Linguagem entre Experiência da Comunicação
e Comunicação da Experiência

 

Paulo Barroso - Universidade do Algarve

 

"Thoughts reduced to paper are generally nothing more than the footprints
of a man walking in the sand. It is true that we see the path he has taken;
but to know what he saw on the way, we must use our own eyes."
Arthur Schopenhauer

 

Experiência e Comunicação. Como pensar nestes dois termos sem os remeter para uma irresistível e conflituosa relação de correspondência unilateral e, de certo modo, de oposição? De correspondência unilateral, porque ambos não se implicam mutuamente: não existe comunicação sem (bases na) experiência (do mundo); mas existem experiências que não são partilháveis através da linguagem que serve de capacidade comunicativa. De oposição, porque quer a experiência quer a comunicação encerram-se em domínios distintos: a experiência, no âmbito do pathos; a comunicação, no do logos. A experiência, composta por estados interiores (pensamentos, percepções, sensações, sentimentos, etc.), pertencente ao mundo vivido (do indizível), de modo individual, inalienável e inadiável. Mundo da diferença não partilhável. A comunicação, como propriedade inerente ao homo loquens (que comunga o que lhe é permitido através de um certo uso comum da linguagem acordada e convencionada pela comunidade ou mercado linguístico onde se insere), pertencente ao mundo do dizível, de modo social, público, alienável (1). Mundo da identidade. Partilhável, portanto. Ora, como falar do pathos através do logos? Como comunicar a experiência? Como raciocinar a (ou sobre a) loucura? Estamos perante um paradoxo: se a experiência é singular, subjectiva e idiossincrática e a comunicação é regular, lógica e sistemática, como pode uma servir a outra?(2) O paradoxo da comunicação: exprimir o inexprimível.
Associado a este primeiro questionamento, impõem-se outros complementares: na expressão do pensamento através do uso da linguagem, o que nos é permitido exprimir?; qual o significado das expressões linguísticas que empregamos?; o que significa compreender alguém?; como saber o que alguém significa ou quer dizer? Questões que não suscitam nem permitem revelações pretensiosas de uma única verdade ou fórmula teórica.

1. PENSAMENTO E LINGUAGEM

No Blue Book, Ludwig Wittgenstein refere o que pode ser tomado como um pertinente e interessante ponto de partida para a reflexão sobre o papel da linguagem no empreendimento de se constituir ponte epistemológica entre a experiência e a comunicação: "A frase exprimir uma ideia que se encontra antes na nossa mente sugere que o que tentamos exprimir em palavras já se encontra expresso, mas numa linguagem diferente; que essa expressão está, antes, no olho da nossa mente; e que o que fazemos é traduzir da [linguagem da] mente para a linguagem verbal.(3) " Esta citação suscita uma certa dupla exigência semântica subjacente ao uso da linguagem: 1) a relação indissociável entre o pensamento e a linguagem; 2) a transposição do sentido (motor que impulsiona a interacção comunicativa) de uma certa linguagem da mente para uma certa linguagem verbal. Admita-se, em 1), comportamentos linguísticos desviados que remetem, inexoravelmente, para a segregação social dos discursos. Em 2), considere-se indefinições de sentidos (subjectividade/doença semântica ou idiossincrasia dos interlocutores). Como realça Jacques Derrida, se tivermos que "evocar a loucura no interior do pensamento (...) temos que o fazer na dimensão da possibilidade e na linguagem da ficção ou na ficção da linguagem"(4). Se temos transposição do sentido, temos deslocação semântica a dois níveis: i) interno, da linguagem da mente para a linguagem verbal; ii) externo, da linguagem verbal do emissor para a do receptor.
Falar em experiência da comunicação e em comunicação da experiência pressupõe a adopção de estratégias comunicativas para as condições de uso, funcionamento (circulação social) e possibilidades (gramaticais) da linguagem. Estratégias pautadas pelos imperativos a) da racionalidade, na regulação dos usos com sentido da linguagem, b) da exterioridade, que pressupõe a inter-subjectividade comunicativa, e c) da regulação (ou praxis) gramatical.
Se entendermos a linguagem como habilidade de uso significativo do interlocutor e a língua como conjunto de signos constituintes de um sistema ou dispositivo, temos uma inerente dimensão pragmática da linguagem: o sentido é determinado pelo uso que se faz da linguagem.(5) Se falar é descer do pensamento à palavra que o exprime (compreender é subir da palavra ao pensamento significado), todas as linguagens baseiam-se em experiências. Logo, são fenomenológicas.

2. EXPERIÊNCIA DA EXTERIORIDADE: PATOLOGIAS CONCEPTUAIS DA LINGUAGEM

Oposta a uma comunicação regular (próxima do estado de saúde), propulsora de interacção, temos o que poderíamos designar de comunicação patológica ou agramática (6) (próxima do estado de doença), propulsora de desvios entre os interlocutores e associada à determinação e compreensão subjectiva do significado. Se a saúde engloba a doença e se a primeira é um ponto de vista (distanciado e consciente) sobre a segunda, como sugeriu Gilles Deleuze, a comunicação regular é um ponto de vista sobre a comunicação patológica.
Norma pressupõe regularidade. Também culturas. Estas estabelecem normas de proscrição (interdição) e de prescrição (ordenação formal). O funcionamento da sociedade é pautado pelas regras. Os sistemas sociais gratificam (incluem) ou castigam (excluem) consoante se obedece ou não às normas. Os sistemas discursivos também têm este poder de vigilância. As normas dependem do nomos e não da physis. O nomos é a possibilidade de os sujeitos não se "normalizarem" uns aos outros, mas serem-no por uma instância superior. Só a lei pode tornar igual o diferente. O ideal de polis é o de bem ou felicidade comum. As éticas eudaimónicas demonstram-no.
Regular, vigiar e punir são vias da ordem, do poder.(7) "O louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros" (8). Pela palavra do louco (inexistente, sem verdade nem importância), reconhece-se a loucura, no outro lado da partilha.(9) Esta interpelação de Michel Foucault à palavra do louco conduz à 1) inscrição da loucura na lógica da linguagem; e 2) expressão da loucura pela razão. Se constituir uma frase é manifestar um sentido possível, qual o de um discurso sobre a loucura? "A frase é por essência normal. Transporta em si a normalidade, isto é, o sentido... seja qual for o estado, a saúde ou a loucura de quem a profere...", refere Derrida.(10)
Propriedade constitutiva do homo loquens, as condições da linguagem funcionar socialmente (11) implicam os três imperativos atrás referidos, analisados cepticamente na comunicação patológica. Então, sem o triplo pressuposto encontramo-nos numa posição solipsista e inexprimível (de intraduzibilidade linguística de certos estados interiores).
Deve-se compreender, deste modo, uma aporia entre i) a dinâmica social que determina e condiciona a compreensão, legitimação e reconhecimento do uso das palavras e ii) o inexprimível ou solipsismo da linguagem. Em ii) temos o que designámos linguagem fenomenológica (12) (entenda-se privada). Uma eventual linguagem privada foi exposta por Wittgenstein tendo, principalmente, três características: a) as palavras relacionadas com o que apenas o enunciador saberia; b) as palavras relacionadas com as sensações pessoais do enunciador e c) outrem não poderia compreendê-la.(13) Assim, a) refere-se à epistemic privacy; b) à privacy of ownership; e c) assume-se como conclusão de a) e b): o significado das palavras é garantido pelo conhecimento das associações de significação.
Então, a) e b) explicam a impossibilidade de se dar a conhecer e de comunicar a experiência. A linguagem é a representação do pensamento (14), estando implicados quer a) quer o papel da semântica no significado de uma palavra. Russell refere dois méritos da linguagem: "primeiro, porque é social; segundo, porque fornece uma expressão pública aos pensamentos que, de outro modo, permaneceriam privados" (15). "Um cão não pode relatar a sua autobiografia", porque não possui a capacidade de usar a linguagem; "apesar de poder eloquentemente ladrar, ele não nos pode dizer que os seus pais eram honestos, embora pobres" (16). Associado a b) está a ilustração das dicotomias comunicação (exteriorização) e experiência (interiorização).
Wittgenstein aborda o sentido de "privado", ao perguntar 3) "em que sentido as minhas sensações são privadas?", distinguindo-se dois sentidos, precisamente os referidos acima: a) "apenas eu posso saber se estou realmente com dores, enquanto que outra pessoa apenas pode supor esse facto a meu respeito" (17); e b) "outra pessoa não pode ter as minhas dores" (18). Em a), temos a "incomunicabilidade" das sensações; em b), a inalienabilidade das sensações. Então, 3) conduz-nos a 4) "as sensações são incomunicáveis?" e a 5) "as sensações são inalienáveis?" (19).
A linguagem fenomenológica não é concebida em sentido contigente (com regras inter-subjectivas adoptáveis pelos outros sujeitos linguísticos), mas em sentido idealista subjectivista (onde o sentido de "privada e partilhável" não se aplica). Não se sujeita i) à inter-subjectividade e inter-compreensão linguística; ii) à aprendizagem do uso, por intermédio de um adestramento que possibilita ao aluno, no caso da ordem "+2" ou "+n", adquirir a competência aritmética para responder correctamente.
Uma linguagem fenomenológica, na qual os objectos da minha experiência constituem a denotação das minhas expressões referenciais, revela-se uma ficção gramatical e empírica, para Wittgenstein: a lógica desta hipótese é idêntica à da consideração de que entre a minha mão esquerda e a minha mão direita existiriam relações de carácter comercial, se passasse de uma para outra uma determinada quantia de dinheiro em troca de um determinado objecto.(20)
Uma psicanálise linguística subentende a afectação do significado pelos epistemically private items (21), com implicações fenomenológicas, por exemplo, na percepção por analogia das experiências dos outros) (22). Thomas Hobbes refere que "o uso geral da palavra é o de transformar o nosso discurso mental em discurso verbal, e o encadeamento dos nossos pensamentos em encadeamento de palavras" (23). Esta tese mentalista, de que as produções linguísticas são expressões de representações mentais, foi criticada, nomeadamente, por Merleau-Ponty, para quem o pensamento, longe de ser uma actividade interna que implica representações, é uma abertura ao mundo através, também, da linguagem. (24)
As asserções de significado são verdadeiras ou falsas? (25) A um céptico bizarro que respondesse "5" (e não "125") como resultado de "68+57=?", poder-se-ia chamar louco ou dizer que está errado, que seguiu um desvio? (26) Como descrever a prática de certas pessoas que têm um conceito de "verde-avermelhado", que i) não possuímos; ii) não nos é permitido usar; iii) pode corresponder, no nosso sistema de cores, a uma impossibilidade conceptual? (27)
Como numa caixa fechada (consciência) com algo dentro, os acessos privilegiados aos conteúdos cognitivos da própria caixa (mente) opõem-se à desvantagem epistemológica dos outros. "Quando o nosso gato está a sofrer, não nos consolamos com a ideia de que, apesar de ele estar com dores, felizmente, ele não o sabe, porque não é uma criatura auto-consciente".(28)
O modelo contratual do significado tem implicações para a noção de subjectividade (semântica), que se assume sempre como obstáculo epistemológico. A objectividade pressupõe um valor-verdade inatingível. Wittgenstein fala em certeza subjectiva (do conhecimento que temos das experiências interiores alheias, de se dizer "ele tem dores") e certeza objectiva (que se aproxima da certeza alcançada pelo cálculo matemático, como em "2+2=4").(29) Concordamos com "a neve é branca" e com o significado de "neve" e "branca", mas não podemos saber se vemos a neve da mesma maneira. Para Gottlob Frege, "quando se classifica a neve como branca, pretende-se exprimir uma característica objectiva, que se torna conhecida sob condições normais de luz e através de uma determinada sensação" (30). Questionar a autoridade da gramática (bússola semântica) que me leva a dizer "a neve é branca" é excluir-me do jogo de linguagem e perder-me no labirinto da significação.(31) Mas, Locke parecia acreditar que as ideias sensíveis causadas por qualquer objecto nas mentes de diferentes homens são, na maioria dos casos, muito próximas. (32)

3. COMUNICAÇÃO PÚBLICA E EXPERIÊNCIA PRIVADA: EXTERIORIZAÇÃO

Para a explicação das regras de uso de proposições psicológicas, Wittgenstein analisa o caso arquétipo da aquisição do conceito de dor, em que os adultos adestram a criança a exteriorizar as suas sensações por meio de expressões verbais: a substituir o grito de dor (expressão natural e primitiva) por exclamações e frases (expressões verbais complexas). Ensinam à criança um novo comportamento de dor, um novo jogo de linguagem chamado "exteriorização". Neste jogo temos um processo ontológico dinâmico de um "eu" que sai de si e se desvela aos outros, que se lança na alteridade à procura de interacção. Processo oposto ao de solipsismo (de um "eu" fechado sobre si) e, por inerência, à linguagem privada (uma não exteriorização ou "incomunicabilidade" com o exterior). O "eu" ensimesmado representaria o grau zero da exteriorização. (33)
Exteriorização implica dissimulação, como no jogo de linguagem "gemer de dor num palco". É uma exteriorização treinada, fiel aos padrões comportamentais característicos de dor, que só pode ser reconhecida e compreendida se tiver a ver com uma partilha e capacidade. Por isso, o sorriso de um bebé não pode ser dissimulado nem um cão pode fingir que sente dores. (34) Contudo, seria absurdo duvidar da veracidade de algumas exteriorizações que nos são apresentadas com um elevado índice de evidência: ver alguém a correr em chamas e a gritar por socorro. (35)
É fundamental respeitar os limites do sentido, para evitar uma "incomunicabilidade" próxima do que designaríamos "linguagem da desrazão". Podemos ter palavras desprovidas de sentido (impossibilidades lógicas e semânticas), mas susceptíveis de serem utilizadas na linguagem poética (arranjo verbal estetizado). A resposta do "primeiro" Wittgenstein à pergunta "o que podemos comunicar?" é dada no terminus do TLP: uma maiêutica ou ética apologética do silêncio associada a uma alienação pelo uso da linguagem. A do "segundo" Wittgenstein não se fica pela simples demonstração da impossibilidade de se falar da experiência, mas aproxima-se do que Benveniste considera ser próprio da linguagem: não exprimir mais do que o possível. (36)

4. A COMUNICAÇÃO PATOLÓGICA

Se Lacan sublinhou que "o fenómeno da loucura não é separável do problema da significação para o sujeito em geral, isto é, do problema da linguagem para o homem" (37), tome-se o caso literário e clínico da figura de Dom Quixote, paradigma da condição inter-subjectiva, para quem a disparidade semântica tem a ver com a diversidade de atribuição de significado às coisas que as palavras designam.(38)
A abordagem dos distúrbios de comportamento linguístico implica desvios e, também, anomalias semânticas. Para uma consciência da loucura que identifica o louco, é fundamental a dicotomia razoável/não razoável. Segundo Foucault, a essência da loucura não tem uma forma assinalável, porque o louco não é portador de um signo.(39) A percepção de um louco reside na discordância entre as suas acções e palavras e as dos outros.
As formas clínicas da comunicação esquizofrénica (40) remetem para uma patologia da consciência. A consciência pode ser explorada como mecanismo que desencadeia a referida comunicação esquizofrénica. Em Schopenhauer, a loucura corresponde à supremacia da vontade sobre o intelecto. A linguagem que se esquiva às significações liga-se à prevalência do desejo. Desejo ou vontade, em Schopenhauer, que está próximo do que Lacan refere ser a "aproximação assimptórica ao impossível", isto é, "o ser do homem é a loucura como limite da liberdade" (41). A impossibilidade de compreensão da existência tem o seu ponto máximo na loucura. A voz do louco está silenciada. Como hipotético detentor de uma linguagem privada, pode falar, mas a sua palavra foi esvaziada de sentido.
Existe uma relação de exclusão entre a loucura (desvio dos parâmetros normalmente aceites) e a linguagem (estruturada por regras gramaticais). A linguagem é, por natureza, portadora de normalidade, de sentido, enquanto que a loucura é, por essência, silêncio (não pode ser dita no logos). Existe, portanto, uma oposição entre logos e pathos. O campo de expressão da loucura é definido pelo pathos. Mas, se descobríssemos seres de outro planeta que usassem regras lógicas (aritméticas ou gramaticais) diferentes das nossas, tínhamos descoberto uma espécie de loucura? (42)
A escrita da loucura é impossível. Desvio da norma, não se conforma com o logos, com a orto(doxa)-grafia. Mas poderia residir na invenção a) lexical (utilização de uma palavra com outro sentido); b) gramatical e c) de uma linguagem simbólica. Como forma de discurso, a enunciação implica dois agentes igualmente necessários. Mas esta estrutura de diálogo pode, contudo, objectar que haja diálogo fora da enunciação ou enunciação sem diálogo. Mas, o monólogo procede da enunciação e pode ser entendido como uma variedade de diálogo ou um diálogo interiorizado, formulado a partir de uma linguagem interior entre um eu-locutor e um eu-ouvinte.(43)
A comunicação é um elemento central no processo de interacção. Por sua vez, esta é importante na teoria sistémica da comunicação. É uma noção de ordem comportamental. Além da análise da relação entre os interlocutores, o estudo da interacção é também o da diferença. A psicanálise, com o desenvolvimento dos estudos da comunicação na psiquiatria, em meados do século passado, interessou-se pela análise da comunicação, considerando-a manifestação do inconsciente. Os estudos sobre a comunicação humana alteraram-se com o interesse a oscilar de dentro para fora: deixou-se de privilegiar o interno para se analisar o externo, que se manifesta, em grande parte, na relação interactiva. A sua aplicação à psiquiatria (e à medicina, em geral) levou a que a ideia de comunicação se ligasse à de patologia, tendo-se definido comunicação normal (associada à saúde) e comunicação patológica (associada à doença).
A comunicação inadequada leva às dificuldades e erros de aprendizagem. O estudo da comunicação tornou-se ponto central na análise da interacção. E esta passou a ser uma das concepções que contribuem para a definição da psicopatologia. Nesta perspectiva, Paul Watzlawick considerou a comunicação patológica, associada a quadros psiquiátricos.
Podemos falar em linguagem no caso de um alucinado auditivo responder às vozes interiores que julga ouvir? Percepção sem objecto ou inacessível reflexo que (de)forma o prisma do delírio, a alucinação caracteriza-se, geralmente, pela convicção íntima de uma sensação percebida e está subjacente à mais adequada forma de definir o conceito de comunicação patológica. Caso patológico desviante, em que um indivíduo isolado pode ser visto a comunicar consigo próprio, o automatismo estimulante causador da alucinação impõe-se de forma tão vincada ao alucinado que este é forçado a acreditar nas vozes. De tal modo que é tentado a respondê-las.
Segundo Watzlawick, ao referir-se à impossibilidade de não comunicar, o comportamento não tem oposto: não existe um "não-comportamento" (44). Watzlawick acrescenta que um indivíduo, mesmo isolado, tem a possibilidade de dialogar em fantasia, isto é, com as suas alucinações. E sugere que essa "comunicação interna" obedeça a algumas regras que governam a comunicação interpessoal. Mas, por serem fenómenos não observáveis, estão fora do campo de significação que atribuímos ao termo "comunicação" (45). Watzlawick chama "esquizofrenês" à linguagem dos doentes esquizofrénicos, à "linguagem que deixa ao ouvinte fazer a escolha entre muitos significados possíveis, os quais são diferentes e podem ser incompatíveis".(46)
Admitimos que as coisas são como as percepcionamos. A nossa representação perceptiva do mundo pode ser o produto do nosso cérebro, dos nossos cinco sentidos. Como forma de delírio transitório, a alucinação varia do simples ruído ao discurso articulado. Um dos traços característicos da alucinação é que "ela acompanha-se de uma grande força de convicção".(47) No caso auditivo, os sons percepcionados têm a intensidade, a qualidade e a duração das percepções normais. No caso alucinatório de um indivíduo ouvir vozes que os outros não ouvem mesmo em proximidade física, o cérebro do alucinado auditivo responde e reage como se, de facto, estivesse a ouvir vozes de indivíduos que existissem e estivessem diante de si, a dialogar consigo. As imagens que os esquizofrénicos "inventam" têm para o seu cérebro a mesma realidade que as cenas da vida real. Então, o alucinado é tentado a interagir consigo mesmo, suscitando dúvidas cognitivas.
Num solilóquio, no qual um indivíduo parece conversar com alguém com forte convicção, em resposta a alucinações do ouvido, pode ser considerada uma linguagem inacessível e imperceptível aos outros. Linguagem cuja semântica é notoriamente afectada pelos seus estados interiores. Apesar de se servir de um léxico partilhado, não se respeitam as regras da sintaxe lógica.
A ideia de uma linguagem usada na imaginação, in foro interno, apenas por um indivíduo e para si mesmo é independente dos padrões de comportamento? Numa crítica ao solipsismo, Wittgenstein sublinha a necessidade de haver consequências práticas ulteriores das acções comportamentais ou linguísticas. Wittgenstein pergunta: "e a sons que ninguém compreende mas que eu pareço compreender poder-se-á chamar linguagem privada?" (48). E em casos de discursos solitários (o balbuciar ininteligível, o treino da declamação poética, a oração, falar durante o sono ou em delírio)? O conteúdo dos delírios dos esquizofrénicos são valorizados não como expressão de projecções do inconsciente dos doentes, como faz a psicanálise, mas como informação da relação dos sintomas com os contextos.
Em termos psico-linguísticos, podemos associar às diversas perturbações da linguagem: comportamento verbal desviado, afecção da personalidade, dissolução da consciência, projecção dos sentimentos na crença propulsora da alucinação. A alucinação auditiva pode assumir-se como diálogo entre as vozes que se ouvem e o próprio sujeito que a ouve. Pode traduzir-se em palavras incompreensíveis, discurso de uma língua não conhecida ou palavras desprovidas de sentido.
Associada à questão da comunicação fenomenológica e patológica, temos a da representatividade discursiva do mundo expressa pelos limites quer da linguagem quer do mundo e, por conseguinte, do pensamento verbalizado. Encaremos relações metafísicas de similitude entre a linguagem, o pensamento e o mundo, sob um pressuposto de representação. O isomorfismo suporta a teoria da linguagem pictórica (49), mas sugere a dialéctica kantiana entre phainoumenon e noumenon (50). Em The World as Will and Representation, Schopenhauer entende que o mundo é (a minha) representação, porque considera o existente dependente do sujeito e o noumenon incognoscível. Por isso, o sujeito cria representações.(51)

5. OBSERVAÇÕES FINAIS

Não se pode falar, genuinamente, em linguagem pública, porque "cada falante possui a sua própria linguagem privada, apesar de esta ser concebida como inter-traduzível" (52) . "A suposição de inter-traduzibilidade implica um paralelismo psicossomático", na medida em que a equivalência entre as linguagens, característica que assegura o mínimo de comunicação e entendimento possível entre dois mundos interiores, pressupõe uma correlação uniforme entre comportamento e experiência. "Quando A diz estou com dores (numa linguagem comum) eu não posso, estritamente falando, compreender o seu significado", mas posso tomar a sua frase como um sinal, "um sintoma de A está com dores".(53)

NOTAS:

(1) No sentido em que é a língua que nos fala, faz falar ou fala por nós e não nós que falamos pela ou na língua. Um falante é detentor do seu comportamento linguístico? Ou este é propriedade da gramática? Só com um empréstimo da língua, para uso subjectivo de um modo público de significação, pode um sujeito servir-se de um sistema (língua) e faculdade (linguagem) de expressão verbal do seu pensamento.
(2) Sobre o conhecimento adquirido pela experiência e que não pode ser conhecido pelos outros (cujas experiências são diferentes), nem pode ser completamente capaz de ser expresso verbalmente, mesmo por um soberbo escritor que suscite nos sentidos dos leitores um estado de consciência próximo, cf. Bertrand Russell, Human Knowledge - Its Scope and Limits, George Allen & Unwin, London, 1976, p. 17.
(3) Cf. The Blue and Brown Books, Blackwell, Oxford, 1998, p. 41. Adiante citado BB.
(4) Cf. L'Écriture et la Différence, Seuil, Paris, 1967, p. 84.
(5) Cf. Ludwig Wittgenstein, BB, pp. 65 e 69.
(6) Como desvio à sintaxe lógica estabelecida, que se traduz num uso incorrecto e confuso da linguagem. Ao termo patológico associa-se o sentido de contrariedade, sofrimento, incapacidade, anormalidade na comunicação.
(7) Veja-se, precisamente, Michel Foucault, Surveiller et Punir, Gallimard, Paris, 1975.
(8) Cf. Michel Foucault, L'Ordre du Discours, Gallimard, Paris, 1971, p. 12.
(9) Idem, ibidem, pp. 13 e 14.
(10) Cf. op. cit., pp. 83-84.
(11) No projecto de uma spätphilosophie, o designado argumento da linguagem privada (in Philosophical Investigations, Blackwell, Oxford, 1996, §§ 243-315, adiante citado PI) afigura-se, apesar de refutado por Wittgenstein, com incontornável interesse para as Ciências da Comunicação, ao apresentar um profícuo e pertinente contributo para a compreensão estrutural do uso e funcionamento social da linguagem.
(12) Cf. Ludwig Wittgenstein, "Notes for Lectures on "Private Experience" and "Sense Data"" (adiante citado NFL.) in Philosophical Occasions: 1912-1951, Hackett Publishing Company, Indianapolis, 1999, pp. 202-288.
(13) Cf. PI, op. cit., § 243.
(14) Cf. PI, op. cit. §§ 327, 329, 330 e 339. Poder-se-ia designar por linguagem indirecta o processo de exteriorização de estados interiores tendo a linguagem como medium. Cf. também NFL, p. 220.
(15) Cf. Human Knowledge - Its Scope and Limits, op. cit., p. 73.
(16) Idem, Ibidem, p. 74.
(17) Cf. PI, op. cit., §§ 246-255.
(18) Cf. PI, op. cit., § 253.
(19) Distinga-se i) proposições empíricas (descrição de estados de coisas) de ii) gramaticais (descrição das regras para uso das palavras); "eu tenho dor de dente" de "ele tem dor de dente". "Eu tenho" está num nível gramatical diferente de "ele tem". Então, em vez de se dizer "eu penso", devemos dizer "pensa-se", como se diz "chove". Cf. Wittgenstein's Lectures in 1930-33 (adiante citado LWL), in Philosophical Occasions: 1912-1951, Hackett Publishing Company, Indianapolis, 1999, pp. 98-101. Se alguém dissesse "eu sei a altura que tenho" ao pôr a mão no cimo da sua cabeça para o provar, não haveria validade para este procedimento, porque a medida teria que ser independente do que é medido. Cf. PI, op. cit., § 279 e Zettel, (citado Z) Blackwell, Oxford, 1993, § 536.
(20) Cf. PI, op. cit., § 268. Não existiriam consequências práticas. Um nome para uma sensação e um nome para uma cor têm diferentes naturezas. Se nome é a palavra cujo significado é aprendido por uma simples definição ostensiva, então dor não é o nome de uma sensação. Mas, se nome é o que é frequentemente intendido por essa palavra, então dor é o nome de uma sensação. Cf. BB, op. cit., p. 82.
(21) Termo relativo à interioridade não cognoscível, como as percepções. Cf. Edward Craig, "Meaning and Privacy", in A Companion to the Philosophy of Language, Blackwell, Oxford, 1997, p. 127.
(22) Cf. PI, op. cit., §§ 283-288, 402 e 403.
(23) Cf. Léviathan, Sirey, Paris, 1971, I, 4.
(24) Cf. Phénoménologie de la Perception, Gallimard, Paris, 1945, I, vi, pp. 209, 210 e 211-213.
(25) Atente-se no exemplo matemático "68+57=?" e nas asserções "A significa adição por +" ou "A entende o sinal + para significar adição", apresentados por Kripke, Wittgenstein on Rules and Private Language, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1982, p. 7.
(26) Wittgenstein distinguiu i) engano ou erro e ii) outras formas falsas de crenças, como distúrbios mentais. Podem-se apresentar razões em i), que têm um lugar especial nos jogos de linguagem; enquanto que apenas causas podem ser apontadas em ii). Falsos juízos são envolvidos por i). A loucura não envolve quaisquer juízos. Em ii) não são admitidas correcções de falsos juízos. Duvidar de todos os nossos cálculos é um sinal de loucura, não de erro. Como pode ser negada a minha própria existência senão pela loucura em reconhecer uma verdade evidente? Sobre a certeza e possibilidade de dúvida de certos cálculos/proposições e dos seus usos diferenciados, veja-se On Certainty, Blackwell, Oxford, 1998, §§ 71, 74, 108, 117, 125, 138, 155, 196, 217, 226, 245, 257, 281,413, 420, 645, 674 e 675. Citado OC.
(27) Em inglês, tome-se, como exemplo, o termo "grue", aplicado a uma qualquer tonalidade entre as cores green (verde) e blue (azul). Sobre esta questão do relativismo conceptual e sobre a dicotomia conceptualismo/realismo, cf. Jacques Bouveresse, La Force de la Règle, Minuit, Paris, 1987, p. 61. Cf. também LWL, p. 69.
(28) Cf. P. M. S. Hacker, Wittgenstein - On Human Nature, Phoenix, London, 1997, p. 29.
(29) Cf. PI, op. cit., p. 225; Last Writings on the Philosophy of Psychology II: The Inner and the Outer, Blackwell, oxford, 1994, pp. 23-25 e OC, op. cit., §§ 308 e 563.
(30) Cf. Os Fundamentos da Aritmética, Lisboa, INCM, 1992, § 26, p. 60.
(31) A estabilidade denotativa, característica da linguagem, é um pressuposto semântico necessário ao uso com sentido de um determinado termo. Russell demonstra-o com o ensino, por parte dos adultos, do uso correcto da palavra "gato" nas crianças. Cf. Human Knowledge - Its Scope and Limits, op. cit., p. 207.
(32) Cf. An Essay Concerning Human Understanding, London, Dent & Sons, 1977, II, xxxii, 15. Atente-se ao que sugere a Hipótese de Burke ou Hipótese da Uniformidade. Cf. Edmund Burke, A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, Oxford University Press, Oxford, 1990.
(33) Expressão psicológica na 1ª pessoa do singular, onde "eu" surge como sujeito e não como objecto. Expressões sobre o meu corpo não pertencem à gramática das exteriorizações. Cf. Z, op. cit., § 472 e BB, op. cit., pp. 66 e 67.
(34) Cf. PI, op. cit., §§ 249 e 250.
(35) Cf. NFL, op. cit., p. 287.
(36) Cf. Problèmes de Linguistique Générale, Gallimard, Paris, 1976, p. 83.
(37) Cf. Jacques Lacan, "Propos sur la causalité psychique", in Écrits, Seuil, Paris, 1966, p. 166.
(38) No romance de Cervantes, atente-se às incisivas dúvidas e confusões causadas pela "figura do louco" na obstinada crença numa bacia pelo elmo de Mambrino e numa albarda por um arreio de cavalo. Cf. Miguel de Cervantes, Dom Quixote, Oxford University Press, Oxford, 1998, I, xlv, pp. 449-456.
(39) Histoire de la Folie à l'Âge Classique, Gallimard, Paris, 1972, p. 180.
(40) Entendida como desorganização da personalidade causada por repressões afectivas, forma de reagir perante uma estrutura social em que os sujeitos se sentem oprimidos e divididos.
(41) Cf. "Propos sur la causalité psychique", in Écrits, op. cit., p. 176.
(42) Atente-se ao exemplo "68+57=?" de Kripke. A ideia de uso diferente (do nosso) de regras, que nos leva a chamar "loucos" os seguidores atípicos das regras, também leva Wittgenstein a fazer o mesmo aos que usam, por exemplo, uma moeda sem contarem com o valor de troca especificado, dando o que lhes aprouver pela mercadoria. Cf. Remarks on the Foundations of Mathematics, Massachusetts Institute of Technology Press, Cambridge, Massachusets, 1990, I, § 152.
(43) Sobre esta questão, cf. Émile Benveniste, Problèmes de Linguistique Générale, op. cit., pp. 80-85.
(44) Cf. Une Logique de la Communication, Seuil, Paris, 1972, pp. 45-47.
(45) Ibidem, p. 46.
(46) Ibidem, pp. 72 e 73.
(47) Cf. Guy Lazorthes, "L'hallucination: une perception sans objet", in revista Sciences Humaines, (nº 97), Auxerre, Août/Septembre 1999, p. 32.
(48) Cf. PI, op. cit., §§ 269 e 386.
(49) Cf. Tractatus Logico-Philosophicus, Routledge and Kegan Paul, London, 1999, 4.01.
(50) Cf. Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, pp. 78 e 79.
(51) Cf. The World as Will and Representation, Dover Publications, New York, 1969, I, § 4.
(52) Cf. P. M. S. Hacker, Insight and Illusion, Thoemmes Press, Bristol, 1977, p. 225.
(53) Ibidem, p. 225.