em 5 abordagens sinaléticas, mais um prólogo profético e um epílogo agnóstico.
Texto publicado pelo Cineclube de Faro, em Março de 2001 a propósito do seu ciclo de cinema "2001 - Ano de
Odisseias", <www.cineclubefaro.com>
Prólogo – Antevendo sinais.
Onde não cabe demonstrar, até porque já o fiz anteriormente,
que as heresias, no seu sentido mais lato, contêm uma elevada dimensão pedagógica.
[1] Mas, porque seria imperdoável esquecermos alguns dos principais
factores da nossa aprendizagem cultural, mediática e fílmica, enquanto geração,
ou sequência de gerações, educadas num cadinho socio-cultural de latinidade
hipodérmica, essencialmente católica, intelectual, social, sexual e politicamente
estigmatizante, o qual foi tão perfeita e subversivamente transfigurado por
Federico Fellini em LA DOLCE VITA, aqui fica uma «quasi-breve» análise do percurso
profético - ético, estético e cinemático desta obra prima e autêntica pedra
angular da nossa cultura cinematográfica.
O caminho herético de LA DOLCE VITA começa ainda antes da obra nascer como filme,
realizado em 1959 e estreado em 5 de Fevereiro de 1960, antecipando em profecias
estéticas e ideológicas muitos dos percursos que viriam a marcar a celebrada
década de 60.
De facto, este filme começa na rodagem da película
que o antecede, LE NOTTI DI CABIRIA, 57, em que Giulietta Masina – Cabiria –
se passeia pelas ruas nocturnas de Roma, recheadas de extravagâncias e rebeldias
encarnadas por personagens genuinamente romanas, ou construídas como tal através
de diálogos transpostos para o dialecto romano por Pasolini, que nesse filme
serviu também como assistente/guia de localizações, fazendo-nos percorrer um
padrão de autênticos preâmbulos do que viria a ser uma boa parte da estrutura
fílmica de LA DOLCE VITA. [2]
Veremos também, tomando em consideração o sentido
mais restrito da heresia, que LE NOTTI DI CABIRIA já viria a ser alvo de severas
críticas por parte de alguns dos círculos mais próximos da igreja católica
italiana, os quais chegaram a exigir a proibição do filme, com o argumento de
que as ideias de «inocência e pureza eram corporizadas por uma prostituta»,
o que ia decididamente contra os dogmas caracterizantes desses conceitos, tendo
funcionado como contra-argumento para sua interdição o próprio facto de ter
sido o «International Catholic Film Office» quem veio apontar o filme como obra
exemplar, “because it reveals human selfishness and counters this with the virtues
of justice and Christian charity”.
[3] Veremos, ainda, que LA DOLCE VITA haveria de percorrer um calvário
semelhante.
1 – Os sinais morais.
Onde a ética católica se transveste de estética fílmica e vice-versa.
Também em termos de receptividade poderíamos considerar
o assinalável sucesso de LE NOTTI DI CABIRIA como sinal premonitório do que
viria a acontecer com LA DOLCE VITA. [4] No entanto, este filme não obteve logo de imediato
a adesão popular, houve até algumas sessões em que foi apupado, mas foi ganhando
progressivamente o reconhecimento de cada vez mais amplos sectores de audiência,
a par da aceitação quase sem reservas por parte da crítica, tornando-se um verdadeiro
caso de sucesso comercial e artístico: vendas para todo o mundo e vários prémios
nacionais e internacionais.
[5]
Em contrapartida, a comunidade católica, na sua
generalidade, condenou o filme com veemência e tentou exercer todo o seu poder
com o fim de travar a sua divulgação, especialmente em Itália, não havendo desta
vez sinais claros de defesa do filme que tenham partido de quaisquer sectores
da igreja católica. De facto, apesar de Fellini ter sido autorizado a filmar
no recinto da basílica de S. Pedro alguns dos planos de LA DOLCE VITA, todo
e qualquer resquício de compreensão católica em relação ao filme viria a desaparecer
com a insistência do Vaticano em que o filme fosse retirado das salas de cinema
onde era exibido. Registaram-se vários ataques contra o filme, contra o «seu
sentido moral», ou contra a «falta dele», a partir de inúmeros púlpitos por
toda a Itália, aconselhando os fiéis a não irem ver tal obra. Estes ataques
manifestaram-se a vários níveis religiosos, sociais e políticos, tendo assumido
particular importância e polémica no seio do parlamento italiano, onde, por
iniciativa de parlamentares e senadores conotados com a democracia-cristã, foi
abordada a eventual censura legal do filme. No entanto, foi o governo de então
quem finalmente recusou tomar tal medida com a justificação de «não ser politicamente
admissível utilizar atitudes censórias contra qualquer forma de arte ou espectáculo».
Recordemo-nos que, se por um lado, ainda hoje em Itália se misturam facilmente
os poderes religiosos e os poderes políticos, por outro lado, naquela época
ainda estavam bem vivas as memórias do regime fascista e dos seus arbítrios,
pelo que terão funcionado como antídotos ao autoritarismo religioso.
2 – Os sinais sociais.
Onde os estigmas socio-económicos se arvoram em «doutrina» cinéfila.
Quais foram então, realmente, as facetas retratadas em LA DOLCE VITA que
provocaram uma tão ardente reacção por parte da igreja italiana, propagando
a polémica a todos os seus estratos de influência religiosa e social?
Georges Sadoul explica-nos na sua abordagem do período neo-realista italiano
da década de 50, de forma sucinta mas clara, que “La Dolce Vita, dont le
succés fut prodigieux, montra le «Beau Monde» entrainé dans une danse macabre
toujours recommencée, dominée par le sens de l’angoisse contemporaine”.
[6]
De facto, Fellini expôs algumas formas alternadas
de manifestação de uma certa «angústia contemporânea» apresentando, à noite
e em êxtase de festa, várias sequências de rituais «decadentes» talvez mesmo
«macabros», assumidos por representantes dos estratos sociais que, de dia e
na sua civilidade, se consideram como sendo os pilares óbvios de sustentação
moral e social, da família, da igreja e da sociedade italianas. Esta alternância
repetitiva e quase «dançante» de situações é, obviamente e só por si, portadora
de sinais suficientemente angustiantes para as personagens que nelas participam,
ou que nelas se reconhecem. Mas como se tal não bastasse, Fellini transportou
esses quadros bem realistas, que lhe teriam sido revelados em primeira mão nos
roteiros traçados por Pasolini aquando dos trabalhos de rodagem de LE NOTTI
DI CABIRIA, para o lado mais escuro, «macabro», da «Via Veneto», a rua romana
do êxtase, do ócio e do «glamour», que o realizador fez reconstruir nos estúdios
5 e 14 da Cinecittá com liberdades de reordenação urbanística-cinematográfica,
de modo a intensificar o seu carácter simbólico da alta sociedade romana «on
location», constituída, segundo as palavras de Francesco Tornabene, por “aristocratas
antiquados, novos ricos arrogantes, boémios afectados e intelectuais decadentes”.
[7]
Para aglutinar estes exemplares, diferentes
e ideologicamente desagregados, o realizador coloca em campo um corpo ávido,
talvez «necrófago», de jornalistas e fotógrafos que, com a ajuda do argumento
original do próprio Fellini e de Ennio Flaiano, adaptam sem olhar a meios toda
uma série de histórias estampadas na imprensa sensacionalista daquela época,
prefigurando, através da personagem do fotógrafo ‘Paparazzo’, Walter Santesso,
a constituição do paradigma «paparazzi», exactamente nos mesmos termos de defesa
e de assédio mútuos em que o viremos a reconhecer só bastante mais tarde.
Exceptua-se dessa amálgama ético-social de amargos
e supérfluos protagonismos/antagonismos apenas a imagem angélica que é generosamente
irradiada pela empregada do café da praia, a adolescente ‘Paola’, Valeria Ciangottini,
a qual, duma candura quase vestalina, é entendida por Jean Mitry como a verdadeira
chave estética e psicológica que permite a leitura da obra como um todo “L’episode
de la petite serveuse de café donne sans doute la clé de l’oeuvre, et lui sert
d’unité”, [8] traduzindo, pela sua presença fílmica, uma certa
sede de pureza ancestral transportada pelo nosso jornalista errante, e do realizador
por seu intermédio, ao longo dos périplos romanos que nos faz percorrer. Temos,
assim, um filme «real», de facto, o próprio Fellini o considerava como “um documentário
cinematográfico sobre a vida” [9] no seu habitat próprio mas reconstruído (se fosse
hoje, talvez alguém dissesse desconstruído) e devidamente adulterado de modo
a possibilitar uma paradoxal aproximação da essência das histórias nele contadas
- uma verdadeira heresia cinéfila em relação à estética neo-realista vigente
no cinema italiano que, à época, era aclamada quase unanimemente pelo público
e pela crítica.
3 – Os sinais cinematográficos.
Onde as doutrinas cinéfilas se reconformam em estúdio.
Com essa boa recepção que as obras do Neo-realismo recebiam, não seria de estranhar que a indústria e o comércio cinematográficos incentivassem alegremente a crescente produção de filmes condizentes com as normas desse dogma em vigor. [10] No entanto, LA DOLCE VITA veio colocar alguma areia na engrenagem produtiva e fazer com que os modelos de produção voltassem a ser repensados, especialmente no que toca à localização da rodagem e à aposta de reconstrução e manutenção de grandes estúdios na Cinecittá, podendo Fellini ser mesmo considerado como o seu principal «empreiteiro» e mentor até à sua posterior fase de decadência.
4 – Os sinais icónicos.
Onde o primado da imagem se transporta até aos sons.
Marcello Mastroianni, o «rapaz» do filme,
ainda não tinha afirmado completamente os seu créditos como protagonista, embora
se possam destacar algumas interpretações da quase meia centena de filmes em
que já tinha participado, tal é o caso da sua passagem por LE NOTTI BIANCHE,
1957, de Luchino Visconti e LA FORTUNA DI ESSERE DONNA, 1956, de Alessandro
Blasetti, interpretando neste último o papel de um fotógrafo amigo de uma jovem
camponesa transformada em estrela de cinema, Sophia Loren, deixando antever,
de alguma forma, a postura fotojornalística que se seguiria. Assim, a sua interpretação
do jornalista ‘Marcello Rubini’ em LA DOLCE VITA foi entendida inicialmente
como o assumir de uma personagem quase autobiográfica, o que, não correspondendo
inteiramente à verdade pelo que toca ao actor, tem grande razão de ser no que
toca ao realizador que se iniciou em Roma fazendo diversos pequenos trabalhos
entre os quais o de repórter. Esta alternância de registos metafílmicos entre
actor e realizador virá a marcar profundamente toda carreira de ambos e poderá
ser considerada como um dos mais eloquentes exercícios icónicos e metatextuais
de toda a história do cinema. Mastroianni tornar-se-ia, daqui em diante, no
ícone do amante latino por excelência, mas angustiado, q.b., com a sua existência
e suficientemente distante do seu próprio discurso para nos deixar interrogados
sobre qual a verdadeira razão de tal imagem e atitude. Virá a ser exactamente
assim, logo no filme seguinte em que o actor e o realizador se encontram, 8
½, 1962, e em tantos outros que se seguiriam entrecruzando as imagens
do actor e do criador com as narrativas dramatúrgicas e as próprias metanarrativas.
Anita Ekberg, a «rapariga» do filme e dos filmes que lhe estão subjacentes,
é ‘Sylvia’, a estrela nórdica, loura, alta, volúvel e bem constituída, que encarna
por completo as fantasias do amante latino da época. «La Ekberg», como viria
a ser conhecida em Itália, transformou-se num autêntico ícone de Roma, onde
passou a viver, iniciando, também ela, uma trilogia metafílmica em que o realizador
procura um ajuste de contas, primeiro com os outros poderes em LE TENTAZIONI
DEL DOTTOR ANTONIO, 1962, e depois com o seu próprio poder criativo em INTERVISTA,
1987. É interessante notar como o ícone da nórdica/romana criado por Fellini
se distingue, quanto à presença e à receptividade, de ícones semelhantes criados
por Bergman, a nórdica/nórdica, ou Rossellini, a nórdica/estrangeira, mas bastante
mais próximo de outros ícones louros da altura, tais como o hollywoodesco, mais
superficialmente carnal, de Marylin Monroe, ou o afrancesado, mais es-culturalmente
picante, de Brigitte Bardot, tornando-se assim num sinal físico, quase palpável,
do imaginário latino interpretado pelo realizador e, pelos vistos, transposto
para o ecrã por forma bem fiel às representações mentais do seu público. Aliás,
é a própria ‘Sylvia’ quem nos confessa, numa brevíssima deixa à parte do diálogo
principal, ter de contar à ‘Marylin’ as suas impressões romanas.
Outros Ícones:
Anouk Aimée, como uma ‘Maddalena’ algo arrependida, embora sem saber exactamente de quê, se da sua sexualidade liberada e anódina, se da sensualidade contida, se da aristocracia interiorizada, se da pose discretamente morena e meridionalmente reservada.
Yvonne Fourneaux, ‘Emma’, a mulher de Marcello, como candidata a matrona perfeitamente latina, possessiva, crédula, irascível, caseira e necessariamente sofredora.
Nico, aliás, Nicole Otzak/Christa Päffgen, ‘Nicolina’, a figurante loura com ar de mulher fatal, que, diletantemente, ornamenta e alegra todas as festas com a sua voz quente, grave e rouca em contraste aparente com a sua imagem escultural de ícone gélido-erótico, aqui alguns anos antes da sua pose «chanteuse» com que viria a deambular pelas «all tomorrow parties» de Andy Warhol e dos ‘Velvet Underground’, tornando-se um símbolo paradoxalmente contra-cultural da segunda metade dos anos 60.
Valeria Ciangottini, ‘Paola’, a jovem empregada de café, já descrita, portadora de esperança, simplicidade e redenção.
O Fotógrafo, ‘Paparazzo’, já descrito, como nome, alcunha, epíteto, profissão e função social, exactamente tal como viria a ficar registada para a posteridade - como designação singular dos agentes e atributos do paradigma «paparazzi».
Alain Cunny, o intelectual ‘Steiner’, pedagogo reflexivo, angustiado e suicida.
Adriano Celentano, o ‘Cantor’, ele próprio – representante do género rebelde para consumo familiar, como imagem importada, à Elvis, mas logo aculturada como nova postura «pop/rock», adocicadamente latina.
5 – Os sinais melómanos.
Onde o primado da música engravida as imagens geracionais.
A Música, como um todo fragmentado – composto, segmentado e orquestrado por Nino Rota, de acordo com um roteiro de ambientes, atitudes e expectativas dos personagens, da narrativa, da decoração: as angústias barrocas e as esperanças minimal-naturalistas, as neuroses socio-religiosas e as esquizofrenias estético-políticas, a sexualidade lúdico-ébria e a sensualidade sub-cutânea, o assédio mediático-massivo e a promiscuidade filosófico-familiar e de alcova também, tudo isto em sequências, por vezes verdadeiramente esfarrapadas de percussões, harmonias tubulares de órgãos e cordas, ou apenas numa ingénua frase de sibilante electrónica.
O Cantor Pop/Rock, já identificado como ícone de carne osso, com requebros de voz, igualmente à Elvis mas suportados por acordes de predominância melódica europeia, rompendo em ritmos quasi-frenéticos de refrão doce e meloso. Aliás, o panorama musical italiano foi pródigo no fornecimento de vozes e atitudes semelhantes que aqui se poderiam associar: Gianni Morandi; Rita Pavoni; Dalida;...
O Órgão da igreja, «bachiano» tocado por ‘Steiner’ em atmosfera de acatamento espiritual e redentor sob a tolerância atenta do respectivo clérigo, mas permitindo-se um ligeiríssimo ar de graça intelecto-musical subrepticiamente constrangida.
A «Juke Box» do café da praia que solta o som de órgão pop-electrónico, simplista e linear, irritante mas libertador, pontuando os meneios e o sorriso solto, leve e imaculado da jovem empregada com o mar em fundo, em contraste absoluto com o peso, a maturidade, a responsabilidade, a mácula e a angústia das gerações anteriores, engajadas e cultas mas profundamente estigmatizadas por essa mesma carga cultural, indecisas sobre o caminho a tomar entre um padrão conhecido de referências progenitoras, algo incomodativas e um conjunto de novas promessas desconhecidas, talvez até mesmo bizarras e de gosto duvidoso, mas aparentemente libertas e, curiosamente, apelativas.
Epílogo – Nem tudo o que se assinala é ouro.
Onde se constata não haver forma de se saber para o que a doce vida nos poderá
ter guardados.
No seu artigo ‘A Vida Amarga do Dinheiro’
[11] , Fellini dá-nos conta da sua satisfação pelo facto de LA DOLCE
VITA ter acabado por ser um considerável sucesso financeiro, mas logo de seguida,
trata de deixar bem claro que esse sucesso financeiro poderia muito bem ter
ditado o espartilhamento do seu futuro como realizador, assim ele estivesse
disposto a acatar a vontade dos produtores. “Agora, gostariam de uma continuação
para La Dolce Vita. Até tentaram fazer uma comédia italiana típica
com Totó. Tenho uma grande admiração por Totó, mas não vejo porque é que deveria
deixar La Dolce Vita tornar-se veículo para uma porcaria de uma paródia”.
[12]
Consciente do papel omnipotente dos produtores no
condicionamento das actividades criativas e cansado da sua omnipresença durante
as fases de rodagem, Fellini anuncia com uma grande confiança, provavelmente
gerada na sequência dos últimos êxitos de bilheteira, a criação da sua própria
empresa - FEDERIZ - em conjunto com Angelo Rizzoli, um dos produtores
de LA DOLCE VITA, a qual lhe deveria permitir realizar as suas ideias sem qualquer
tipo de constrangimentos e numa situação que o próprio realizador considerava
de liberdade total, quer para si, quer para as hostes de jovens realizadores
que a empresa se propunha adoptar. “Realizaremos os nossos sonhos, pelo menos
assim o esperamos. Quero rodear-me de saltimbancos, contadores de histórias
e bobos, como numa corte medieval. Mas não haverá despotismo ... Se tivesse
de definir a política da minha companhia, diria que é uma política que nunca
obrigará os realizadores a alterar os finais.” [13]
Fellini atirou-se ao trabalho “tão orgulhosamente
feliz como se fosse uma criança”, segundo as palavras de Pasolini,
[14] um dos primeiros a ser apoiado pela FEDERIZ, mas todo
esse entusiasmo empresarial não passaria de uma empolgante ilusão de vida efémera
e de natureza muito semelhante ao jogo de luzes e sombras projectadas no ecrã.
De facto, a FEDERIZ viria a declarar falência ser ter produzido resultados
palpáveis mas que, como o próprio realizador terá dito “serviu para se passar um bom bocado”.
[15]
Felizmente, para ele e para nós, Fellini encontrou
ao longo dos anos inúmeras formas para subverter a doutrina do produtor omnipotente.
Uma dessas formas materializou-se logo no pequeno filme que se seguiu, LE TENTAZIONI
DEL DOTTOR ANTONIO, e que pode ser considerado como o verdadeiro epílogo de
LA DOLCE VITA, em que o realizador ajusta contas com todos os moralismos pacóvios
que lhe tinham sido dirigidos. Neste ½ filme [16] , Fellini retoma
a silhueta de Anita Ekberg e transforma-a em imagem publicitária da tentação,
vivificando provocadoramente os desejos e os temores sexuais dos mais recatados
moralismos. Significativamente, esta provocação foi levada a cabo sob a batuta
financeira do mais perfeito protótipo do Grande Produtor por excelência – Carlo
Ponti, isto numa altura em que Fellini ainda investia animadamente na sua empresa
agnóstica, anti-dogmática e anti-ditatorial de produção.
Em suma, «Salve Dolce Fellini», que com tantas epístolas
nos atentaste. [17]
BIBLIOGRAFIA
Fellini, Federico
1974, Fellini conta Fellini, Livraria Bertrand, Lisboa (ed. 1982).
Halliwell, Leslie
1977, Halliwell’s Film Guide, Palladin Grafton Books, London (ed. 1986).
Houston, Penelope
1963, O Cinema Contemporâneo, Ed. Ulisseia/Pelicano, Lisboa.
Mitry, Jean
1963, Dictionnaire du Cinéma, Librairie Larousse, Paris.
Passek, Jean Loup
1986, Dictionnaire du Cinéma, Librairie Larousse, Paris.
Reia-Baptista, Vítor.
1987, The Heretical Pedagogy of Luís Buñuel, Litteraturvetenskapliga Inst. Depart. of Drama-Teater-Film, Lund University, Lund.
Sadoul, Georges
1949-67, Histoire du Cinéma Mondial, Flammarion, Paris (ed. 1979).
Sneum, Jan
1993, Bonniers Rock Lexikon, Bonnier Alba, Köpenhamn.
Tornabene, Francesco
1990, Federico Fellini, Benedikt TaschenVerlag, Berlin.
[1] Reia-Baptista, V. 1987.
[2] Este é, aliás, um dos casos mais paradigmáticos que pode ser invocado como libelo contra a prática da dobragem, sendo, como de facto é, completamente impossível reproduzir as conotações fonéticas do dialecto romano através de qualquer outro tipo de dialecto ou linguagem sem se perder um incontável número de nuanças e significados absolutamente necessários à construção e compreensão da obra como um todo.
[3] Tornabene, 1990, pg. 38.
[4] LE NOTTI DI CABIRIA ganhou o Oscar para melhor filme estrangeiro desse ano, assim como o prémio da crítica de New York, enquanto Giulietta Masina foi nomeada para o prémio de melhor actriz no festival de Cannes de 1957.
[5] Destacam-se; 4 Nomeações nos Oscares para melhor realização, melhor argumento, melhor decoração e melhor guarda-roupa; 3 Nastri d’Argento em Itália para melhor ideia, melhor actor e melhor decoração; Palma de Ouro em Cannes para melhor filme; entre muitos outros prémios.
[6] Sadoul, 1949-67, pg. Pg. 336.
[7] Tornabene, op.cit. pg. 39.
[8] Mitry, 1963, pg 89.
[9] Tornabene, op.cit. pg.42.
[10] É curioso como a designação «dogma» ganha hoje um significado cinéfilo bastante mais enriquecido, uma vez que não é fácil ignorar a abrangência do vocábulo quando utilizado pelo bem mais recente movimento «dogma 95».
[11] Publicado pela primeira vez no N.º de Janeiro de 1961 da revista londrina Films and Filming e reproduzido em Fellini, 1974, pp. 102 - 104.
[12] Ib. Pg. 103.
[13] Ib. Pg.103.
[14] Tornabene, op.cit. pg.43.
[15] Ib. Pg. 43.
[16] Fellini contava as suas curtas-metragens, episódios doutros filmes e filmes realizados a meias com outros realizadores como meios filmes, o que lhe rendeu o título de trabalho 8 ½ para a longa metragem que se seguiria e que, à falta de melhor, ficou como título definitivo, facto que em si originou inúmeras análises mais ou menos semânticas sobre a significância desse título.
[17] Mais exactamente com 20 longas e 4 meias.