Apontamentos sobre a história e desenvolvimento da impressão

Jorge Bacelar, Universidade da Beira Interior

Maio 1999

A invenção da imprensa de caracteres móveis é considerada a origem da comunicação de massas por constituir o primeiro método viável de disseminação de ideias e de informação a partir de uma única fonte para um auditório numeroso e disperso. Analisando mais atentamente os fenómenos que constituíram a génese da impressão com caracteres móveis, verifica-se que esta resulta da confluência de factores culturais e tecnológicos que se vinham desenvolvendo ao longo dos três séculos precedentes. A cultura da palavra impressa e a tecnologia tipográfica precisaram igualmente de atravessar séculos de mudança após o tempo de Gutenberg até que a massificação se pudesse concretizar plenamente.
A história da impressão é longa e complexa. Seria excessivo proclamar a imprensa a causa das mudanças sociais, políticas e psicológicas a que está associada. Mas a ela se deve uma marca indelével em todos os aspectos da cultura europeia, ou pelo menos, aceitar-se-á pacificamente que constituiu o instrumento de mudança que permitiu a emergência da ciência, religião, cultura, política e modos de pensar vulgarmente associados à cultura ocidental da era moderna.

Raízes tecnológicas
A invenção da imprensa só foi possível pela invenção e refinamento das técnicas de fabrico de papel na China ao longo de vários séculos. Em 105 d.C. os Chineses desenvolveram o papel de farrapos, fabricado com fibras vegetais e trapos velhos, constituindo uma alternativa económica às pesadas pastas de bambu e cascas de árvores ou ao precioso e dispendioso papel de seda. Os segredos desta técnica foram revelados aos árabes por prisioneiros chineses no século VIII sendo posteriormente introduzidos na Europa nos séculos XII e XIII. Muito antes de Gutenberg, as inovações chinesas nas tintas, impressão xilográfica e impressão com caracteres móveis de argila, tinham já prestado o seu contributo para a divulgação da palavra impressa. Apesar de ter demorado séculos a chegar à Europa, o seu impacto cultural só aqui se fez efectivamente sentir. O uso desta tecnologia de caracteres móveis na escrita chinesa, que emprega milhares de ideogramas, implicava um esforço e um dispêndio de recursos materiais insuportável. Assim, o seu impacto na eficácia da produção só se viria a verificar no ocidente, pela fácil adequação e adaptação dos 26 caracteres do alfabeto latino a esta tecnologia. Algumas teses na historiografia afirmam que o carácter normalizado, sequencial e linear da tipografia se adaptou admiravelmente ao particularismo ocidental, direccionado para o progresso técnico e para a conquista características que favorecem a mudança rápida e intensiva.

Gutenberg e o momento histórico na Europa ocidental
As rápidas mudanças culturais que se faziam sentir na Europa desde o início do século XV estimularam uma crescente procura (e a necessária produção) de documentos escritos mais baratos. Desde a sua introdução na Europa, no século XII, o papel foi-se afirmando como alternativa viável ao vellum e ao pergaminho, que constituíam à época os meios convencionais de para o registo e transporte da informação escrita. O papel de farrapo foi-se tornando cada vez mais barato e abundante e, simultaneamente, a alfabetização expandia-se. Em parte, os dois processos aceleraram por se estimularem mutuamente. A necessidade de documentação aumentava com o desenvolvimento do comércio, assim como com o aumento da complexidade dos processos de governo e administração política e religiosa. Por seu lado, os processos comerciais mais sofisticados e o número de funcionários necessários para manter em funcionamento as crescentes burocracias políticas, religiosas e comerciais, criaram a necessidade de um sistema de ensino que produzisse esses mesmos funcionários. Para tal era necessária a existência e disponibilidade de material escrito. Durante séculos, os monges copistas garantiram a manutenção e a reprodução dos textos sagrados, mas o mundo secular emergente criou a sua própria versão de copista, surgindo o amanuense profissional. Os novos scriptoria ou lojas de escrita que surgiram, empregariam virtualmente qualquer clérigo letrado que procurasse trabalho.
Apesar do seu rápido aumento, os amanuenses não conseguiam dar resposta à crescente procura comercial de livros. Outro potencial campo de negócio era a venda de indulgências, folhas de papel oficial da Igreja, concedendo o perdão pelos pecados cometidos, emitidas a troco de fundos destinados à construção de edifícios e a outros projectos dirigidos para a expansão do seu domínio. De facto, tiragens de 200.000 exemplares já eram vulgares pouco depois das indulgências manuscritas se tornarem obsoletas.
Gutenberg, ourives na cidade de Mainz, pressentiu o potencial de lucro duma tecnologia que pudesse dar resposta a estes problemas e, para o efeito, contraiu um empréstimo que lhe permitisse desenvolvê-la. Para tal, desenvolveu e adaptou características das tecnologias têxtil, papeleira e de prensagem de uvas já disponíveis na época, mas a inovação mais significativa reside no estabelecimento dos processos de moldagem e fundição de tipos móveis metálicos. Cada letra era gravada no topo de um punção de aço que era posteriormente martelado sobre um bloco de cobre. Essa impressão em cobre era inserida num molde, e uma liga de chumbo, antimónio e bismuto era aí vertida, originando uma imagem invertida da letra que era então montada numa base de chumbo. A largura dessa base variava com a dimensão da letra (por exemplo, a base da letra i não chegaria a metade da largura da base da letra w). Esta característica permitiu enfatizar o impacto visual das palavras e dos conjuntos de palavras, evitando o efeito individualizador das letras, característico do monoespacejamento. Com este princípio estabeleceu-se uma norma de elegância estética e sofisticação para a perfeita e impecável regularidade de uma página impressa.
Gutenberg produziu uma Bíblia impressa em latim, que viria a ser o seu trabalho de consagração. Uma tiragem de cerca de 300 exemplares em dois volumes, vendidos a 30 florins cada, ou seja, cerca de três anos do salário de um sacerdote, não foi suficiente, apesar do sucesso da sua invenção, para pagar as dívidas contraídas. A sua oficina foi penhorada, as suas técnicas tornaram-se públicas e para os credores foi transferida a propriedade dos direitos comerciais relativos às Bíblias de Gutenberg.
Passadas as resistências iniciais, o clero viu as vantagens do poder da impressão. Indulgências impressas, textos teológicos e mesmo manuais de instruções para a condução de inquisições, tornaram-se instrumentos comuns para a disseminação da influência da Igreja. Mas o reverso da moeda também se fez sentir: era muito mais difícil controlar a actividade dos impressores do que tinha sido controlar os copistas, tanto religiosos como seculares, durante séculos. A produção e distribuição de uma variedade explosiva de textos tornou-se rapidamente impossível de conter. Cópias impressas das teses de Lutero foram rapidamente divulgadas e distribuídas, desencadeando as discussões que viriam a iniciar a oposição à ideia do papel da Igreja como único guardião da verdade espiritual. Bíblias impressas em linguagens vernáculas, em alternativa ao latim, alimentaram as asserções da Reforma Protestante que questionavam a necessidade da Igreja para interpretar as Escrituras - uma relação com Deus podia ser, pelo menos em teoria, directa e pessoal.
No plano da fixação das normas da linguagem (ou pelo menos, da escrita) pode-se referir o papel desempenhado por William Caxton, que, em 1476, estabeleceu em Inglaterra a primeira tipografia. Caxton tinha sido um tradutor prolixo, e viu na tecnologia da imprensa de caracteres móveis um excelente veículo para a promoção e divulgação da literatura popular. Verificando que o Inglês padecia de tantas variações regionais que muitas pessoas eram incapazes de comunicar com outras, mesmo dentro do mesmo país, Caxton editou, imprimiu e distribuiu uma variedade de livros, determinando e controlando a soletração e a sintaxe em todos os títulos produzidos na sua oficina, contribuindo assim largamente para a estandardização da língua inglesa, vindo estes procedimentos a ser gradualmente adoptados em todos os países onde a tipografia se ia estabelecendo.

A impressão e o pensamento moderno
A revolução científica que viria a questionar as verdades à guarda da Igreja foi igualmente uma consequência directa da tecnologia da impressão. O princípio científico da repetibilidade, garantido pela verificação imparcial de resultados experimentais, estabeleceu-se como paradigma, graças à rápida e ampla disseminação, pela imprensa, de reflexões e descobertas científicas. Acelerando a troca de ideias, estimulou a produção de conhecimento científico, contribuindo para o nascimento de uma comunidade científica que funcionasse sem constrangimentos geográficos. Sistematizaram-se assim metodologias e acrescentou-se sofisticação ao pensamento racional. À medida que mais e mais livros se tornavam acessíveis, o corpo de conhecimentos expandiu-se, originando o surgimento de índices e de sistemas de referência cruzada como formas de possibilitar a gestão da informação disponível, bem como para associar criativamente ideias e assuntos aparentemente distantes e sem qualquer relação.
Estas inovações no acesso ao conhecimento científico e às estruturas do pensamento humano que acompanharam o estabelecimento da imprensa na Europa influenciaram igualmente as artes, a literatura, a filosofia e a política. A inovação explosiva que caracterizou o Renascimento foi amplificada, e em parte gerada, pela imprensa de caracteres móveis. A rígida estrutura social que determinava o estatuto de cada um em função do seu nascimento e do património familiar começou a diluir-se, com o surgimento e ascensão de uma classe média intelectual. A possibilidade de modificar o estatuto individual graças à ambição e ao mérito pessoal, foi despertando uma incontrolável fome de educação nos menos privilegiados de nascença.
A tecnologia da impressão desencadeou uma revolução nas comunicações que viria a tocar muito fundo nos modos de pensar e nas interacções sociais. A impressão, em conjunto com a linguagem falada, com a escrita e os meios electrónicos, é considerada um dos marcos de mudanças fulcrais na história da comunicação e que viriam por sua vez a influenciar as mudanças sociais e intelectuais subsequentes.
A cultura oral passa de geração em geração através de uma atmosfera de interacção pessoal emotiva e sensorial. A escrita facilita a interpretação e a reflexão, uma vez que a memorização já não é tão essencial para a comunicação e o processamento das ideias. A história registada pode ser acrescentada e actualizada ao longo dos tempos. O texto manuscrito originou uma variação nas tradições orais: o hábito comunitário de contar histórias, associando à palavra a expressão corporal, a dança, etc., transforma-se na leitura do texto, por um orador, para o grupo.
A impressão, por seu lado, estimulou a procura da privacidade. Livros mais baratos e portáteis, levaram à leitura silenciosa e solitária. Esta orientação para a privacidade integra-se num movimento mais amplo de conceptualização e reivindicação de direitos e liberdades individuais, cujo surgimento a imprensa estimulou e contribuiu para divulgar. A impressão impregnou a cultura ocidental com os princípios da estandardização, da verificabilidade e da divulgação de ideias e conhecimentos, a partir de uma fonte, e sua disseminação por muitos receptores dispersos geograficamente. Tal como influenciou profundamente a reforma do pensamento religioso e do método científico, as inovações da imprensa desafiaram igualmente o controlo institucional. A imprensa estimulou a procura e o credo numa verdade fixa e verificável, assim como abriu caminho aos homens para o livre arbítrio e ao direito de escolher individualmente percursos intelectuais e religiosos.
Se num primeiro tempo a tipografia constituiu, por si, uma revolução, séculos mais tarde passaria a ser instrumento de revoluções: veja-se como exemplo, o papel que a imprensa desempenhou nas colónias inglesas da América, divulgando e defendendo as ideias visionárias que deram forma à Revolução Americana ou, mais tarde ainda, o papel que desempenhou nos aparelhos de agitação e propaganda para a disseminação dos ideais de todos os movimentos ideológicos revolucionários que, a partir de finais do século XIX, se propuseram transformar o mundo.
Até ao século XIX, a tecnologia estabelecida por Gutenberg foi apresentando alguns melhoramentos, mas no essencial mantinha as características dos primitivos prelos do século XV. O fabrico de prelos em aço em vez de madeira, movidos pela energia da máquina a vapor e a alimentação de papel em bobine, em conjunto, contribuíram para o vertiginoso aumento da eficiência da imprensa. Estes avanços tecnológicos permitiram em 1833 a redução para o preço de um penny do jornal diário New York Sun. Para alguns historiadores, esta penny-press constitui o primeiro mass-medium genuíno: nas palavras do seu fundador, Benjamin Day, o seu jornal estava concebido para "apresentar ao público e a um preço acessível a todos, as notícias do dia".

Desenvolvimentos na tecnologia da palavra impressa
Um grande número de inovações tecnológicas acrescentaram a importância, o carácter e o papel da imprensa na cultura. Monotype e Linotype, métodos mecânicos de fundição e composição de tipos móveis, alternativos à composição manual, foram lançados ainda antes do virar do século (1884 e 1887) e marcaram um salto significativo na velocidade de produção. Os processos de composição passaram por inúmeras transformações com o desenvolvimento da composição fotomecânica, que marca o fim da época da composição a quente, ou seja com ligas de metal fundidas, despejadas em moldes para produzir letras, números e sinais, e o início da composição a frio, primeiro pelo recurso à máquina de escrever, que tornou comum e acessível o look da impressão normalizada e, de seguida, à tecnologia fotográfica, depois à electrónica, ao tubo de raios catódicos e à tecnologia laser. A máquina de fotocópias permitiu finalmente o acesso do documento impresso a todos. Os processadores de texto transformaram as tarefas de edição e trouxeram novas características e flexibilidade aos processos de escrita. A impressão informatizada já percorreu vários degraus evolutivos, desde os primeiros discos de margarida e impressoras de agulhas, até aos actuais e comuns processos de impressão caseiros: jacto de tinta, laser e transferência térmica.
Tanto a Internet como a interactividade dos produtos multimedia estão a revelar novos métodos para a aplicação e uso da palavra impressa, acrescentando-lhe novas possibilidades culturais. A palavra visível é agora utilizada na interacção social em tempo real e para a navegação individualizada em documentos interactivos. É impossível antever o impacto cultural destes novos processos de uso da palavra escrita. A distância histórica é indispensável para uma avaliação dos fenómenos que nos envolvem neste momento, mas é muito provável que este período venha a marcar mais uma transformação radical no uso, importância e carácter da comunicação humana.