Comunicação e cultura: o processo de recepção

Valério Cruz Brittos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

Introdução

Este estudo objetiva trabalhar a visão sobre comunicação que está sendo efetuada na América Latina, no que se refere ao processo de recepção, já que é crescente sua dimensão no universo acadêmico, principalmente neste momento de valorização do consumidor, o cidadão de hoje. A proposta centra-se nas relações entre comunicação e cultura, de forma que se abandona a linha dos conhecidos estudos de comunicação, caracterizados pela análise centrada unicamente nos meios, embora reconheça-se sua força na sociedade contemporânea.

CPomo conseqüência, há uma revisão do momento da recepção, priorizando-se as mediações, na busca de dar conta de toda a complexidade do processo. Para discutir-se essa virada latino-americana, este texto vai apresentar prioritariamente as proposições de Jesús Martín-Barbero, conectadas com outros autores, ressaltando-se a importância, para este eixo teórico, das contribuições de Néstor García Canclini, no que envolve principalmente identidade e consumo culturais, que, no entanto, não constituem objeto deste artigo.

Resposicionamento do foco

Ao priorizar-se o enfoque sobre as vinculações entre comunicação e cultura, desloca-se o foco exclusivo dos meios comunicacionais, que têm seu valor reposicionado, para privilegiar as mediações próprias da recepção televisiva, enfatizando-se a posição da cultura e do cotidiano. Há um rompimento com as análises apocalípticas, que vêem o receptor indefeso e apático diante do poder indefensável da mídia massiva, a qual muitas vezes é apresentada como constituindo uma esfera distinta da cultura.

Por esta via, reestabelece-se o bom senso de que, se os receptores não são mais considerados guiados pelas indústrias culturais, a sociedade não é só mídia, ou seja, há muito mais dados a serem observados, formando as mediações. Martín-Barbero, ao tratar das mediações que envolvem a recepção e, por conseqüência, a percepção da realidade, afasta da mídia a responsabilidade de formadora única dos modos de ser e agir dos seres humanos, sepultando as propostas que viam uma influência direta das primeiras sobre os segundos.

Mas muitos outros autores, na atualidade, de diferentes linhas de estudo, têm relacionado comunicação e cultura. Relacionar comunicação e cultura significa um salto, por apreender o fenômeno como integrante de um processo de maior dimensão e não de forma estanque. Este salto provoca o abandono da posição de solidez  que  assegura o tratamento da comunicação reduzida a um produto, a um veículo ou a um meio, no máximo, para inseri-la no cotidiano das pessoas. É um processo de rompimento e ampliação:

“Pensar os processos de comunicação a partir da cultura implica deixar de pensá-los desde as disciplinas e os meios. Implica a ruptura com aquela compulsiva necessidade de definir a ‘disciplina própria’ e com ela a segurança que proporcionava a redução da problemática da comunicação à dos meios. (...) Por outra parte, não se trata de perder de vista os meios, senão de abrir sua análise às mediações, isto é, às instituições, às organizações e aos sujeitos, às diversas temporalidades sociais e à multiplicidade de matrizes culturais a partir das quais os meios-tecnologias  se constituem” (MARTÍN-BARBERO, 1985, p. 10).

A realidade é que a cultura está na mídia, pois o que é transmitido pelos meios de comunicação é cultura. Sob pena de se cair num outro extremo, contudo, deve-se ressaltar que, se tanto as culturas alternativas quanto hegemônicas são veiculadas pelos meios, estão também fora deles. Embora a comunicação midiática a cada momento envolva mais e mais as possibilidades de troca de sentido, ela não é única. Ou seja, a produção de sentido não é viabilizada só pelas indústrias culturais, envolvendo ainda - e necessariamente - as mediações.

Pretende-se eliminar qualquer possibilidade de ver a comunicação como totalizante. É necessário, ao elevar-se a comunicação ao patamar da cultura, não superestimá-la e crê-la como panacéia capaz de resolver problemas que são da constituição da sociedade. Não é o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação (NTCs), isoladamente, que vai proporcionar a criação de um novo patamar de vida social, se nada for feito para combater o injusto acesso a quase todos os bens, inclusive os básicos, nesta sociedade.

Mediação e negociação

Decreta-se, assim, o fim do que nunca existiu além das proposições acadêmicas, assimiladas pelo senso comum: o telespectador impassivo diante do poder diabólico dos meios massivos, com uma mensagem atingindo o mesmo efeito em todos os públicos. Substitui-se esse discurso pelo que admite serem as audiências plurais, que considera a recepção como o lugar onde ocorrem a negociação e a produção de sentido (com a participação de produtor e receptor) e que prega o estudo dos meios de comunicação de massa a partir da cultura.

Então, não é a recepção um espaço consensual. Como transmite Martín-Barbero, em entrevista a Martha MONTOYA (1992, p. 30 - 31), os conflitos estão sempre presentes na recepção:

“Também esta nova concepção da recepção implica em estudar os conflitos. O espaço da recepção é um espaço de conflito entre o hegemônico e o subalterno, as modernidades e as tradições, entre as imposições e as apropriações. Quando falamos de recepção nesse sentido, não estamos falando de uma recepção individual, senão da recepção como fenômeno coletivo, da sociedade da recepção. (...) É dizer, estudar a recepção é estudar este novo mundo de fragmentações dos consumos e dos públicos, essa liberação das diferenças, essa transformação das sensibilidades que encontram um campo especial na reorganização das relações entre o privado e o público”.

Da mesma forma está claro, no estudo da recepção, que, sendo o sentido negociado, a comunicação, por sua própria natureza, é negociada. Como o produtor não é onipotente, nem o receptor é um mero depositário de mensagens de outros, a comunicação implica transação entre as partes envolvidas no jogo midiático. Há uma valorização da experiência e da competência comunicativa dos receptores (MARTÍN-BARBERO, 1989, p. 25). A partir daí tem-se posicionamentos diferenciados diante dos produtos. São as mediações que vão implicar nas variações de posturas frente aos bens simbólicos.

Ondina Fachel LEAL (1993, p. 148) lembra que recepção, conforme a perspectiva latino-americana, não corresponde à idéia de homogeneização. Sendo o receptor vivo e ativo, as leituras não são homogêneas, havendo variações de interesses e de produção de sentido diante de uma mesma obra, de acordo com a variação do leitor ou grupos de leitores. Esse leitor, que é o receptor, contará sempre com o processo de mediação ao assistir à TV, não existindo um sem o outro. Por isso, a recepção não é um fenômeno simples e direto.

Recepção é o espaço relacional “dos conflitos que articulam a cultura, das mestiçagens que a tecem, das anacronias que a sustentam e, por último, do modo em que trabalha a hegemonia e as resistências que mobiliza”, segundo MARTÍN-BARBERO (1987, p. 240). Está claro, devido às mediações, que a recepção não se constitui em uma relação direta entre duas pontas, o produtor e o emissor. É por meio das mediações, que são várias e apresentam variações conforme mudam os receptores ou grupos de receptores, que se produz o sentido.

Um dos mais importantes pesquisadores sobre recepção, Guillermo Orozco Gomez, também associa assistir televisão e mediações definitivamente. GOMEZ (1991, p. 60) observa que três premissas guiam a análise de recepção televisiva: que a recepção é interação; que essa interação está necessariamente mediada de múltiplas maneiras; e que a mencionada interação não está circunscrita ao momento de ver TV. Assim, o esquema linear de uma mensagem atingindo determinados efeitos, ao chegar ao destinatário, é abandonado.

Para MARTÍN-BARBERO (op. cit., p. 233), mediações são os lugares de onde “provêm as constrições que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão”. As interações entre o receptor e o produtor podem ser compreendidas através das mediações, constituindo-se elas no lugar que propicia o consumo diferenciado aos diversos receptores dos bens simbólicos, de forma que produzem e reproduzem os significados sociais. Compreende-se que mediação seja todo um conjunto de fatores que estrutura, organiza e reorganiza a percepção e apropriação da realidade, por parte do receptor.

Entende-se, então, que o processo de mediação estrutura a percepção de toda a realidade social, não somente da recepção de produtos das indústrias culturais. Sem dúvida, a identidade cultural integra as mediações. Só que a mídia possui um importante papel na constituição das identidades culturais. Então, pode-se dizer que os meios também compõem as mediações, o que contribui para dificultar tentativas de análises isoladas. Mais um motivo para reafirmar-se que, apesar do receptor também ser ativo, os meios inegavelmente possuem um papel de destaque no processo.

Sendo o conjunto de mediações ordenador de apropriações distintas da recepção, ele funciona como uma lente. Conforme as mediações, o receptor vê um determinado produto televisivo ou um fato social. Cada mediação é uma lente que estrutura a recepção. A representação da sociedade homogeneizada, com óculos iguais, não corresponde à verdade. As mediações dos receptores são diferentes entre si. Ocorre é que grupos com características similares possuem mediações semelhantes e, portanto, apresentam óculos semelhantes.

São três os lugares de mediação propostos por Martín-Barbero, como hipótese: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. O cotidiano é o lugar privilegiado para abordar o processo de recepção. No espaço das práticas cotidianas encontram-se desde a relação com o próprio corpo até o uso do tempo, o habitar e a consciência do que é possível ser alcançado por cada um. Por isso, a valorização que passou a ter o cotidiano, como lugar de captação do real.

É no cotidiano onde ocorre a recepção, onde as pessoas vivem e o sujeito mostra-se como verdadeiramente é, onde ele pode se soltar da maioria das amarras que carrega. A cotidianidade familiar, repleta de tensões e conflitos, é um dos poucos lugares onde os indivíduos se confrontam como pessoas e onde encontram alguma possibilidade de manifestar suas ânsias e frustrações. O âmbito familiar, inclusive, reproduz, de forma particularizada, as relações de poder que se verificam no conjunto da sociedade.

Outro lugar de mediação é a temporalidade social. Esta mediação refere-se à especificidade do tempo do cotidiano, contrariamente ao tempo produtivo. O tempo de que é feito a cotidianidade é repetitivo, enquanto o tempo valorizado pelo capital, o produtivo, é aquele que se mede, que corre (MARTÍN-BARBERO, op. cit., p. 236). O tempo do cotidiano é o próprio das culturas populares, cíclico, que o Estado-nação tentou abolir e aglutinar num novo tempo, único e composto de unidades contáveis. A TV também organiza-se pelo tempo da repetição e do fragmento, incorporando-se ao cotidiano dos receptores.

Por fim, MARTÍN-BARBERO (op. cit., p. 241) nomeia a competência cultural como mais uma mediação que integra o processo de recepção:

“... fala também da competência cultural dos diversos grupos, que atravessa as classes, pela via da educação formal em suas distintas modalidades, mas sobretudo os que configuram as etnias, as culturas regionais, os ‘dialetos’ locais e as distintas mestiçagens urbanas com base naqueles. Competência que vive da memória - narrativa, gestual, auditiva - e também dos imaginários que alimentam o sujeito social ...”.

No processo de recepção, a competência cultural apresenta uma mediação fundamental, colaborando decisivamente para que os receptores consumam diferentemente os produtos culturais. A competência cultural não se refere só à cultura formal, apreendida nas escolas e nos livros. É toda uma identidade, onde se insere também a educação formal, mas vai além, abrangendo a cultura dos bairros, das cidades, das tribos urbanas. É uma marcação cultural viabilizada por meio da vivência, da audição e da leitura.

São esses lugares de mediação que permitem ao sujeito, agora tomado como parte ativa, fazer usos diferenciados dos produtos com os quais interage. Por isso é que este novo caminho de estudos latino-americano empresta maior importância ao valor de uso. A partir daí a comunicação passa a ser não só vista, mas revista, abordada em toda a sua complexidade, como parte da cultura, contextualizada dentro da história, valorizando o cotidiano e envolvendo pessoas que pensam, a partir de variados fatores.

Deslocamentos conceituais

O espaço da recepção requer deslocamentos conceituais, como a questão, já tratada, das mediações, e as idéias de hegemonia, poder e perspectiva histórica. O conceito gramsciano de hegemonia é um ponto de partida no entendimento de que o sentido não é imposto, mas negociado. A partir desse conceito há uma evolução para a posição que hoje mobiliza um elevado número de pesquisadores latino-americanos, de que a cultura produzida pelas indústrias midiáticas também é um fórum de apropriação das aspirações populares.

Com base no exposto, e identificando-se a comunicação como cultura, pode-se classificar a produção cultural dos meios como não somente ataque ao que haveria de mais puro, mas também de incorporação dos valores culturais populares. MARTÍN-BARBERO (op. cit., p. 84-85) segue levantando a questão da hegemonia, apontando o caminho que conduz o interesse das ciências sociais críticas pela obra de Gramsci:

“Está, em primeiro lugar, o conceito de hegemonia elaborado por Gramsci, fazendo possível pensar o processo de dominação social já não como imposição desde um exterior e sem sujeitos, senão como um processo em que uma classe hegemoniza na medida em que representa interesses que também reconhecem de alguma maneira como seus as classes subalternas. E ‘na medida’ significa aqui que não hegemonia, senão que ela se faz e desfaz permanentemente em um ‘processo vivido’, feito não só de força, senão também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade”.

A hegemonia está presente no cotidiano das pessoas, verificando-se igualmente na cultura. Só que as ações hegemônicas não são tão uniformes quanto possa parecer. Hegemonia é também a capacidade de assimilar traços de outras culturas, sejam elas populares, locais ou alternativas em geral. A cultura hegemônica acaba incorporando os traços dessas outras culturas. Esse processo de assimilação é um dos responsáveis pela constante identificação que os produtos das indústrias culturais obtêm junto ao público.

No jogo da mediações, cria-se e recria-se a hegemonia cultural. Isto porque o conceito de hegemonia prevê resistências, admitindo acertos e desacertos típicos do processo de recepção. Sendo assim, hegemonia é um conceito que, no seu interior, já prevê o receptor como ativo. Do contrário, não admitiria a possibilidade de resistência do receptor e, portanto, a necessidade de  seduzi-lo. É por este motivo que a proposta de hegemonia não confere poderes exclusivos à classe dominante. Ao mesmo tempo, a concepção de hegemonia deve ser pensada como expressão de relações de poder, onde a classe hegemônica dirige a sociedade.

Mas a sobreposição não é total. Como a hegemonia prevê a necessidade de reunião de elementos para atingir o consenso do consumidor, é um conceito que, implicitamente, traz um caráter de negociação, permitindo sua associação à idéia das mediações. A adesão à cultura hegemônica não é automática, precisa ser ativada, num jogo que passa, necessariamente, pelas mediações. CANCLINI (1991, p. 6) explica que muitos estudos sobre comunicação massiva têm mostrado que a hegemonia cultural não se realiza mediante ações verticais em que os dominadores prendem os receptores: entre uns e outros se reconhecem mediadores.

O conceito de hegemonia serve para descobrir-se que a cultura massiva abriga, em seu interior, manifestações culturais populares, tradicionais e locais. A televisão por vezes colabora firmemente, através da divulgação, para que um determinado evento de origem popular obtenha sucesso, ou para que culturas não-hegemônicas encontrem possibilidade de divulgação e, a partir daí, de melhor compreensão. A telenovela “Explode Coração”, exibida entre 1995/6, pela Rede Globo de Televisão, no horário das 20 horas e 40 minutos, desempenhou  um papel muito relevante na divulgação da cultura cigana, como admitem os próprios ciganos.

Ao lado das mediações e da hegemonia, um outro deslocamento conceitual necessário, ao procurar-se compreender o espaço da recepção, é a concepção de poder. O entendimento de um poder com uma estrutura una e inabalável, sem contradições, não se coaduna com os atuais estudos em desenvolvimento na América Latina, que trabalham as mediações no processo de recepção e as relações entre comunicação e cultura. O poder visto como uma fundação monolítica não tem mais como ser sustentado neste final de século, onde a dispersão é uma das principais características.

A nova visão de poder envolve um deslocamento estratégico para as zonas de tensão da dominação, de forma que ele se torna vulnerável no mesmo momento em que se propõe atingir formas cada vez mais aperfeiçoadas de controle social, segundo MARTÍN-BARBERO (1984, p. 28). O entendimento de um poder impassível diante de virtuais rupturas internas, portanto, não se mantém na realidade do dia-a-dia. O poder, hodiernamente, é disseminado, apresentando-se nas diversas relações sociais e variando quanto à intensidade.

Não é o poder atributo de um sistema capaz de impor todas as suas posições aos dominados, até porque esses dominados também apresentam capacidade de reação, embora com uma força inferior à do dominador. CANCLINI (1987, p. 8) insiste que é necessário deixar de conceber o poder como blocos de estruturas institucionais, fixados em tarefas pré-estabelecidas (dominar, manipular), ou como mecanismos de imposição vertical. Deve-se prevenir, não obstante, que o poder ocasionalmente pode se concentrar em determinadas instituições sociais. Muitas vezes elas reforçam o poder por atuarem em conjunto.

Perspectiva histórica

Completando a relação dos quatro deslocamentos conceituais propostos pelos estudos de comunicação latino-americanos, vem a perspectiva histórica, que deve nortear a compreensão da realidade social, incluindo-se a comunicação. É esta perspectiva histórica que decreta o fim da visão nostálgica segundo a qual o massivo chegou para contaminar um mundo de autenticidade popular. A configuração mesma do que se entende por popular está intimamente ligada ao que hoje se chama massivo.

Conforme Martín-Barbero (MONTOYA, op. cit., p. 28), desde o final do século XVIII o que se chama de cultura popular está mediado por processos de comunicação que unificam, centralizam e massificam. Assim é que, desde o século passado, o que tem sido chamado de cultura popular já não pode mais ser considerada manifestação cultural pura, como alguns pretendem que se mantenha até hoje. Começou no século XIX a ser denominada de cultura popular uma cultura que é cada vez mais fabricada para as classes populares.

Essa nova cultura, hoje chamada de massas, continha, ativava senhas de identidade das velhas culturas, deformando, recuperando esses sinais. Por isso, não há como pensar-se em uma cultura das classes populares pura, separada, sendo o caminho o estudo da construção das culturas, que é o trilhar histórico. A introdução da perspectiva histórica implica na compreensão de que não são os meios os responsáveis diretos pela massificação. O fenômeno da massificação é mais amplo, inscrevendo-se a necessidade de meios massivos para atender a demanda cultural das massas, que passam a também consumir.

A massificação é muito mais do que meios de comunicação, é o processo que permitiu o acesso das massas à cena. A mídia deve ser considerada como uma das peças do processo de massificação, mostrando-se os meios massificados porque a sociedade como um todo foi massificada. Na América Latina, o início da massificação coincidiu com a vigência dos governos populistas e com o processo de construção das identidades nacionais, onde as indústrias culturais tiveram uma missão das mais importantes.

Pode-se afirmar que a implantação dos meios massivos latino-americanos é concomitante ao ingresso das massas no cenário de reivindicações e de consumo. Mas a mídia é conseqüência da massificação, de haver público massificado para produtos culturais, e não causa. Ao mesmo tempo, os meios foram decisivos na construção da cara, dos traços desse público massificado, que são as identidades nacionais. A massificação deve ser compreendida como um processo, que envolve a sociedade no seu conjunto, assegura Martín-Barbero (FADUL, 1986, p. 45):

“São poucas as pessoas que entendem o que significa introduzir a perspectiva histórica na indústria cultural, não como a história de fatos, de acontecimentos simplesmente, mas o que significa História como a única maneira de compreender a relação entre o popular e o massivo. (...) Eu creio que este  é um ponto fundamental: não se pode compreender essa nova perspectiva, que trata de superar a concepção puramente manipulatória da cultura, sem introduzir-se a História para pensar a relação entre massificação cultural e entrada das massas na política, entrada histórica das massas na participação social, com toda a ambigüidade política que a massa sempre teve e que a esquerda quis resolver designando-a, ou de revolucionária ou de fascista, quando a história dela, a constituição das massas, é muito mais complexa e muito mais ambígua - tanto no caso do populismo brasileiro, como do populismo mexicano ou do argentino, para falar dos populismos que tiveram uma grande agitação mais explícita”.

Parte do preconceito que se observa até hoje, com relação à massificação, inclusive a cultural, deve-se a uma intolerância quanto ao próprio povo, a uma rejeição de que eles também tenham acesso a alguns bens e serviços, mesmo que em uma posição de desavantagem enquanto classe social. Pois, queira-se ou não, a massificação representou um novo patamar, no que diz respeito ao consumo de bens públicos e produtos culturais, por parte da maioria. Contrariamente à massificação, levantaram-se, no início do processo e ainda hoje, muitas vozes de intelectuais acostumados a uma ciculação restrita de bens da esfera da cultura.

A perspectiva histórica de compreensão da sociedade mostra que a mídia desempenhou papéis específicos no processo de massificação na América Latina. A constituição do massivo, no Continente, ocorre neste século, em duas etapas, a primeira da década de 30 até o final da primeira metade dos anos 50 e a outra começando nessa época. Inicialmente, a função dos meios “residiu em sua capacidade de fazerem-se vozes da interpelação que a partir do populismo convertia as massas em povo e o povo em nação”, expõe MARTÍN-BARBERO (1985, p. 11-12). Os meios atuaram na formação da nação brasileira.

A constituição das identidades nacionais foi a tônica dessa primeira fase das tecnologias de comunicação na América Latina. Os governos populistas empenharam-se na construção de nações modernas, mediante a criação de uma cultura nacional, de uma sensibilidade ou um sentimento nacional. Na consecução desses objetivos, a nova e ascendente mídia teve uma participação ativa. Os meios atuaram apresentando conteúdos para que as massas se reconhecessem, já que este era o período de constituição do massivo e, conseqüentemente, da própria idéia de massa. Por isso, nessa época o massivo refere-se à presença social das massas.

A segunda etapa da formação do massivo foi marcada pela participação da televisão, enquanto no período anterior era o rádio o principal meio. Houve uma substituição do populismo pelo discurso desenvolvimentista, como ocorreu no Brasil a partir do Governo Juscelino Kubitscheck de Oliveira, em 1955, e com a série de governos militares que se sucederam no Brasil a partir de 1964, por mais de 20 anos dominando-o. Em todo o Continente multiplicaram-se ditaduras, enquanto a presença das então chamadas multinacionais estimulou a profissionalização do mercado publicitário.

 O dispositivo econômico apoderou-se dos meios, nessa época, o que não implicou  o rompimento com o Estado, já que mídia e governos militares seguiram sendo úteis uns aos outros, apesar da implantação de um esquema de forte censura sobre as indústrias culturais e a arte. O empresariado manifestava-se contra ações específicas de censura, contudo incentivava e beneficiava-se das políticas governamentais em geral. A partir desse período aberto na segunda metade dos anos 50 mudaram as funções do Estado e a própria noção do massivo, que da idéia de acesso das massas aos bens passou a referir-se aos meios de comunicação.

A mídia foi usada de forma mais incrementada com objetivos de união nacional, nessa segunda fase do massivo. Se isso foi permitido com o advento da televisão, no período anterior o meio preponderante foi o rádio e, em alguns países, também o cinema. Neste sentido, houve uma passagem da concepção de povo para a idéia de massa, tendo em vista motivações mercadológicas (ORTIZ, 1992, p. 65). Por conseqüencia, a mídia intensificou a produção de bens que obtivessem aprovação popular, fossem consumidos em larga escala, sendo esse o critério definidor da realização da cultura massiva. Isso levou a críticas de que os meios comunicacionais, particularmente a TV, estavam baixando o nível cultural.

Desafios de hoje

As investigações científicas tratando do processo de recepção têm-se multiplicado, inclusive no Brasil. Centros de pesquisa nacionais, como a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), através de nomes como o professor doutor padre Pedro Gilberto Gomes, a professora doutora Denise Cogo e este pesquisador, e a Universidade de São Paulo (USP), por meio, dentre outros, dos professores doutores Maria Immacolata Vassalo Lopes e Mauro Wilton de Souza, inserem-se neste contexto.

No entanto, atestado que o receptor é ativo e não se relaciona diretamente com os meios de massa, novos desafios são impostos a este eixo teórico, que, por isso, ainda se apresenta em construção. A pesquisa na área precisa avançar, necessita mostrar de forma mais precisa como se processa o relacionamento receptor-indústria cultural/bem simbólico, ressaltando quais mediações são preponderantes na definição do comportamento dos vários grupos de consumidores, o que é feito com as mensagens da mídia e qual é a participação dela na composição dos hábitos e atitudes dos cidadãos.

Ao lado deste principal desafio, outro ponto de discussão tem sido a problemática metodológica - uma questão sempre presente nos levantamentos científicos, principalmente aqueles da área da comunicação, para onde convergem várias ciências, é mais premente nos que tratam o processo de recepção. Isso ocorre porque o olhar necessariamente deve ser ampliado, para dar conta de toda a relação. Embora não seja a única, a proposta metodológica mais presente no debate sobre recepção é a de Guillermo Orozco Gomez, que explicita possibilidades de aproximação do objeto, apesar de ser criticada de de partir a análise.

Nesse mesmo rumo, questiona-se a dificuldade que têm tido as pesquisas de recepção de dar conta também da produção, o que consta da proposta original de Martín-Barbero, já que se trata de um processo e a falta de atenção sobre os meios pode parecer que o poder do receptor é ilimitado, o que não é. Assim é que muitos pesquisadores têm procurado associar às contribuições do eixo latino-americano outros referenciais téoricos, enquanto outros, como o professor doutor Antonio Fausto Neto, primeiramente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e depois na UNISINOS, investigam a recepção a partir da análise do discurso.

Em meio a esta, Jesús Martín-Barbero, em eventos no Brasil, em agosto/setembro de 1997, pouco falou de recepção. Diante disso, ao mesmo tempo em que se reconhece a importância do eixo latino-americano, pelo impulso que forneceu à visão não-totalizante da mídia, deve-se pensar cada vez mais em estabelecer-se ligações com outras correntes teóricas, bem como estruturar-se grupos de investigação sobre recepção, na expectativa de que o coletivo explique melhor o fenômeno. Por fim, torna-se necessário, neste tempo em que as respostas funcionam mais como geradoras de dúvidas, que a linha latino-americana de análise da recepção volte a mergulhar em suas origens, os estudos culturais ingleses, o que, aliás, tem motivado estudiosos brasileiros.

Referências bibliográficas

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