção e utilização das redes de tranporte, facilitando a convergência. A necessidade de universalização do serviço deve acabar, materializando-se todos os retrocessos previstos na Lei Geral, com a passagem da TV a cabo ao serviço de regime jurídico privado.

Mas a descaracterização da Lei do Cabo começou com sua regulamentação. Assim, o Regulamento do Serviço de TV a cabo, decreto nº 1718, de 28 de novembro de 1995, deu aos concessionários da tecnologia o direito de prestar atividades como informações tecnológicas, home banking e home shopping, e instalar redes físicas próprias, caso as teles não ofereçam, quando a lei permitia só segmentos, e excluiu da definição de coligada empresas que vendem programação à operadora, facilitando aos empresários o preenchimento dos canais reservados a terceiros, benefício também presente, através de diferentes artifícios, na Norma nº 13/96,[29] complementar do serviço de TV a cabo, e no seu  Regulamento  de 1997, o decreto 2206.[30]

No entanto, existem propostas que pretendem liberalizar ainda mais o negócio do cabo. O projeto de lei do deputado Luiz Moreira (PFL-BA), de 29 de fevereiro de 1996, propõe o reconhecimento dos contratos firmados entre empresas estatais de telecomunicações e particulares para explorar TV a cabo através de suas redes físicas[31] e a supressão da exigência de que o inoperante Conselho de Comunicação Social seja ouvido sobre normatização do setor. Outro projeto de lei, o de nº 1.562, do deputado Wellinton Fagundes (PL-MT), apensado ao de Moreira, propõe a equiparação das prestadoras de televisão a cabo em comunidades fechadas, constituídas até o final de 1993, aos operadores de DISTV.[32]

A confluência empresário-Governo é tanta que o presidente da Anatel, Renato Guerreiro, em 25 de junho de 1998, durante o lançamento da Feira e Congresso de TV por Assinatura (ABTA’98), no Hotel Intercontinental, em São Paulo, sugeriu que a entidade fizesse levantamentos das regiões onde há maior carência de investimento no setor de televisão paga para orientar seu trabalho. Na ocasião, também propõs que a ABTA passasse a denominar-se Associação Brasileira de Comunicação por Assinatura, o que demonstra incentivo e permissão à convergência (a opção foi alterar para Associação Brasileira de Telecomunicações por Assinatura, não acarretando mudança de sigla).[33]

Conjugação de interesses

A título de iluminação do período atual, vale recordar brevemente que na consolidação da TV aberta nacional a participação do Estado foi muito efetiva. Isso ocorreu principalmente entre 1964 e 1975, durante a “Fase Populista” da televisão brasileira, e subsidiariamente de 1975 a 1985, ao longo do momento seguinte dessa tecnologia no país, o do “Desenvolvimento Tecnológico”.[34] Sem dúvida, a principal contribuição do Estado ao empresário da indústria midiática foi a criação de estruturas para transmissões nacionais, o Sistema Nacional de Telecomunicações (SNT), composto pelas rotas de microondas e os satélites de propriedade do Estado, sem o qual as emissoras de televisão continuariam sendo locais.[35]

O Estado também participou do processo de implantação de TV a cores, em 1972, e forneceu todo um conjunto de instrumentos regulamentadores da atividade midiática, criando organismos como o Ministério das Comunicações e a própria Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), privatizada em julho de 1998, o que forneceu segurança para a implementação de investimentos. Nesse período, o governo ditatorial promoveu uma ampla distribuição de verbas publicitárias públicas e incentivou as grandes corporações, notadamente aquelas do segmento financeiro, a investirem comercialmente na televisão, além de outorgar concessões de TV (e de rádio) a organizações confiáveis, sem licitação.

A coligação de interesses entre empresários da mídia eletrônica e Estado tem sido tão forte que, segundo Sérgio Mattos, o desenvolvimento da televisão brasileira está diretamente ligado ao movimento militar que assumiu o controle do país em 1964, através da infra-estrutura criada pela ditadura e pelo projeto econômico implantado, trazendo embutidas a industrialização e a urbanização, que impulsionou a publicidade e aumentou a renda per capita. Ele entende que o desenvolvimento técnico e qualitativo da TV ocorreu porque o meio, além de ter sido beneficiado pela situação social, política e econômica do país, recebeu incentivo direto do governo, que estava preocupado com o conteúdo e qualidade de sua programação.[36]

Os governos militares, por seu turno, também valeram-se da mídia para pregar uma nova ordem sócio-econômica-cultural, modernizante, ligada à Lei de Segurança Nacional e aos Objetivos Nacionais, firmados pelo Conselho Nacional de Segurança, tendo a Escola Superior de Guerra (ESG) como provedora. Melhor dizendo, a TV, preponderantemente a Rede Globo, colaborou nos projetos governamentais de crescimento econômico, incentivando o consumo, e de integração do país, transmitindo para todos os estados uma programação única e simpática aos militares. A criação do “Jornal Nacional”, pela Globo, em primeiro de setembro de 1969, veio ao encontro do projeto ditatorial de integração.

Vendo cultura e estrutrura estatal imbricadas desde o Estado Novo, Renato Ortiz considera que essa relação permanece, mas de forma sensivelmente alterada, no pós-64, identificando o processo de racionalização, manifestado sobretudo no planejamento das políticas governamentais (em especial a de cultura), mais do que uma técnica de organização, correspondendo a um momento de desenvolvimento do capitalismo brasileiro.[37] Ressentido de uma política cultural legitimadora, o Estado ditatorial travestiu seu papel no capitalismo internacional e partiu para um discurso de afirmação da nacionalidade, usando principalmente a televisão, ao lado de outros instrumentos, para a “defesa” da identidade e memória nacionais.

Os militares controlaram os meios via censura - agravada com o Ato Institucional nº 5, de 1968, e estimuladora da auto-censura - ao mesmo tempo em que não cassaram a Globo, apesar do recebimento ilegal de dólares do grupo norte-americano Time-Life,[38] daí originando a denominação do período, por Sérgio Caparelli, como de “Internacionalização do Mercado”, correspondente à norte-americanização da televisão.[39] Assim, a televisão firmou-se como indústria, incorporando-se ao cotidiano. O barateamento dos televisores e a possibilidade de crediário foram fatores que contribuíram para o aumento da presença da TV, que, como meio difusor de idéias e comportamentos, teve sua influência discutida e protestada.

No período militar, a relação Estado e iniciativa privada conquistou novos espaços, inclusive comissões consultivas, com a participação de empresários, muitas vezes, na posição de líderes de prestígio, não na qualidade de representantes de classe. Esse relacionamento não raro conduziu a uma subordinação do público ao privado. Tanto que, já na “Fase do Desenvolvimento Tecnológico”, marcada pela gradual perda de hegemonia da ditadura, o Estado seguiu estimulando a indústria televisiva, agora para a nacionalização da programação, sendo os enlatados substituídos por produções brasileiras com incentivos e créditos oficiais, numa confluência dos interesses expansionistas dos empresários e nacionalistas dos militares.

Essa coincidência remete a uma identidade comum na base de dominação do Estado, devendo-se recordar a participação do empresariado, particularmente da cultura, no processo de tomada do poder pelas Forças Armadas. Embora possam topicamente ter divergido, como em determinados episódios de censura, globalmente as posições do Estado e dos empresários coincidiram (e coincidem), tanto que, em 1973, TVs Globo e Tupi assinam um protocolo de autocensura, procurando controlar o conteúdo de suas programações.[40] Desta forma foi possível, mesmo num momento onde a força era um mecanismo muito presente, a articulação da hegemonia, onde o desempenho dos bens simbólicos foi - e continua sendo - preponderante.

Considerações conclusivas

O estudo da regulamentação da televisão paga traz à cena um conjunto de textos que poucas obrigações sociais impõe às corporações, denotando relações político-institucionais marcadas pela larga influência do poder econômico. Falta à legislação sobre TV por assinatura uma verdadeira pretensão regulamentadora, de estabelecer ao privado imposições favorecedoras do público, independentemente do estatal. É na arena regulatória que o empresariado tem buscado obter ganhos que beneficiem seus negócios, o que é facilitado porque os espaços de articulação via de regra mostram-se pouco pluralistas. Não há, portanto, a suposta neutralidade do Estado, que seria delineada pelos imperativos da globalização.

Sempre coube ao Estado fornecer infra-estrutura legislativa que permitisse o melhor funcionamento do mundo dos negócios, o que é presumível, sendo a sociedade capitalista. A diferenciação trazida pelo atual momento é que, por um lado, progressivamente a máquina estatal deixa de construir infra-estrutura física, repassando muitas obrigações ao privado, sob alegação de que o serviço será universalizado. Por outro, a legislação cada vez menos objetiva controlar o mercado, postura que também era presumível, imaginando-se que capitalismo pode coexistir com um mínimo de amparo, inclusive às situações de gritante desequilíbrio. Ou seja, o suporte legal hoje editado impõe menos restrições à ação do particularismo.

A televisão paga tem sido regulada dentro de uma lógica de desregulamentação, pois a idéia é facilitar a atuação do particular e não exercer um real controle do público sobre o privado. Há uma multiplicidade de vinculações e interpenetração de interesses entre Estado e empresários que só são redimensionados pela configuração atual da globalização, mas não extintos, pois tal ligação, identificada já na inauguração da industrialização nacional, nos anos 30, integra o ente estatal, remontando à sua origem. Dominado pelas elites, o Estado, no capitalismo, ao legislar - ou decidir em geral - em benefício do poder econômico, está atuando no senso da lógica do sistema, evidentemente de proteção e tutela do detentor do capital.[41]

No entanto, também deve-se considerar que há possibilidades de fugir do esquema de decisões envolvendo somente dois agentes, como ocorreu com a Lei do Cabo. Para isso a sociedade civil teve que efetivamente pressionar o Executivo, no sentido de que suas demandas repercutissem e fossem levadas em consideração, ampliando a discussão, o que foi possível por ser um tempo diferente daquele da ditadura militar, onde qualquer tentativa de denúncia de privilégio era violentamente reprimida.[42] No caso do cabo, as consultas e audiências públicas institucionalizadas pelo Governo Collor, importantes canais de participação política, foram transformados pelo Fórum no lugar de estruturação das propostas não-hegemônicas.[43]

A Lei do Cabo teve a especificidade de ser elaborada num momento de maior permeabilidade à participação da sociedade, não por interesse dos governantes, mas pelo contexto pós-eleição do primeiro presidente da República eleito pelo voto direto depois de quase 30 anos, ainda marcado pelos ares participacionistas legados pelo processo constituinte. Avanços como o consubstanciado na Lei do Cabo e em outros dispositivos esporádicos verificam-se porque a dominação do Estado pelas elites econômicas não é uma relação direta e isolada. As decisões políticas devem buscar incoporar anseios de outros grupamentos, para que a hegemonia seja construída, sendo ela indispensável para a obtenção do consenso.

Sem a incoporação de proposições de grupos heterogêneos na elaboração/exercício da hegemonia seria iniviável a manutenção no poder de elites oriundas e coadunadas com interesses minoritários. Isso ganha corpo num ambiente de renovação dos mandatários por voto direto, como na maioria dos Estados de hoje. Além disso, no período atual de democracia verifica-se uma fragmentação das estruturas decisórias, estando as instâncias formais de poder mais permeáveis aos vários grupos de pressão, não somente aqueles econômicos. Outros fatores que influenciam o processo é que as agências burocráticas acabam somando interesses próprios, podendo haver choques e tentativas de vôos autônomos, em dadas circunstâncias.

Pode-se abrir brechas no sistema, mas a colaboração entre Estado e grupos econômicos está em sua base. Mesmo a Lei do Cabo está longe de contemplar os interesses inicialmente propostos pelo Fórum, o que é natural, diante da negociação. Apesar disso, nunca mais foi viabilizado um resultado tão positivo, em termos sociais, como o da Lei do Cabo, considerando-se textos legais anteriores e posteriores à sua edição. O acesso do empresariado às instâncias decisórias por portas próprias atrasou o início da televisão por assinatura no país e legou uma legislação permissiva, dominada por portarias e decretos, que praticamente não estabelece limites à concentração da propriedade e à presença do capital estrangeiro.

Nesse quadro, até a maioria das limitações impostas pela Lei do Cabo tende a seguir essa tendência liberalizante, devido a mudanças da legislação. A alteração no espírito da Lei do Cabo começou pelos regulamentos e a norma e deve ser ultimada com a votação e promulgação da Lei de Comunicação de Massa, no próximo ano. As modificações legislativas aliadas à permeabilidade da Anatel aos interesses empresariais permitem que se vislumbre um futuro de convergência e concentração no país. Essas decisões atendem preferencialmente interesses do grande capital nacional aliado ao transnacional, já que a convergência é atualmente uma das princípais áreas de inversão econômicas, em todo o Planeta.

Antonio Albino Canelas Rubim salienta os motivos que endossam a premência de que se construam novas formas de incorporação de interesses e de decisões institucionais no país, tratando da especificidade da comunicação:

“Deste modo, as comunicações adquirem importância estratégica para a luta política hoje. Primeiro, pela necessidade do movimento político-social dirigir e ser dirigido por suas bases, mantendo, para isto, íntima e continuada interlocução (comunicação) com seus membros e, assim, consubstanciando sua força interna. Segundo, porque, no horizonte contemporâneo, importa cada vez mais conquistar - através das comunicações - o apoio de diferenciados setores sociais, colocando-se de modo satisfatório na dimensão pública societária, engendrada pela mídia. As comunicações devem ser acionadas, portanto, nestas direções essenciais da luta política na atualidade”.[44]

A regra geral do poder econômico fazer prevalecer sua vontade tem sido uma constante em todo o setor de telecomunicações brasileiro. No caso do desenvolvimento da televisão aberta brasileira, a participação do Estado foi possivelmente mais intensa, tendo em vista os arranjos de então, as décadas de 60 e 70, que permitiam o legado não só de legislação favorável, mas a viabilização de estrutura física. Tendo em vista a impossibilidade de questionamento público, num período ditatorial, e da atuação do Estado como empresário, o que era próprio, sobretudo, das sociedades de modernização tardia, as indústrias televisivas nacionais tiveram o auxílio direto de corporações públicas, como a Embratel.

Reforça-se que o mesmo empresariado que hoje prega Estado mínimo, desde que abrindo espaços para a maximização de seus lucros, foi beneficiado e contribuiu para o fortalecimento estatal do passado, quando este controlava, direta e indiretamente, os setores que consideravam chaves. O modelo brasileiro de TV paga televisão conduziu a que, emblematicamente, o principal grupo do setor fosse o mesmo da televisão aberta, representado pela Globo. Nos dois mercados há uma participação do Estado e os interesses empresariais são beneficiados, o que não implica impossibilidade de avanços democráticos, mas traduz uma imbricação de propósitos que melhor se viabiliza na contemporaneidade globalizada.

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[1] DINIZ, Eli. Crise, reforma do estado e governabilidade. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 18.

[2] DINIZ, Eli. op. cit. p. 13, 21.

[3] Evidentemente, não se trataram de concessões unilaterais do Executivo, que por sua conta e risco teria decidido democratizar suas decisões. A relativa ampliação da discussão foi um processo histórico de conquista, onde a redemocratização, com o fortalecimento da sociedade civil e do Parlamento, acabou refletindo-se nas deliberações de um governo que necessitava legitimar suas ações.

[4] Entre as 29 câmaras setoriais, somente uma, “papel e gráfica”, relacionava-se com as indústrias midiáticas. As câmaras setoriais contavam com a participação somente de empresários e trabalhadores (esses não em todos os momentos), sendo, por esse motivo, acusadas de corporativas. Continuaram faltando instâncias de agregação de alto nível, que fossem além dos interesses econômicos dos setores diretamente envolvidos.

[5] Ver GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro : Graal, 1978.

[6] Ver BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro : Ed. Graal, 1982.

[7] DINIZ, Eli. Empresário, Estado e capitalismo no Brasil: 1930/1945. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978.
p. 290-291.

[8] LINDBLON, Charles. Politics and markets. New York : Basic Books, 1977.

[9] Constata-se um fenômeno paradoxal, onde, ao mesmo tempo que o Estado tende a diminuir de tamanho, abstraindo-se de muitas atividades, que são absorvidas pela iniciativa privada, o Poder Executivo passa, em muitos países, por um período de concentração de poderes. Nesse sentido, em março de 1997 um grupo de notáveis juristas brasileiros lançou um manifesto denunciando o que considera “ameaça à ordem democrática representada pelo comportamento autoritário do Executivo federal” e conclamando a sociedade a buscar a reversão desse quadro, marcado por “desmedido fluxo” de medidas provisórias, “interferências indevidas” na eleição dos presidentes do Legislativo, “extremado empenho do Chefe do Poder Executivo na Emenda Constitucional da reeleição” e “desemoralização” do Judiciário. Ver MANIFESTO pela democracia. Jornal Abong, São Paulo, maio 1997. p. 8.

[10] ALMEIDA, Lúcio Flávio de. Entre o local e o global: poder e política na atual fase de transnacionalização do capitalismo. DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octavio; RESENDE, Paulo-Edgar (orgs.). Desafios da globalização. Petrópolis, Vozes : 1997. p. 178.

[11] A formulação do decreto foi impemeável, já que universidades e sindicatos tentaram participar do debate, apresentando sugestões e pareceres, mas isso não foi possível, ao contrário do que ocorreu com os setores empresariais, participantes privilegiados do processo. Ver HERZ, Daniel. A introdução das novas tecnologias de comunicação no Brasil: tentativas de implementação do serviço de cabodifusão - um estudo de caso. Brasília, 1983. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Faculdade de Comunicação, UnB.

[12] Concentração vertical é quando um mesmo grupo é proprietário de vários negócios de um mesmo meio, como o acúmulo de concessões de TV a cabo. Concentração ou propriedade cruzada é quando um mesmo grupo possui negócios em mídias diferentes, como televisão a cabo e emissoras de rádio. Uma corporação como a Globo concentra em todos os níveis. Como as portarias 143 e 250 não estabeleceram limites de autorizações por grupo econômico, do total de outorgas, 44% são controladas por oito empresas e, dessas, duas detém 24 autorizações. A concentração agrava-se tendo em vista que muitas outorgas recebidas por grupos que não atuavam no negócio da mídia foram após vendidas a outros ligados à comunicação. Ademais, algumas corporações que receberam autorizações no segundo lote já detinham emissoras de rádio e televisão.

[13] Foram visualizadas oito irregularidades e deficiências na Portaria nº 250, entre elas, além das citadas, a não previsão da abertura de licitação, através da qual os candidatos a operadores pudessem competir para a escolha do mais apto e o não estabelecimento de prazo de validade das autorizações. BRASIL. FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO. Dossiê caso TV a cabo. Brasília, 1991. (mimeo). p. 15-16.

[14] BRASIL. FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO.  op. cit. p. 27-32.

[15] As autorizadas também poderão locar redes das concessionárias de telecomunicações, que terão mais uma forma de receita, algumas concessionárias de energia elétrica e empresas que já tenham sua própria rede privada. Existem companhias de energia elétrica privatizadas que estão se estruturando para ampliar o leque de serviços, com interesse, principalmente, em telecomunicações, TV por assinatura, água e gás. O objetivo é se transformarem em empresas multisserviços, por meio de alianças estratégicas ou pela participação direta no capital dos novos negócios.  Como exemplo, cita-se a Escelsa, a companhia energética do Espírito Santo, que criou a Tvix e participa de 14 licitações para obter concessões de televisão a cabo. A Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte) inaugurou em setembro de 1998 seu denominado Tramo-Oeste, cobrindo 662 quilômetros do Pará com linhas de transmissão de energia, que também transportarão telecomunicação. O restante das fibras não aproveitado diretamente pela companhia será locado ao mercado para transmissão de voz e dados, atendimento a provedores de Internet e outras atividades ligadas às telecomunicações.

[16] Conforme anteriormente analisado, o primeiro regulamento do cabo abre possibilidade para inclusão de serviços como informações meteorológicas, home banking, home shopping e serviços interativos.

[17] O Conselho Diretor da Anatel ainda não chegou a uma conclusão pelo temor de, ao liberar a Internet no cabo, na prática estar mudando o modelo de duopólio proposto para as telecomunicações. A ameaça vem por meio da telefonia IP, uma tecnologia ainda em desenvolvimento, com uma série de limitações, mas que ganha importância caso esteja funcionando em redes de dados de alta velocidade.

[18] Desde novembro de 1997 vem sendo desenvolvida, em Brasília, uma experiência de acesso à Internet em alta velocidade por microondas (MMDS), o LinkExpress, da TV Filme. Amparado no fato da legislação definir o MMDS como serviço de telecomunicação de sinais diversos, diversamente da TV a cabo, restrita à transmissão de vídeo, o negócio não foi impedido pelo Governo Federal.

[19] Isso gerou várias batalhas judiciais, em diferentes estados da Federação. Por fim, as autorizações de DISTV foram reconhecidas pela Lei como operações de TV a cabo, mais uma grande vitórias dos empresários.

[20] A principal ação foi do Consórcio Cabo Brasil (SBT, Bandeirantes e Jornal do Brasil), ainda em tramitação. Apesar do descontentamento empresarial, a proposta de edital era mais dura, quanto a restrições à concentração, havendo, então, uma vitória empresarial na esfera preliminar de negociação. Especula-se também a possibilidade dos chamados “contratos de gaveta”, onde o grupo concorrente não seria o verdadeiro proprietário da concessão. Todavia, não há uma proibição da propriedade cruzada, podendo a perda de alguns pontos ser compensada em outros itens, o que não é difícil para conglomerados que reúnem corporações experientes no negócio midiático e com muitos recursos. Também ingressaram com ações judiciais contra os editais operadores de TV a cabo sem concessão, pois suas operações não foram levadas em consideração.

[21] MACIEL, Evelin. A globalização das comunicações e a Lei do Cabo no limiar de uma nova era. Brasília, 1997. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Departamento de Ciência Política, UnB. p. 133.

[22] O UFH codificado consiste em codificar a transmissão de um canal de UHF (Ultra High Freqüency, Freqüência Ultra Alta), de 14 a 69, a qual é decodificada na recepção. A transmissão televisiva por satélite envolveu inicialmente o DBS e posteriormente o DTH. O DBS (Direct Broadcasting System, Sistema de Emissão Direta) é provido por satélites de banda C (analógica), que são captados por antenas parabólicas de diâmetro entre 2,5 e três metros. O DTH (Direct to Home, Direto para Casa) transmite via satélites com banda Ku (digital), o que permite uma grande quantidade de canais e a recepção por antenas de cerca de 60 centímetros de diâmetro. BRITTOS, Valério. Televisão a cabo: funcionamento e desenvolvimento. Verso e Reverso, São Leopoldo, n. 24, p. 51-74, 1997. p. 4. Atualmente, a transmissão por satélite é genericamente denominada de DTH, que pode ser em banda C ou Ku, sistema já predominante.

[23] O MMDS (Multichannel Multipoint Distribution System, Serviço de Distribuição de Sinais Multiponto Multicanal) usando freqüências elevadas de microondas, de 2,5 a 2,7 GHz, transmite sinais codificados de uma antena central às instaladas do lado de fora das residências dos assinantes. BRITTOS, Valério. op cit. p. 5.

[24] As 12 permissões de CFTV foram rapidamente transformadas em autorizações de MMDS, que totalizam 15, até o resultado da atual licitação ser liberado.

[25] RAMOS, Murilo César. A TV por assinatura no Brasil: conceito, origens e perspectivas. Brasília : Universidade de Brasília, 1995. (mimeo). p. 14.

[26] Se atualmente verifica-se forte presença do capital estrangeiro diretamente em operações de televisão paga no Brasil, já na década passada era possível a captação de canais internacionais, via antenas parabólicas, por isso consideradas uma importante porta de entrada da globalização nas comunicações nacionais.

[27] Esse serviço também é brevemente citado na Lei Geral de Telecomunicações.

[28] Outra facilidade garantida ao empresariado, pela Lei Geral de Telecomunicações: o serviço de valor adicionado não é considerado telecomunicações, simplificando sua instalação. A Lei Mínima assegura a utilização da rede pública de telecomunicações a qualquer interessado na prestação desse serviço.

[29] Essa norma dificulta a atuação dos canais de utilidade pública, ao proibir publicidade, e cria algum limite à propriedade de concessões, mesmo que de forma bastante favorável à concentração, como já demonstrado.

[30] O Regulamento determina ainda que o julgamento de propostas para concessões leve em conta cronograma de disponibilização do serviço para o público, tempo mínimo destinado à programação regional e número de canais destinados a programas de caráter educativo/cultural além do mínimo.

[31] Foram cerca de 28 contratos assinados com empresas que não possuíam nenhum tipo de permissão pública para explorar o serviço de TV a cabo. Eles foram assinados durante o período de tramitação do projeto de Lei do Cabo, quando as concessionárias construíram redes físicas de banda larga, que transporta sinais de vídeo, estimuladas pela Telebrás, como forma de pressionar empresários a participar da negociação.

[32] Estas empresas atuavam em condomínios fechados, com base na Portaria nº 250, que criou o DISTV, já que, por oficialmente não terem fins lucrativos, não necessitavam de autorizações. Mas o interesse econômico prevaleceu e os limites dos condomínios foram ultrapassados, chegando a ser cabeadas cidades inteiras, como em Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte. O lobby desse grupo é organizado pela Associação Nacional dos Operadores de TV por Assinatura (Anota). A Norma nº 13/96 define o que é distribuição de sinais de TV em condominio fechado, proibindo interligação com quaisquer sistemas de telecomunicações. A equiparação favorece esses empresários porque o DISTV, por sua vez, foi igualado à TV a cabo.

[33] Diante do poder do empresariado da área midiática junto ao Estado, prevê-se impossibilidade de aprovação do projeto nº 3691/97, do deputado Salatiel Carvalho (PPB-PE), que propõe o fim da propaganda nos canais pagos. Trata-se de um paradoxo: por um lado, a manutenção da propoganda nos canais pagos é usada como argumento para que os preços cobrados ao receptor não sejam tão elevados; por outro, questiona-se se tal abertura tem beneficiado o consumidor. Tendo a propaganda invadido todos os setores, é difícil restringir sua atuação justamente na televisão, desde sua consolidação o grande ambiente publicitário da atualidade.

[34] Considera-se, neste caso, a tipificação da história da televisão brasileira proposta por Sérgio Mattos, que, numa abordagem sócio-econômico-cultural, identifica quatro períodos da tecnologia no país, o Elitista (1950-1964), o Populista, o do Desenvolvimento Tecnológico (1975-1985) e o da Transição e da Expansão Internacional (1985-1990). MATTOS, Sérgio. Um perfil da TV brasileira: 40 anos de história - 1950/1990. Salvador : Abap-BA/A Tarde, 1990. Este pesquisador acrescenta uma quinta fase ao desenvolvimento da TV brasileira, a da “Multiplicidade da Oferta”, aberta no início desta década e ainda em transcurso, marcada pela globalização, a variedade de canais e a concorrência. BRITTOS, Valério. A televisão no Brasil hoje: a multiplicidade da oferta. Trabalho apresentado no CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO (INTERCOM), 21, Recife, set. 1998.

[35] CRUZ, Dulce Márcia. Televisão e negócio: a RBS em Santa Catarina. Florianópolis : UFSC, 1996. p. 136.

[36] MATTOS, Sérgio. The impact of the 1964 Revolution on Brazilian television. San Antonio : Klingensmith Independent Publisher, 1982. p. 39.

[37] ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5.ed. São Paulo : Brasiliense, 1994. p. 80-81.

[38] A Globo recebeu investimento de US$ 5 milhões e assessoria, em várias áreas, do grupo Time-Life. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congresso Nacional considerou o acerto inconstitucional, mas o governo não cassou a concessão, dando um prazo para a regularização da situação, através do afastamento dos estrangeiros, o que ocorreu em 1969, sendo a dívida com o Time-Life liquidada totalmente em 1971. HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre : Tchê, 1987.

[39] CAPARELLI, Sérgio. Televisão e capitalismo no Brasil. Porto Alegre : L&PM, 1982. p. 30-32.

[40] ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 3.ed. São Paulo : Brasiliense, 1991. p. 120.

[41] O incentivo do Estado à iniciativa privada, mesmo na contemporaneidade, pode compreender outras formas, como a disponibilidade de financiamentos a taxas de juros especiais, a exemplo do oferecido pelo BNDES a um conjunto de setores da economia, dentre os quais o de TV paga, entre novembro e dezembro de 1997, que somou RS$ 18 milhões. Esses financiamentos, cuja análise não é objeto desta pesquisa, são oferecidos sob a alegação de que alavancam a economia e, ao fim, beneficiam toda a sociedade, gerando empregos, embora possa-se discutir o modelo ideal de distribuição de dinheiro público, objetivando o desenvolvimento social.

[42] O grande desafio hoje dos movimentos sociais é fazer com que suas posições repercutam socialmente, obtendo espaço junto às corporações midiáticas, que tendem a privilegiar as elites dominantes. Por isso, crescem espaços de comunicação alternativos, como sites na Internet e emissoras de rádio comunitárias.

[43] Nas consultas, a Secretaria Nacional de Comunicações, do Ministério da Infra-Estrutura, editava uma portaria determinando um prazo para que o interessados manifestassem-se via comentários escritos; nas audiências, também haviam reuniões abertas.

[44] RUBIM, Antonio Albino Canelas. Democracia e comunicação no Brasil. Salvador : Associação dos Professores Universitários da Bahia, 1996. p. 10.