A ideia de design deveria ser entendida não como um
catálogo de estilos ou como um cânone de regras formais, mas
como um empreendimento complexo que integra os domínios da política,
da economia e da cultura. O renovado interesse na História1
desencadeou a emergência do interesse pela teoria, o desejo de identificar
os princípios gerais que condicionam e enformam a prática
do design. O corpo teórico estabelecido com a tradição
pedagógica do modernismo tem sido intrinsecamente hostil a uma abordagem
histórica ao design gráfico: no design, tal como na arquitectura
ou nas belas artes, qualquer movimento dirigido à obtenção
de uma maior consciência histórica, é considerado uma
tentativa de revisão do modernismo e, como tal, um alvo a abater.
O design gráfico institui-se como disciplina autónoma
a partir dos movimentos de arte modernos dos anos 20, vindo a consolidar-se
como profissão nos últimos 60 anos. As suas bases teóricas
provêm dos movimentos e organizações de vanguarda,
como o Construtivismo, de Stijl e a Bauhaus. Após a II Guerra Mundial,
as práticas e o pensamento crítico destes movimentos foram
adoptados, codificados e transpostos em norma pelas academias artísticas.
Muitos textos produzidos ao longo da história da profissão
reproduzem um núcleo de princípios teóricos baseados
na pintura abstracta e na psicologia Gestalt. A Linguagem da Visão,
de Gyorgy Kepes (1944), Arte e Percepção Visual, de
Rudolph Arnheim (1954) e Sintaxe da Comunicação Visual,
de Donis Dondis (1973), contêm e reproduzem todos os temas recorrentes
das teorias modernistas da comunicação visual e do design.
Neles, é dado destaque à importância da percepção
em detrimento da interpretação. A percepção
refere-se, nestes domínios, à experiência individual
e subjectiva enquadradas por um corpo e por um cérebro. As teorias
estéticas baseadas na percepção favorecem o factor
sensorial, negligenciando o intelecto, sobrepondo a visão à
leitura,
a universalidade às diferenças culturais, o instantâneo
à mediação. A pedagogia do design, partindo das teorias
da percepção como instrumento de criação de
imagens, pressupõe a faculdade de uma linguagem perceptiva universal,
comum a todos os seres humanos, em todos os tempos e em todos os lugares,
linguagem essa capaz de ultrapassar qualquer barreira histórica
ou cultural.
Um estudo do design baseado na interpretação,
por outro lado, sugere que a recepção de uma mensagem específica,
varia de um determinado tempo e espaço para outro, atenuando ou
distorcendo o significado de convenções como formato,
estilo,
ou simbolismo, bem como da sua associação com outras
imagens ou palavras.
Entre estas duas abordagens teóricas, entre as teses modernistas
baseadas na percepção, e as correntes contemporâneas,
centradas na interpretação e numa análise histórica
e cultural, uma alternativa residirá eventualmente na tentativa
de conciliação e de convergência entre estes dois enunciados
aparentemente incompatíveis, aproveitando os contributos mais válidos
e eficazes de cada um.
Kepes, Arnheim e Dondis basearam-se na psicologia Gestalt, uma teoria
desenvolvida na Alemanha durante os anos 20. A palavra
Gestalt é
em si mesma intraduzível. Trata-se de uma palavra alemã que
engloba ao mesmo tempo a ideia de forma e de estrutura. Esta teoria pretende
demonstrar que não podemos perceber senão totalidades, fenómenos
inteiros e estruturados, indissociáveis do conjunto no qual eles
se inserem e sem o qual nada mais significam. Estas gestalts, estas
formas totais, são como que imagens ricamente coloridas que emergem
uma a uma, sucessivamente, de um fundo no qual vão de novo imergir
e perder-se, sem que nós possamos opor-nos a isso, porquanto elas
perderam o seu interesse para o observador. Na verdade, a nossa percepção,
para os gestaltistas, está simultaneamente ligada aos elementos
percebidos e às nossas próprias estruturas mentais que nos
fazem, consoante as circunstâncias do momento, reuni-las desta ou
daquela maneira. Assim, os testes clássicos da psicologia
gestalt,
mostram "imagens duplas" que é possível estruturar de duas
maneiras diferentes segundo os elementos que se adoptam como forma ou como
fundo. É impossível ver as duas imagens ao mesmo tempo, e
a passagem de uma para a outra faz-se bruscamente, de uma só vez,
por reconstrução mental do conjunto. É inútil
fazer qualquer esforço, pois isso em nada acelerará o processo:
a imagem aparece por "iluminação", como uma evidência,
ou não aparece de todo. A psicologia
gestalt encara também
a percepção global como uma reconstituição
de elementos ausentes: outros testes apresentam "imagens incompletas",
de que apenas se pode perceber o sentido completando-as logo à primeira
vista, "vendo" portanto, o todo ao mesmo tempo que as partes, as quais,
em si mesmas, na sua aparência bruta, nada significam.2
Para estes autores, assim como para muitos outros, comungando destes
mesmos pressupostos, o design é, na sua essência, uma actividade
formal e abstracta; o texto é secundário, um elemento adicional,
acrescentado e integrado na estrutura formal depois desta se encontrar
estabelecida. Uma teoria do design que isola a percepção
visual da interpretação linguística, encoraja a indiferença
à significação cultural. Não obstando a que
os estudos da composição abstracta sejam, por si, inquestionáveis,
os aspectos linguísticos e sociais do design são trivializados
ou mesmo ignorados, quando essa abstracção invade e ocupa
o fulcro da actividade conceptual.
Em Arte e Percepção Visual, Arnheim define a sua
ideia de "conceito visual" como a imagem mental de um objecto que se adquire
por uma multiplicidade de percepções visuais do mesmo, pela
sua captação através de inúmeros pontos de
vista e contextos.
Mexicano
Num tom humorístico, explica que esta imagem de um mexicano não
é uma representação válida, pois não
se refere ao verdadeiro "conceito visual" de um mexicano. Por outras palavras,
é necessário acrescentar uma informação textual
- uma legenda - de modo a poder ser compreendida. Mas o que poderia constituir
verdadeiramente o "conceito visual" de um mexicano? O sombrero (observado
a partir de um nível mais elevado) já constitui uma trivialidade
turística; o "conceito visual" do mexicano teria de consistir então
em mais estereotipos, acumulados não da experiência e do contacto
com verdadeiros mexicanos, mas apropriados dos filmes, da televisão
e da banda desenhada: um grande bigode, poncho, botas de couro, siestas
e tequilla... O exemplo de Arnheim pretendia ser jocoso. O seu objectivo
era tornar tão universal quanto possível a premissa inerente
a esta piada, sugerindo que a compreensão do mundo se baseia apenas
num conjunto de percepções visuais e que a linguagem desempenha
um papel subalterno, limitando-se a preencher os espaços deixados
vazios pela informação sensorial. Sabemos, no entanto, que
a percepção é filtrada pela cultura. O conceito de
um objecto tanto tem de visual (espacial, sensorial e pictórico)
como de linguístico (convencional, pré-determinado pela compreensão
e aceitação colectivas). O conceito constitui-se a partir
de pontos de vista individuais e atributos convencionais, apreendidos com
a educação e os media.
A expressão "linguagem visual" surge constantemente nos textos
de design: um vocabulário de elementos básicos (pontos,
linhas, formas, texturas e cores) está organizado numa gramática
de contrastes (equilíbrio/instabilidade, simetria/assimetria, duro/suave,
leve/pesado). Esta teoria foi elaborada no Curso Básico de Johannes
Itten, na Bauhaus. Um programa idêntico foi posteriormente continuado
por Kandinsky e Moholy-Nagy. Livros como Linguagem da Visão
de Gyorgy Kepes, professor na New Bauhaus de Chicago, nos anos 40, continuaram
a desenvolver esta teoria do design como uma linguagem baseada na
abstracção. Kepes escreve: "(...) tal como as letras do alfabeto
podem ser combinadas de inúmeras formas para constituir palavras
e obter significados, também as qualidades ópticas das formas
podem ser combinadas ... e cada combinação específica
dá origem a uma sensação espacial distinta." A "linguagem
visual" de Kepes assentaria, assim, apenas num glossário de significações
sensoriais.
Em Sintaxe da Linguagem Visual, Donis Dondis afirma que cada
uma destas composições abstractas tem um significado universal,
o qual se dirige directamente à percepção humana.
No entanto, um aldeão da Idade Média interpretaria estas
imagens de um modo completamente diverso ao de um habitante de uma grande
cidade actual, o qual poderia "ver" óbvias referências arquitectónicas
da sua cidade na ilustração da estabilidade. Dondis
substitui significados culturais concretos por uma "linguagem universal"
vaga e arbitrária.
Talvez o ideal de "literacia visual" ambicionado por Dondis, a capacidade
de apreender e interpretar composições abstractas, esteja
dependente da existência de uma estrutura prévia de "literacia
verbal". Num estudo antropológico orientado por A.R.Luria3,
os habitantes de uma aldeia isolada, na Rússia, eram solicitados
a identificar desenhos de formas geométricas simples. Alguns dos
habitantes tinham escolaridade básica, outros não. Aqueles
que sabiam ler interpretaram as imagens como formas geométricas
básicas e identificaram-nas: quadrado, círculo, triângulo;
os analfabetos, por seu lado, associaram os desenhos à sua realidade
envolvente: o círculo podia ser um prato, um balde, roda ou lua;
o quadrado, um espelho, uma porta ou mesmo uma casa. Esta pesquisa sugere
que a capacidade de reconhecer formas visuais "abstractas", isto é,
desenquadradas dum contexto de uso social e de comunicação
figurativa, é uma técnica sofisticada em vez de uma faculdade
universal de percepção, requerendo os processos de pensamento
racionais e analíticos que caracterizam as culturas "letradas".
O termo "linguagem visual" é uma metáfora. Compara a
estrutura do plano pictórico à gramática e à
sintaxe da linguagem. O efeito desta comparação leva à
segregação entre visão e linguagem.
Os dois termos são apresentados como análogos, mas inconciliáveis,
linhas paralelas que nunca convergirão. As teorias da linguagem
visual e as práticas educacionais e profissionais delas resultantes,
encerram o estudo dos significados da expressão visual sobre si
próprios, isolando-os da compreensão e integração
de outros modos de comunicar e de interpretar.
Sobrepondo a interpretação e a percepção,
a linguagem pode ser compreendida inclusivamente, ao invés
de exclusivamente. Palavras, imagens, objectos, usos e costumes,
ao integrarem os processos de comunicação, podem ou não
ocupar categorias separadas, mas contribuem para o entendimento do significado
histórico e cultural que integra a mensagem. Um dos mais influentes
teóricos deste modelo foi Roland Barthes, cujos escritos nas décadas
de 50 e de 60 tiveram um impacto ainda hoje sentido em muitos domínios,
como na literatura, arquitectura, fotografia e cinema. No design gráfico,
Herb Lubalin tornou-se notado por utilizar palavras como imagens e imagens
como palavras, assim como por justapor imagens e textos para produzir novos
conteúdos. Para ele não existia nenhuma barreira entre a
comunicação verbal e a comunicação visual.
Se Lubalin e outros protagonistas desta nova abordagem trabalharam
e descobriram as suas soluções intuitivamente, então
para quê a teoria? Muitos designers e professores evitam a explanação
de princípios teóricos, estimulando o estabelecimento de
um "senso comum" intuitivo e pragmático. Mas mesmo esta atitude
anti-teórica acaba por ser teórica: qualquer argumento está
condicionado por estruturas e condicionantes intelectuais por muitos vagas
e indefinidas que possam parecer.
Recusando-se a analisar os seus próprios preconceitos, o pragmatismo
reforça a maior fraqueza das teorias modernistas, suprimindo a análise
consciente do papel e do lugar do design na história e na cultura.
A pedagogia do senso comum limita a polémica ao imediatismo formal
e prático dum projecto, reduzindo ou mesmo eliminando a possibilidade
de visualizar o contexto social em que o design se movimenta.
A teoria pode actuar tanto no aspecto instrumental, como ferramenta
para gerar novas ideias, como analiticamente, constituindo métodos
de avaliação. Usando a teoria como conector e não
como barreira entre a comunicação visual e a expressão
verbal, o design poderá ser intensificado e dirigido no sentido
do reconhecimento do seu papel na construção da paisagem
social e cultural.
Fontes
ARNHEIM, Rudolph - Art and Visual Perception. A psychology of the
creative eye. [1954] Ed. revista e aumentada. University of California
Press, Berkeley:1974
DONDIS, Donis A. - Sintaxe da Linguagem Visual. [1973] Martins
Fontes, S. Paulo:1991
DREYFUS, Catherine, Psicoterapias de Grupo, Verbo, Lisboa:1980
KEPES, Gyorgy - Language of Vision. [1944] - Dover Publications,
London:1995
LUPTON, Ellen; MILLER, J. Abbott (orgs) - Design, Writing, Research.
Princeton Architectural Press, New York:1996
MATTOSO, J., A Escrita da História, Teoria e Métodos.
Editorial Estampa, Lisboa:1997
Imagens
Arnheim, Rudolph, op.cit - fig 82, p.109
Dondis, Donis, A. op.cit - fig. 3.21, 3.22, 3.23, p.60