A
INFORMAÇÃO NAS ESTRATÉGIAS EDUCATIVAS DE RECUSA À INTOLERÂNCIA EM CONTEXTOS
REAIS/VIRTUAIS
Mirian de Albuquerque Aquino, Universidade Federal da Paraíba - João Pessoa
(versão em pdf - para imprimir)
Novembro 2001
RESUMO
O tema em discussão propõe um encaminhamento reflexivo que articula informação e intolerância, a partir de uma abordagem a favor da informação para uma compreensão de que é possível defendermos nossas idéias, ideologias e pontos de vista, sem ferir os direitos humanos, permitindo a pluralidade de expressões, tolerando as crenças e respeitando as convicções do outro, sem que possa obrigá-lo a pensar e agir como nós.
Palavras-Chave: informação; intolerância; superinformação; subinformaçãoABSTRACT
The subject in quarrel considers a reflective guiding that articulates information and intolerance, from a boarding in favour of the information for an understanding of that it is possible to defend our ideas, ideologies and points of view, without wounding the human rights, allowing to the plurality of expressions, tolerating the beliefs and respecting the certainty of the other, without that can compel it to think it and to act as we.
Key words: information; intolerance; superinformation;subinformation.
1. INTRODUÇÃO
Suportai-vos uns aos outros: esta é a mensagem de Deus.
A multiplicidade de problemas conflitantes, que ressurge no
mundo contemporâneo, tende a colocar em suspeita o brilho das luzes iluministas
e as suas promessas de que com o avanço da ciência os indivíduos estariam livres
da miséria, da pobreza e da opressão. Paradoxalmente essa realidade reflete
o espectro da sociedade em rede, onde os indivíduos convivem, por um
lado, com o desenvolvimento da ciência e da técnica e os novos paradigmas do
conhecimento e, por outro lado, criam cenários de guerra e legitimam cenas desumanas
e suas mais cruéis formas de manifestação.
No tempo-espaço, onde se proclama uma suposta
pós-modernidade, os indivíduos são arrastados para um terreno pantanoso em que
os incidentes raciais, a limpeza étnica e as investidas terroristas desagregam
a ètica da civilização, ferem a identidade e a diferença, relegando os indivíduos
à mais degradante condição humana.
Evidenciamos, pois, uma situação caótica, produzindo um estreitamento
do espaço de liberdade em todos os níveis, ou seja, a negação de homens
e mulheres de suas possibilidades de realização. Esse retraimento debilita
a formulação de um projeto político na direção de uma democracia ampla que caminhe
na perspectiva de uma sociedade plural onde todos possam exercer o direito de
viver igualmente.
Essa configuração tradicional, que a cada dia
se fortalece nas sociedades ocidentalizadas, permite que abordemos um sintoma
que se fortalece no paraíso selvagem da sociedade tecnológica, onde a informação
e o conhecimento têm ocupado um lugar no pódio como salvadores da humanidade.
Trata-se de refletir sobre a intolerância que espalha o ódio, discrimina o
outro e produz a humilhação na sociedade em rede (Castells, 1999).
2. UM FLAGELO QUE DISSEMINA O ÓDIO
As idéias relacionadas à tolerância/intolerância se fortaleceram
em algumas sociedades, ligadas à religião e à política. A tolerância teve
no politeísmo seus dias de glória. A democracia ateniense permitia que os cidadãos
expressassem livremente suas opiniões. Em certos momentos da governabilidade
grega, o espírito de tolerância exprimia uma profunda visão de homem, isto é,
tratava-se de compreendê-lo e escutá-lo, seja qual fosse sua opinião (Romilly,
2000).
Nas sociedades contemporâneas, as relações entre os indivíduos
são complexas de maneira que a tolerância encontra dificuldade em se transformar
em cotidiano natural, gerando, pois, a intolerância. Há, nas relações sociais,
um descontentamento difuso e uma hostilidade sublimada, uma
tendência ao embrutecimento da sensibilidade (Leithäuser, 2001) em relação
ao outro.
Somos intolerantes com os animais e, muitas
vezes, não suportamos os latidos do cão, os miados do gato, o canto dos pássaros
etc. Em O Grande Massacre dos Gatos, Robert Darnton relata alguns episódios
da história cultural francesa, que incluem os rituais medicinais e a própria
matança dos gatos. Os gemidos e os gritos desses animais estavam relacionados
à feitiçaria, orgia, traição sexual, baderna e massacre, bem como também poderiam
curar muitos males.
A intolerância “moderna” tem diferentes aspectos
e graus de manifestação. Em qualquer lugar, seja no trabalho, na academia, no
cinema, na boate, no restaurante, na casa, na rua, na praia ou no botequim,
a intolerância está presente. Somos intolerantes, quando nos deparamos com pessoas
que não comungam com os nossos modelos, com as nossas visões de mundo, com as
nossas ideologias; quando não elogiam nossas vestimentas ou não valorizam nossas
escolhas pessoais.
O comentário de Semprum (2000, p. 211) é aqui importante, quando
ele afirma: “Não usemos os talibãs como pretexto para não ver a intolerância
que reina aqui. Comecemos por observar, em casa, as novas formas de intolerância”.
São redes minúsculas de insatisfações e desejos não realizados e transformados
em frustrações que vão se ramificando dentro de nós mesmos, e repassando aos
nossos amigos, filhos, colegas, namorados, esposos e amantes, formando diferentes
nós na relação com o outro e gerando o ódio. A intolerância transforma-se num
câncer, espalha-se pela vizinhança, atingindo diferentes grupos e correndo
toda sociedade.
As formas mais comuns de intolerância são expressas através
de certos sentimentos mesquinhos, tais como o ciúme, a inveja, o ressentimento
e o despeito etc. Para Wiesel, a intolerância mais perigosa é sempre aquela
que, na ausência de qualquer doutrina, nasce de impulsos elementares: por isso
é que ela é difícil de ser identificada e combatida com a ajuda de argumentos
racionais.
A intolerância miminiza, retarda, compromete e nega o desenvolvimento
dos indivíduos.Ela obstrui, interdita, exclui, seleciona e nega a troca. A linguagem
da intolerância é a violência. O ódio, que aniquila a liberdade de homens
e mulheres, é o prolongamento dela. Wiesel (2000) observa que as pessoas odeiam
seus semelhantes pelos motivos mais banais possíveis:
“os que odeiam têm sempre uma razão. É claro que essa razão não é justa, é revoltante. Mas pergunte a qualquer um por que ele me detesta, e ele dirá:” “Porque ele é judeu,[porque ele é muçulmano, porque ele é negro, porque ele é homossexual], porque ele é o que eu não sou, porque ele é muito pobre ou muito rico, cosmopolita demais ou de menos, religioso demais ou de menos”.
Por que odiamos? Porque negamos a validade dos direitos humanos
e subtraímos o desejo de o indivíduo escolher ser mais ou ser menos. Por que
odiamos? Porque o outro produz mais ou de menos, é mais responsável ou de
menos, é mais sério ou de menos, porque tem mais ou menos informação, porque
tem mais conhecimento ou de menos.
Por que somos intolerantes? Somos intolerantes porque não nos contentamos em
recusar a nossa própria liberdade; queremos obrigar todos a renunciarem conosco
a liberdade. Douste-Brazy (2000).
Para aprofundarmos a discussão sobre a intolerância
e melhor entendê-la, lançaremos algumas questões no fluir do texto que podem
servir para orientar os argumentos que se sucedem.
O que é intolerância? Como surge? Como se desenvolve? Que efeitos
produz ? Genericamente, a intolerância pode ser compreendida como um comportamento
apresentado por indivíduos ou grupos que não admitem opiniões divergentes das
suas em questões políticas, sociais e religiosas. Para Ricouer (2000), a intolerância
é uma predisposição comum aos indivíduos que impõem as próprias crenças, as
próprias convicções, a fim de atingirem seus objetivos, investindo, ao mesmo
tempo, na certeza de dispor do poder de impor e da crença na legitimidade
desse poder. A tolerância alimenta-se da certeza de se deter a verdade absoluta
e no dever de impor a todos os indivíduos por meio da força (Mereau (2000,
p. 42).
Nas relações sociais, podemos destacar alguns
componentes necessários à cristalização da intolerância: a desaprovação das
idéias, hábitos, crenças e costumes do outro e o poder de impedir que o outro
escolha seu modo de vida (Ricouer, 2000). Acreditamos que os conflitos
nascem, essencialmente, da interdição desses objetivos não alcançados
A intolerância é inerente à natureza humana, pois a própria
criança, desde o nascimento já expressa diferentes reações diante daquilo que
lhe desagrada. Nos adultos, a intolerância, muitas vezes, revela aquilo
de que não gostamos em quem são diferentes de nós. Rejeitamos aqueles
que têm uma cor diferente de pele, porque falam uma língua que não entendemos,[porque
fazem uma opção alimentar diferente da nossa, porque fazem uma opção sexual
que foge aos padrões estabelecidos], porque vestem roupas ‘esquisitas’; porque
usam tatuagem (Eco, 2000, p.17).
A intolerância tem ressonâncias históricas ligadas, principalmente,
às grandes guerras de religião ocorridas no contexto americano e no europeu,
cujas dimensões não podem ser reparadas com um simples pedido de desculpas.
As sucessivas lutas religiosas, que marcaram o século XIX, estavam vinculadas
à tradição católica que rejeitava qualquer interpretação e qualquer forma de
educação (Eco, 2000) que pusesse em questão os textos sagrados.
Inversamente, as lutas protestantes investiram na recusa às
verdades instituídas pela autoridade eclesiástica, a fim de construir um projeto
em que uma nova identidade fosse capaz de possibilitar outras interpretações
da escritura sagrada, embora reconheçamos também as intolerâncias do protestantismo
e as revoltas que foram reprimidas durante muitos séculos, através do derramamento
de sangue de inocentes nas noites de terror européias (Le Goff, 2000).
Algumas sociedades, entretanto, desenvolveram o espírito de
tolerância e permitiram que os indivíduos cultuassem deuses múltiplos, promovessem
debates e expressassem suas opiniões. De Homero a Aquilles, com exceção do sacrifício
de Sócrates, Romilly (2000) procura mostrar que a cultura grega constituiu-se
numa seara do sentimento de humanidade, mostrando uma grande abertura em relação
aos outros, que serve como lição para os dias atuais.
Nesse início de século, porém, a intolerância
assombra o mundo globalizado, com suas manifestações extremistas. O fundamentalismo
religioso ganha força como expressão de um projeto político, evidenciando a
intolerância como algo muito perigoso. Em nome de Alá, alguns grupos radicais
assumem o lema, matar ou morrer, como a maior ambição da vontade humana
(Castells, 1999).
Os recentes acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos, que
culminaram na explosão do World Trade Center e do Pentágono, em 11 de setembro,
alertaram o mundo para uma demonstração dos efeitos da intolerância, materializados
numa crença que cultiva o ódio pelo Ocidente de uma maneira mais irracional
possível. Esta ação terrorista emana de um corpo, sem rosto, sem uma aparente
identidade, mas exerce uma força que aniquila, destrói.
A intolerância é a reação aos interesses daqueles indivíduos
que se julgam ameaçados em seus projetos de vida. Ela expressa o desejo por
algo que alguém julga que lhe pertence. Para Héritier (2000, p. 25), a intolerância
é “sempre, essencialmente, a expressão de uma vontade de assegurar a coesão
daquilo que é considerado como que saído de Si, idêntico a Si, que destrói tudo
o que se opõe a essa proeminência absoluta”.
É possível relacionar várias doutrinas e seus regimes que legitimaram
a intolerância pelo mundo, mas, por enquanto atentemos para Eco (2000) que distingue
duas formas evidentes de intolerância: o fundamentalismo e o integralismo. Para
os nossos fins, retomamos o fundamentalismo dentro de uma abordagem sucinta,
para melhor entendermos a intolerância. Do nosso ponto de vista, o fundamentalismo
pode ser considerado como uma imposição de uma única forma de interpretação
de um livro sagrado, doutrinas, dogmas, teorias, leis etc. Ele alicerça a cristalização
de regimes de verdades científicas, as formações discursivas e suas práticas,
a imposição de modelos políticos, econômicos e sociais. São construções que
interditam o debate, a crítica, a replica, a polêmica, a polissemia, a contrainformação.
Dentre as várias modalidades de fundamentalismo, é possível
destacar o católico, o protestante, o judeu, o muçulmano etc. Castells (2000,
p. 29) se refere ao fundamentalismo religioso como uma construção da identidade
coletiva, segundo a identificação do comportamento individual e das instituições
da sociedade com as normas oriundas da lei de Deus, interpretadas por uma autoridade
definida que atua como intermediária entre Deus e a humanidade.
A história da humanidade registra alguns tipos
de fundamentalismos que se consolidaram nas instituições, difundindo-se por
meio de diversas formas de intolerância, entre as quais podemos evidenciar as
que torturaram os indivíduos que pensaram (pensam) diferente do que havia sido
estabelecido institucionalmente; as que levaram (levam) muitos cientistas e
devotos para as fogueiras, as que impuserem (e impõem) uma língua como única
forma de comunicação e as que privilegiaram (e privilegiam), com recursos e
benesses, uma determinada região em detrimento de outra.
Como se pode observar, a instituição é o lugar
onde a intolerância se fertiliza. Para Foucault(1987), ela se legitima por meio
de uma determinação legal que normatiza os rituais, os exames, as técnicas e
os procedimentos disciplinares. Mereu (2000, p. 42) cita alguns dos dispositivos
utilizados por instituições na Idade Média
A intolerância institucionalizada serve para explicar as fogueiras, os patíbulos, as decapitações, as guilhotinas, os fuzilamentos, os extermínios, os campos de concentração, os fornos crematórios, os suplícios dos garrotes, as valas dos cadáveres, as deportações, os gulags, as residências forçadas. Sem esse conceito, também não se podem compreender a Inquisição e seus processos, o Santo Ofício, o Index dos livros proibidos (...).
Mereu (2000) ainda aponta que a Igreja Católica foi a primeira
instituição a utilizar intensamente alguns dispositivos para preservar o conceito
de fé como instituição dominante e estabelecer uma separação entre o fiel, o
ortodoxo, o devotado servidor, o obediente às ordens do chefe, o escolhido de
Deus e os excomungados, os heréticos, sismáticos, os apóstatas, os heterodoxos,
os pagãos, os infiéis e os judeus.
Dentro do campo da história das mentalidades, encontramos o
relato de Carlo Ginsburg, escrito no livro O Queijo e os Vermes, que se refere
à perseguição e morte do moleiro Menocchio, que foi denunciado ao Santo Ofício
e submetido a inúmeros interrogatórios sob a acusação de ter pronunciado uma
heresia sobre Cristo, ter criticado os sacramentos da Igreja e ter apontado
as contradições e o jogo de forças nas práticas discursivas religiosas. Na
condenação de Menocchio, o grau de intolerância institucional se materializou
de forma muito contundente nas decisões de seus inquisidores. Observemos o comunicado
de execução de atos intolerantes:
Comunicou-lhe por ordem de sua Santidade, Nosso Senhor, que não deve faltar em proceder com a diligência que pede gravidade do caso e ele não pode deixar de ser punido pelos seus horrendos e execráveis excessos, e que o devido e rigoroso castigo sirva de exemplo para outros por essas partes. Não deixe de executar tudo à risca e com o rigor de espírito que a importância do caso exige. E este é o desejo expresso por Sua Santidade (grifo nosso) (Ginsburg, 1987, p. 272).
Um rápido olhar pela História do Brasil é suficiente para observarmos
que os atos de intolerância praticados pelos colonizadores e grupos dominantes
não se restringiram aos desmandos e abusos da igreja e aos regimes anti-democráticos
nos Estados Unidos e Europa, mas se desenvolveram por toda a América Latina,
atingindo intensamente o Brasil-Colônia, passando ao Brasil-República e chegando
hoje ao Brasil-Sociedade da Informação, neoliberal e pseudo-democrático.
Em seu livro, As Veias Abertas da América Latina,
Galeno (1990) mostra um contundente panorama dos diversos povos latino-americanos,
transformados em vítimas da ganância insane de saltimbancos e salteadores e
submetidos à humilhação desmedida.
As condições em que se deu o tráfico de escravos aliado às práticas
de torturas e punições e o extermínio de populações indígenas inteiras, mostram
claramente a dimensão que a intolerância assumiu nas ações dos colonizadores,
desbravadores e conquistadores (espanhóis, holandeses e portugueses ) na Pátria-Mãe,
gentil.
Os exploradores, Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio e Fernão
de Magalhães, que prestem conta do genocídio de milhares de índios e das riquezas
que eles açambarcaram na América Latina. Os conquistadores espanhóis, Fernão
Cortez e Francisco Pizarro, que devolvam os metais preciosos ao México e aos
Andes e restaurem os templos incas, maias e astecas, porque das veias latinas
ainda corre sangue. Sonhos impossíveis, pois hoje, apenas, podemos nos confrontar
com os fantasmas e seus seguidores.
Inúmeras revoltas marcam o avanço da presença
portuguesa no País. O movimento da santidade, por exemplo, desenvolvido
pelos índios tupinambás, caracterizou-se como uma forma de recusa aos jesuítas
que tinham como missão desenvolver um projeto de catequese vinculado ao projeto
colonizador, obrigando os índios a se converterem à fé católica. A perseguição
aos desobedientes foi abertamente defendida pela igrejas católica, que utilizou
o Tribunal do Santo Ofício como instrumento de investigação e punição adequado
para garantir a homogeneidade religiosa na colônia (Aquino et al, 2000).
No caso dos escravos, o bacalhau, os anjinhos,
o tronco, as peias, as calcetas, a gargalheira, a goliha, o pau-de-arara, a
placa de ferro, a castração, o ferro em brasa e o decepamento são alguns dos
castigos que não conseguiram impedir que os escravos lutassem pela liberdade
(Aquino et al, 2000). A recusa, aos repetidos maltratos, muitas vezes tomava
a forma de suicídio e fugas. O quilombo de Palmares aparece como uma das mais
fortes manifestações de resistência às autoridades coloniais e às relações escravistas
de produção e aos seus violentos mecanismos contra o ser humano. É necessário
que atentemos para a evidência de que o negro escravizado lutou desde o início
para libertar-se do intolerável.
Na contemporaneidade, os atos intolerantes estão associados
à avidez pelo poder que desencadeou a Guerra Fria, Guerra das Malvinas, a Guerra
do Golfo, a Guerra do Vietnã e lançou a bomba à Hiroshima e Nagasaki.
No Brasil “democrático”, neoliberal e informacional, os atos
intolerantes estão significando a violência à mulher, às crianças, aos idosos,
ao cidadão. Reavivemos a nossa memória para trazermos à tona os porões do
Dops, as vítimas do Carandiru, o massacre dos Carajás, o massacre da Candelária,
a repressão policial, os seqüestros, os grupos de extermínios, a lavagem de
dinheiro, o tráfico de drogas, a prostituição infantil e os crimes de colarinho
branco. Na educação, são milhares de crianças sem condições de freqüentarem
a escola e, soma-se a isto, a exploração do trabalho à qual estão submetidas
ainda na tenra idade.
No Nordeste, particularmente, no Estado da Paraíba, podemos
listar os atos de intolerância manifestados na violência às Penhas, às Margaridas
e aos Severinos da vida por nutrirem seus desejos nas lutas e movimentos sindicais
na perspectiva de construirem uma sociedade de iguais.
Skdmore (1998) diz que o Brasil expressa suas contradições
produzidas nas realidades presentes de discriminação, violência e pobreza generalizada,
criando uma falsa harmonia social. No cotidiano, constatamos que o intolerável
se multiplica nos discursos e nos gestos dos políticos e da elite dominante
de forma aberta e legitimada.
As generalizações, as proposições universais, as inferências
sem provas, os silogismos manipulados, os argumentos inadequados, a insuficiência
de fatos, as falácias de raciocínio e a falsidade ideológica também são alguns
dos elementos que conferem legitimidade a intolerância.
Como ser tolerante diante das situações sociais que nos incomodam
e que tornam as relações mais complexas em nosso cotidiano? Que espaços ocupam
os comportamentos intolerantes?
5. CENÁRIOS DE INFORMAÇÕES: DESATIVANDO OS BITS, DESCONECTANDO OS NÓS
Na sociedade em rede, em que as informações constituem cenários
de mal-estar, que relação pode ser construída entre intolerância e informação?
Por cenários devemos entender lugares sociais constituídos real e virtualmente,
em que tipos de comportamento, sejam eles de grupos ou de indivíduos, tendem
a manifestar a intolerância mediada pelas novas tecnologias.
As novas tecnologias da informação e comunicação
têm aberto espaços para a disseminação de certas formas de vida, formando redes
que tanto produzem discursos, saberes e conhecimento, como acirram a criminalidade,
o racismo, a discriminação racial, a xenofobia, proliferando manifestações globais
de novas formas de intolerância.
O que há de novo nas formas de intolerância é a sofisticação
desses meios tecnológicos e o poder de organização das redes de informação.
Contraditoriamente, é preciso considerar que, na contemporaneidade, os intolerantes
não estão utilizando unicamente os recursos tecnológicos em seu alto grau de
complexidade, mas também estão recorrendo às tecnologias tradicionais. A tragédia
americana mostrou que o clímax da intolerância mobiliza a inteligência, escolhe
o alvo, aproveita a melhor ocasião e recorre à tática que depende do tempo que
vigia para captar no vôo possibilidades de ganhos (Certeau, 1994, p.
47). Mas ainda são as novas tecnologias da informação e comunicação que se colocam
como uma das armas mais potentes de disseminação da intolerância e do ódio.
Basta para isto acessarmos os vários sites racistas que circulam na Internet.
Estas tecnologias, mostrando dupla face na utilização ou aplicação do conhecimento,
permitem que a informação alcance os lugares mais longínquos do mundo, atingindo
um número incontável de indivíduos e, ao mesmo tempo, possibilitando que grupos
extremistas construam nós de intolerância e passem a viver no anonimato, tornando
a coisa mais perigosa e mais bem organizada.
É preciso considerar que as redes de produção
da intolerância aumentam porque ainda estamos no degrau da desinformação que
nos impede de ver que os problemas não estão apenas lá em Nova Iorque e Washington,
mas estão debaixo do nosso nariz, empilhados nas nossas relações políticas,
econômicas, sociais que se deslizam para as relações familiares, conjugais e
profissionais.
A discussão que, doravante, inicia-se, comunga com as idéias
de Castells no sentido de que a nossa sociedade está construída em torno de
uma multiplicidade de fluxos informacionais referidos como seqüências intencionais,
repetitivas, programáveis e interativas de indivíduos inseridos em diferentes
setores da sociedade, exercendo práticas sociais de dominação e de formação
da consciência social.
No cerne das novas tecnologias da informação e comunicação,
está embutida uma nova ordem: aplicar o conhecimento e a informação para a
geração de conhecimentos e dispositivos de processamento e comunicação da informação.
Os processos, que envolvem a vida individual e coletiva de homens e mulheres,
são determinados pelo novo meio tecnológico (Castells, 1999).Os indivíduos (usuários),
ao ter acesso a um computador, podem usar e criar novas informações e conhecimentos.
A informação tornou-se parte integral de toda a atividade humana.
Colocamos a informação como um elemento básico nas estratégias
educativas de recusa à intolerância. Por informação entendemos uma prática histórica,
social e comunicativa na qual homens e mulheres interagem com a informação,
põem em dúvida a própria informação, desestabilizando suas estruturas implícitas
e explícitas e silêncios não revelados, re-significando-a, para trazer uma informação
nova. A informação não é o conhecimento enrugado, mofado, mas aquilo que provoca
sobressaltos e estimula novas operações cognitivas. Nessa perspectiva, ela
se confunde com o conhecimento porque é uma informação que deforma o já dado
e prevê sua reconstrução crítica.
Ao abordarmos a relação informação/intolerância, é necessário
que sublinhemos dois pontos fundamentais. O primeiro associa-se ao nosso entendimento
de que existe uma interdependência entre os dois termos: a intolerância prescinde
de informação. O segundo implica considerar que a intolerância não é a ausência
de informação, mas, sim, portadora da informação deformada. A intolerância nega
o rico potencial da informação, esvazia-lhe o significado e aprisiona o indivíduo
à desinformação. E quando a informação alcança esse nível, é a violência
que a substitui como a linguagem daquele que não se exprime mais pela palavra
(Wiesel, 2000, p. 7).
O sociólogo Edgar Morin fornece dois conceitos básicos que servem para abordarmos a relação informação/tolerância: superinformação e subinformação.
A superinformação é a quantidade, o volume; é o excesso de informação que, ao se transformar no intolerável, gera a subinformação. A superinformação é o estado bruto da informação, aquilo que ainda não foi trabalhado. Morin diz que, enquanto a informação dá forma às coisas, a superinformação submerge [homens e mulheres] no informe.
A subinformação é a informação desqualificada, sem conteúdo, incompleta, irreal. É um conteúdo que um indivíduo transfere ao outro, sem revelar o modo como essa informação foi elaborada e quais as estratégias e as táticas mobilizadas.
Nas múltiplas interações, os indivíduos estão sempre sujeitos à subinformação. Na escola, as informações oriundas de textos literários são, muitas vezes, fragmentadas e repassadas ao aluno através do livro didático, sem relacioná-las ao contexto, às histórias dos autores que as escreveram. Na comunicação da informação, como enfatiza Morin, há zonas de sombra informacional. São ruídos e redundâncias que operam para que não se saiba o que acontece em alguns lugares. Neste caso, a subinformação estabelece um nexo com a informação-ficção. (Morin, 1995.)
Podemos dizer que tanto a superinformação como a subinformação
são identificáveis como informações fracas, redundantes, nebulosas, empobrecidas
e letais. Uma é o excesso, que afeta a cognição, provoca a overdose, rompe
os neurônios e mata o indivíduo. A outra é a redução do conteúdo que se limita
à confirmação do previsível e do provável, do insignificante.
A superinformação só adquire valor, quando é re-significada;
quando o indivíduo, a partir de um trabalho de análise e síntese, é capaz
de produzir criticamente o conhecimento.
O conhecimento crítico é a base de compreensão da realidade
e instrumento para uma ação mais adequada e mais condizente diante do outro
e de suas opções de vida. A informação ressignificada produz um conhecimento
que pode ser um mecanismo de intolerância, mas também pode servir para libertar
indivíduos, grupos humanos, comunidades e nações.
Na sociedade do conhecimento, a superinformação, se não for
filtrada, selecionada, processada, qualificada pode travar a inteligência, tornando-a
opaca e apagada. Precisamos desativar os nós da intolerância, reativar a memória
para conectar-nos às redes por onde circulam informações fortes e ricas que
devem supor um conteúdo qualitativo e que, ao serem ressignificadas, transformam-se
em algo novo, não simplesmente tolerável.
5. DECOMPONDO A (IN)TOLERÂNCIA PARA ATRIBUIR UM OUTRO
SENTIDO
Essa reflexão parte do pressuposto de que a intolerância está
na base dos conflitos entre homens e mulheres e se constitui como uma prática
que incita o ódio, mina as relações sociais e produz tragédias.
Romilly (2000) diz que, a partir do século V, a noção de tolerância
estava relacionada à suavidade, equidade e indulgência.
A palavra épiekeia significava equidade e era utilizada para traduzir
a idéia de tolerância. A autora anota a ocorrência da palavra tolerância em
Platão (72 vezes) e Aristóteles (92 vezes). Os gregos significavam a intolerância
como selvageria, falta de equidade e brutalidade. Algumas
expressões serviam para expressá-la: ignosco: ‘não quero saber’; snggnôscô:
‘eu penso, eu sinto o outro’; xenos: o estrangeiro, o outro.
Parece necessário decompormos a noção de intolerância a partir
do seu contrário, tolerância, dissecando-lhe na própria raiz. A intolerância
vem do latim intolerantia.. O verbo tolerar significa ser indulgente
com, ser condescendente, ter clemência, misericórdia, ter compaixão,
ser benevolente, ter a capacidade de perdoar. Decompondo o termo
intolerância para os objetivos a que nos propomos, temos: intolerância →
(in) = tolerância = reconhecer.
Ao abordar a relação tolerância e reconhecimento, Liethüuser
(2001) enfatiza que a tolerância incorpora conotações tanto positivas como
negativas. As expressões Dulden e Duldsamkeit indicam permissão,
admissão ou a aceitação de opiniões alheias, especialmente no contexto de credos
diferentes.
O autor aponta um ponto problemático presente na noção de tolerância,
quando cita o filósofo alemão Goethe, que estabeleceu as diferenças entre Dourem,
Dulong e Duldsamkeite (sofrimento, paciência, permissão) como definições
de tolerância e reconhecimento.
O que significa ser tolerante? Ser tolerante é recusar o intolerável;
é reconhecer onde se iniciam os direitos do outro. Ser tolerante é estabelecer
nossos limites nos direitos humanos, tendo como ponto de partida o reconhecimento
desses direitos.
Para Liethüuser, a tolerância é “uma prática
social, mais exatamente uma prática interativa com a tendência de integrar as
pessoas com todas as suas diferenças naturais, formando um grupo diferenciado,
um ‘nós’ que não iguala, mas que, ao contrário, oferece todas as possibilidades
de individualização” (ibidem, p. 443).
Do nosso ponto de vista, a tolerância é uma qualidade social
que implica aceitar modos de pensar, agir, sentir e falar que diferem de um
indivíduo ou grupos de determinados grupos políticos, religiosos, culturais,
interculturais e multiculturais. Entretanto, alerta Liethüuser que não devemos
aprovar todos os tipos de possíveis opiniões e convicções diferentes e imunes
ao direito à verdade e à justiça e à moral e à civilidade (ibidem, p.
210).
Como tolerar reconhecendo o outro em nossas relações sociais?
A discussão que relaciona tolerância e reconhecimento, recusa o termo admissão,
pois se alguém somente é admitido, ele não é ou ainda não é reconhecido; é estranho,
não é igual entre os iguais. Admitir é manter o outro à distância. É necessário
reconhecer o outro como parte de si mesmo, porque possui a mesma natureza humana.
É preciso reconhecê-lo em suas diferenças e identidades.
Liethüuser diz que o reconhecimento não é um princípio metafísico
que tolera o outro como uma mera admissão que confirma a dor, a humilhação e
a ofensa. O reconhecimento é, antes, uma utopia que não se deixa fundamentalizar.
Esta prática, porém, não é fácil de ser exercitada, mas, segundo o autor, pode
ser feita com indícios, aqueles fenômenos que nos indicam comportamentos
tolerantes e solidários existentes no cotidiano (ibidem. p. 444).
Os indivíduos devem descobrir os comportamentos intolerantes
que estão próximos de nós para se oporem a ele (Semprum, 2000, p. 211). É
preciso, portanto, combatê-los na sua origem, na ‘essência de sua vitalidade’,
isto é, no útero que a gera (Aquino, 2001), através da construção de redes
sociais de informação.
5. CONSTRUINDO REDES SOCIAIS DE TOLERÂNCIA
As mulheres e os homens estão determinados pelas novas tecnologias
da informação e comunicação a se interligarem através das redes que são criadas
não apenas para comunicar, mas para ganhar posições, para melhorar a comunicação
(Mulgan citado por Castells, 1999, p. 79). As redes podem ser consideradas como
um conjunto de nós interconectados para a comunicação de interesses diversos.
São estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos
nós e estabelecendo conexões (Castells, 1999).
As redes são instrumentos estratégicos que podem ser utilizadas
para desativar os fluxos de intolerâncias. Essas redes precisam ser construídas
sob uma cultura da tolerância (Cotler, 2000) que invista em um processo
de educação continuada que ensine mulheres e homens (adultos, adolescentes
e crianças) a vencerem o problema no nascedouro, reconhecendo que cada indivíduo
tem liberdade de escolher uma maneira de viver. Esta cultura promoveria um espaço
de relacionamento, onde a criação, a inventividade, a comunicação, o diálogo,
o consenso, a cooperação, a negociação e a solidariedade determinariam os limites
da intolerância.
Essa dinâmica, porém, não poderá ser efetivada se as instituições
sociais não estiverem inseridas concretamente na vida coletiva (Schnapper, 2000)
e contribuírem para a inserção dos indivíduos como cidadãos na sociedade da
informação e do conhecimento. As instituições são lugares sociais que perenizam,
inventam e fixam certas idéias na sociedade que, muitas vezes, anula o outro,
diminuindo-lhe o potencial. É preciso que construamos redes informacionais,
nas escolas e nas universidades, que impliquem laços sociais mais confortáveis
e relações menos egoístas.
A escola é o primeiro lugar onde deve ser construída a base do combate à intolerância. Não uma construção ao acaso, mas respaldada no dever de ensinar a história dos homens para que cada um compreenda que o respeito pelo outro foi colocado no cerne do contrato social (Bayron, 2000).
Nas universidades, as professoras/professores e pesquisadoras/ pesquisadores, enquanto educadores, precisam formular um projeto de tolerância que vise estabelecer novas relações humanas, ou seja, relações intelectuais mais interativas com os seus pares e discípulos. Há uma urgência de se criar, em nossas universidades e demais centros de informação, espaços de formação de indivíduos que estabeleçam
um clima de ‘consciência moral,’ uma convicção de que os valores estão sempre em causa, que é preciso acatá-los e, se necessário, lutar por eles. Devemos mudar nossos [currículos, inserindo conteúdos culturais atualizados] em todas as áreas, para que o despertar da consciência moral torne-se um tema central na educação, [na informação] e no conhecimento (Lepenies, 2000, p. 118].
Sabemos que as instituições educativas não nos ensinam, ou
melhor, não aprendemos em escolas e universidades a tolerar (Lepenies, 2000).
Essas instituições e, principalmente, a universidade exerce uma prática conservadora,
regeneradora, geradora. Conserva, memoriza, integra, ritualiza um patrimônio
cognitivo, regenera-o pelo exame, atualizando-o, transmitindo-o, gera saber
e cultura que entram nessa herança (Morin, 1999, p. 37). Se as instituições
e seus agentes não ensinarem a tolerar o outro, corre o risco de serem expectadores
passivos e cúmplices da desgraça do mundo, que pode desenrolar-se no
deserto de nossa indiferença (Perrot, 2000, p. 112).
O que as educadoras/educadores podem fazer? Que estratégias
educativas devem implementar ? Elas/eles precisam lutar contra o embotamento
que recobre a informação para captá-la como algo que modifica, altera as estruturas
e transforma as nossas percepções de mundo e dos indivíduos. Há necessidade
de que educadoras/educadores estabeleçam uma temperatura afetiva e solidária
na interação com educandas/educandos, ensinando-os a situar as informações
(...) em seu contexto para que adquiram sentido (Morin, 2000), a fim de
que possam tomar a palavra, desenvolver suas competências, captar as informações,
sintonizar-se com elas e reorganizá-las criticamente.
Para Morin, toda e qualquer informação tem apenas um sentido
que a relaciona a um contexto. O sentido da informação precisa ser esclarecido
pelo seu contexto. Não podemos isolar uma palavra, uma informação; é necessário
ligá-la a um contexto e mobilizar o nosso saber, a nossa cultura, para chegar
a um conhecimento apropriado e oportuno da mesma ( Morin,1999, p. 19).
Ë preciso que analisemos os discursos de George W. Bush e Osama Bin Laden, ligando-os
ao contexto.
Os formadores da educação (professoras/professores, bibliotecárias/bibliotecários,cidadãs/cidadãos)
precisam reconhecer que não são detentores do conhecimento, mas funcionam como
mediadores capazes de proporcionar as condições para que se dê a construção
do conhecimento crítico. Ë importante que se apropriem de informações fortes
e contextualizadas, as quais possam lhes instrumentalizar para ensinar a educandas/educandos
a compreenderem as razões da intolerância. É necessário ensinar-lhes a distinguir
a superinformação da subinformação e compreender que essas informações produzem
um conteúdo reforçador da prática da intolerância. Esta ação deve ser uma tarefa
permanentemente alimentada a fim de que educandas/educandos possam desenvolver
o pensar por si mesmo, eliminando as informações deturpadas que substituem
a consciência do cidadão (Whitney, 2000, p. 248) no reconhecimento do outro.
E importante que se ensinem a educandas/educandos
as habilidades da semiótica, da análise do discurso, da desconstrução, da
contraleitura crítica (Kenway, 1998) do contradiscurso, do contrargumento
e da contrainformação como recursos importantes para uma análise das informações
e de imagens produzidas pelas novas tecnologias. Elas/eles podem ser estimulados
a considerar a interação entre as diferentes fontes de informação ou, além disso,
entre informações , contextos e sujeitos, isto é, textos em seus contextos
mais amplos (Kenway, 1998), utilizando as mais variadas formas tecnológicas
de comunicação, tendo acesso a diferentes formas textuais (impressa, visual,
auditiva etc).
As educadoras/educadores (intelectuais) podem construir uma
comunidade virtual, envolvendo listas de discussão, sala de bate-papo etc sobre
as afinidades interesses, conhecimentos, informações e projetos integrados,
em um processo de cooperação ou de troca, para expressarem seus pontos de vista
em defesa de uma cibercultura da intolerância como expressão de um laço
social sobre o compartilhamento do saber, aprendizagem cooperativa e processos
abertos de cooperação (Lèvy, 1999).
A construção de redes de tolerância supõe também a utilização
das novas tecnologias da informação e comunicação e o desenvolvimento de novos
meios de aprendizagem para formular um pensamento crítico que permita colocar
um indivíduo no lugar do outro, que possa entender a necessidade de tolerância
das diferenças, da igualdade de direitos, procurando compreender a dimensão
da dor de cada um.
As ongs, telecentros
[1] e bibliotecas são espaços onde podem ser implantadas redes sociais
de tolerância que tenham como objetivo possibilitar uma geração de novos conteúdos,
na qual os indivíduos possam interagir, não como consumidores passivos da informação
disseminada na rede, mas sim, como sujeitos ativos e capazes de também serem
produtores de conteúdos.
Na sociedade em rede, as bibliotecas precisam cumprir o seu
papel, disponibilizando conteúdos qualitativos aos usuários (indivíduos) como
uma ação de combate à intolerância. Da mesma forma, as ongs devem fortalecer
seu papel na criação de redes de informação nos movimentos populares, associações
de bairro, grupos comunitários, grupos excluídos etc. (Scherer-Warren, 1999).
Estas redes devem estimular ações que visem ao desmonte da intolerância, à busca
do reconhecimento do outro, seu desenvolvimento e sua cidadania.
As educadoras/educadores, conjuntamente com educandas/educandos,
precisam se familiarizar com a Internet enquanto uma ferramenta que oferece
a oportunidade de se instaurar uma inteligência coletiva capaz de torná-los
produtores do conhecimento que vise combater a intolerância que circula através
da superinformação e subinformação em vez de serem apenas consumidores ativos
e passivos da informação e da cultura tecnológica.
6. A NOÇÃO DE “INTELIGÊNCIA COLETIVA” NO FORTALECIMENTO DAS REDES
SOCIAIS DE TOLERÂNCIA
O estudioso Pierre Lèvy propõe a noção de inteligência coletiva
como um projeto do instável e do plural a ser construído nas nossas relações
sociais. Ela é definida como uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente
valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva
das competências (1999, p. 28).
Essa inteligência não habita nos guetos do saber e da informação,
nos compartimentos e nos labirintos acadêmicos, mas se distribui por toda parte,
interagindo local, regional e globalmente, pois não existe nenhum reservatório
do conhecimento (...) ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa [e ]o saber
não é nada além, do que o que as pessoas sabem. A inteligência coletiva
não combate os poderes e os saberes, deserta-os, desenraiza-os. Não busca
dominação alguma, mas mil germinações, que estimulam as potências da vida.
(Lèvy, 1999, p. 202).
Na linguagem de Lèvy, o objetivo da inteligência coletiva é
o reconhecimento e o enriquecimento mútuo dos indivíduos, incitando-os, cotidianamente,
em cada situação particular, a aumentar o grau de liberdade e a administrar
jogos em que uns são ganhadores e, outros, perdedores .
Acreditamos que a construção da inteligência coletiva pode levar
os indivíduos a reconhecerem que não detêm o monopólio da verdade, do
conhecimento e da informação e que o pluralismo de idéias é um princípio
dos direitos do homem (Cotler, 2000, p.72).; e essa é a sua ética. Neste
ponto, o raciocínio de Lèvy (1999, p. 30) é adequado: Na era do conhecimento,
deixar de reconhecer o outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira
identidade social, é alimentar seu ressentimento e sua hostilidade, sua humilhação,
a frustração de onde surge a violência.
A inteligência coletiva tem como objetivo negociar
permanentemente a ordem social estabelecida, sua linguagem, o papel de cada
um, o discernimento e a definição de seus objetos, a reinterpretação de sua
memória (Lèvy, 1999, p, 31).
Lèvy, entretanto, reconhece que a mobilização de competências
para a formação do coletivo inteligente somente será possível com o aprofundamento
da democracia real que conecte todos os cidadãos/cidadãs no espaço do saber,
do conhecimento e da informação. E acrescenta: o uso socialmente mais rico
da informática comunicacional consiste, sem dúvida, em fornecer aos grupos humanos
os meios de reunir suas forças mentais para constituir coletivos inteligentes
e dar visa a uma democracia em tempo real (p. 62).
Espera-se, porém, que as escolas, as universidades, telecentros,
ongs e bibliotecas, formem um coletivo inteligente, o qual se constitua em redes
sociais de comunicação e de interação de competências para disseminar seus saberes,
idéias, conhecimento e informações produzidas na direção de tornar visíveis
os efeitos da intolerância.
A apreensão da noção de inteligência coletiva, portanto, coloca-se
como uma alternativa viável para repensarmos a categoria intolerância e suas
dispersões, bem como ajudar a compreender que é necessário buscar a informação
como um potencial qualitativo capaz de fornecer elementos para um questionamento
que tanto contribua para respeitar o outro em suas diferenças e identidades
como para estabelecer a recusa a comportamentos, atitudes e posicionamentos
intoleráveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBAGLI, Sarita. Novos espaços de regulação na era da informação e do conhecimento. In : LASTRES, Helena M.M e ALBAGLI, Sarita. Informação e Globalização na Era do conhecimento. Rio de Janeiro:Campus, 1999.
AQUINO.Mirian de Albuquerque. Racismo e Tecnologias da Informação: combatendo o monstro com arma suave.in: Sabóia, Gilberto Vergne e Guimarães, Samuel Pinheiro Seminários regionais Preparatórios Para Conferência Mundial Contra o racismo. Discriminação racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Anais. Ministério da Justiça, Brasília, 2001.
AQUINO et al. Sociedade brasileira: uma história, através dos movimentos sociais. Rio de janeiro:Record, 2000.
BAYROU, François. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1999.
COTLER, Irwin. Religião, intolerância e cidadania: rumo a uma cultura mundial dos direitos do homem. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa: Rio de Janeiro:Graal, 1986.
DU CERTEAU, Michel . A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
ECO, Umberto, RICOUER, Paul e HÉRITIER, Françoise. Definições Léxicas. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis:Vozes, 1987.
GALENO, As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1990.
GINSBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo:Companhia das letras, 1987.
HÉRITIER, Françoise. O Eu, o Outro e a intolerância. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
KENWAY, Jane. Educando cibercidadãos que sejam ‘ligados’ e críticos. In: A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998.
LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da intolerância. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
LEPENIES, Wolf. A intolerância. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
LÈVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço.Rio de janeiro: Loyola, 1999.
LÈVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed 34, 1999.
LIETHÜUSE, Thomas. Por uma microfísica da tolerância. In: SOUZA, Jessé (Org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.
MEREU, ítalo. A intolerância institucional: origem e instauração de um sistema dissimulado. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In: Para navegar no século XXI. Porto Alegre:sulina, 1999.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à formação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
PERROT, Michelle. O intolerável. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
RICOUER, Paul .Etapa atual do pensamento sobre a intolerância. In:
A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro:
Bertrand Brasil, 2000.
SCHERER-WARREN, Ilse. Cidadania sem fronteiras: ações coletivas na era da globalização. Rio de janeiro:Hucitec, 1999.
ROMILLY, Jacqueline. A Grécia Antiga contra a intolerância. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
SKDMORE, Thomas E. Uma história do Brasil. São Paulo:Paz e Terra, 1998.
TAKAHASHI, Tadao. (Org.) Sociedade da Informação no Brasil: livro verde. Brasília:MCT, 2000.
WHITNEY, Craig. A ética das mídias. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
WIESEL, Elie. Prefácio. In: A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
[1] O termo ‘telecentro’tem sido utilizado genericamente para denominar as instalações que prestam serviços de comunicações eletrônicas para camadas menos favorecidas, especialmente nas periferias dos grandes centros urbanos ou mesmo em áreas mais distantes. Abrange serviços que vão desde prestação de serviços de telefonia, fax até projetos de telecomunicação e teletrabalho..TAKAHASHI, Tadao. (Org.) Sociedade da Informação no Brasil: livro verde. Brasília:MCT, 2000.