As implicações do corpo na leitura

 

Maria Augusta Babo, Universidade Nova de Lisboa

 

Dezembro, 1996

 

 

A minha contribuição não pretende ser senão uma introdução global às problemáticas da escrita e da leitura que estão hoje na ordem do dia e que poderão servir para uma reflexão posterior, sobre as modalidades de leitura que os textos sofreram no desenrolar da nossa cultura. Tais modalidades implicam de uma ou de outra forma a participação do corpo, investindo-o ou não de valor significante.

É para nós, hoje, claro que a escrita, tal como a conhecemos e praticamos, é uma escrita fonológica, isto é, uma escrita que está dependente, que é representação da fala, portanto, um código segundo e secundário que se subordina aos códigos da oralidade. Esta subordinação foi apercebida desde os mais remotos tempos, desde Platão e os gregos, que desprezavam, por isso a escrita, por ser cópia de cópia, e mais do que isso, por tal cópia poder funcionar na ausência do seu autor, sem o seu aval, a sua interpretação, a sua presença física, com tudo o que isso envolve.

Assim se desenvolveu toda uma filosofia da presença que liga os sujeitos e o corpo à escrita e, no mesmo movimento, à leitura. Entender a escrita e a sua complementar operação, a leitura, como oralizantes é ligá-las indissoluvelmete à presença dos sujeitos, é fazer do corpo o ponto de ancoragem, a materialização das ausências, é tornar estes actos pura evenemencialidade.

Ora, o que as teorias da escrita modernamente vêm problematizar é justamente essa evenemencialidade da escrita. Sendo esta traço que resta para além dos sujeitos, sendo esta diferimento na comunicação, sendo esta marca de uma ausência do evento, a escrita não estaria do lado da fala como acontecimento mas sim do lado da marca ou vestígio, do lado dos processos abstractizantes que colocam a leitura como uma operação desmaterializada.

Desde há três séculos para cá que a leitura vem perdendo o seu apego à materialidade da phonè, ao sopro, que o mesmo é dizer à voz, para se imaterializar cada vez mais no gesto que o olhar leva a cabo. A leitura é actualmente e indiscutivelmente um fenómeno visual e não vocal ou oral.

Sabemos que a capacidade de aumentar o ritmo e a velocidade de leitura aumenta quando o sujeito leitor consegue operar uma total distinção entre a leitura articulada e a leitura puramente visual. São dados que, por mais penosos que se tornem no contexto que aqui nos congrega, são hoje inegáveis.

Mas, o certo é que nem sempre assim foi. Os procedimentos de leitura foram evoluindo desde as práticas de leitura pré-modernas que envolviam atitudes específicas, até aos nossos dias. Decorrente do facto inquestionável da escrita ser entendida como uma cópia da fala, a leitura, para Sto Agostinho, e, posteriormente, por toda a Idade Média, era uma actividade oral, articulada, que implicava uma participação da voz como condensação de todo o corpo. A leitura oralizada permitia operar a segmentação e até a análise do corpo do texto que, por ser essencialmente, oralizado, não se dispunha ainda através dos procedimentos gráficos de segmentação das palavras. A imprensa vem, sobre esse aspecto, clarificar o texto, torná-lo legível aos olhos, dispô-lo segundo uma lógica não mais auditiva mas sobretudo visual, aquela que, sofrendo aperfeiçoamentos, chegou até nós.

Ligada à vocalização da leitura alia-se uma outra legibilidade, a colectiva. A leitura como acto e atitude individual é uma experiência que nasce modernamente. A leitura que a tradição cultural preserva é um acto colectivo, interactivo, uma atitude cultural de grupo que alia a escrita a esta recriação evenemencial que é a sua oralização. O leitor era por assim dizer um actor, um diseur, que, através da interiorização do texto, encarnava o Outro, presentificava, através do corpo próprio a ausência do corpo-outro. A leitura ganhava deste modo uma dimensão colectiva de apreensão do sentido, hoje esquecida e totalmente perdida, dada a singularização cada vez mais intensa dos processos intelectuais. A leitura - espaço exterior e público, acto de compreensão colectiva - interiorizou-se totalmente, tornando-se um acto privado, com a emergência e imposição do individualismo e o culto da subjectividade. A leitura colectiva, praticada por exemplo nos meios urbanos entre os séculos XVI e XVIII é, para Roger Chartier, um fazer colectivo que implica uma elaboração do sentido em comum.

A par destas constatações, é ainda pertinente salientar o facto de a configuração tipográfica do texto em livro revelar uma constante adaptação a modos de leitura que vão evoluindo. O  livro, tal qual ele chega até nós, é revelador de uma prática individualizante de leitura, que se foi inscrevendo cada vez mais no corpo próprio de maneira a, se possível, interiorizar-se fisicamente: as colecções de bolso são disso exemplo, reflectindo a miniaturização e portanto a incorporação crescente de objectos externos no corpo. Acontece um processo idêntico com o relógio, essa máquina do tempo que, com o andar dos tempos, desce da torre da igreja, espaço público de apropriação colectiva para se incorporar no sujeito, tempo interiorizado, subjectivo, o causador de stress.

No entanto, a prevalência da leitura visual sobre a leitura articulada, vocálica, autonomiza, nos nossos dias, o corpo próprio do corpo do texto, permitindo ao leitor uma maior mobilidade e circulação no espaço geográfico da escrita. Desenvolveram-se métodos de aquisição de ritmos acelerados de leitura, métodos que se apoiam na leitura em bloco, não analítica, por elementos ou letras, mas global, por fragmentos de texto, agrupamentos de palavras, o que proporciona uma economia grande da deslocação dos olhos, permitindo apreensões globais de sentido, já que o aspecto puramente físico da leitura se alia e está implicado num jogo de sentido, de apreensão mais complexa. Na verdade, a leitura, acto do corpo, envolvendo mesmo posturas totais da corporeidade - lembremo-nos que a escola obriga à aprendizagem da leitura numa posição direita, braços acompanhando o corpo até à altura da mesa, atitude de concentração e de recolhimento -  acarreta todo um jogo de determinação do sentido ou sentidos do texto. Um jogo de captação, adivinhação, decifração ou conjectura que exige, sobretudo na perspectiva de um aumento de ritmo de apreensão, uma posição interrogativa e activa do sujeito, uma atitude de antecipação. A leitura, sobretudo a de textos ditos difíceis, isto é, mais elaborados e abstractos, exige da parte do leitor uma atitude participativa, releva de uma constante formulação e reformulação de hipóteses a partir das quais se tenta interpretar o que se lê.  A visualização do grafo permite pois uma independência da escrita face à subjugação ao oral, a que esta estava submetida. O descentramento do corpo da phonè para o grafein acarreta, do ponto de vista das teorias do texto e da leitura uma possibilidade nova de entendimento do escrito que o aproxima de uma origem comum com o desenho, prática da qual, no entanto se mantinha afastado. Aproximar a escrita do desenho é reequacionar de novo os modos de ler, atribuindo à legibilidade um complemento de visibilidade que esta tinha perdido. Como complemento a leitura assume a postura negativa da visibilidade, é, digamos, o seu oposto. Por contraditório que possa parecer, a leitura só é possível se a letra perder a sua visibilidade. A legibilidade implica pois uma operação em que o ver nem esgota  a operação de leitura nem se pode sobrepôr à condução da letra para o sentido que esta transporta. Paradoxalmente, portanto, é pela invisibilidade que o caracter se torna transparente ao sentido, é por ele não se impôr como letra visível que é bom condutor do significado. Daí decorre que a legibilidade, exigindo o olhar, o dispensa também, como condição para atingir o sentido. A letra, lugar ambíguo, dá lugar ao outro de si, apaga-se, é transparente e não opaca. A materialidade do grafein desmaterializa-se e é essa a sua condição de legibilidade. Ora, neste deslocamento operado do som para o traço, a letra reserva ainda outras capacidades de materialização, já que não é o seu carácter visível que prevalece mas o seu carácter legível. Assim sendo, a marca pode dar-se ainda sob uma outra forma, também ela arcaicamente ligada à escrita como vestígio de um gesto inscrito numa superfície: a inscrição, o sulco ou o relevo da letra. O tacto permite pois, ao mesmo nível da visão, parece-me, essa outra apreensão silenciosa da escrita que a autonomiza dos procedimentos oralizantes. O tacto é, nessa medida, um modo de ler que permite a conversão da letra como rasto em sentido, intocável e invisível. Mais próximo da leitura visual do que da leitura fónica, o tacto permite a interiorização do ler, tornando-o uma actividade privada, subjectiva, autónoma do fio do tempo. O tacto, tal como a visão operam a grande deslocação da linearidade temporal da fala para a espacialização da escrita. Enquanto superfície, a escrita permite o retorno e a repetição da leitura, permite, numa geografia própria, percursos individualizados.

A prática e a competência a que hoje se costuma chamar de literacia, para a distinguir de procedimentos puramente técnicos de decifração - a alfabetização - é para Bourdieu, um fenómeno de uma dimensão muito mais ampla, da ordem do consumo cultural. Implica, para além da aquisição de técnicas de apreensão do texto, sobretudo, uma atitude, um modo de estar em sociedade, porque ela é, acima de tudo, uma via para a compreensão do mundo, da ordem das coisas, do ser.

Mas a escuta, outra modalidade possível de leitura, surge como complemento intelectivo à dicção dos textos, à sua oralização; ela releva também, nas práticas tradicionais, de uma intersubjectividade que aí se desenvove como procedimento de compreensão do texto.

A audição é, antes de mais, uma avaliação do espaço, um poderoso meio para a delimitação da situação espacio-temporal; é ela que nos permite circunscrever um território, através da determinação de fronteiras entre o espaço/tempo nosso familiar e aquele que nos é de todo estranho. A audição exerce uma importante função de selecção  a que a linguagem está também condicionada, através da dupla articulação. Para Barthes, a escuta está ligada a toda uma dimensão hermenêutica; a escuta determina, analisa o sentido, avalia o dito para atingir o não-dito, o que se esconde no discurso como subentendido. A escuta como audição intensiva, participada, está sempre condicionada por esse espaço intervalar - diz-se: estar à escuta como se diz: estar à espera -, uma atitude de disponibilidade e de abertura que faz dela, por exemplo na prática psicanalítica, o método por excelência. A captação do não-dito pelo dito está pois ao alcance da escuta porque esta apreende, para além do enunciado e do seu conteúdo proposicional, uma espécie de mais-valia de significação que lhe advém da entoação. É através da entoação que frequentemente os enunciados ganham uma dimensão axiológica que se vem infiltrar no dito; assim, da alegria, do medo, da repulsa ou do entusiasmo. Eles infiltram-se como expressões axiológicas, no dizer de M. Bakhtine, nos conteúdos enunciados usando o corpo e nomeadamente a voz como matéria moldável à imaterialidade das significâncias possíveis.

Ler com o corpo é pois modelar a voz através da dimensão prosódica da fala. A entoação é uma espécie de mediação, através da voz e da gama dos timbres, do ritmo, do investimento pulsional, entre o corpo e o acto de compreensão e interpretação implicado. Fónagy levou a cabo um estudo que permite estabelecer correspondências entre os fonemas e o timbre de que eles são investidos e os sentimentos inclusos nessa matéria sonora.

Há toda uma retórica da entoação que confere ao texto determinações interpretativas  nítidas. Daí que a entoação como modalização neutra dos enunciados não seja nunca o ponto de partida mas, seguramente uma finalidade a atingir que passa por um controlo absoluto do corpo que se inscreve na leitura. Tal como a denotação para Barthes, a entoação não-marcada é talvez, um u-topos, o limiar utópico em que o corpo, na sua quietude total, deixa que a voz seja um sopro impessoal, única garantia viva da palavra.

 

(Comunicação apresentada ao Colóquio - «O som e a informação»; painel: «A informação audio como alternativa ou complemento à informação Braille», Câmara Municipal de Lisboa, Dezembro, 1996)

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Barthes, R. - Le degré zéro de l’écriture, Paris, Seuil, Points, 1972

Barthes, R. e Havas, R. - A Escuta in: Enciclopedia Einaudi - Oral/escrito, Argumentação, nº11, Lisboa, INCM, 1987

Bakhtine, M. - in: Todorov, T. (org.) - Le principe dialogique, Paris, Seuil, 1981

Chartier, R. (dir.)-  Pratiques de la lecture, Marseille, Rivages, 1985

de Certeau, M. - L’invention du quotidien, Paris, 10/18, 1980

Derrida, J. - La voix et le phénomène, Paris, PUF, 1967

Fónagy, I. - in: Bolinger D. (org.) - Intonation, Baltimore, Penguin Books, 1963

Lafont, R. (org.) - Anthropologie de l’écriture, Paris, Centre Georges Pompidou, 1984