Ficcionalidade e processos comunicacionais

 

Maria Augusta Babo, Universidade Nova de Lisboa

 

1996

 

Proponho-me abordar aqui a ficção como lugar de confluência da Literatura e da Comunicação. Não invadiu a ficcionalização, hoje, todos os meios de comunicação, desde o cinema ao audio-visual? Ou será que o "poder da imagem" não veio, pelo contrário, limitar essa capacidade de ficcionalização?

Antes de mais, será talvez importante indagar em que medida se poderá questionar a literatura através da comunicação, ou, por outras palavras, inserir a Literatura no âmbito geral daquilo que se entende por Comunicação. Se por um lado parece óbvio que todo o texto literário se dá a ler com essa finalidade primeira e última que é a de comunicar, por outro lado, e ainda numa primeira abordagem, também é verdade que as vanguardas literárias, desde o princípio do século, questionaram por dentro essa mesma finalidade aparente da literatura: comunicar. É pois o próprio termo de comunicação que urge determinar, desligando-o desde logo de uma perspectiva utilitarista e behaviorista que reduz a comunicação à transmissão de informação, que é preciso codificar e descodificar.

 

A Literatura no pano de fundo da Comunicação

A comunicação é, antes de mais, um emaranhado de questões, chamemos-lhe assim, emergente na nossa sociedade moderna. Podemos mesmo afirmar que a modernidade, seja ela entendida do ponto de vista histórico, político, económico ou cultural, se define por ser uma sociedade organizada pelos múltiplos procedimentos de comunicação, quer técnológicos, quer retóricos, quer os inerentes à própria estruturação e funcionamento do espaço público. É a passagem da pré-modernidade à modernidade que permite a emergência da comunicação, dada a laicização dos saberes e dos poderes. É com o fim do discurso monológico que podemos detectar a emergência da comunicação na nossa sociedade. Des-sacraliza-se o Estado, des-sacraliza-se a escrita, assiste-se ao aparecimento do indivíduo inserido num espaço de racionalidade e de debate que as sociedades democráticas modernas vieram depois configurar.

A comunicação exige pois, como rosto da modernidade, a categoria de sujeito da linguagem mas exige ainda a consciencialização da linguagem como imanência. O discurso, a razão, a verdade são assumidos pelo sujeito e não por qualquer instância exterior. É da reflexão pública que nasce o sentido e a verdade que deixam a esfera da transcendência para se tornarem objecto de consensualidade, ou, pelo menos de discussão, chamando a si todos os processos retóricos de convencimento. Comunicação implica ainda liberdade de formulação, de discussão, de persuasão, assentando num conceito móvel de sentido, que é, em última análise, o consenso. Sentido que é, portanto, consentido, porque aceite pela comunidade dos indivíduos, porque sujeito à crítica e à opinião públicas. É toda a problemática do espaço público, tratada por Habermas[1], como espaço de comunicação.

Agora, do ponto de vista das grandes formações narrativas, aquilo que distingue as sociedades pré-modernas das sociedades modernas, é, segundo Lyotard[2], o facto de ambas produzirem e se alimentarem de macro-narrativas ou narrativas totalizantes mas que são míticas, no primeiro caso, e fundamentadas na razão e no saber científico, como instância legitimadora, no segundo. A pos-modernidade, teorizada por este autor, assistindo ao fim das macro-narrativas define-se, por seu turno, pela dissolução do sentido, sustentado por essas macro-narrativas dando lugar à disseminação de pequenas narrativas, disseminação de sentidos e sua polemização.

Como inserir neste quadro a ficção, ou de uma forma mais lata, a literatura?

Se a literatura como instituição é abrangente das macro-narrativas pré-modernas, acolhendo no seu seio, como depósito patrimonial, como monumento, as narrativas míticas, vê configurar-se na modernidade o género que por excelência a legitimará: o romance. O romance surge como uma cisão inabalável com as macro-narrativas, alimentando-se de um inexpugnável e infinito campo, distinto do da verdade como transcendência, distinto do real, como sua descrição ou adequação, o campo da ficção.

Sabemos que a literatura enquanto instituição literária fica justamente devedora do aparecimento da modernidade, quer situemos esta última na Renascença, com a laicização da escrita, quer a adiemos para o cartesianismo e a emergência do cogito, da racionalidade. Mas verificamos que também no âmbito das micro-narrativas, de natureza ficcional, a pos-modernidade introduziu todo um questionamento aos procedimentos narrativos a elas inerentes bem como ao sentido, que, embora imanente, lhe constituia o telos, a finalidade. As vanguardas literárias levaram aos limites, transgredindo-a, a organização lógica do sentido, dissolvendo ou diluindo as narrativas através daquilo a que se chamou uma "escrita em processo"[3], a "obra aberta"[4], ou mesmo e na expressão de Ricoeur[5], chegaram a um estado de total amnésia sobre a própria noção de narrar. Parece-nos, no entanto, que mesmo nesta hipótese mais catastrófica, a literatura como processo comunicacional nunca deixará de ser um texto intercultural, porque antes mesmo de responder ao problema da verdade, do real, ou do imaginário, ela retoma, reformula, re-equaciona, todo o património literário que a precede. Ela é, pela sua capacidade intertextual, eminentemente inter-cultural.

 

A narrativa como configuração ficcional

Se a ficção absorveu, por si, quase toda a literatura, dado que ela alastrou ainda à inclusão daquilo a que veio a chamar-se a linguagem poética, destronando a velha separação poesia/prosa, a narrativa é, a meu ver, a configuração estruturante e estruturada da ficcionalidade. A sua forma de acolhimento.

Do ponto de vista da estrutura narrativa não nos é possível encontrar uma diversidade estruturante entre as chamadas narrativas ficcionais e as ditas narrativas factuais. Quer dizer que os procedimentos textuais inerentes à ficção, na literatura, são os mesmos, do ponto de vista formal, da narrativa histórica ou jornalística. O que se passa é que a condição da própria "mise-en-intrigue" ou narratividade é a da produção, configuração do sentido, independentemente da referência. E essa configuração passa, no entender por exemplo de um Ricoeur, pela organização interna da temporalidade, organização essa que é talvez , para este autor,mais rica de potencialidades na ficção do que na narrativa factual; a diferença não constituindo sequer uma mudança de género mas um grau maior de capacidade a refigurar o tempo e a referencialidade.

A função estruturante da temporalidade na narrativa não é, como se sabe, pacífica. Todo o debate estruturalista assenta na rejeição da temporalidade como estruturação profunda da narrativa, considerando antes ser a narratividade uma espacialização de relações formais para as quais o tempo se inseriria como um efeito de superfície. Pela extrema importância estruturante concedida à dimensão temporal ou diacrónica na narrativa, na perspectiva hermenêutica de Ricoeur, a narrativa condensa-se num movimento teleológico que configura, organiza ou promove a emergência do sentido. É que a configuração como qualidade intrínseca à narrativa, tal qual Ricoeur a define, difere da pura sucessividade temporal como efeito de superfície nas narratologias estruturalistas, dado que ela exige conceber-se como totalidade; dado que implica um fechamento e dado que é governada por uma finalidade - o seu carácter ou teleológico. O sentido é, antes de mais, para a narrativa, uma função vectorial, uma direcção, um acheminement. Daí que, nesta perspectiva, a importante contribuição da inteligência narrativa, ou da competência à narrativa, quer ficcional quer factual seja esta capacidade de resolução, o facto de uma intriga, enquanto nó, se resolver num desenlace, de haver um fim, um resultado, um final, que pode ser feliz - mais-valia ideológica a que o senso comum destinou a narrativa, toda e qualquer narrativa.

Alguns teóricos da literatura vêem, pois, neste fenómeno uma ligação intrínseca entre ficcionalidade e ideologia, chegando mesmo a projectar a segunda na primeira. A ficção seria sempre ideológica na medida em que ela existiria para responder, para produzir um sentido. Mas, interrogar-nos-emos, nós, não é desse sentido que dependem também as narrativas factuais, jornalísticas, o fait-divers? Mesmo que seja para expôr obscenamente o insensato, o sem-sentido da violência, essa obs-cenidade do fait-divers é a exibição de um fora-de-cena que vem consolidar o sentido da narrativa consensual, dos valores atribuídos à vida, à experiência, à sociedade, etc; confirmá-lo, portanto.

A narrativa, ao organizar, ordenar, imprimir uma orgânica própria ao acontecimento, institui-se como uma modalidade comunicacional de conferição de sentido ao real em geral. Uma refiguração da realidade, que implica, procedimentos linguístico-narrativos e um distanciamento relativamente ao referente que supostamente ela representa. Daí que a competência narrativa, tal como a competência linguística, mas distintamente desta, seja, não uma questão de género literário, mas uma questão que pertence ao próprio ser da linguagem, uma questão ontológica. No entanto, e no que diz respeito à especificidade da referencialidade, podemos, com Ricoeur operar a partilha entre modalidades referenciais específicas: uma pretensão da narrativa factual à adequação à verdade, à refiguração do real, enquanto a narrativa ficcional cria o seu próprio referente, o "mundo do texto". Só empregando o termo de ficcionalidade no sentido de configuração narrativa é que poderemos, pois, situar ambas as narrativas no interior da mesma forma estruturante.

 

 

A ficção: entre a escrita e os actos de fala

Em que medida, e agora de um ponto de vista mais concreto, é que a literatura é comunicação? Se a literatura tem servido como o objecto por excelência, embora algo implícito, para as teorias desconstrucionistas, nomeadamente com Derrida[6], pensarem a escrita, ela tem sido objecto, também, de teorizações que permitem inseri-la no circuito comunicacional. A radicalização levada a cabo pelas teorias desconstrucionistas vê na escrita a marca de uma clivagem profunda com todos os processos comunicacionais: a morte do sujeito de escrita que é, por esta desapossado do seu escrito, a suspensão absoluta da relação do escrito com o seu referente, o diferimento do acto de escrita com o seu destinatário e, portanto, a suspensão total da escrita relativamente ao presente e à presença do contexto comunicacional. A ficção seria, pois, por excelência a matéria textual a impôr-se na sua ausência absoluta do envolvimento comunicacional.

Contrariamente, para numa perspectiva pragmática da literatura, baseada na teoria dos actos de fala, a ficcionalidade como modalidade literária por excelência é de natureza comunicacional e não estilística ou imanente ao próprio texto. É conhecida a grande polémica Derrida /Austin, a este respeito. A ficcionalidade, antes de mais, exige regras comunicacionais, um contexto. A pragmática dedicou-se ao estudo dessas regras nomeadamente no que respeita à teoria literária. Searle, como Austin[7], foram levados a reflectir sobre o estatuto pragmático da ficção e a fazer depender a ficcionalidade da força ilocutória que cada mensagem abarca, isto é, a deslocaram o ficcional como valor locutório ou valor do enunciado para a enunciação como força ilocutória e atendendo ainda à sua repercussão, como efeito, no leitor, a sua força perlocutória.

Searle desenvolve toda uma argumentação para fundamentar a ficcionalidade do texto literário baseada no papel preponderante do autor e legitima-o através do conceito forte de intencionalidade. A intencionalidade distingue assim o texto ficcional do figural, ou metafórico considerando que a ficção não reside numa qualquer especificidade estilística ou numa qualquer função metafórica da linguagem, como o quer uma perspectiva essencialista, mas sim numa intenção de comunicação que é da inteira responsabilidade do autor, enquanto sujeito da enunciação. Perspectiva pragmática, na medida em que cabe ao âmbito do contexto comunicacional e não à especificidade do próprio texto, decidir do seu carácter de ficcionalidade. Não se trata pois de uma questão de conteúdo, mas sim da posição enunciativa do sujeito. A ficcionalidade adquire então um perfil pragmático e não já semântico e tem um estatuto lógico a determinar. Ela é um valor ilocutório do enunciado. Para tal concorrem várias razões: 1º - o autor de ficção finge cumprir uma asserção, e este fingimento é puramente intencional; 2º - o carácter ficcional não é inerente à língua, às suas estruturas semânticas ou sintácticas mas à natureza pragmática do acto - à relação que se institui entre os inerlocutores -; 3º - essa ficcionalidade é possível na medida em que está suportada por um conjunto de convenções comunicacionais que a distinguem claramente da mentira, como asserção falsa, no dizer de Searle. A enunciação ficcional corresponde, diz Searle, a uma asserção fingida - o sujeito finge afirmar algo.

Embora haja uma dificuldade de base à caracterização pragmática da ficcionalidade já que esta não encontra nenhum acto de linguagem que explicite tal contrato de fingimento - um FIAT (Faça-se luz) que explicite a natureza performativa do acto de fala - e se dilui portanto numa convencionalidade tácita, de qualquer modo, poder-se-á concluir, - e as teorias literárias europeias vão nesse sentido, [8] que o pacto ou protocolo ou ainda princípio de ficcionalidade é um acto pragmático, de natureza paratextual. Quer isto dizer que cabe ao espaço textual de envolvimento e fronteira do próprio texto assumir essa declaração do estatuto do texto. Mesmo que tácitos, não explicitados, da ordem do não-dito, os protocolos ficcionais existem e funcionam como contextualizadores do texto literário. O desenvolvimento, no entanto, por parte das grandes editoras, a partir do século XIX, das colecções romanescas, veio dar corpo a esses enunciados performativos, através da criação dos sub-títulos: romance; conto; auto-biografia; biografia, que visibilizam esse valor ilocutório ou intenção enunciativa do autor e que produz um pacto ficcional, ou não, conforme os casos, com o leitor.

Falar pois de literatura e comunicação poderia levar-nos já a desenvolver unicamente este aspecto que diz respeito à inserção do literário no seu contexto comunicacional e daí a verificar que a institucionalização da literatura passa pela formação e solidificação dos procedimentos protocolares de produção e de recepção dos textos. Veja-se a este propósito toda a discussão e teorização que tem vindo a ser feita sobre o estatuto da autobiografia considerando-a uma narrativa estruturalmente idêntica à narrativa ficcional mas obedecendo a um protocolo de leitura distinto. O acto discursivo implícito a esta narativa seria do tipo: "leia-se como narrativa do vivido". Ou, pelo contrário, aquilo a que se chamou um "protesto de ficção" e que estamos habituados a ler no paratexto de certas ficções, nomeadamente cinematográficas: "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência", o que, para além de explicitar um pacto com o leitor, exerce uma função jurídica de salvaguarda de eventuais processos por difamação (curiosamente, e a meu ver, a explicitação de tal pacto conduz a um efeito perlocutório imprevisto e contraditório, baseado numa modalidade denegativa que este enunciado, enquanto explícito, não deixa de encerrar: ex - uma ficção baseada na vida de uma qualquer personalidade pública, deveria enunciar, por precaução e salvaguarda, o seu pacto de ficcionalidade, mas a sua formulação pela negativa, demarcando-se de uma narrativa biográfica, sugeriria imediatamente no leitor, justamente essa possibilidade de leitura que ficaria como um entendimento tácito entre ambos os interlocutores, mas sempre no domínio do não dito).

Como procedimento paratextual, ainda, os contratos de não-ficcionalidade ou de ficcionalidade tendem a invadir uma zona também ela periférica e eminentemente comunicacional que é o prefácio. Grande número de prefácios lêem-se como uma espécie de declaração de intenções do autor, como protocolos de leitura dos textos que prefaciam.

O que os protocolos ficcionais vêm explicitar, portanto, é a complementaridade, na comunicação, do valor ilocutório da enunciação/produção (declarativo, promissivo, fingido, como lhe chama Searle para a ficção) e do valor perlocutório a haver na recepção ou leitura ( o ler a ficção como se fosse verdade ou como puro jogo de linguagem).

A ficcionalidade, como valor extrínseco ao conteúdo essencialista do enunciado/texto exerce uma função que, apesar de tudo reverte para a linguagem, a saber, a da indecibilidade da própria literatura no que respeita à sua referencialidade. Quer isto dizer que a literatura permite uma abrangência de leituras, dada essa indecibilidade, quanto à sua ancoragem no real, quanto ao seu valor de verdade, quanto à sua performatividade ou constatividade, quanto à sua abertura para os mundos possíveis. A perspectiva de uma textualidade que se suspende automaticamente dessa função de referencialidade, dessa ancoragem ao real, permite entender que o texto, por criar no seu interior uma referencialidade própria, aquilo a que Ricoeur chama "o mundo do texto", está apto, digamos, a inserir-se em novos circuitos comunicacionais, a ser sempre um texto legível. Isto é, a legibilidade que ainda e sempre acreditamos ser uma capacidade da própria escrita, é sustentada, por um lado pela suspensão que esta automaticamente exerce face ao seu contexto de produção e à virtualização de que dispõe no que respeita os contextos em devir de recepção ou leitura. Porque ela exige um processo complexo para o qual concorrem os sujeitos numa postura intersubjectiva - autor e leitor - e ainda porque a natureza do acto comunicacional, embora diferido - o texto literário é um texto, diríamos, em suspensão: suspende, como vimos, segundo uma teoria da escrita, a relação com o autor, suspende o tempo de produção assim como o espaço, criando um espaço-tempo internos, mas suspende sobretudo a sua referencialidade - acarreta a produção de sentido e, sempre, uma reelaboração hermenêutica.

A crítica acesa, levada a cabo por Derrida[9] contra o princípio da intencionalidade do acto enunciativo, como princípio de uma metafísica do sujeito e da presença, vem salientar a capacidade que a escrita encerra em geral e a escrita ficcional em particular, de permitir a leitura. É sempre possível ler um texto porque a leitura, apesar da sua contingência histórica usufrui dessa capacidade de re-(a)presentação da escrita. O facto de não atribuirmos um sentido transcendente aos mitos, hoje em dia, não nos impede de os lermos. A escrita cumpre a sua função precisamente na medida em que ela é devedora unicamente de si própria, em que ela não é veículo, mas fim em si. Só nessa medida, porque ela cria um mundo, é sempre e de novo possível o momento de encontro e confronto do "mundo do texto" com o "mundo do leitor".

 

O imaginário ficcional e os mass-media

Dada a capacidade da escrita em configurar mundos, abordemos então a categoria de imaginário para caracterizar preponderantemente o ficcional, questionando-o à luz das imposições imagéticas que vêm sendo feitas pelos mass-média. O imaginário, com os mass média, corporalizou-se, passou a ser, antes de tudo, imagem. Se por um lado a psicanálise colocou, com Freud, o imaginário na dependência da linguagem, por outro atribuíu-lhe a tarefa da elaboração fantasmática, irreal e imaterial. Mas o imaginário corporalizado nas imagens mass-mediáticas é hoje mais real do que a própria realidade, dado que a produção de imagens se impõe com uma tal pregnância que pode preencher, inibindo, o campo do imaginário.

A imagem é, pois, por natureza, imperativa; e desse seu poder retiram os média todas as consequências subordinanando-lhe o próprio real. Essa subordinação leva Henri-Pierre Jeudi[10] a considerar: " sem ela [a imagem] nada parece poder existir". Ora, enquanto que a ficcionalização, em geral e na escrita em particular, passa por procedimentos de distanciação, aparentados ao sonho, a produção de imagem a partir dos dispositivos tecnológicos actuais, desde o cinema à fotografia até ao "pequeno écran", vem substituir-se ao próprio real. É baseado neste entendimento do poder da imagem que Georges Sebbag[11], crítico de cinema, constata que a ficção na literatura precede sempre a ficção cinematográfica, ou, por outras palavras, se é corrente um filme ser feito a partir de um romance, não se conhecem romances elaborados a partir de filmes, dada a imposição que a imagem uma vez realizada exerce no próprio distanciamento ficcional do romance. Digamos que a literatura preserva o campo dos mundos possíveis de cada ficção. Os possíveis ficcionais desmultiplicam-se em cada leitura, no reencontro da elaboração ficcional do texto com aquela que o leitor, por si, leva a cabo, no acto de leitura. Relativamente ao mesmo processo no cinema, a concretização imagética reduziria o campo dos possíveis ficcionais.

Poderíamos, aproveitando as considerações formuladas atrás, afirmar que o pacto de ficcionalidade, como instaurador de um modo de leitura específico, perde a sua performatividade na ficção imagética?

Conclusão talvez polémica, mas que certos teorizadores da subjectividade, são levados hoje a aceitar. Concordar com a ideia de que, de um modo mais incidente a televisão como média imagético por excelência, impede a ficcionalização e com ela os procedimentos de reelaboração simbólica, permite a Julia Kristeva defender num livro seu[12], que há novas patologias psíquicas e que essas patologias são o resultado directo da prepotência dos média na formação da identidade e da interioridade subjectiva do sujeito. Este tom apocalíptico é aliás partilhado por outros estudiosos, quando apelidam, como o faz Pierre Schaeffer [13], o audio-visual de "ódio-visual". Um consenso na declaração da não tradutibilidade da imagem concreta pela linguagem? As imagens dos média parecem pois compactar ou dissolver de um lado o real, na sua impossibilidade de apreensão total, e do outro o imaginário, na sua capacidade ilimitada de fabricar mundos possíveis. Tudo já foi imaginado, no sentido de transformado em imagem. Se nalgum ponto Orwell se equivocou não foi certamente na importância dada ao campo da visão como controlador e instância vigilante, foi na direcção em que se dirige esse olhar. A censura não é mais um olhar que vigia, é um écran produtor de imagens das quais é impossível desviar o olhar; tal Medeia disparando o seu raio fulminador, estamos petrificados perante a catadupa de imagens emitidas em contínuo e donde não é mais possível desviar o olhar.

A autora de Les maladies de l'âme desenvolve a tese, apoiada numa continuada observação clínica, de que nas nossas sociedades saturadamente mass-mediatizadas existe um défice de ficcionalização do sujeito. Estando os modos de representação psíquica em crise, o sujeito não fantasma, não desenvolve a sua elaboração ficcional, antes somatiza, operando-se assim uma dissociação entre o domínio do pulsional e a sua representação fantasmática. Tal dissociação exige a reelaboração na e pela linguagem desse imaginário forcluído. Dificuldade de representar, pois. A inibição fantasmática é um sintoma patológico dessa incapacidade de ficcionalizar, dessa incapacidade de exploração de uma competência narrativa apta a  situar-se num espaço outro que o da verdade da descrição, do apego ao real, ou o da mentira como ocultação desse real e como ruptura dos constrangimentos intersubjectivos da comunicação. A ficcionalização é um jogo de linguagem, neste aspecto em que desrealiza o real e exige um processo intersubjectivo para se produzir, exige a presença do outro, a sua aceitação das regras do jogo, e nisso se distancia do puro fantasma individual que assola o sujeito nos processos patológicos.

O consumidor do "ódio-visual" sofre, por isso, segundo Kristeva, de uma inibição de fantasmar. Na incapacidade de imaginar, somatiza, inscreve a pulsão no corpo, sob as mais diversas variantes - pequenas alterações orgânicas e biológicas. E a psiquiatria vem então oferecer-lhe a farmacologia para tais males. Esta constitui-se pois como suplemento ficcional, ou se se quiser, como substituto dos processos de elaboração imaginária do sujeito, numa condensação que a autora formula lapidarmente: Pílula+écran: "Vocês - diz Kristeva dirigindo-se aos seus leitores, p.17- afogam os estados de alma no fluxo mediático, antes que eles se formulem em palavras". De tais reflexões somos levados a retirar a seguinte conclusão: um excesso de comunicação reduziria o sujeito, paradoxalmente, ao silêncio.

 

Ficção e hipertextualidade

Mas os novos dispositivos tecnológicos não podem ser unicamente pensados, como o faz Kristeva, neste fechamento a que o "pequeno écran" votaria os processos de ficcionalidade. Pelo contrário, tudo indica que a ilimitação ficcional se impõe com o hipertexto e a sua estruturação em rede, abrindo talvez à literatura insuspeitados campos de expansão.

Bastaria debruçar-mo-nos na proliferação ainda recente das metáforas de fluidez aplicadas às novas tecnologias da escrita para acreditarmos que alguma transformação se pode operar na literatura, decorrente desses dispositivos tecnológicos. Uma nova era pós-Guttenberg?

Na verdade, do texto como bloco, massa concreta, objecto-livro, passamos, nesta imaterialização da escrita, para o campo dos fluídos. Falamos de fluxo de informação, falamos de navegação, o que pressupõe uma deslinearização da escrita e a sua consequente libertação através da intensa mobilidade que lhe passa a ser inerente. Assim, podemos apontar como características base do chamado hipertexto, algumas, referidas por Régis Debray[14]: 1º - a possibilidade de associação não sequencial de enunciados; 2º - a não hierarquização das obras de referência através da capacidade de as imbrincar no próprio texto, recompondo-as e decompondo-as; 3º- a ultrapassagem da condição diferida da obra pela capacidade que lhe advém de ser reescrita; 4º - a tendência ao esbatimento das funções autor-leitor; 5º - a apropriação individualizada das fontes de memória. E no dizer de Pierre Lévy[15], que trabalha também sobre a hipertextualidade, se o hipertexto é a concentração virtual das leituras, na medida em que guarda o conjunto dos  agenciamentos possíveis, um texto é então uma dessas leituras. O leitor é metamorfoseado em escrevente, não havendo escrita que possa ditar os constrangimentos de leitura, no sentido em que todo o escrito poderá ser violado, alterado, entre-cruzado. A escrita, integrada num processo de diferimento da comunicação, de distanciação interpretativa, é chamada a uma desterritorialização que faz dela um puro objecto nomádico, onde o sentido deixa de ser a finalidade, mas se dá como perpétua mobilidade. E no caso particular do romance, a numerização - processo informático de tradutibilidade dos textos em números - introduzirá, certamente, novas formas narrativas. Se constatamos a dependência do romance relativamente à invenção do livro moderno, porque não prevêr novas modalidades de escrita ficcional onde a interactividade, a deslinearização e a fusão multimediática sejam os novos constrangimentos configurantes? Alguns exemplos já aí estão, como desafio.

Mas não cabe aqui ficcionar sobre o devir da ficção, quando se tornar presa do hipertexto. Seguramente esse espaço interactivo questionará, por dentro, a configuração narrativa e a própria literatura.

 

(Conferência proferida na Faculdade de Letras da U. L., 1996)

 


[1]Cf. Nomeadamente L’espace public, Paris, Payot, 1986; Théorie de l’agir communicationel, Paris, Fayard, 2vol., 1987, nas versões francesas

[2] in: La condition postmoderne, Paris, Minuit, 1979

[3] Designação da autoria de Júlia Kristeva

[4] Designação da autoria de Umberto Eco

[5] cf, entre outros, Temps et récit I, Paris, Seuil, 1983 e Temps et récit II - la configuration dans le récit de fiction, Paris, Seuil, 1984

[6] cf. L’écriture et la différence, Paris, Seuil - Points, 1967 e De la grammatologie, Paris, Minuit, 1967

[7] in, respectivamente, Sens et expression, Paris, Minuit, 1979 e Quand dire c’est faire,, Paris, Seuil, 1970, nas versões francesas.

[8] Cf. Genete, in: Seuils, Paris, Seuil, 1987 e Fiction et diction,, Paris, Seuil, 1991, E. Buss, L’autobiographie considérée comme un acte littéraire, in: Poétique, nº17, P. Lejeune, in: Moi aussi, que inclui Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1986

[9] in: Marges de la philosophie, Paris, Minuit, 1972

[10] in: L’ironie de la communication, Paris, La lettre volée, 1996

[11] in: Le Débat, nº86, Out., 1995

[12] in: Les nouvelles maladies de l’âme, Paris, Fayard, 1993

[13] artigo Communication, in: Enciclopedia Universalis, Symposium, 1988

[14] in: Le Débat, op. Cit.

[15] In Le Débat, op. Cit.