"Sociedade da Informação":
reestruturação capitalista e esfera pública global.

César Ricardo Siqueira Bolaño, Universidade Federal de Sergipe




Se é verdade que o capitalismo passa hoje por um processo de globalização inelutável, o Estado, enquanto garantidor das condições gerais necessárias ao processo de desenvolvimento que o capital individual não tem a capacidade de suprir, deveria estar passando por uma reestruturação simétrica. O Estado produz as condições externas necessárias para a acumulação e, para que ele cumpra a contento essa função, deve garantir também a sua própria legitimidade, através de uma política social que atenda, de alguma forma, as necessidades das mais amplas camadas da população. O interessante da situação atual é que, na medida em que o Estado nacional se debilita frente ao capital globalizado, e dado que isso se traduz em um alto grau de incapacidade de fazer frente à crise e inclusive de administrá-la, coloca-se a questão da possibilidade da construção de algo parecido a um Estado global, capaz de garantir efetivamente a estabilidade do sistema frente às tendências destrutivas da concorrência entre os capitais individuais e entre os Estados nacionais capitalistas (Bolaño, 1997a).

É claro que não se pode pensar em um Estado desse tipo como um Estado territorial que funde sua soberania por oposição à soberania de outros Estados territoriais rivais. Indubitavelmente, as transformações no nível da base territorial dos Estados nacionais devem ser consideradas em detalhe na análise do processo de globalização, tanto no que se refere aos processos de fragmentação, como nos de constituição de blocos de países. Mas tudo isso permanece nos marcos dos processos mais ou menos clássicos de reestruturação do espaço, não apontando necessariamente para a constituição de um Estado global, ainda que a reestruturação das relações de hegemonia que está por trás da criação ou destruição de conglomerados políticos internacionais seja um dos elementos da constituição do bloco histórico hegemônico do Estado global em construção. As características da estrutura social e econômica do Estado nacional de origem são também determinantes do poder de negociação de uma classe ou fragmento de classe específicos no interior do bloco hegemônico.

Seja como for, essa negociação deve levar a compromissos institucionalizados e à constituição de instâncias multinacionais de regulação que vão formar a espinha dorsal burocrática do Estado global: ONU, Banco Mundial, OCDE, OTAN, Parlamento Europeu, Conselho de Ministros, OMC, uma infinidade de instituições mais ou menos poderosas, mais ou menos abrangentes, fazem parte dessa extremamente complexa estrutura do poder global na qual a grande corporação capitalista é o elemento predominante. Assim, de um ponto de vista sociológico, podemos verificar o surgimento não apenas de superburguesias nacionais globalizadas, com uma interpenetração patrimonial crescente e alianças estratégicas extremamente complexas, mas também de uma classe média global, constituída, antes de mais nada, pelos altos funcionários dessas corporações e pelos altos burocratas das instituições que compõem o Estado global em gestação, incorporando ainda uma infinidade de setores empresariais, políticos, mafiosos e intelectuais, hierarquicamente inferiores.

Na verdade, segmentos cada vez mais amplos das chamadas classes médias passam a agir e raciocinar globalmente e a evolução dos setores de transporte e turismo estão aí para provar isso. No seio da própria classe trabalhadora, o movimento se faz sentir, especialmente no que se refere aos seus segmentos mais instruídos ou mais organizados (para não entrarmos aqui na questão crucial dos movimentos migratórios internacionais). É claro que esse processo se dá justamente num momento em que essa classe sofreu a maior derrota de toda a sua história, de modo que avança, paralelamente, a exclusão social e a miséria. Já tive a oportunidade de apontar, não obstante (Bolaño, 1995), que a mudança estrutural em curso altera profundamente o perfil do operariado, incorporando amplas camadas de trabalho intelectual e explicitando a necessidade de uma análise renovada da estrutura de classes que prevalecerá no século XXI e da retomada, em novas bases, de algumas das velhas questões que o marxismo vulgar não conseguiu responder.

O surgimento da Indústria Cultural, na virada do século XIX, está ligada ao que Harbemas (1961) chama de "mudança estrutural da esfera pública", ou seja, a esterilização das suas características críticas e da sua capacidade de ação política em favor de formas manipulatórias (publicitárias e propagandísticas) de comunicação, como reação ao caráter potencialmente explosivo que vinha adquirindo a partir do momento da transformação do Estado liberal em Estado democrático de massa, eliminando as restrições que o primeiro impunha à participação das camadas não proprietárias e não instruídas. Do meu ponto de vista, o que vivemos hoje é uma nova reestruturação da esfera pública, que retoma o caráter excludente e crítico da esfera pública burguesa clássica, mantendo e aprofundando, para a maioria da população mundial, o paradigma da cultura de massa e do Estado nacional.

A internet é o exemplo mais importante dessa tendência. Brindada inicialmente como uma estrutura revolucionária, não hierarquizada, de comunicação entre indivíduos livres e iguais, mostra-se claramente hoje como um espaço formado por uma teia complexa e extremamente assimétrica de atores, onde a capacidade de comunicação e de acesso à informação relevante depende justamente daqueles elementos que no passado garantiam o acesso à esfera pública liberal: poder econômico (propriedade), político e conhecimento, nessa ordem de importância (Bolaño, 1997b). A mudança profunda por que passam hoje todos os sistemas de comunicação aponta não para um avanço da democracia, mas para a constituição de um mundo em que o poder, cada vez mais concentrado, torna viável uma "ação comunicativa" crítica para determinadas parcelas da população mundial, ficando a imensa maioria excluída e iludida pela possibilidade de uma participação periódica em processos eleitorais cada vez mais inócuos, inclusive no que se refere à política interna, já que o poder de decisão, mesmo nessa matéria, encontra-se em outra parte.

Do ponto de vista teórico, procurarei dialogar com o referencial habermassiano da Teoria de Ação Comunicativa, propondo como alternativa uma perspectiva, em fase ainda inicial de formação 1, mas que encontra respaldo na corrente crítica da Economia Política da Comunicação, no interior da qual destacam-se os trabalhos de Garnham, Mosco, Miège, entre outros. Essa perspectiva teórica tem sido muitas vezes apresentada como oposta àquela dos estudos culturais, apoiados muitas vezes em autores latino-americanos, como Canclini e Barbero, numa perspectiva de cunho basicamente antropológico. No segundo caso, é central o tema da mediação, enquanto que, no primeiro, o conceito básico é o de trabalho (cultural, intelectual, conceitual, artístico).

Minha própria contribuição (se é que se pode falar assim) à economia política da comunicação vai no sentido de destacar o caráter mediador do trabalho intelectual, o que remete, evidentemente, para a possibilidade de uma articulação entre os dois enfoques citados, crucial, a meu ver, para o desenvolvimento de uma perspectiva marxiana rigorosa de análise dos fenômenos culturais, sob o capitalismo. O interesse do próprio Marx pela antropologia e a importância da sua contribuição para essa ciência (Krader, 1974, 1983), freqüentemente subestimados, deveriam ser um indicador da relevância de uma aproximação entre economia política e estudos culturais.

Sem entrar diretamente nessa discussão, procurei, na prática, apontar uma possibilidade nesse sentido, ao estudar o tema específico da Indústria Cultural (Bolaño, 1997 c), tratando de deixar claro que é possível tomar as diferentes teorias da comunicação e o conjunto dos enfoques da chamada pós-modernidade como teorias "burguesas" que, presas ao mundo da circulação, onde vigora o fetiche da mercadoria e do dinheiro, não chegam a desvendar as leis gerais, a unidade essencial que está por trás do caos aparente. Realizar a crítica dessas teorias passa por compreender o sentido metodológico da crítica da economia política e procurar, no nosso caso específico, a articulação íntima que existe entre o trabalho cultural, no sentido que lhe dá a economia política da comunicação, e a ação de mediação realizada pela Indústria Cultural entre as instâncias sistêmicas (capital e Estado) 2 e o mundo da vida, para usar as categorias de Habermas, que discutirei em seguida.

Mas podemos ampliar essa discussão para outro campo, o da educação, por exemplo, como faz Neide Sobral Silva (1996), o que envolve uma dificuldade importante devida ao fato de que, enquanto a Indústria Cultural funciona fundamentalmente segundo uma lógica de consumo, a escola está mais próxima da questão do controle social, de modo que a contradição capital-Estado adquire contornos bastante diferenciados num caso e no outro. O sistema educacional em seu conjunto é um amplo e extremamente hierarquizado espaço de mediação, que inclui desde os professores primários até o Ministro da Educação e os burocratas do Ministério, passando pelos professores universitários e pelos técnicos das secretarias de educação. Espaço construído historicamente, serve fundamentalmente à reprodução ideológica do sistema, mas articula também elementos de resistência.

Nesse contexto, podemos entender a questão do material didático (do livro ao computador), por exemplo, no interior do processo de permanente reafirmação das assimetrias e hierarquias que conformam o sistema como uma estrutura complexa de poder, de hegemonia e de resistência. Da criação à utilização final, o material didático percorre um longo caminho em que a hierarquização se revela, revelando-se também os graus de liberdade de cada nível e de cada elemento específico. Isso mostra, por outro lado, que a função do material didático e das tecnologias educacionais não é simplesmente apoiar o processo de ensino-aprendizagem, mas fundamentalmente também enquadrar o trabalho do conjunto dos participantes do processo em seus diferentes níveis, ativando toda uma complexa cadeia de micro-poderes que leva a que a dominação se exerça não através de um programa ou um objeto particular, mas no fluxo contínuo de programas e objetos ao longo das linhas hierárquicas cuja ativação garante as condições de reprodução da totalidade do sistema educacional e de efetivação da sua função de dominação, do seu papel no conjunto da reprodução social.

O livro, como o currículo, a TV ou o computador, como os diferentes programas especiais gestados nas instâncias superiores do sistema, são elementos estruturantes fundamentais de um espaço hierarquizado de mediação cuja compreensão em todas as suas dimensões não pode prescindir da contribuição de autores como Bourdieu, inclusive o seu conceito de "campo", e da apropriação marxista, à la Poulantzas, por exemplo, de Foucault. Nesta linha de argumentação, podemos discutir a questão da introdução das novas tecnologias comunicacionais no processo educativo, demonstrando, em primeiro lugar, o seu caráter marcadamente conservador, o que é fundamental para refutar o falso otimismo com que esses desenvolvimentos vêm sendo recebidos, não só por defensores do neoliberalismo, como seria de se esperar, mas também, de forma não totalmente surpreendente, por autores que se declaram críticos. Mas não podemos por isso deixar de notar as potencialidades liberadoras que as novas tecnologias trazem e que dependem também dos graus de liberdade que o trabalho de mediação dos educadores envolve, abrindo-lhes certas possibilidades de ação e de articulação com os movimentos sociais e as camadas populares.

A discussão sobre a mediação nos permitirá ultrapassar tanto o determinismo quanto o voluntarismo que constituem os pólos de tensão entre os "dois marxismos" de que fala Gouldner (1980) 3. Apenas para ilustrar o ponto, podemos citar a conhecidíssima crítica de Thompson (1978) a Althusser, onde ao autor inglês procura devolver à história a liberdade que lhe havia sido negada pelo estruturalismo althusseriano, onde a visão dos sujeitos como "suportes de estruturas" parecia expulsar da análise toda a "agência" humana. Nesse sentido, Thompson entende como "a característica mais profunda da dialética marxista",

"a história como processo, como acontecer inacabado e indeterminado - mas não por isso destituído de lógica racional ou de pressões determinantes - nos quais as categorias são definidas em contextos próprios mas sofrem continuamente uma redefinição histórica, e cuja estrutura não é pré-fornecida, mas protéica, mudando constantemente de forma e articulação" (Thompson, 1978, p. 97).

 Esse movimento de mão dupla é chamado de "diálogo" ou "dialética" entre a história e a teoria (cf. Thompson, 1978, p. 54) que, para o autor, só pode ser formulada nesse nível de abstração, reduzindo a lógica imanente ao que o autor chama de "lógica de processo" 4. O mérito do trabalho de Thompson, está justamente na explicitação de noções tão importantes como as de agência ou de experiência 5 que, não sendo assimiláveis num nível muito elevado de abstração, como o de Marx no Capital, são não obstante imprescindíveis para a análise histórica e para a construção da necessária ponte entre o abstrato e o concreto. O autor insiste, de um lado, na questão da liberdade na história e, de outro, na necessidade de se entender a lógica de processo como algo distinto à lógica do capital exposta por Marx. É certo que, se esta última se impõe historicamente, isto não se dá senão através de um processo de lutas, de avanços, de recuos, de resistências, que chega até mesmo a delimitar as possibilidades efetivas e o tipo de avanço capitalista num determinado momento histórico. Toda a dificuldade reside na articulação entre essas duas lógicas, articulação cuja necessidade Thompson, na verdade, nega 6.
Assim, por exemplo,

"se a concorrência intercapitalista ‘põe em prática’ as leis internas do capital, é forçoso reconhecer ‘a dominância da concorrência entre capitais sobre as relações entre capital e trabalho no movimento do modo capitalista de produção’. Ou seja, se as leis internas do capital somente se realizam através do permanente confronto entre os distintos capitais, a análise desta realização - que conforma o ‘movimento real’ do modo de produção - deve ser remetida em primeira instância à concorrência intercapitalista, e não às relações entre capital e trabalho" (Mazzucchelli, 1985, p. 53).

 Mas, se estas observações estão corretas, não são menos verdadeiras, por exemplo, as dificuldades apontadas por Hobsbawn (1984) para a introdução do taylorismo na Inglaterra, em função da resistência imposta pelos operários artífices que haviam construído, ao longo do século XIX, uma cultura de classe e uma organização sindical que tornavam bastante efetiva aquela resistência. Isso explica em boa medida, segundo o autor, as peculiaridades do capitalismo inglês. 7

Toda dificuldade reside na articulação entre a lógica interna do capital que, como relação social, já subsume o trabalho como seu elemento dominado (o que evidencia o acerto da afirmação de Mazzucchelli), e o da lógica do processo histórico, onde não apenas as determinações provenientes da relação de capital, mas também as do Estado e todas aquelas decorrentes do fato de estar sendo considerado não um modo de produção puro, mas uma formação social específica, devem ser levadas em consideração 8 .

Habermas pretende resolver a tensão explicitada por Gouldner através da articulação entre "sistema" e "mundo da vida". A proposta da Teoria da Ação Comunicativa é nada menos que constituir uma "nova teoria da sociedade", incorporando as mais variadas contribuições dos clássicos da sociologia e da psicologia, de Marx a Durkheim, passando por Weber, Parsons, Mead e Piaget, para ficarmos apenas nos mais importantes. Não tenho a pretensão de discutir aqui o conjunto dessa contribuição. Ao contrário, limitar-me-ei a uma análise da TAC centrado no seu eixo "marxista", que parte de Lukács e passa pelos clássicos da teoria crítica 9.

A crítica de Habermas a Luckàcs é, na verdade, o ponto de partida de sua análise da recepção de Weber na tradição marxista (e de sua leitura weberiana do marxismo), que desemboca na discussão que o autor faz da contribuição de Adorno e Horkheimer. O autor lembra que o processo de racionalização segundo Weber e as teses associadas de "perda de sentido" e "perda de liberdade" são traduzidas por Luckàcs como um processo de "coisificação" (Verdinglichung). Assim, a forma específica da objetividade no capitalismo, que pode ser descoberta através do protótipo que é a estrutura da relação mercantil, fixa a forma como os indivíduos "concebem categoricamente a natureza objetiva, suas relações interpessoais e sua própria natureza subjetiva", de modo que as relações sociais e as vivências pessoais são assimiladas a coisas, "a objetos que podemos perceber e manipular".

Luckàcs desenvolve seu conceito de coisificação a partir da análise de Marx da forma mercadoria, considerado, por outro lado, coisificação e racionalização como dois aspectos de um mesmo processo, com o que "pode desenvolver dois argumentos que se apóiam na análise de Weber e que, não obstante, se dirigem contra suas consequências": por um lado, o conceito de racionalidade formal é reinterpretado "no sentido de que a forma mercadoria assume um caráter universal, convertendo-se assim na forma de objetividade simpliciter da sociedade capitalista" e, por outro, o conceito de forma de objetividade é reconduzido "ao contexto da teoria do conhecimento, de onde subrepticiamente havia sido tomado, para levar a cabo uma crítica da coisificação da perspectiva filosófica da crítica de Hegel a Kant", com o objetivo implícito de negar "a afirmação central de Weber de que a dissociação das esferas culturais de valor ... a unidade da razão que a metafísica havia suposto ... não pode ser reconstruída nem sequer dialeticamente" (Habermas, 1981, vol. I, p. 453 e seg.).

É nesse plano da crítica de Hegel a Kant que Luckàcs pretende "uma demonstração de tipo filosófico das barreiras imanentes à racionalização". É claro que a recepção de Hegel por Luckàcs é feita pelo filtro da crítica de Marx, de modo que a reconciliação dos momentos dissociados da razão não se dá no campo da filosofia, mas no da ação. Mas Luckàcs comete, segundo Habermas, "o erro decisivo, que certamente lhe vem sugerido por Marx, de voltar a absorver na teoria a conversão da filosofia em ‘prática’ e de representá-la como realização revolucionária da filosofia", redundando numa "volta ao idealismo objetivo" (idem, p. 460 e seg.). Assim sendo, a versão luckàsiana da coisificação seria "teoricamente questionável pela sua conexão afirmativa com o idealismo objetivo de Hegel", além de, por outro lado, ter sido desmentida historicamente, seja pelo fracasso da revolução soviética, que veio confirmar o prognóstico de Weber de uma burocratização acelerada, ao mesmo tempo em que o terror estalinista confirmava "a crítica de Rosa de Luxemburgo à teoria da organização de Lenin e aos fundamentos que esta tinha na filosofia objetivista da história", seja pela capacidade de integração demonstrada pelas sociedades capitalistas, capacidade essa presente tanto no fascismo como na cultura de massas.

A crítica da razão instrumental de Adorno e Horkheimer se propõe justamente, segundo o autor, a superar essa limitação de Luckàcs, fazendo a crítica da coisificação "sem assumir as consequências de uma filosofia objetivista da história" (idem, p. 465 e seg.). Sua solução parte de uma generalização da categoria de coisificação, cujas raízes históricas vão além da constituição da relação mercantil, para ancorar-se "nos próprios fundamentos antropológicos da história da espécie, na forma da existência de uma espécie que tem que se reproduzir por meio de trabalho". Assim, a razão instrumental é concebida em termos de relações sujeito-objeto. Mas o domínio sobre a natureza inclui o domínio sobre o homem, de modo que a razão instrumental transforma a "dominação da natureza interna e externa" em "fim absoluto da vida", tornando-se "motor de uma auto afirmação selvagem" (idem, p. 482 e seg.). Mas,

a razão instrumental é uma razão ‘subjetiva’ também no sentido de que expressa as relações entre sujeito e objeto da perspectiva do sujeito cognoscente e agente, mas não da perspectiva do objeto percebido e manipulado. Daí que não ofereça nenhum meio de explicar o que significa a instrumentalização das relações sociais e intra-psíquicas, vista da perspectiva da vida violentada e deformada ... A crítica da razão instrumental, ao permanecer prisioneira das condições da filosofia do sujeito ... carece de uma conceituação suficientemente dúctil para referir-se à integridade daquilo que diz destruído pela razão instrumental" (idem, p. 496 e seg.).

É assim que, segundo Habermas, a teoria crítica se coloca ante o paradoxo de, por um lado, prosseguir a grande tradição filosófica e, por outro, decretar o seu fim. A conseqüência disso em Adorno é a "renúncia às pretensões próprias da teoria: dialética negativa e teoria estética não podem fazer outra coisa senão ‘remeter-se impotentes uma à outra’". A conclusão de Habermas é de que o fracasso do programa da primeira teoria crítica se deve ao esgotamento do paradigma da filosofia da consciência, cujos limites Adorno e Horkheimer transbordam. O objetivo explícito do autor é retomar a crítica da coisificação, abandonando esse paradigma e substituindo-o por "uma teoria da comunicação [que] permite retornar a uma empresa que no seu momento ficou interrompida com a ‘crítica da razão instrumental’; essa mudança de paradigma permite uma reposição das tarefas da teoria crítica da sociedade" (idem, p. 493).

Em Adorno e Horkheimer, a integridade é dada pela faculdade mimética que, na medida em que "apela espera à conceituação das relações sujeito-objeto definidas em termos cognitivo-instrumentais", deve ser considerada "como genuinamente contrária à razão, como impulso". Segundo Habermas, o núcleo racional dessas operações miméticas só pode ser esclarecido abandonando-se o paradigma da filosofia da consciência em favor do paradigma da "filosofia da linguagem, do entendimento intersubjetivo ou comunicação", de modo a inserir o aspecto cognitivo-instrumental "no conceito mais amplo de racionalidade comunicativa" (idem, p. 497). A seguinte assertiva resume o ponto de partida de Habermas:

"se partimos de que a espécie humana se mantém através das atividades socialmente coordenadas de seus membros e de que esta coordenação tem que se estabelecer por meio da comunicação tendente a um acordo, então a reprodução da espécie exige também o cumprimento das condições de racionalidade imanentes à ação comunicativa" (Habermas, 1981, vol. I, p. 506).

A idéia é que o processo de racionalidade em que as imagens religioso-metafísica do mundo vão perdendo sua credibilidade (e que culmina com a modernidade) faz com que o conceito de autoconservação adquira uma orientação a um tempo universalista e individualista, tendo que satisfazer as condições de racionalidade da ação comunicativa, passando a depender assim das "operações interpretativas dos sujeitos que coordenam sua ação através de pretensões de validade suscetíveis de crítica". Assim, "a perspectiva utópica de reconciliação e de liberdade está baseada nas próprias condições de socialização comunicativa dos indivíduos, está já inserida no mecanismo linguístico de reprodução da espécie" (idem, p. 506 e seg.). Mas, por outro lado,

"a integração dos membros da sociedade que se efetua através de processos de entendimento encontra seus limites não somente na violência dos interesses em pugna mas também na pressão que exercem os imperativos da autoconservação do sistema, os quais desenvolvem objetivamente seu poder penetrando através das orientações de ação dos atores afetados. A problemática da coisificação não resulta então tanto de uma racionalidade dirigida a fins absolutizada a serviço da autoconservação de uma razão instrumental convertida em selvagem, como de que a razão funcionalista da autoconservação sistêmica, quando fica abandonada a seu próprio movimento, passa por cima da pretensão de razão radicada na sociabilidade comunicativa." (idem, p. 507 e seg.).

Chegamos aqui ao núcleo da alternativa proposta por Habermas e ao aspecto mais interessante de sua contribuição. Como acabei de apontar, a solução do autor para o impasse a que chegou a teoria crítica radica na substituição do paradigma da filosofia da consciência pelo da ação comunicativa, de modo a tornar possível uma articulação entre teoria da ação e teoria dos sistemas, articulação que teria como objetivo fornecer uma alternativa ao conceito teleológico de ação da dialética idealista. Com isso seria possível fugir da armadilha hegeliana a que Luckàs estaria preso, sem cair no beco sem saída do pessimismo frankfurtiano.

Habermas pretende resolver o dilema através de uma articulação entre os dois conceitos opostos e complementares de "sistema" e de "mundo da vida" (Lebenswelt), partindo, com Durkheim, das mudanças nas bases da integração social assentada em práticas rituais que constituem o núcleo da integração social nas sociedades primitivas. Habermas fala de um processo de racionalização social (de "linguistização do sacro") em que a formação do consenso depende cada vez mais da ação comunicativa que passa, assim, a incorporar as funções sociais originalmente cumpridas pela prática ritual e pelo simbolismo religioso. Nesse processo formam-se as estruturas de um mundo da vida liberto do mito, definido como "um acervo de padrões de interpretação transmitidos culturalmente e organizados linguisticamente" (Habermas, 1981, vol. 2, p. 172), "um a priori social inscrito na intersubjetividade do entendimento lingüístico" (idem, p. 186).

Mas a Lebenswelt não se resume ao "saber de fundo transmitido culturalmente", senão que inclui também o "saber intuitivo", que permite aos indivíduos fazer frente a situações determinadas, e a "práticas socialmente arraigadas" (idem, p. 190). O mundo da vida seria, assim, formado por três componentes estruturais, relacionados a três processos de reprodução. McCarthy resume o ponto com precisão:

"assim pois, aos diferentes componentes estruturais do mundo da vida (cultura, sociedade, personalidade) correspondem processos de reprodução (reprodução cultural, integração social, socialização), aspectos que estão enraizados nos componentes estruturais dos atos de fala (proposicional, ilocucionário, expressivo). Essas correspondências estruturais permitem à ação comunicativa cumprir suas diferentes funções e servir como meio adequado para a reprodução simbólica do mundo da vida. Quando essas funções sofrem interferências, produzem-se perturbações no processo de reprodução e os correspondentes fenômenos de crise: perda de sentido, perda de legitimação, confusão de orientações, alienação, psicopatologias, rupturas da tradição, perda de motivação" (McCarthy, 1987 , p. 466).10

Habermas pensa numa dinâmica evolutiva em que as sucessivas coações impostas pela necessidade de reprodução material da Lebenswelt vão progressivamente constituindo mecanismos automáticos de coordenação que não dependem de uma ação comunicativa voltada ao entendimento e que se impõem como imperativos sistêmicos que se, por um lado, facilitam a articulação de respostas aos problemas impostos pela reprodução material no mundo da vida provocam, por outro, um desacoplamento progressivo entre as formas de interação social características deste e as formas de integração sistêmica. Este processo tem, segundo o autor, dois momentos decisivos: primeiro, a passagem das sociedades primitivas às sociedades tradicionais estatalmente organizadas, quando o poder de Estado "se diferencia das imagens religiosas do mundo que legitimam a dominação" e, segundo, o surgimento das sociedades modernas, onde "os subsistemas economia e administração estatal, especializados, ... se diferenciam daqueles de ação que cumprem primariamente tarefas de reprodução cultural, de integração social e de socialização" (Habermas, 1981, vol. 2, p. 238 e seg.).

No curso da evolução social há não apenas um progressivo distanciamento entre Lebenswelt e sistema e uma diferenciação estrutural no interior da primeira, mas também uma diferenciação e especialização no interior do sistema que se transforma, por sua vez, em uma segunda natureza, ou seja, que não apenas se desliga das estruturas sociais do mundo da vida, mas que chega a impor-se sobre este em função dos imperativos indispensáveis a uma coesão social cada vez menos ligada ao consenso normativo comunicativamente produzido. Há nesse ponto uma inflexão da tendência que permitiu a superação das imagens míticas do mundo fazendo com que o consenso de base religiosa fosse substituído por processos linguísticos de formação do consenso.

Com o capitalismo, há um processo contrário de deslinguistização, com a construção de meios de controle independizados do processo de formação do consenso através da ação comunicativa dirigida ao entendimento. Na verdade, não se trata propriamente de uma mudança de sentido, já que as duas tendências são constitutivas do processo de racionalização que é a base da teoria habermassiana da evolução social e de sua proposta de "reconstrução do materialismo histórico" (vide Habermas, 1976). O que ocorre com o capitalismo, a primeira das sociedades modernas, é que a progressiva separação entre ação orientada ao êxito (base da integração sistêmica) e a ação orientada ao entendimento (base da integração social) se estabelece em termos de uma colonização da Lebenswelt pelo sistema, pela predominância dos meios de comunicação deslinguistizados que substituem a necessidade do entendimento através da ação comunicativa por uma forma de interação que não exige dos sujeitos mais do que um sim ou um não diante das pretensões de validade suscetíveis de crítica, como exemplificam os sistemas eleitorais das democracias modernas.

Mas a solução final de Habermas redunda num funcionalismo de tipo parsoniano, cujo simplismo pode ser devidamente medido pela leitura do quadro apresentado na página 454 do segundo volume da "Teoria da Ação Comunicativa" (Habermas, 1981), onde toda a complexidade das relações entre sistema e mundo da vida se vê transformada em dois fluxos circulares em que a esfera da vida privada se liga ao sistema econômico por intermediação do dinheiro e a esfera da opinião pública, ao sistema administrativo por meio do poder. Na verdade, toda a sua engenhosa solução parte do reconhecimento de que uma outra, teoricamente mais consistente, como a de Marx, já não seria possível.

A superioridade da análise marxiana, segundo Habermas, reside justamente na capacidade de Marx em articular, através de um mesmo princípio, as duas formas de integração (social e sistêmica) a que se refere quando propõe a análise da relação entre sistema e mundo da vida:

"Com a análise do duplo caráter da mercadoria Marx obtém os pressupostos fundamentais da teoria do valor que lhe permitem descrever o processo de desenvolvimento das sociedades capitalistas, da perspectiva econômica do observador, como um processo de (autovalorização ou) autorrealização do capital submetido a crises cíclicas; e simultaneamente, da perspectiva histórica dos afetados (ou do participante virtual) como uma interação entre classes sociais prenhe de conflitos" (Habermas, 1981, vol. 2, p. 472).

Ou, mais adiante:

"a força de trabalho se consome, por um lado, em ações e em plexos de cooperação e, por outro, como redimento abstrato para um processo de trabalho formalmente organizado com vistas à realização do capital. Nesse sentido, a força de trabalho que os produtores alienam constitui uma categoria em que os imperativos de integração sistêmica se encontram com os imperativos da integração social: como ação pertence ao mundo da vida dos produtores, como rendimento, ao plexo funcional da empresa capitalista e do sistema econômico em seu conjunto" (idem, p. 473).

Assim, a inerência da força de trabalho ao sujeito, que a diferencia de todas as outras mercadorias, implica em que "no trabalho assalariado estão indissoluvelmnete mescladas as categorias de ‘ação’ e ‘ função, de integração social e de integração sistêmica". É a partir daí que, para o autor, Marx pode explicar o processo de abstração real  e de coisificação da força de trabalho:

"a esta força de trabalho monetarizada, de que o empresário se apropria como uma mercadoria estranha ao contexto da vida do produtor, Marx chama de ‘trabalho abstrato’... A análise do duplo caráter da mercadoria força de trabalho esquadrinha passo a passo as operações neutralizadoras pelas quais se constitui esse trabalho abstrato posto à disposição de imperativos sistêmicos que se tornam indiferentes ao mundo da vida" (Habermas, 1981, vol 2, p. 474).

Para o autor, a superioridade de Marx em relação à economia política clássica se deve justamente a essa capacidade de encarar, a um tempo, a integração sistêmica e a integração social. O erro dos economistas clássicos teria sido justamente o de não perceber a contradição entre esses dois princípios, procurando mostrar os imperativos sistêmicos como harmônicos com as "normas fundamentais de uma comunidade que garante a liberdade e a justiça" 11 .

 Na verdade, a solução de Marx tem uma vantagem decisiva em relação àquela do próprio Habermas: a de chegar à referida articulação que este último pretende sem a necessidade de lançar mão de idealizações do tipo "situação ideal de fala", "discurso racional", "comunicação sistematicamente distorcida", "formação de vontade isenta de coação" (que até o habermassiano McCarthy - 1987, p. 434 e seg. - crítica), conceitos que servem basicamente para a construção de um tipo ideal que permita isolar as contradições inerentes à própria Lebenswelt (contradições cuja existência, diga-se, o autor em princípio não nega), com o objetivo de construir aquele regime de dicotomias (entendimento-sucesso, sociedade crítica-Estado) cuja raiz kantiana Sfez (1988), entre outros, denuncia e que lhe permitirá reduzir todas as contradições ao binômio durkheiminiano integração social-integração sistêmica. Com isso, o autor não faz senão trocar a utopia socialista de Marx 12 como veremos adiante, pela utopia de uma ação comunicativa isenta de coações externas 13, o que lhe permite substituir, na análise da coisificação, a teoria da consciência de Lukács pela problemática análise das patologias da comunicação 14.

Esse anti-clímax da Teoria da Ação Comunicativa está ligado intrinsecamente à idéia de que a felicidade da teoria marxiana, na articulação entre os elementos de determinação e de liberdade histórica, dever-se-ia à especificidade da mercadoria força de trabalho, situada exatamente no ponto de intersecção entre sistema e mundo da vida. Mas essa especificidade do objeto de Marx não se repetiria em outros casos de modo que, podemos deduzir, o método marxiano não seria generalizável.

 Ora, a Indústria Cultural, como tive a oportunidade de mostrar (Bolaño, 1997c) pode ser tomada justamente como elemento de mediação entre mundo da vida e sistema, se observarmos que ela própria é capital que subsume, no sentido marxiano, um tipo especial de trabalho, o trabalho cultural, necessário para a realização da sua função mediadora entre as necessidades de reprodução ideológica e de acumulação do capital,  de um lado e, de outro, de reprodução simbólica da própria Lebenswelt, de modo que o processo de "colonização" envolve negociação, dominação, dependência, hegemonia. Assim sendo, a tensão determinismo-voluntarismo pode ser resolvida em termos puramente marxianos, ao localizarmos precisamente o trabalho cultural como aquele elemento que, como no caso de trabalho em Marx, sem deixar de fazer parte do mundo da vida, transforma-se naquela mercadoria especial (força-de-trabalho), produtora da mais-valia que garante a reprodução ampliada do sistema.

No caso da mercadoria força de trabalho, analisada por Marx, sabemos o significado disso: a classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que participa do processo de produção e reprodução do capital, pela sua própria posição na estrutura produtiva, torna-se uma força revolucionária, podendo transformar a cooperação capitalista em cooperação a seu próprio favor e do conjunto das camadas subalternas, interessadas na superação do capitalismo e na construção de uma sociedade mais justa. No que se refere ao trabalho cultural, há três questões que devem ser consideradas: em primeiro lugar, como toda a economia política da comunicação mostra, a subsunção do trabalho cultural no capital é difícil, o que lhe confere um grau de liberdade, diferenciado evidentemente por categoria, mas em todo caso maior do que aquele atribuído ao trabalho manual a partir da Revolução Industrial, ainda que a tendência atual vá justamente no sentido do apagamento dessa diferença. Em segundo lugar, o trabalho cultural é um trabalho de mediação simbólica e é precisamente esse fato que dá relevância à questão com a qual nos ocupamos aqui. Finalmente, em dois artigos recentes (Bolaño 1995 e 1997 b) procurei ampliar o alcance dessa discussão, no sentido de considerar o conjunto do trabalho intelectual, apontando, como a característica central da terceira revolução industrial, os processos convergentes de subsunção do trabalho intelectual e de intelectualização geral dos processos de trabalho, que explicam, a meu ver, amplamente a essência da atual reestruturação do capitalismo.

    A generalização do conceito de trabalho intelectual e de suas especificidades na atual etapa de transformações por que passa o sistema capitalista em nível global (Bolaño, 1995) pode ser útil para a compreensão da problemática da ideologia na sua totalidade e, de modo muito especial, no debate sobre a introdução das novas tecnologias da comunicação e da informação nos diferentes processos sociais (na produção, na circulação, na organização das empresas capitalistas e do Estado, nas relações inter-empresas, nas relações inter-pessoais), inclusive no processo educativo, terreno onde avança hoje de forma assustadora a ideologia neoliberal e suas aparentadas.  É esse processo que fornece os elementos concretos para a implantação da ideologia da "sociedade da informação".

Podemos retomar agora rapidamente a questão da educação posta bem acima e utilizar a chave interpretativa lá avançada para entender o cerne da questão que nos interessa. Com isso poderemos explicar o verdadeiro sentido daquilo que Lévy (1994)      chama de "inteligência coletiva". A expansão das redes telemáticas em nível mundial está de fato constituindo um ciberespaço no qual a esfera pública global se articula, abrindo possibilidades de ação criadora que, no entanto, são bloqueadas pelo próprio sistema, construído como uma teia extremamente hierarquizada e assimétrica 15 que esteriliza em grande medida o seu potencial crítico. Na realidade, ocorre algo semelhante ao que foi dito acima sobre o sistema de ensino: a criação de uma estrutura complexa de poder e hegemonia, destinada a enquadrar o trabalho de cada um dos participantes, de modo a reproduzir constantemente as hierarquias e as estruturas de dominação.

 O sentido último desse movimento, que não se limita ao que ocorre com a internet mas engloba todo o amplo processo de informatização geral das sociedades capitalistas nesta virada de século, incluindo e articulando as lógicas de reestruturação do Estado e do capital e seus amplo impactos sobre o mundo da vida, é a reconstrução das bases da expansão capitalista através da exploração do trabalho intelectual, burocrático, de coordenação. O desenvolvimento capitalista no século XXI, se não for bloqueado por fatores que não cabe aqui analisar, ocorrerá sobre a base da exploração das energias mentais de uma classe trabalhadora renovada pela própria crise em que estamos metidos (Bolaño, 1995). Este é o outro lado da moeda, o elemento de inclusão da atual reestruturação do sistema que Kurz (1991) não consegue perceber, não conseguindo, em consequência, equacionar, nem sequer minimamente, a problemática do "elemento subjetivo", permanecendo seu enfoque totalmente restrito ao pólo determinista da oposição entre os dois marxismos acima citada.

 Se a revolução tecnológica, marca permanente do desenvolvimento capitalista, traz sempre inegáveis possibilidades liberadoras, como observou Marx com clareza em "O Capital", não é menos verdade que essas mesmas possibilidades são negadas na prática pela própria forma fetichista que a introdução do progresso técnico adquire nas condições históricas em que prevalece a produção capitalista. Cabe aos interessados organizar-se politicamente para influenciar a trajetória das mudanças a seu favor, lutando, por exemplo, pela redução da jornada de trabalho e, com isto, a socialização dos ganhos de produtividade ou para a socialização do acesso às redes telemáticas, a favor da maior autonomia possível da sociedade civil na sua utilização.

 Nesse sentido, o papel do trabalho intelectual é absolutamente crucial pois, ainda sendo ele trabalho humano em geral, a sua especificidade dificulta uma subordinação total e completa aos ditames da produção mercantil, muito embora o movimento concreto esteja apontando hoje justamente nessa direção. Mas a sua especificidade não é outra coisa senão o seu caráter de elemento necessário ao processo de mediação que, dirigido fundamentalmente para a legitimação das relações sociais capitalistas, abre possibilidades de resistência e de ação libertadora. Nem a utopia tecnológica de Lévy, nem o determinismo apocalíptico de Kurz podem dar conta desta contradição.

Ao contrário, uma perspectiva teórica como a aqui proposta, que restitui a centralidade do conceito de trabalho, ao mesmo tempo em que incorpora, no cerne mesmo da definição da categoria fundamental, a problemática da mediação cultural, apontando para a possibilidade de integração entre os referenciais da crítica da economia política e de uma antropologia marxista, com vistas à compreensão do fenômeno atual de constituição de uma cultura global capitalista, com a invasão de todas as esferas de vida pela lógica do capital, essa perspectiva teórica é a única capaz de dar conta do problema em toda a sua extensão.

Não é possível neste texto analisar o trabalho de Kurz. O quadro de referência para uma avaliação crítica da sua contribuição, de qualquer forma, está explicitado de forma bastante clara, assim espero, acima. No que segue, vou procurar discutir o livro citado de Lévy, cujo objeto está mais próximo daquele que nos ocupa neste momento. Antes, devo dizer, como já deve ter ficado muito claro para o leitor, que a solução aqui adotada para o problema das relações entre determinações estruturais e liberdade histórica é muito mais próxima da do paradigma da coisificação de Lukács do que daquela das patologias da comunicação de Habermas. Não é em Lukács, entretanto, que me inspiro em minha proposta de recuperação do referencial de Marx para a compreensão da atual reestruturação capitalista e da centralidade que nela adquirem as tecnologias da informação e da comunicação. Prefiro, neste ponto, citar Rui Fausto mais uma vez.

Falando sobre o destino da antropologia em Marx, Fausto aponta que as noções de "homem" e de "essência humana", na sua obra de juventude, "além de funcionar como fundamento teórico da crítica da economia (a rigor, fundamento de um fundamento, a noção de trabalho alienado’)" representam "uma espécie de ‘fundamento prático’ da política" (Fausto, 1983, p. 227). No caso específico dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, há "dois fundamentos práticos, ou um fundamento prático que se manifesta em dois níveis de consciência, o do Sujeito (o filosófico crítico) e do objeto (isto é, o dos sujeitos ‘históricos’)" (idem, p. 228) 16 .  Isto muda na obra da maturidade de Marx: "à dupla transcendentalidade prática na obra da juventude corresponde, na obra madura, uma dualidade não mais transcendental, a que distingue a consciência real do proletariado da consciência revolucionária do Sujeito (teórico-dirigente revolucionário, ou partido)" (idem, p. 228 e seg.). Agora já não há "ação revolucionária sem intervenção do sujeito", como nos Manuscritos, e

"a idéia de uma sociedade humanizada, a qual se abria para um discurso plenamente tematizável embora descrevesse uma situação pós-histórica (essa dupla característica correspondia à sua função de fundamento) passa a ser um horizonte. É a antevisão necessariamente marginal da "humanidade humana" (...). A essa transformação do fundamento subjetivo em horizonte ­ lugar por excelência da "antropologia" na obra madura ­ corresponde a emergência de dois discursos, ausentes até aqui, o discurso histórico e o discurso estratégico". (idem, p. 229).

Rui Fausto explica da seguinte forma as relações entre os discursos histórico e político e a teoria d’O Capital : 17

"Para o discurso histórico-político definimos dois pontos que são as suas referências extremas: um solo histórico que tem como um de seus níveis a consciência atual do proletariado; um horizonte representado pelo objetivo último, o socialismo. Esses dois pontos que, na obra política se dispõem ­ diríamos ­ horizontalmente, vão-se refletir verticalmente em O Capital. O primeiro desses pontos se reflete, fora do espaço propriamente lógico, nos textos em que Marx descreve a experiência do proletariado (...) Mas se o primeiro limite do discurso político se reflete fora do espaço lógico, o segundo, o horizonte do socialismo, se reflete no horizonte de significação (verticalmente, como o solo primeiro, mas não fundante de significações). De fato, a leitura que Marx faz do capitalismo é uma reconstituição de suas leis sobre o fundo de um universo de referência que o transcende " 18 (Fausto, 1983, p. 232).
 

Nessa perspectiva, a utopia de uma "antropologia do ciberespaço" pode ser , em princípio, aceita como "horizonte de significação" para a análise teórica da chamada "sociedade da informação", com o que podemos recuperar os aspectos mais interessantes da contribuição de Lévy, deslocando-os do contexto utópico liberal em que foram formuladas e retomando o socialismo como "universo de referência".
Para Lévy, à expansão das redes telemáticas e ao desenvolvimento de uma indústria multimídia unificada, estão ligados "aspectos civilizatórios"(novas estruturas de comunicação, regulação e cooperação, novas linguagens e técnicas intelectuais) que apontam para a passagem "de uma humanidade a outra". As "novas técnicas de comunicação por mundos virtuais" teriam aí uma dimensão importante como a dos avanços da conquista espacial que, ao perseguir explicitamente o estabelecimento de colônias humanas em outros planetas, indica uma mudança radical do habitat e do meio para a espécie, ou daqueles da biotecnologia e da medicina, que "nos incitam a uma reinvenção da nossa relação com o corpo, com a reprodução, com a doença e com a morte", levando a uma "seleção artificial do humano transformado em instrumento pela genética", ou do desenvolvimento das "nanotecnologias capazes de produzir materiais inteligentes em massa, capazes de modificar completamente nossa relação com a necessidade natural e com o trabalho".

 No caso da constituição do ciberespaço, cuja forma e conteúdo estariam ainda "especialmente indeterminados", são os problemas do laço social que estão sendo postos em novas bases, ao mesmo tempo em que "os progressos das próteses cognitivas com base digital transformam nossas capacidades intelectuais tão nitidamente quanto o fariam mutações de nosso patrimônio genético" (Lévy, 1994, p. 33 e seg.) 19 .

Conclusão: "a hominização, o processo de surgimento do gênero humano, não terminou mas acelera-se de maneira brutal" (idem, p. 15). No capítulo 5, essa, digamos, provocativamente, "ontologia do ser social" chega ao ápice quando, a partir de uma releitura da teologia farabiana que, entre os séculos X e XII teria "teorizado pela primeira vez o intelectual coletivo", o autor se propõe explicitamente a desenhar "o programa de catedrais invertidas, esculpidas segundo o espírito humano", apresentando a perspectiva de uma "teologia transformada em antropologia", de modo que "o que foi teológico torna-se tecnológico" (idem, p. 83).

"Ao lado de índices bastante inquietantes que voltam nossso olhar aos aspectos mais sombrios da Terra, do Território e do Universo Mercantil, a passagem do terceiro milênio contém os germes, a figura virtual de um espaço do saber autônomo (...) Esse quarto espaço antropológico, caso venha a se desenvolver, acolherá formas de auto-organização e de sociabilidade voltadas para a produção de subjetividades. Intelectuais coletivos caminharão nômades em busca de qualidades, modalidades de ser inéditas. Não será o paraíso na Terra, uma vez que os outros espaços, com suas coerções continuarão a existir". (Lévy, 1994, p. 122 e seg.) 20 .

Assim, as tecnologias da inteligência "não se limitam a ocupar um setor entre outros da mutação antropológica contemporânea: elas são potencialmente sua zona crítica, seu lugar político" (idem, p. 15). Ao criar um novo "espaço antropológico", o "espaço do saber", abrem a possibilidade de auto-realização do gênero humano pois, "por intermédio dos mundos virtuais, podemos não só trocar informações, mas verdadeiramente pensar juntos, pôr em comum nossas memórias e projetos para produzir um cérebro cooperativo" (idem, p. 96).

 Deriva-se daí um conceito de democracia radical, contra as "hierarquias burocráticas (...), as monarquias midiáticas (...) e as redes internacionais da economia (...). Uma democracia distribuída por toda parte ativa, molecular" que permitiria à humanidade"reapoderar-se de seu futuro. Não entregando seu destino nas mãos de algum mecanismo supostamente inteligente, mas produzindo sistematicamente as ferramentas que lhe permitirão constituir-se em coletivos inteligentes capazes de se orientar entre as marés tempestuosas da mutação"(idem, p. 15). Trata-se de um conceito de democracia imanente, 21 oposta a autoridades transcendentes: Deus, a Igreja, o partido, a escola, a TV, o chefe, os antigos, os especialistas 22 .

 É interessante notar que a mesma radicalidade não se aplica, em absoluto, ao capital:

"a grande máquina cibernética do capital, sua extraordinária potência de contração, de expansão, sua flexibilidade, sua capacidade de se insinuar por toda parte, de reproduzir continuamente uma relação mercantil, sua virulência epidêmica parecem invencíveis, inesgotáveis. O capitalismo é irreversível. É daqui por diante a economia, e a instituiu como dimensão impossível de ser eliminada da existência humana. Sempre haverá o Espaço das Mercadorias, como sempre haverá a Terra e o Território." (Lévy, 1994, p. 120)

Não deixa de ser interessante a idéia, que o autor desenvolve no capítulo segundo, em contraposição justamente à de "sociedade da informação", de uma economia que "girará ­ como já o faz ­ em torno do que jamais se automatizará completamente, em torno do irredutível: a produção do laço social, o ‘relacional’"(idem, p. 41). Não apenas uma "economia do conhecimento", mas algo mais geral, uma "economia do humano", em que "as necessidades econômicas se associam à exigência ética", constituindo-se uma "verdadeira indústria de restruturação de laços sociais, de reinserção dos excluídos, de reconstituição de identidades para indivíduos e comunidades desestruturados" (idem, p. 42). O autor percebe que não está falando de uma economia mercantil 23. Mas o desejo de compatibilizar a sua "utopia" de "renovação do laço social por intermédio do conhecimento" (idem, p. 26) e de constituição da inteligência coletiva com a economia mercantil leva-o ao seguinte:

"Mas nem a economia do conhecimento, nem a economia ampliada das qualidades humanas devem se desenvolver como economias dirigidas(...) Não-mercantil não significa forçosamente estatal, monopolista, hostil à iniciativa privada ou alérgico a toda forma de avaliação. O problema da engenharia do laço social é inventar e manter os modos de regulação de um liberalismo generalizado" (p. 43, grifo nosso). 24

Ora, mas o que é, de fato afinal, o ciberespaço onde se constrói a inteligência coletiva senão uma criação do capital, esse poder transcendente (que se alça acima da Lebenswelt, diria Habermas), para atender a seus desígnios de potência e de dominação? Não estamos falando de outra coisa senão daquela esfera pública global em construção a que me referi acima e que contém e reproduz as assimetrias e hierarquias próprias do capitalismo, que repõe em nível global as condições de criticidade e exclusão típicos da esfera pública burguesa clássica, relegando a maioria da população mundial à submissão à lógica da massificação e do Estado Nacional.

O que seria, afinal, o intelectual coletivo que participa hoje desse ciberespaço senão todos nós, proletários intelectualizados e trabalhadores intelectuais em fase de acelerada proletarização e subsunção num capital interessado hoje fundamentalmente na extração das nossas energias mentais para garantir a sua reprodução ampliada enquanto valor que se valoriza sugando trabalho vivo não pago? No momento atual, o intelectual coletivo não é aquele ser que se auto-constrói, mas o trabalhador coletivo criado pelo (e criador do) capital, no interesse do qual se dá a cooperação.

Para que essa cooperação venha a dar-se em favor do próprio coletivo, para que a esfera pública global se autonomize e expanda ao ponto de constituir uma humanidade como a que pretende Lévy, é preciso superar as barreiras impostas pelo próprio capital à efetivação do potencial liberador que o de desenvolvimento capitalista cria. Para tanto, é preciso ultrapassar a utopia liberal radical do autor e repor o horizonte significativo do socialismo.

Com a constituição, hoje, do trabalhador intelectual coletivo, o Sujeito marxiano, transcendente, pode finalmente dissolve-se no sujeito histórico. Lévy, mais do que qualquer outro dos "teóricos" do ciberespaço, detecta essa tendência e a expressa, ainda que de forma parcial e limitada. Isto posto, podemos concluir com o belo trecho a seguir, cuja força emana do inegável poder de sedução que têm as utopias.

"Hoje, o novo proletariado não trabalha mais com signos ou coisas, mas com massas humanas brutas. Acompanha os povos em trânsito em meio às tempestades da grande mutação. Ele humaniza os corpos, os espíritos, os comportamentos coletivos. Do coração da batalha, forja às cegas , sem jeito, as armas da autonomia. Eis os novos ‘paus para toda obra’ da sociedade, os anônimos que produzem as condições da riqueza longe das luzes do espetáculo, aqueles cujo trabalho é, ao mesmo tempo, o mais duro, o mais necessário e o mais mal pago: a legião dos educadores, diretores de colégio, professores, formadores em geral. Vem encorpar esse contingente a multidão de assistentes, trabalhadores sociais, policiais... e carcereiros que não aguentam mais! E não esqueçamos a massa de auxiliares: os associativos, os não-governamentais, os caritativos, aqueles prontos a ajudar em todas as infelicidades, todo o povo miúdo que segue atrás dos fracassados e recolhe as vítimas da desterritorialização. Esses novos proletários carregam sobre seus ombros o relacional de massa, o laço social intensivo. Esses justos se encarregam de inserir toda uma população deixada por sua própria conta. E, graças à mobilidade e à aceleração dos fluxos, todos vivem à beira da exclusão, arriscando-se a saltar para fora. O novo proletariado só se emancipará pela união, saindo de suas categorias, prescindindo das alianças com aquele cujo trabalho se assemelha ao seu (mais uma vez, quase todos), evidenciando a operação que efetua na sombra, fazendo com que a produção da inteligência volte a ser objeto central de preocupação explícita de todos, investindo na pesquisa sobre a engenharia do laço social a fim de instrumentar, na medida do possível, aqueles que moldam o humano com as mãos nuas e à força do afeto. Quando o novo proletariado se tornar consciente de si mesmo decidirá suprimir-se enquanto classe, instituirá a socialização geral da educação, da formação e da produção de qualidades humanas" (Lévy, 1994, p. 44 e seg.).
 

Notas:

1. Cujo resultado mais elaborado encontra-se na última versão (Bolaño, 1997 c) da tese de doutoramento apresentada em 1993 ao Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.

2. A atual aproximação entre essas duas lógicas, permitida pela mudança estrutural que o conjunto do sistema capitalista vem sofrendo em nível global, e pelo predomínio da ideologia neoliberal nesse processo, é outro elemento complicador que precisa ser considerado.

3. Segundo Gouldner, a tensão entre voluntarismo e determinismo não constitui uma situação especial apremiante do marxismo. De fato, só é a expressão dentro deste de uma situação mais geral própria da teoria social, da sociologia acadêmica, não menos do que do marxismo." (Gouldner, 1980, p. 49). O autor cita em seguida a seguinte passagem de Peter Berger e Stanley Pullberg: "as teorias sociológicas podem ser agrupadas em dois polos. O primeiro nos apresenta uma concepção da sociedade como uma rede de significados humanos e encarnações de atividades humanas. O segundo ... nos apresentou uma sociedade concebida como uma facticidade coisificada, que vigia seus membros individuais com controles coercitivos e os molda em seus processos socializadores ... a primeira concepção apresenta o homem como ser social e a sociedade como sendo feita por ele, enquanto que a segunda coloca a sociedade como uma entidade que está sobre e contra o homem, e mostrou a este como sendo feito por ela" (idem).   Na seqüência, Gouldner aponta que essa tensão está presente não apenas na teoria social, mas também na filosofia moderna (onde cita a oposição entre existencialismo e estruturalismo) e na teologia cristã, remetendo o dilema para a Grécia antiga, para concluir que "a tensão entre voluntarismo e determinismo faz parte da estrutura profunda do pensamento ocidental. O marxismo não inventou essa tensão nem a resolveu" (idem, p. 51).

4. "O conceito de história como processo suscita imediatamente as questões da inteligibilidade e intenção. Cada evento histórico é único. Mas muitos acontecimentos, amplamente separados no tempo e espaço, revelam, quando se estabelece relação entre eles, regularidades de processo .... O materialismo histórico, desde a época de Vico, vem buscando uma expressão que denote as uniformidades de costumes, etc., as regularidades de formações sociais e as análises não como necessidades sujeitas a leis, nem como coincidências fortuitas, mas como pressões modeladoras e diretivas, articulações indicativas das práticas humanas. Já sugeri que a discussão avançará se abandonarmos a noção de ‘direito’ e a substituirmos pela de "lógica de processo’... A ‘resultante’ histórica não pode ser proveitosamente concebida como o produto involuntários da soma de uma infinidade de volições individuais mutuamente contraditórias ... Pois essas ‘vontades individuais’, por mais ‘particulares’ que sejam as suas ‘condições de vida’, foram condicionadas em termos de classes; e se a resultante histórica é então vista como a conseqüência de uma colisão de interesses e forças de classe contraditórios, podemos ver então como a agência humana dá origem a um resultado involuntário - ‘o movimento econômico afirma-se finalmente como necessário’ - e como podemos dizer, ao mesmo tempo, que ‘fazemos a nossa própria história’, e que a história se faz a si mesma’," (Thompson, 1974, p. 978 a 101).

5. O conceito de experiência é crucial: ele "faz a mediação entre ser social e consciência social, não como uma simples dialética, ou ponto de interação, mas como a experiência de pressões, limites, e possibilidades do ser social sobre a consciência social ... visto que o povo nunca se constituiu de fato em classes, os meios pelos quais um modo de produção determina a formação de classes (em qualquer grau) não pode ser facilmente entendido sem referência a ‘algo como uma experiência comum ...’ A determinação da consciência social pelo ser social transparece no curso da experiência e concomitantemente a inclinação, ou propensão, a agir como classe" (Kaye, 1984, p. 206 e seg.).

6. Na sua crítica ao cartesianismo althusseriano, o autor caba negando o próprio método de Marx n’O Capital, visto como uma "gigantesca incoerência", produto de "miscigenação teórica" entre o materialismo histórico e a economia política, de modo que o que Marx teria feito no Capital e sobretudo nos Grundrisse seria uma anti-economia política, marcada por "formulações ‘idealistas (até mesmo autorealizadoras, teleológicas) derivadas do procedimento abstracionista" (Thompson, 1978, p. 77).

7. O próprio Mazzucchelli aponta o problema com correção: "a análise deve, de início, se centrar na introdução da maquinaria a partir da ‘relação do capital com o trabalho vivo’, e só a partir dela. Mas, concretamente, a introdução da maquinaria é determinada pela concorrência intercapitalista, em particular pela ‘lei de redução dos custos de produção’ com vistas à obtenção do lucro extraordinário, e não - diretamente - pela relação do capital com o trabalho vivo. Trata-se, evidentemente, de dois planos teóricos distintos que devem, entretanto, manter uma relação de unidade." (idem, p. 47).

8. Apenas para explicitar um único complicador, se no nível da análise das funções, o elemento determinante da dinâmica, do ponto de vista da relação material típica do capitalismo, é, como explicitou Mazzucchelli, a concorrência capitalista, uma vez que, na relação capital-trabalho, o segundo polo é subsumido pelo primeiro, o mesmo não ocorre quando consideramos a forma Estado das relações sociais capitalistas. Neste caso, é antes de mais nada a luta de classes que imprime a dinâmica dos sistema. Essa complexidade inerente à análise do processo histórico prova, por outro lado, a necessidade da ampliação do referencial do materialismo histórico para além da consideração da relação material específica do capitalismo. Sobre a relação forma/função e a teoria marxista do Estado, inclusive a teoria da derivação, vide os dois capítulos introdutórios (às partes I e II respectivamente) de Bolaño (1993), eliminados da versão de 1997.

9. Para a discussão da proposta   teórica de Habermas no seu trabalho de 1981, vide Bernstein (1988), Thompson e Held (1982) e Habermas (1984). Para uma visão do conjunto da obra do autor, vide McCarthy (1987).

10.Versão em castelhano que amplia a versão original em inglês de 1978, incluindo um epílogo sobre a "Teoria da Ação Comunicativa".

11. A contribuição de Marx pode então ser assim vista: "na forma de uma crítica da economia política, Marx destruiu essa ilusão prenhe de conseqüências práticas. Mostrou que as leis da produção capitalista de mercadorias têm a função latente de manter uma estrutura de classes que desmente os ideais burgueses. O mundo da vida das camadas proprietárias do capitalismo, que se autointerpreta no direito natural racional e nos ideais da cultura burguesa em geral, se converte, em Marx, numa superestrutura sócio-cultural. Com a imagem da base e da superestrutura Marx dá também expressão à exigência metodológica de trocar a perspectiva interna do mundo da vida por uma perspectiva externa a partir da qual possam ser apreendidos, a tergo, os imperativos sistêmicos da economia autonomizada que operam sobre o mundo da vida burguês." (Habermas, 1981, p. 262). Assim, "a crítica marxista da sociedade burguesa parte das relações de produção porque aceita a racionalização do mundo da vida, mas trata de explicar as deformações desse mundo da vida racionalizado a partir das condições de sua reprodução material." (ide, p. 210) É interessante esclarecer que Aberramos adota a metáfora da base e da superestrutura, entendendo a base como "o complexo institucional que ancora no mundo da vida o mecanismo sistêmico que se faz em cada caso com o primado evolutivo e com isso circunscreve as possibilidades de aumento da complexibilidade em uma determinada formação social" (Habermas, 1981, vol. 1, p. 237) e interpretando a metáfora., como Kautsky, "na perspectiva de uma teoria da evolução social" (cf. Habermas, 1976). Assim, nas sociedades primitivas, "é o sistema de parentesco que assume o papel de relações de produção. A sociedade consta de base e super-estrutura num só compartimento: nem sequer a religião está tão diferenciada das instituições de parentesco que possa ser caracterizada como super-estrutura. Nas sociedades tradicionais as relações de produção estão encarnadas na ordem política, enquanto que as imagens religiosas do mundo desempenham funções ideológicas. Só com o capitalismo, onde o mercado cumpre também a função de estabilizar relações de classe, adotam as relações de produção forma econômica" (idem, p. 238).

12. que tem, de fato, um papel na articulação da sua teoria (cf. Fausto, 1983, cap. 1 e apêndice 1), como veremos mais adiante.

13. que também cumpre um papel de articulação da teoria (cf. Mc. Carthy, 1987, p. 333 a 337)

14. Na verdade o autor abandona o referencial marxista (e o nível de abstração que ele envolve) em favor de uma solução calcada em Parsons, acabando por limitar-se a um modelo analítico funcionalista extremamente simplificador, incorporando inclusive, no quadro da p. 454 do segundo volume da TAC (que o autor utiliza para discutir, na seqüência das críticas que faz a Marx - p. 479 e seg. -, a problemática da pacificação do conflito de classes no capitalismo tardio), o modelo de fluxo circular dos economistas neoclássicos, cujas limitações são sobejamente conhecidas. Mesmo que, a partir daí, o autor desenvolva uma série de considerações das mais sensatas sobre o Welfare State, em nenhum momento apresenta qualquer evidência da superioridade do seu esquema analítico em relação à teoria marxista e, mais, em nenhum momento trata de problemas que já não tenham sido abordados pelos teóricos marxistas do Estado.

15. além do fato óbvio já apontado do seu caráter restrito a uma parcela limitada da população mundial.

16. Assim, "o filósofo pensa e tematiza um homem humano que, conforme o terceiro manuscrito, só seria produzido num futuro longínquo. A consciência do filósofo está ‘ inclinada’ para este futuro e dessa perspectiva ­ que é a do socialismo (humanismo) -, ele critica a prática do futuro imediato, cujo princípio motor é o comunismo. Pelo seu caráter intencionalmente ‘utópico’, entretanto essa crítica não se propõe aparentemente alterar o curso do processo histórico objetivo, mas apenas mostrar os seus limites"(Fausto, 1983, p. 228).

17. O autor exprime assim a diferença entre o discurso lógico e o discurso histórico no marxismo: "De fato, de um duplo ponto de vista, o princípio da teoria de O Capital não é a memória mas a antimemória: objetivamente, pois, para compreender as leis do sistema capitalista é necessário separar a sua articulação lógica da sua gênese; subjetivamente, porque não há continuidade, nesse nível, entre a prática política e a prática teórica. Mas o mesmo não acontece com o discurso histórico e com o discurso tático-estratégico; eles pressupõem uma memória que, não obstante o hegelianismo da fórmula, é uma memória de si." (Fausto, 1983, p. 230).

18.  "Esta justaposição das estruturas objetivas de um horizonte (não um fundamento) significativo que as ilumina, parece ser o segredo dos chamados textos antropológicos de O Capital, nos quais o althusserismo enxerga apenas sobrevivências de uma fase anterior. Eles representam, na verdade, a cifra da historicidade de O Capital, no interior do seu espaço lógico, e estabelecem a articulação desse espaço com o tempo histórico" (Fausto 1983, p. 232 e seg.).

19. No capítulo 3, o autor realiza uma interessante discussão sobre as grandes evoluções tecnológicas, classificando as tecnologias em arcaicas, molares e moleculares e relacionando-as com os mecanismos de controle das espécies vivas, da matéria, das mensagens e de regulação dos grupos humanos. Infelizmente, não cabe aqui entrar nessa discussão.

20. O "espaço do saber" construído pelos "intelectuais coletivos" é visto como um dos quatro "espaços antropológicos" que, surgidos "progressivamente ao longo da aventura humana, ganharam consistência, autonomizaram-se até se tornarem irreversíveis", contingentes, eternos, vivos, estruturantes, estendidos ao conjunto da humanidade que os engendrou através de sua "atividade imaginária e prática" (Lévy 1994, p. 127 e segue). O primeiro desses espaços é a Terra. O segundo, o território, nasce com a revolução neolítica. O terceiro é o espaço das mercadorias, bem mais recente (não fica claro se ele se autonomiza na Grécia Antiga, no período da constituição do mercado mundial ou na Revolução Industrial. À discussão sobre esses espaços o autor dedicará toda a segunda parte do livro. Para nossos objetivos não há interesse em voltar a ela.

21. Que o autor explicitará sobretudo no capítulo 4.

22. "Toda tomada de controle realizada por um pequeno grupo, do que provém de todos, toda fixação de uma expressão viva coletiva, toda evolução para a transcendência, aniquila imediatamente o caráter angélico de um mundo virtual, que cai então nas regiões obscuras da dominação, do poder, da pertença e da exclusão (idem, p. 93).

23. "Uma sociedade que admitisse explicitamente os princípios da economia das qualidades humanas reconheceria, encorajaria e retribuiria todas as atividades sociais que produzem e sustentam essas qualidades, mesmo as que não fazem parte diretamente da economia mercantil (Lévy, 1994, p. 43).

24. E, mais adiante, uma pérola: "na economia do futuro , o capital será o homem total"(Lévi, 1984, p. 43). Ou ainda: "o intelectual coletivo é uma espécie de sociedade anônima para a qual cada acionista traz como capital seus conhecimentos, suas navegações, sua capacidade de aprender e ensinar" (idem, p. 94). O "sucesso no ambiente altamente competitivo que é o nosso" é tomado como premissa para a constituição dos "coletivos inteligentes... sujeitos cognitivos, abertos, capazes de iniciativa de imaginação e de reação rápidas" (idem, p. 19).
 
 

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