Jorge Bacelar, Universidade da Beira Interior
Maio 1999
W. G. Wells declarou que "se tudo é
possível, então nada é interessante". Existe algo
de estéril e assustador na possibilidade técnica total. É
bom que haja alguma fricção. É necessária uma
vivificante resistência do medium. A perfeição
técnica apenas nos coloca face a face com as nossas limitações.
A tipografia lutou tradicionalmente com os
seus limites técnicos. As letras reflectiam os constrangimentos
do material. A tipografia fazia parte de um combate antigo com as limitações
físicas do mundo.
A tecno-utopia chegou. Nunca acontece nada
numa Utopia. Não existem pontos de fricção, nada que
nos contrarie, nada que nos enfureça. Como tudo agora é possível,
nada ficou de interessante. Na sua prática quotidiana, a Utopia
passa a maior parte do seu tempo olhando para trás para o difícil,
problemático e estranho mundo da pré-utopia. As fontes digitais,
como outras formas de arte assistida por computador, são apropriações,
amostras, desconstruções e desvios. O protótipo da
fonte digital assemelha-se a um criminoso que, viajando no tempo, raptasse
Gutenberg e Aldus Manutius e os injectasse com uma dose excessiva de anfetaminas
misturadas com tranquilizante para cavalos.
As verídicas fontes de computador são
aquelas entidades gráficas irrequietas que vivem no interior dos
monitores. Logotipos voadores. Letras cromadas. Letras escorrendo sangue
dos filmes de terror, acompanhadas com a banda sonora. Extravagâncias
em Java nas web-pages. Lettering que se desfaz numa
nuvem de partículas animadas, ou que vibra, que muda de cor, se
incendeia ou voa de dentro de barris de pólvora. Assiste-se à
tipografia digital animada pelos agrestes constrangimentos de um medium
jovem, cru e dificilmente funcional. Ela vive efectivamente aí,
com as compressões erradas, cartas de vídeo deficientes,
bugs de todo o tipo, etc. Os web-designers podem sofrer com
uma segurança social deficiente ou insegurança no trabalho,
mas encontram a inspiração divina ao confrontarem-se com
as limitações e constrangimentos operacionais.
Em papel, no entanto, parece ter-se atingido
um gran finale apoteótico: pode colocar-se qualquer número
de pixels, algures numa página, na forma que se quiser, no
momento que apetecer, com níveis de precisão arbitrários.
Então, onde está o limite? Onde está o desafio?
Claro está que ainda não acabou.
Um computador é um televisor em cima de uma máquina de escrever
em cima de uma secretária... é um ícone do seu tempo.
As máquinas de Bill Gates ou Steve Jobs nos anos 90 não são
mais permanentes que as linhas de montagem da Ford nos anos 20. Qualquer
dia, e se calhar muito antes do que pensamos, os computadores tornar-se-ão
fastidiosos. Passarão a ser a tecnologia do tio. Do avô. Arqueológicos.
Mas o papel não vai deixar de ser usado,
porque contém e continuará a conter uma imensa série
de informação, de conhecimento, que podem durar séculos
sem upgrades,
backups, ou pilhas. Poderemos assim viver para
ver o dia em que confrontaremos novos desafios criativos sobre papel, com
um design tecnologicamente avançado - que não precisa obrigatoriamente
de ser assistido por computador...
O que acontecerá então?