LINGUAGEM DA VISÃO
Jorge Bacelar, Universidade da Beira Interior
Dezembro 1998


A ideia de design deveria ser entendida não como um catálogo de estilos ou como um cânone de regras formais, mas como um empreendimento complexo que integra os domínios da política, da economia e da cultura. O renovado interesse na História1 desencadeou a emergência do interesse pela teoria, o desejo de identificar os princípios gerais que condicionam e enformam a prática do design. O corpo teórico estabelecido com a tradição pedagógica do modernismo tem sido intrinsecamente hostil a uma abordagem histórica ao design gráfico: no design, tal como na arquitectura ou nas belas artes, qualquer movimento dirigido à obtenção de uma maior consciência histórica, é considerado uma tentativa de revisão do modernismo e, como tal, um alvo a abater.
O design gráfico institui-se como disciplina autónoma a partir dos movimentos de arte modernos dos anos 20, vindo a consolidar-se como profissão nos últimos 60 anos. As suas bases teóricas provêm dos movimentos e organizações de vanguarda, como o Construtivismo, de Stijl e a Bauhaus. Após a II Guerra Mundial, as práticas e o pensamento crítico destes movimentos foram adoptados, codificados e transpostos em norma pelas academias artísticas.
Muitos textos produzidos ao longo da história da profissão reproduzem um núcleo de princípios teóricos baseados na pintura abstracta e na psicologia Gestalt. A Linguagem da Visão, de Gyorgy Kepes (1944), Arte e Percepção Visual, de Rudolph Arnheim (1954) e Sintaxe da Comunicação Visual, de Donis Dondis (1973), contêm e reproduzem todos os temas recorrentes das teorias modernistas da comunicação visual e do design. Neles, é dado destaque à importância da percepção em detrimento da interpretação. A percepção refere-se, nestes domínios, à experiência individual e subjectiva enquadradas por um corpo e por um cérebro. As teorias estéticas baseadas na percepção favorecem o factor sensorial, negligenciando o intelecto, sobrepondo a visão à leitura, a universalidade às diferenças culturais, o instantâneo à mediação. A pedagogia do design, partindo das teorias da percepção como instrumento de criação de imagens, pressupõe a faculdade de uma linguagem perceptiva universal, comum a todos os seres humanos, em todos os tempos e em todos os lugares, linguagem essa capaz de ultrapassar qualquer barreira histórica ou cultural.
Um estudo do design baseado na interpretação, por outro lado, sugere que a recepção de uma mensagem específica, varia de um determinado tempo e espaço para outro, atenuando ou distorcendo o significado de convenções como formato, estilo, ou simbolismo, bem como da sua associação com outras imagens ou palavras.
Entre estas duas abordagens teóricas, entre as teses modernistas baseadas na percepção, e as correntes contemporâneas, centradas na interpretação e numa análise histórica e cultural, uma alternativa residirá eventualmente na tentativa de conciliação e de convergência entre estes dois enunciados aparentemente incompatíveis, aproveitando os contributos mais válidos e eficazes de cada um.

Kepes, Arnheim e Dondis basearam-se na psicologia Gestalt, uma teoria desenvolvida na Alemanha durante os anos 20. A palavra Gestalt é em si mesma intraduzível. Trata-se de uma palavra alemã que engloba ao mesmo tempo a ideia de forma e de estrutura. Esta teoria pretende demonstrar que não podemos perceber senão totalidades, fenómenos inteiros e estruturados, indissociáveis do conjunto no qual eles se inserem e sem o qual nada mais significam. Estas gestalts, estas formas totais, são como que imagens ricamente coloridas que emergem uma a uma, sucessivamente, de um fundo no qual vão de novo imergir e perder-se, sem que nós possamos opor-nos a isso, porquanto elas perderam o seu interesse para o observador. Na verdade, a nossa percepção, para os gestaltistas, está simultaneamente ligada aos elementos percebidos e às nossas próprias estruturas mentais que nos fazem, consoante as circunstâncias do momento, reuni-las desta ou daquela maneira. Assim, os testes clássicos da psicologia gestalt, mostram "imagens duplas" que é possível estruturar de duas maneiras diferentes segundo os elementos que se adoptam como forma ou como fundo. É impossível ver as duas imagens ao mesmo tempo, e a passagem de uma para a outra faz-se bruscamente, de uma só vez, por reconstrução mental do conjunto. É inútil fazer qualquer esforço, pois isso em nada acelerará o processo: a imagem aparece por "iluminação", como uma evidência, ou não aparece de todo. A psicologia gestalt encara também a percepção global como uma reconstituição de elementos ausentes: outros testes apresentam "imagens incompletas", de que apenas se pode perceber o sentido completando-as logo à primeira vista, "vendo" portanto, o todo ao mesmo tempo que as partes, as quais, em si mesmas, na sua aparência bruta, nada significam.2
Para estes autores, assim como para muitos outros, comungando destes mesmos pressupostos, o design é, na sua essência, uma actividade formal e abstracta; o texto é secundário, um elemento adicional, acrescentado e integrado na estrutura formal depois desta se encontrar estabelecida. Uma teoria do design que isola a percepção visual da interpretação linguística, encoraja a indiferença à significação cultural. Não obstando a que os estudos da composição abstracta sejam, por si, inquestionáveis, os aspectos linguísticos e sociais do design são trivializados ou mesmo ignorados, quando essa abstracção invade e ocupa o fulcro da actividade conceptual.
Em Arte e Percepção Visual, Arnheim define a sua ideia de "conceito visual" como a imagem mental de um objecto que se adquire por uma multiplicidade de percepções visuais do mesmo, pela sua captação através de inúmeros pontos de vista e contextos.

Mexicano

Num tom humorístico, explica que esta imagem de um mexicano não é uma representação válida, pois não se refere ao verdadeiro "conceito visual" de um mexicano. Por outras palavras, é necessário acrescentar uma informação textual - uma legenda - de modo a poder ser compreendida. Mas o que poderia constituir verdadeiramente o "conceito visual" de um mexicano? O sombrero (observado a partir de um nível mais elevado) já constitui uma trivialidade turística; o "conceito visual" do mexicano teria de consistir então em mais estereotipos, acumulados não da experiência e do contacto com verdadeiros mexicanos, mas apropriados dos filmes, da televisão e da banda desenhada: um grande bigode, poncho, botas de couro, siestas e tequilla... O exemplo de Arnheim pretendia ser jocoso. O seu objectivo era tornar tão universal quanto possível a premissa inerente a esta piada, sugerindo que a compreensão do mundo se baseia apenas num conjunto de percepções visuais e que a linguagem desempenha um papel subalterno, limitando-se a preencher os espaços deixados vazios pela informação sensorial. Sabemos, no entanto, que a percepção é filtrada pela cultura. O conceito de um objecto tanto tem de visual (espacial, sensorial e pictórico) como de linguístico (convencional, pré-determinado pela compreensão e aceitação colectivas). O conceito constitui-se a partir de pontos de vista individuais e atributos convencionais, apreendidos com a educação e os media.
A expressão "linguagem visual" surge constantemente nos textos de design: um vocabulário de elementos básicos (pontos, linhas, formas, texturas e cores) está organizado numa gramática de contrastes (equilíbrio/instabilidade, simetria/assimetria, duro/suave, leve/pesado). Esta teoria foi elaborada no Curso Básico de Johannes Itten, na Bauhaus. Um programa idêntico foi posteriormente continuado por Kandinsky e Moholy-Nagy. Livros como Linguagem da Visão de Gyorgy Kepes, professor na New Bauhaus de Chicago, nos anos 40, continuaram a desenvolver esta teoria do design como uma linguagem baseada na abstracção. Kepes escreve: "(...) tal como as letras do alfabeto podem ser combinadas de inúmeras formas para constituir palavras e obter significados, também as qualidades ópticas das formas podem ser combinadas ... e cada combinação específica dá origem a uma sensação espacial distinta." A "linguagem visual" de Kepes assentaria, assim, apenas num glossário de significações sensoriais.



Em Sintaxe da Linguagem Visual, Donis Dondis afirma que cada uma destas composições abstractas tem um significado universal, o qual se dirige directamente à percepção humana. No entanto, um aldeão da Idade Média interpretaria estas imagens de um modo completamente diverso ao de um habitante de uma grande cidade actual, o qual poderia "ver" óbvias referências arquitectónicas da sua cidade na ilustração da estabilidade. Dondis substitui significados culturais concretos por uma "linguagem universal" vaga e arbitrária.
Talvez o ideal de "literacia visual" ambicionado por Dondis, a capacidade de apreender e interpretar composições abstractas, esteja dependente da existência de uma estrutura prévia de "literacia verbal". Num estudo antropológico orientado por A.R.Luria3, os habitantes de uma aldeia isolada, na Rússia, eram solicitados a identificar desenhos de formas geométricas simples. Alguns dos habitantes tinham escolaridade básica, outros não. Aqueles que sabiam ler interpretaram as imagens como formas geométricas básicas e identificaram-nas: quadrado, círculo, triângulo; os analfabetos, por seu lado, associaram os desenhos à sua realidade envolvente: o círculo podia ser um prato, um balde, roda ou lua; o quadrado, um espelho, uma porta ou mesmo uma casa. Esta pesquisa sugere que a capacidade de reconhecer formas visuais "abstractas", isto é, desenquadradas dum contexto de uso social e de comunicação figurativa, é uma técnica sofisticada em vez de uma faculdade universal de percepção, requerendo os processos de pensamento racionais e analíticos que caracterizam as culturas "letradas".
O termo "linguagem visual" é uma metáfora. Compara a estrutura do plano pictórico à gramática e à sintaxe da linguagem. O efeito desta comparação leva à segregação entre visão e linguagem. Os dois termos são apresentados como análogos, mas inconciliáveis, linhas paralelas que nunca convergirão. As teorias da linguagem visual e as práticas educacionais e profissionais delas resultantes, encerram o estudo dos significados da expressão visual sobre si próprios, isolando-os da compreensão e integração de outros modos de comunicar e de interpretar.
Sobrepondo a interpretação e a percepção, a linguagem pode ser compreendida inclusivamente, ao invés de exclusivamente. Palavras, imagens, objectos, usos e costumes, ao integrarem os processos de comunicação, podem ou não ocupar categorias separadas, mas contribuem para o entendimento do significado histórico e cultural que integra a mensagem. Um dos mais influentes teóricos deste modelo foi Roland Barthes, cujos escritos nas décadas de 50 e de 60 tiveram um impacto ainda hoje sentido em muitos domínios, como na literatura, arquitectura, fotografia e cinema. No design gráfico, Herb Lubalin tornou-se notado por utilizar palavras como imagens e imagens como palavras, assim como por justapor imagens e textos para produzir novos conteúdos. Para ele não existia nenhuma barreira entre a comunicação verbal e a comunicação visual.
Se Lubalin e outros protagonistas desta nova abordagem trabalharam e descobriram as suas soluções intuitivamente, então para quê a teoria? Muitos designers e professores evitam a explanação de princípios teóricos, estimulando o estabelecimento de um "senso comum" intuitivo e pragmático. Mas mesmo esta atitude anti-teórica acaba por ser teórica: qualquer argumento está condicionado por estruturas e condicionantes intelectuais por muitos vagas e indefinidas que possam parecer.
Recusando-se a analisar os seus próprios preconceitos, o pragmatismo reforça a maior fraqueza das teorias modernistas, suprimindo a análise consciente do papel e do lugar do design na história e na cultura. A pedagogia do senso comum limita a polémica ao imediatismo formal e prático dum projecto, reduzindo ou mesmo eliminando a possibilidade de visualizar o contexto social em que o design se movimenta.
A teoria pode actuar tanto no aspecto instrumental, como ferramenta para gerar novas ideias, como analiticamente, constituindo métodos de avaliação. Usando a teoria como conector e não como barreira entre a comunicação visual e a expressão verbal, o design poderá ser intensificado e dirigido no sentido do reconhecimento do seu papel na construção da paisagem social e cultural.


1 - "(...) Outrora, 'factos históricos' eram só as acções dos chefes políticos, dos génios ou dos heróis. Desde que a história da humanidade se alargou, tudo tem dimensão histórica: desde a forma de enterrar os mortos até à concepção do corpo, desde a sexualidade até à paisagem, desde o clima até à demografia.(...)" MATTOSO, J., p.17
2 - cfr. DREYFUS, Catherine, pp.167-8
3 - citado por LUPTON, Ellen, p.64

Fontes
ARNHEIM, Rudolph - Art and Visual Perception. A psychology of the creative eye. [1954] Ed. revista e aumentada. University of California Press, Berkeley:1974
DONDIS, Donis A. - Sintaxe da Linguagem Visual. [1973] Martins Fontes, S. Paulo:1991
DREYFUS, Catherine, Psicoterapias de Grupo, Verbo, Lisboa:1980
KEPES, Gyorgy - Language of Vision. [1944] - Dover Publications, London:1995
LUPTON, Ellen; MILLER, J. Abbott (orgs) - Design, Writing, Research. Princeton Architectural Press, New York:1996
MATTOSO, J., A Escrita da História, Teoria e Métodos. Editorial Estampa, Lisboa:1997

Imagens
Arnheim, Rudolph, op.cit - fig 82, p.109
Dondis, Donis, A. op.cit - fig. 3.21, 3.22, 3.23, p.60