Da epistemologia da decisão judiciária e sua função social

Hermenegildo Ferreira Borges, Universidade Nova de Lsiboa

Comunicação apresentada ao II Congresso da Sopcom, Março de 1999



1 - A decisão no espaço de tensão entre a teoria e a experiência.

No seu sentido mais imediato o "conflito" que dá origem ao processo e que requer a impositiva necessidade de uma decisão que lhe ponha fim, é relativo à confrontação de interesses antagónicos que procuram fazer valer as suas razões na imediação e no contraditório da audiência de julgamento. Mas, além desta, emerge uma outra e importante acepção de "conflito" que à decisão cabe resolver. Referimo-nos ao "conflito" entre o domínio do "saber jurídico" e o acontecer que irrompe do mundo dos possíveis e se manifesta abruptamente no mundo real dos factos, no sentido que a esta temática conferem (cada um a seu modo) Wittgenstein e Peirce, como que desafiando o saber estabelecido. Este responde por um esforço hermenêutico no sentido de integrar cada novo facto nas estruturas de saber existentes ou no sentido de elaborar novas sínteses explicativas.

Neste processo, a "decisão judiciária" entretece compromissos com o processo de constituição do conhecimento jurídico, fazendo seu o paradigma que define o lugar e função da decisão na constituição do pensamento científico. Encurtando caminho, a decisão desempenha um lugar importante na produção e actualização do conhecimento, seja nas ciências positivas, em ciências humanas ou no conhecimento jurídico.

No Discurso do Método Descartes situa o exacto lugar onde para ele a decisão é pertinente - na ordem provisória das "acções da vida". No plano da epistémé em Descartes, nenhum lugar pode ser reservado à decisão, uma vez que as verdades científicas são válidas desde e para todo o sempre . Libniz e Espinoza manifestam atitude análoga à de Descartes face à decisão, enjeitando o seu contributo para a constituição epistémica do saber (1).

Hoje, renunciando à preclara construção solipsista de uma ciência unitária, assente em princípios intangíveis e em factos irredutíveis a qualquer variação, somos levados a admitir não apenas a dimensão dialógica do conhecimento, como a necessidade da sua permanente actualização. O próprio quadro formal em que o conceito de ciência se exprimia foi perdendo a sua operacionalidade à medida que a sintaxe dos sistemas lógico-formais se ia revelando inadequada para exprimir e justificar a complexidade metodológica e de razões nos mais diversos domínios científicos.

Por acção destes ventos, torna-se também inevitável a erosão do conceito de ciência jurídica estacionária, apesar de persistirem dela noções e princípios contidos em proposições aparentemente inalteráveis. Mesmo aí, a mudança surge demiurgicamente, através da alteração persistente e contínua do sentido das noções que integram as proposições irrefragáveis.

A decisão surge então como dispositivo técnico apto para actualizar o saber, como diz Perelman, não apenas nas disciplinas jurídicas, mas também em filosofia, nas ciências naturais e nas ciências humanas. A decisão é convocada sempre que se revela necessário produzir um veredicto de aceitação ou de recusa de integração de um facto novo, formalmente independente de um dado domínio de saber.

Ao investigador cabe decidir se altera ou não, sob algum aspecto, o sistema científico já sistematizado, como forma de gerar as condições que possibilitem a integração do novo facto, ou decidir se será mais adequado reconstruir todo o sistema em função de os resultados da experiência se revelarem eventualmente incompatíveis com as previsões teóricas antes admitidas. Decidir implica, então, inventar hipóteses ajustadas, modificar princípios e classificações antes admitidos, ou mesmo o sentido atribuído aos termos técnicos, em ordem a eliminar as incompatibilidades no seio da teoria ou as que venham a emergir da relação dialéctica entre a teoria e a experiência .

É no espaço de tensão gerada entre a teoria e a experiência, que F. Gonseth designa como "princípio de dualidade", que a decisão encontra o seu lugar e função como dispositivo de superação dessa tensão ao serviço da evolução do saber, tanto em termos de diferenciação como de unificação doutrinária e metodológica.

Decidindo, o cientista desempenha as funções de árbitro entre factos e métodos, numa procura da solução mais conforme com a realidade, bem como as de poïèta (na produção e invenção de soluções), guiado, como diz Perelman, por exigências de simplicidade, economia do pensamento, fecundidade, regularidade e generalidade.

Em termos epistemológicos, a decisão desempenha no âmbito do direito um papel análogo ao que desempenha nas ciências naturais e nas ciências humanas. Importa reconhecer que, nos domínio mencionados, a estrutura racional das proposições e as metodologias, são algo em permanente construção, o que convoca necessariamente uma decisão humana e os riscos que lhe estão associados, quer em termos de veridição, quer em termos da razoabilidade e eficácia no campo da regulação das condutas humanas. A epistemologia das ciências e, nestas incluída a da ciência jurídica, é tributária do concurso de cada nova proposição que traz consigo novas determinações à estrutura do conhecimento já sistematizado.

No entanto o juiz, diferentemente do homem de ciência, não dispõe da mesma autonomia em matéria de decisão, designadamente no que respeita à adaptação do sistema a um facto jurídico novo. No acto de decidir ele estará sempre condicionado por regras de competência claramente definidas que, por via de regra, não inibem o homem de ciência.
 
 

2 - Critérios de produção e fundamentação de uma decisão judiciária.

Emitir uma opinião, estimar, ter por verdadeiro ou justo e tomar posição ou decidir, são acepções correntes do termo julgar que definem, por esta ordem e na opinião de Ricoeur, o caminho evolutivo de uma densidade crescente de sentido.

A decisão judiciária situa-se no termo desta linha evolutiva no ponto em que "julgar" e "decidir" são sinónimos, mas recapitulando no âmbito do "processo", todas as significações anteriores. Ora, neste "sentido forte", o acto de "julgar" convoca as faculdades do entendimento e da vontade, enunciados por Descartes na 4ª Meditação, não para as confinar meramente às "acções da vida", como ele faz, mas para as exercer num campo de actividade que é simultaneamente práxica e poïètica: práxica, porque decorre da inquirição teorética do saber jurídico; poiética, por ser uma actividade de produção e invenção de soluções jurídicas ajustadas à realidade em devir, sob instigação desencadeada pelo emergir "provocatório" de novos factos.

Por esta ordem de razões, como sustenta Ricoeur, tendo embora parte com a forma de um juízo determinante, enquanto promove a aplicação da lei a um caso, o "estatuir na condição de juiz" é muito mais equiparável, em termos kantianos, a um juízo reflexivo na medida em que opera, de maneira inversa, a partir da fenomenologia do acontecer para aceder, reflexivamente, à melhor solução jurídica para o caso. De facto, a decisão é a expressão final do labor reflexivo de natureza teorética do saber jurídico sobre os dados da experiência judiciária, tendo em vista encontrar a melhor solução para integrar juridicamente os novos factos. Ela assume, assim, e por direito próprio, o estatuto epistemológico de uma téchné.

Apesar da natureza única e irrepetível de cada novo caso, a solução jurídica que se lhe adequa afirma-se como precedente, por imperativos de segurança e coerência do direito. E, enquanto precedente, a decisão judiciária, à semelhança dos argumentos da ilustração e do exemplo em Perelman, também ela funda a estrutura de um real: o de uma juridicidade jurisprudencial que interage dialecticamente com a elaboração positiva das normas, com a produção doutrinária e com o mundo dos factos.

Dissemos que, neste seu sentido forte, o julgar convoca o entendimento e a vontade. No entanto é manifesto que, desde a antiguidade clássica, a epistemologia da decisão está marcada pela dissociação entre uma acção que opera sob a legalidade do entendimento e uma outra que é determinada apenas pela vontade. Esta dissociação tem como suporte o postulado de que o homem é constituído pelas faculdades separadas do entendimento e da vontade. Como acontece em qualquer processo de dissociação de noções, este comporta uma hierarquia que desqualifica uma delas, neste caso toda a acção fundada na vontade. Nesta partilha, mais visível em Platão do que em Aristóteles, radica a desconfiança que impende sobre as escolhas (avaliativas, cognitivas e interpretativas) no pressuposto de que não são passíveis de justificação racional.

Ora, "o estatuir na condição de juiz" não pode escorar-se apenas na cognição estrita da matéria de facto e do direito a aplicar. Decidir como juiz comporta também a realização de escolhas avaliativas e interpretativas, tanto em matéria de facto como de direito. E, mesmo no plano estritamente cognitivo, muito raramente a evidência dos factos e do direito a aplicar se impõem ao juiz com a constringência de uma certeza, isto é, no grau mais rigoroso da motivação lógico-material. A convicção ou presunção do juiz forma-se a partir de provas materiais e testemunhais de consistência probatória muitas vezes incerta e que, apesar de "forçarem" de algum modo a adesão do seu espírito, o fazem com uma constringência variável.

Pensamos, por isso, que é no plano gnoseológico de uma convicção que não é refém da evidência e pressupõe, justamente, a ultrapassagem da "evidência sensível" pela meditação, que a decisão judiciária se forma. Só assim, como diz Vasille Florescu, a convicção pode fundar-se "sobre uma motivação lógica material, capaz de ser adoptada também por outros". Ora, esta "meditação", para só falar em matéria de facto, obriga à correlação de provas materiais e pessoais e comporta a avaliação supletiva da culpa do agente, circunstâncias que inibem a manifestação da forma mais forte de convicção - a certeza. Mas, numa relação inversamente proporcional, com a retracção da convicção, expande-se o campo reservado deliberação e à liberdade de quem decide. Estamos, assim, em presença de uma forma atenuada de convicção (da qual o sujeito decididor não sai vencido pela impositiva constringência das razões que o con-vencem), o que nos aproxima da persuasão produzida por boas e fundadas razões, aquém da certeza e além da opinião, num lugar onde se operam as mencionadas escolhas da decisão judiciária. Importa ter presente que uma decisão fundada em provas não constringentes, reserva sempre, por pequeno que seja, um lugar à probabilidade, uma espécie de pequena brecha por onde irrompe uma ténue possibilidade de erro e espreita a dúvida. Mas essa é a condição do exercício da liberdade de quem julga, apesar dos procedimentos legais e dos constrangimentos de natureza sistémica que impendem sobre a decisão, legitimamente invocados por Lucien Sfez na sua "Crítica da Decisão".

Poderíamos talvez dizer que a decisão judiciária competente é uma decisão racionalmente fundada mas que tem medida em critérios de razoabilidade e equidade, pressupõe conhecimentos amplos do direito a aplicar, conhecimentos específicos sobre o caso em apreço, a "justa distância" de quem decide e, por fim, uma comunidade jurídica dialogicamente constituída como interlocutora das razões que motivam a decisão. No universo judiciário esta comunidade competente interpõe-se a dois níveis diferenciados mas complementares: a um nível, ela cumpre uma "função dispositivo" de auto-regulação, actuando no processo mental da formação da deliberação íntima do juiz, como seu presumido interlocutor privilegiado; a um outro, intervém no processo de apreciação da motivação das racionalizações que terão justificado a decisão, em uns casos de forma impositiva e por razões de competência funcional, em outros sob a forma apenas presumida mas passível de ser exercida. Numa palavra, é esta comunidade jurídica constituída como auditório universal que, no limite, constitui o critério de uma decisão simultaneamente racional e justa.
 
 

3 - Justificação racional do "desacordo" na decisão judiciária colectiva

O racionalismo dogmático é, como sabemos, propenso a considerar que sobre o mesmo assunto não pode haver desacordo entre decisões racionalmente fundadas. Para os seus mentores, "desacordo" significa que pelos menos uma das decisões é irracional, por duas ordens de razões: ou porque assenta no conhecimento imperfeito dos factos; ou porque resulta da impulsionalidade de motivos não racionais, como a paixão, o interesse, o capricho, etc. Descartes nas suas Regulae ad orientationem ingennii vai mesmo mais longe, na identificação do "desacordo" com a "falta de racionalidade", dizendo que se dois homens exprimem juízos contrários sobre a mesma matéria, no limite nenhum deles possui a verdade porque, se algum deles estivesse na sua posse haveria de ser capaz de convencer o outro do seu erro pondo fim ao conflito.

Submetendo a este critério o desacordo que se manifesta nas decisões judiciárias Roland Pennok refere: "quando um tribunal é composto por mais do que um juiz, é de presumir que cada um dos juizes, se age duma maneira inteiramente racional, chegará, diante do mesmo caso, a julgar da mesma maneira".

Hume, no Tratado da natureza humana, opõe-se à tese cartesiana da unicidade da razão introduzindo a distinção entre juízos relativos àquilo que é (susceptíveis de verdade e falsidade) e juízos relativos àquilo que deve ser (expressão de reacções emotivas e subjectivas). E se a razão é competente para distinguir a verdade do erro, já o não é em matéria de apreciação de normas e valores, por não dispor de um critério racional para esse fim. Deste modo, subsiste em Hume a insolubilidade do "desacordo", pois a razão, apesar de fazer luz sobre os nossos actos não parece estar na posse de critérios que lhe permitam justificar as nossas escolhas e decisões, avaliar os nossos actos e servir de guia à nossa acção. Hume deixa-nos ao abandono do seu cepticismo positivista vincadamente niilista, uma vez que supõe não existir verdade ou critério racional em matéria de avaliação de normas e valores associados à justificação da acção humana, que não é muito distinto do constrangimento legado pelo dogmatismo racionalista de uma "filosofia moral" que acredita na objectividade das regras morais e na possibilidade de obtermos para cada caso a solução objectivamente melhor (2).

Perelman esforça-se por justificar o desacordo entre proposições racionalmente fundadas, propondo-nos como ilustração desta sua tese a tradição judaico-talmúdica, que consente a razoabilidade simultânea das razões expressas em teses opostas, desde que fundamentadas a partir da interpretação da Bíblia. No mesmo sentido invoca a proposta de P. Winch, expressa num artigo intitulado "Universalizability of Moral Jugements", onde refere que dois juízos morais diametralmente opostos sobre um mesmo problema concreto podem ser ambos respeitáveis e razoáveis.

Perelman faz-nos notar que o desacordo poderá ter a sua origem apenas no facto de as pessoas terem avaliado de modo diferente uma qualquer circunstância particular, atribuindo-lhe uma importância relativa distinta. Tanto basta, segundo o autor, para que elas, invocando razões igualmente objectivas, decidam de modo diferente sobre o mesmo assunto. Dever-se-á então, diz Perelman, considerar imparcial uma decisão desde que a pessoa que a toma a assuma como critério para o futuro e tenha o propósito de a aplicar a todas as situações essencialmente semelhantes, independendo de quem possam ser os destinatários da sua decisão. No entanto, sempre que alguém tenha decidido razoavelmente acerca do que é moralmente justo para si, não tem legitimidade para supor que estabeleceu o critério de razoabilidade para futuras decisões de outrem, uma vez que a justiça de uma decisão não fica indelevelmente marcada pela necessidade e constringência lógicas que afectam a verdade de uma proposição.

O precedente judiciário, sob este aspecto, será apenas uma ancoragem exigida pelos imperativos da segurança e da coerência do direito. Por vezes torna-se necessário estabelecer, por razões de ordem prática, uma linha de conduta uniforme tendo em vista ultrapassar este limiar em que um mesmo estado de coisas pode ser razoavelmente justificado por juízos de valor diferentes. Sempre que o desacordo acontece em sede de um tribunal colectivo, o critério de decisão por maioria pode ser reconhecido por todos como critério que se justifica por razões de oportunidade.
 
 

4 - "finalidade curta" e "finalidade longa" da decisão.

Enquanto "tomada de posição", a decisão judiciária comporta dois distintos sentidos que correspondem ao desempenho de duas funções sociais complementares já implicadas no próprio étimo latino: num sentido mais imediato decidere, porque remete para o radical remoto de caedo= "morrer", "por termo a",faz relevar a "finalidade curta" da decisão, consumada nos limites estritos do processo e significando "separar as partes", "pôr um fim ao conflito" e à "incerteza"; o outro sentido, mais implícito e qualitativamente mais interessante, é o de "regular amigavelmente" e "harmonizar-se" e, por isso, compromete a decisão com o cumprimento de uma "finalidade longa" - o fim da violência como causa de todos os conflitos. Esta finalidade longa concretiza-se, num primeiro plano, no reconhecimento recíproco das partes como sujeitos jurídicos homólogos e, a um segundo nível, e pela mediação daquele, a realização da sociedade como empresa de cooperação.

A decisão entendida no primeiro sentido, como acto suspensivo da "incerteza" no processo, satisfaz a necessidade social imediata de dar um fim ao conflito, interpondo-se entre o meu e o teu para levar à prática a acepção clássica de uma justiça distributiva, enunciada lapidarmente na máxima "suum cuique tribuere". Enquanto tal, ela é dispositivo adequado ao funcionamento da sociedade como empresa de distribuição a que parece conformar-se, de certo modo, a proposta de Rawls na sua Teory of Justice. A este nível a decisão judiciária apenas pode aspirar a dirimir o conflito pela rama, isto é, na sua exterioridade, como epifenómeno da violência profunda que é causa de todos os conflitos sociais.

A "finalidade longa" da decisão, pressente-se no exercício prospectivo de uma solução jurídica que reivindica das partes litigantes uma atitude de reconhecimento recíproco, se não o reconhecimento da razoabilidade das razões do outro, pelo menos o da paridade ontológica, ou da idêntica condição de sujeitos de direito e de razão. É no reconhecimento do outro como sujeito jurídico, com direitos que sabemos estarem por vezes temporariamente limitados sob alguns aspectos, que podemos interromper o círculo vicioso da violência.

Hannah Arendt faz-nos notar que o grande salto qualitativo que representa a passagem de um "estado totalitário de natureza" a um "estado de direito" se dá com a supressão da vingança como aparência de justiça. De facto, compete ao Estado de Direito constituir-se como conjunto de alternativas à violência e, em particular, àquela que Ricoeur designa como a sua forma mais tenaz e perversa - o "desejo de vingança" - por se apresentar como realização da justiça (3).

A decisão judiciária, na medida em que releva de um juízo reflexivo, prospectivo de novas soluções, torna manifesto o duplo sentido do termo poïèsis: a um primeiro nível, ela é poética enquanto meio de produção de uma utilidade particular que responde às partes litigantes no processo; a outro nível, ainda associado à sua "finalidade curta", pondo fim ao conflito, a decisão judiciária realiza uma utilidade geral inequívoca, mas ainda limitada - a que convém à sociedade como empresa de distribuição. Pensamos ser apenas na sua "finalidade longa", como actividade metapoiética, que a decisão se dá a ver como dispositivo arquitectónico de uma estética do social, politicamente comprometido com o fim da violência na sociedade, com a realização da paz judiciária, no limite, com o projecto de "sociedade como empresa de cooperação".

Michele Taruffo, civilista italiana, reivindica, em nome do "controlo democrático difuso" da justiça, que deve ser exercido pela sociedade civil, que os juizes assumam a responsabilidade política pelas escolhas que efectuam em matéria de política de direito no âmbito da decisão (4). Contrariando esta necessidade subsiste, segundo Taruffo, um modelo de motivação, dominante nos regimes jurídicos dos países do continente europeu, que impõe a omissão das escolhas desta natureza, como forma de perpetuar a imagem de "juiz simples operador técnico neutral". Privilegia-se, então, uma estratégia em que a decisão colectiva sobreleva a do juiz singular, esbatendo a relação de imediação do juiz com a sociedade bem como a sua capacidade de assumir o compromisso pessoal e político com a comunidade jurídica que congrega todos os cidadãos a quem compete efectuar o "controlo democrático" das escolhas, globalmente políticas, efectuadas na aplicação do direito.

Taruffo preocupa-se, particularmente, em surpreender o que ela designa por "as capitulações explícitas" a promessas ideológicas no âmbito da aplicação do direito. A partir daqui, a nossa preocupação é outra: convocando a reflexão proposta por Michel Foucault na sua obra "L’Ordre du Discours", preocupamo-nos em fazer luz sobre uma outra e mais eficiente capitulação: a que decorre de modo inconsciente perante uma ordem dada ao Discurso "como forma de esconjurar poderes e perigos", muito particularmente no discurso da sexualidade e da política.

A nossa tese vai no sentido de reconfigurar as capitulações que se exprimem através da omissão das racionalizações que possam explicitar as escolhas em matéria de política de direito, para que se passem a entender como algo que, segundo o nosso ponto de vista, releva antes de uma retórica inconsciente que atravessa o discurso da motivação judiciária, como forma de perpetuar a ideia de uma justiça pretensamente "neutral, objectiva e necessitante" que Taruffo denuncia.

Neste sentido, podemos dizer que a evocação do inconsciente como perigoso fundo insondável que conspurca a racionalidade clara e iluminada do sujeito transcendental, pode bem ser um eficaz "artifício retórico" (que releva do mau uso da retórica, diga-se) que visa desacreditar o lugar e função do juiz singular, tendo em vista esconjurar os perigos de que fala Foucault aqui trazidos pela perigosa subjectividade e substituir-lhe, como sustenta Taruffo, um colectivo onde o juiz membro se despersonaliza e empresta voz ao sistema jurídico-político dominante que, por ser político, assim não deseja aparecer.
 
 

Notas:

(1) - As verdades são, afinal, o objecto do conhecimento divino e é pela evidência que se nos dão a ver, no quadro de uma meditação solitária. Tais circunstâncias fazem enjeitar a dimensão dialógica do conhecimento, bem como o contributo empreendedor da decisão, tanto na ampliação como na adequação do saber científico.

(2) Esta marca objectivizante da filosofia moral está presente em Sidgwick in Methods of Ethics que nesta obra formula a sua "máxima de justiça e equidade", em M. G. Singer, nos critérios em que funda o seu "princípio de generalização", que ele reconhece filiado quer na Regra de Justiça de Perelman e na máxima de justiça ou equidade de Sidgwick).

(3) Ensina-nos Ricoeur que justamente porque faltam à indignação, mesmo que justa, os "critérios positivos do justo" e a "justa distância" personificada na pessoa do juiz que ela não pode constituir o lugar positivo do justo. No entanto, adverte-nos o autor, as marcas ancestrais da vingança persistem ainda de forma larvar no Estado de Direito, muito particularmente em Direito Penal.

(4) Michele Taruffo não pretende a explicitação das opiniões políticas do juiz uti civis, nem mesmo a sua eventual filiação, uti judex, numa eventual corrente doutrinária.