DESIGNARCISISMO

Jorge Bacelar, Universidade da Beira Interior



"A ideia nuclear é que o design se baseie na auto-expressão: se parece excelente, se ficou espectacular, é o que interessa. Depois do aspecto, e em plano estritamente secundário, vem a aprovação pelo cliente e a receptividade do público."


Esta declaração-tipo, proveniente de muitos designers contemporâneos, condensa com uma sinceridade desarmante o programa do design auto-expressivo. Mas como este tipo de afirmação parece pouco fundamentado teoricamente, foi necessário preencher o vácuo com alguns considerandos mais complexos e sofisticados. Assim, o design não deverá ser demasiado simples em nenhuma das suas fases: desde a sua concepção, desenvolvimento e realização até ao momento final de uso pelo consumidor, problematizar é a palavra de ordem. O destinatário tem de actuar, forçado a pensar naquilo que tem perante si. E se ainda assim o argumento continuar a parecer demasiado básico, podem-se sempre fabricar versões mais aperaltadas, recorrendo-se à condição pós-moderna e a abordagens "radicais" à comunicação: o objectivo é envolver a audiência com o texto, fazer "trabalhar" os leitores, enfatizando a "construção" do significado. O design radical inverte a tendência do texto fluído, armadilhando-o, problematizando o significado e a linguagem. O leitor deverá tornar-se um participante activo e deixar de ser um receptáculo passivo e amorfo. Em suma, pretende-se provocar o espectador, tornando-o participante na construção da mensagem.

Este programa teórico, arrancado com fórceps da filosofia francesa dos anos 80 e das teorias literárias, pretende des-construir, estilhaçar e expor os mecanismos manipuladores da linguagem visual, bem como os diversos níveis de significação ocultos na trama da mensagem. Baseando-se nas premissas de que a leitura é passiva, não-criativa, unidimensional, e que os leitores são subestimulados, demasiado preguiçosos para descobrir por si próprios que o significado da mensagem é incerto e varaiável, o design deverá espicaçá-los para a acção - removendo padrões de leitura típicos e familiares, criando obstáculos, diversões, falsas pistas - deixando bem claro que a procura da legibilidade e da transparência1 mascara uma atitude reaccionária contra o progresso, a mudança e a intervenção crítica.

Um argumento final para justificar uma tipografia mais actuante assenta no pressuposto que as pessoas lêem menos, pois obtêm mais informação de outras fontes. Os leitores contemporâneos, atraídos por modos de apresentação mais dinâmicos, exigem arranjos gráficos mais estimulantes.

Estas afirmações merecem uma resposta.

Primeiro, não existem evidências que as corroborem. De facto, a única evidência sobre a leitura indica precisamente o contrário: "ler" é um conjunto de actividades altamente complexo, funcionando em muitos níveis, desde o automatismo dos movimentos oculares às áreas de processamento mais elaboradas. Quando lemos fazemos escolhas, inferindo e gerando hipóteses - sobre intenções, relevância, tom de voz, etc. Relacionar, memorizar, escolher, eliminar, longe da passividade e do amorfismo abúlico propalados, demonstram que a leitura é um acto tipicamente premeditado e activo. E tudo isto, curiosamente, coincide com as teorias pós-modernas das práticas significantes, que argumentam que cada leitura é uma re-escrita...2

Segundo, quando os pós-modernos fazem generalizações sobre a escrita "esquecem-se" de caracterizar o tipo de leitores que têm em vista: não terão concerteza em conta destinatários praticamente iliterados, pobres ou com deficiências visuais, fazendo pontaria muito mais para cima, para "grupos-alvo" sofisticados, cultos e com um poder de compra elevado. Também se "esquecem" de referir aos tipos de leitura que constituem o objecto dos seus projectos, mas podemos estar certos que produtos tão desinteressantes como textos educativos, relatórios, formulários, especificações, roteiros, listas de preços, mapas, diagramas, rótulos de alimentos e medicamentos, dicionários, horários, manuais de instruções, não fazem parte do seu port-folio... Os pós-modernos preferem concerteza corporizar os seus argumentos em projectos de categoria mais elevada, preferencialmente no âmbito mais privilegiado da "cultura", da "arte" ou da "literatura", assumindo a leitura como um acto de consumo.

Terceiro, a "tipografia reactiva"3, justificada como resposta à alegada demissão dos leitores, não passa de um novo rótulo para uma teoria e uma racionalização já velhas e estafadas. Sobre este assunto, a gritaria de Marinetti, nos idos de 1909, dispensa comentários.4

Por último, a fábula do paraíso perdido (antes as pessoas liam, agora vêem vídeos) traz implícita a ideia da necessidade de um design agressivo, dado que as escolhas dos leitores são mediadas pelo mercado. Para sobreviver aos caprichos desse mercado, as mensagens têm de ser ostensivamente diferenciadas, mais para atraírem as atenções do que para encorajar os leitores a discriminar, seleccionar e optar num sem fim de alternativas e oportunidades de consumo. Um texto hiperactivado é como tentar ler um livro que já foi sublinhado e anotado por um idiota que destacou frases sem qualquer relação com aquilo que contamos obter com a leitura do livro, obrigando-nos a realizar um esforço adicional para conseguir chegar à mensagem inicial.5

As coisas não mudaram assim tanto. Antes, os designers preocupavam-se em dar nas vistas; agora procuram teorias para justificar por que querem dar nas vistas. Para subir na elite criativa têm primeiro que cunhar uma marca pessoal bem visível. O resto é acessório. A sobranceria que nutrem pelas pessoas não se confina às artes gráficas ou à tipografia. No design industrial, de moda, de produtos, enferma-se dos mesmos sintomas. Basta passar os olhos pelas publicações periódicas da especialidade para ficarmos com uma ideia do que movimenta actualmente o mundo do design. Surgem abordagens notáveis e conceitos inovadores, mas nota-se muito pouca preocupação em desenvolver projectos funcionais, utilizáveis ou compreensíveis. Muitas áreas não-tão-espectaculares-assim do design, mas que desempenham um papel importante na nossa existência, não são tomadas em conta, ou se o são, resultam normalmente numa parada de horrores.

A tipografia moderna não é uma moda. Consiste na verificação razoável daquilo que é necessário, e na determinação das condições adequadas (e razoáveis) para a sua concretização. Se as condições técnicas e sociais mudaram, a solução não passa por espalhar manchas irregulares, texturas, graffitti e fotos duotone desfocadas ou com os limites desmaiados sobre ou sob malhas de caracteres tipográficos ilegíveis ou conflituosas. Quando os signos tipográficos se tornam um mero material gráfico, utilizado como uma espécie de quadrícula onde se sobrepõem símbolos e texturas, a escrita reduz-se à categoria de um banal objecto estético. Conjugar o novo com os velhos pressupostos do texto impresso, da palavra visível, é mais difícil, porventura menos espectacular, mas é aí que reside a essência do design. Os designers tipográficos poderão polvilhar os seus discursos com alguns pozinhos de pós-modernidade (e eventualmente, se o negócio correr bem, acrescentar um ou outro vocábulo ou expressão idiomática da gestão empresarial), mas estão condenados a regressar vezes sem conta à rusticidade simplória do ponto de partida: a leitura dos textos continua a assentar em 26 míseros signos que persistem, pela sua simplicidade, em funcionar com eficácia.

Mas, no fim, será que isto tem alguma importância? Como tantas outras modas, esta ideia do design auto-expressivo, estes exercícios de estilo des-construídos, vanguardistas e pós-modernos, estão destinados ao esquecimento. Ficarão uns resíduos arqueológicos espalhados pelos manuais da história do fim do milénio, porventura um ou outro espasmo revivalista dentro de 50 ou 100 anos, mas a questão central do design, tal como foi formulada na Bauhaus, ainda está por ultrapassar.

1999.02.02
 


1- WARDE, Beatrice, The Crystal Goblet, 1948, apud. McLEAN, Ruari, Typography, Thames & Hudson, London:1981, p. 9

2- STIFF, Paul, Look at me! in Looking Closer 2, Allworth Press, New York:1997, p.34

3- POGGENPOHL, Sharon, Visible Language, 1991:4, apud STIFF, Paul, op.cit., p.35

4- Não resisto, no entanto, a transcrever este excerto do manifesto publicado na revista Lacerba, em 1910: "Estou a fazer uma revolução tipográfica que é dirigida. acima de tudo, contra a idiota e doentia noção do livro de poemas, feito em papel artesanal, no seu estilo do século XVI, decorado com vinhetas, Minervas e Apolos, capitulares, ornamentos florais e vegetais e com os seus numerais romanos. Um livro deve ser a expressão futurista do pensamento futurista (...) a minha revolução é, entre outras coisas, contra a chamada harmonia tipográfica da página do livro, que está em manifesta oposição ao movimento patente no meu trabalho. Se necessário, usarei três ou quatro cores diferentes e vinte estilos tipográficos na mesma página (...)" apud. GÓMEZ, Xésus González, Manifestos das Vangardas Europeas. Edicións Laiovento, Santiago de Compostela:1995, p.35

5 - TREIB, Marc, apud POYNOR, Rick, Typography Now Two - Implosion, Booth-Clibborn Editions, London:1996, p. 14