De que comunicadores precisam as organizações?
(Comunicadores de imprensa e comunicadores de empresa)

Rogério Ferreira de Andrade

Março de 1999



A observação, quase diria, a vigilância recíproca, mesclada de atracção e de repulsão, entre, por um lado, o jornalismo e, por outro, a comunicação organizacional (incluindo esta, entre outras disciplinas, a publicidade, o marketing ou as relações públicas) constitui o pano de fundo desta minha comunicação. Referirei, também, alguns equívocos relacionados com a proveniência e a formação de muitos comunicadores - um contingente enorme vem, aliás, do jornalismo - que oferecem serviços apressadamente denominados de comunicação organizacional.

Embora não se trate de um fenómeno recente, podemos dizer, no entanto, que o actual contexto de maximização de oferta - e também de procura - de informação e entretenimento, e a proliferação de redes tradicionais ou de redes electrónicas de comunicação, segmentadas até ao infinito, vieram perturbar as distinções e as fronteiras, antes relativamente estáveis, entre mediadores, comunicadores e informadores. Desregulação tecnológica, desregulação dos géneros de discurso e alguma desregulação das "consciências profissionais" parecem ir a par, com consequências que não são ainda totalmente previsíveis.

Esta questão terá, julgo, um apreciável interesse para as organizações, sejam de tipo empresarial ou de tipo institucional, uma vez que se poderão legitimamente interrogar sobre as competências, quer dos seus profissionais residentes, quer dos profissionais a que recorrem em regime de contratação exterior.
 
 

A hipótese de Tântalo

Tântalo era, como se recordarão, uma figura mítica que via permanentemente frustrada a sua necessidade de matar a sede. Logo que se aproximava da fonte, esta, para seu suplício, deixava de jorrar água abundante e pura. A mitologia não nos diz se Tântalo, nessas ocasiões, se terá impacientado. Mas não nos custa acreditar que não só se impacientou como poderá ter imaginado uma hipótese explicativa para tão bizarro fenómeno.

Esta alegoria sobre desejos que se revelam impossíveis de satisfazer retrata uma situação algo semelhante à que vivem actualmente os estudos de comunicação organizacional ou, se quisermos, de aplicação da comunicação aos ambientes organizacionais. Quando o especialista de comunicação organizacional quer beber água fresca, isto é, investigar, arrancando a sua prática das teias positivistas e hiper-instrumentais dominantes, é frequentemente confrontado com resistências várias, vindas dos seus pares, dos empregadores ou dos próprios alunos. Para uns, ele é ainda demasiado pragmático, para outros não o é suficientemente. Há sempre quem lhe lembre que o seu reino é o do simulacro, não o do conhecimento; das práticas eficazes e do "humano possível", não o do "humano integral". O que quer que faça estará sempre a um passo de ser considerado cientificamente residual, inócuo, sob suspeita ética. E, no entanto, julgo ver crescer uma legítima pretensão à validade epistemológica na investigação de matérias de comunicação organizacional (que não deverão ser apressada e exclusivamente circunscritas apenas às disciplinas da publicidade, do marketing ou das relações públicas, pois isso significa deixar na sombra vastos domínios de investigação).

Aliás, a demanda crescente de conhecimentos que é feita às universidades no capítulo da teoria e da prática dos poderes, da decisão, dos jogos, da argumentação, da retórica, etc, deveria constituir um bom barómetro das competências comunicativas que as organizações, todas as organizações, requerem enquanto sistemas complexos de acção, cultura e experiência.
 
 

Coabitação ou secessão?

As áreas organizacionais de comunicação e imagem têm, na última década, exercido uma sedução e registado um acesso crescente de jornalistas - embora não apenas de jornalistas - que se constituem amiúde como figuras tutelares e porta-vozes não mandatados de todo um sector profissionalizado de actividades para o exercício das quais não foram e, talvez, não estejam preparados. Acontece mesmo estalarem nos media polémicas acesas entre jornalistas e colegas seus também jornalistas ou ex-jornalistas, actualmente empresários de comunicação, polémicas essas que atingem, algumas vezes, enorme virulência, com a consequente erosão de reputação não apenas para o sector que os acolhe, mas também para os que, eles sim, sempre ensinaram, investigaram ou exerceram actividades de comunicação organizacional.

Não é de todo inédito verem-se jornalistas e ex-jornalistas que, tendo fundado, ou colaborando, em agências de comunicação e imagem, criticam publicamente outros jornalistas pelas suas práticas profissionais, procurando assim demonstrar, surpreendentemente, como se "confiscam" as consciências e as opiniões públicas. Não é igualmente inédito assistir-se, ainda nos media, a verdadeiros ajustes de contas envolvendo, uma vez mais, jornalistas e ex-jornalistas, nos papéis de colunistas e de consultores de imagem.

Mas, na verdade, o que têm o ensino, a investigação e o exercício profissional da comunicação nas organizações a esperar destes comunicadores de imprensa que se deixaram seduzir pela comunicação de empresa? A comunicação das organizações, e sobretudo nas organizações, é outra coisa e não pode esgotar-se na transacção comercial de notícias com valor estratégico, nem sofrer, mesmo que indirectamente, o efeito do sismo identitário e deontológico que abala, hoje mais do que nunca, os profissionais dos meios de comunicação social.

Aliás, não estão ainda longe os tempos em que o relações públicas ou o publicitário, considerados verdadeiros prestidigitadores que induziam necessidades artificiais, constituíam, em exclusivo, uma espécie de "outro radicalmente outro" do jornalismo, um "outro" cómodo, expiatório.

Actualmente, como já referimos, as fronteiras são menos rígidas e os candidadatos à prestidigitação fazem fila para, nos negócios, na política, no jornalismo, nas artes ou até mesmo na universidade acederem às vantagens da sobre-mediatização e da imagem.

Neste contexto, não deixa de me surpreender a convicção e a insistência com que se afirma, até por parte de figuras da comunicação social com reconhecida projecção na classe, que alunos de jornalismo não deveriam coabitar nos mesmos departamentos ou cursos de ciências da comunicação com os futuros comunicadores organizacionais. Preferiria, com algum realismo, sustentar que as ambições, mais ou menos legítimas, que orientam ou estimulam tantos comunicadores de imprensa e de empresa não deixam ninguém nas margens ou em ilhas isentas de onde possa clamar, em nome de um sacerdócio da informação ou de um imperativo deontológico, a sua irredutível diferença. O publicitário ou o especialista de marketing já não são utentes exclusivos da palavra retórica. Eles estão acompanhados por muitos outros comunicadores e informadores, sejam os que continuam a exercer o jornalismo ou os que, tendo uma formação de base em jornalismo, não resistem a incursões nas áreas empresariais - para não falar de outras incursões em áreas próximas do poder e que são, igualmente, diversificadas.

Embora bem intencionados, surpreendem-me os argumentos e as razões invocados pelos adeptos da não-coabitação, normalmente litanias sobre os "males de manipulação" que podem saltar, a qualquer momento, dessa nebulosa em que se torna, assim, o campo da publicidade, do marketing ou das relações públicas, como se, precisamente devido à coabitação, fosse impossível preservar, nos futuros jornalistas, uma consciência incólume e uma linguagem "expurgada" que os habilitasse, por fim, a escapar à tentação da comunicação pela ascese da informação.

Julgo, no entanto, que nenhuma separação artificial de ensino vai alguma vez, por si só, eliminar conflitualidades ou redefinir os modos de coexistência destes mundos contíguos. Os alunos de jornalismo e os de publicidade ou relações públicas podem até deixar de se cruzar no mesmo campus universitário, mas os deslizamentos híbridos - sejam os do discurso, os da ética, os da emoção ou outros a vir -, embora raramente assumidos, continuarão, seguramente, a ser visíveis quer no jornalismo, quer na comunicação organizacional. Se nisso víssemos interesse, poderíamos colocar dúvidas semelhantes no que respeita aos cursos de comunicação organizacional: devem estes integrar-se em departamentos de gestão de empresas ou de economia, deixando de coabitar com domínios de estudo supostamente mais especulativos, os quais preparariam comunicólogos e não comunicadores? Acredito que o que se perderia, nomeadamente na esfera científica, era imensamente maior do que aquilo que se ganharia com tal ímpeto autonomista. A informação quimicamente pura é uma alucinação tão perigosa como o é a comunicação absolutamente estratégica.

A comunicação estratégica, à força de tão generalizadamente praticada, começa a ser melhor identificada. Progressivamente, tornamo-nos consumidores e descodificadores, mais ou menos hábeis, de efeitos. Os leitores ou os telespectadores começam - uns mais do que outros, é certo- a dominar esses códigos de comunicação, a fazer distinções. A própria sociedade portuguesa vem reforçando os seus antídotos e contrapoderes, multiplicando-se as associações de cidadãos organizados ou as tribunas de intervenção cívica. Deste modo, o modelo explicativo que pretende ser o da "manipulação ou persuasão sofridas" explica cada vez menos. Confesso até que outras práticas me incomodam e preocupam tanto como me incomodam e preocupam os excessos das comunicações comerciais, como é o caso recente, a que assistimos durante meses e até à exaustão, de uma campanha de re-institucionalização de um semanário como jornal de referência e que se revelou, afinal, como uma estratégia de absolutização da sua credibilidade - informativa, financeira e institucional.

A ética dos negócios e a ética das práticas profissionais não têm, é certo, constituído, na comunicação organizacional, um objecto insistente de estudo. Tal não significa que o respeito por regras éticas nas condutas dos profissionais da comunicação organizacional tenha decrescido de urgência, nem que possamos dizer que há um nível satisfatório de contenção das estratégias invasivas, e mesmo abusivas, de algumas "publicidades", de alguns "marketings" ou de algumas "relações públicas". Bem pelo contrário. Por essa razão, a ética, independentemente de se cristalizar como disciplina obrigatória nos currículos dos cursos de comunicação, terá de se tornar verdadeiramente transversal na formação dos jovens comunicadores - qualquer que seja a sua vertente de especialização. Não há, aliás, especialidades de comunicação mais éticas do que outras.
 
 

Comunicadores de empresa e comunicadores de imprensa

Os comunicadores organizacionais não têm nem filiações teóricas nem práticas profissionais uniformes, embora genericamente os possamos apresentar como analistas e produtores de linguagens e, simultaneamente, analistas e construtores de redes sociais, relacionais com as quais suportam (explícita ou implicitamente) os negócios ou, noutro registo, as dádivas de uma organização. Os seus desempenhos variam também consoante as organizações empresariais ou as organizações institucionais em que as suas intervenções de macro ou de micro-comunicação têm lugar. Por outro lado, talvez os comunicadores organizacionais nunca tenham sido, e não sejam ainda, suficientemente claros quando explicam o que fazem e os riscos inerentes ao que fazem, entricheirando-se, ou deixando-se entrincheirar demasiado depressa, nos seus fantasmas de eficácia a qualquer custo e nos seus deveres de comunicadores orgânicos.

Os cidadãos que se expõem aos media são os mesmos cidadãos que "habitam" as organizações e que se expõem aos seus aparelhos normativos e ideológico-simbólicos de gestão. Aliás, é hoje apreciável o contributo de algumas correntes de análise organizacional no sentido de estudar o exercício da democracia nas empresas e as responsabilidades sociais e culturais destas. Entendo, por essa razão, que, neste ponto e certamente em vários outros, haverá todo o interesse em aprofundar uma troca de experiências com o campo jornalístico.

A questão organizacional nas empresas de comunicação social - em particular a da interpretação diária das "razões e fins da organizacão" por parte dos seus vários agentes, sejam eles gestores, colaboradores funcionais ou jornalistas - levanta problemas que interceptam, em variados pontos, os problemas que são actualmente centrais nos estudos de comunicação organizacional. Refiro-me, por exemplo, ao rompimento dos quadros tradicionais de sociabilidade pessoal e profissional associado aos fenómenos de virtualização da presença e da relação dos indivíduos nas redes de comunicação; refiro-me, ainda, ao facto de as organizações serem crescentemente vulneráveis tanto à exaustão de sentidos (como mudar? para onde ir?), como à sobre-abundância de sentidos que perturbam as identidades (os sentidos "selvagens" ou errantes que fogem ao controlo dos aparelhos, à institucionalização - o regresso da "parte maldita" de que falava Georges Bataille?); refiro-me, por fim, aos modos como as organizações instituem sentidos e respondem às erosões e aos colapsos a que estão sujeitos esses sentidos instituídos (sejam rotinas, normas, tecnologias, visões, culturas, imagens - ou mesmo o que é uma "notícia", o que é "informar" ou o que é, hoje, "um jornal"), sabendo-se que os processos erosivos recomeçam, permanentemente, pois nada está definitivamente institucionalizado.

Alguns dos temas que acabei de enumerar não andarão longe, por exemplo, das preocupações de um Michael Schudson no que respeita às organizações de comunicação social e aos constrangimentos que estas exercem sobre a prática jornalística e os produtos jornalísticos.
 
 

A concluir

A nossa pergunta "De que comunicadores precisam as organizações?" parece implicar uma outra, contígua e igualmente inevitável: "De que jornalistas precisa o jornalismo?", à qual, como se comprenderá, não me sinto vocacionado, nem preparado, para responder. Confesso, no entanto, que preciso, por vezes desesperadamente, do osso da informação - osso duro, resistente, onde arriscamos, por vezes, partir os dentes - e não apenas da sua apetitosa carne retórica, mesmo quando sei que traremos sempre connosco, dentro de nós, tensos e em paridade, um desejo de ficção e um desejo de ascese (isto é, de informação depurada, factual).
Atrevo-me, por isso, a fazer uma sugestão aos jovens futuros jornalistas que se deixem seduzir pela comunicação organizacional: se multiplicarem as pertenças profissionais, não se esqueçam também de multiplicar as formações profissionais e os princípios éticos e deontológicos que regem essas novas pertenças, pois a comunicação das organizações, e sobretudo nas organizações, é outra coisa e não pode esgotar-se na transacção comercial de notícias com valor estratégico. Quanto ao comunicador organizacional, muito debate se fará ainda sobre o seu posicionamento técnico, ético e estatutário em organizações progressivamente mais virtuais e em espaços interactivos trabalhados pelas redes e pelas tecnologias da informação e da comunicação; bem como sobre o fôlego da sua criatividade; o seu dom de influenciador; e a qualidade dos instrumentos ou dos cenários que configura e coloca à disposição da gestão; sem esquecermos que se encontrará, cada vez mais, exposto à face cínica (de não-compromisso) que os indivíduos - em tempos severos de flexibilização de vínculos laborais - oferecem às organizações onde trabalham e que tantas ilusões faz perder a uma "gestão da comunicação".
 
 

Alguma bibliografia sobre aspectos desta comunicação

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- MORGAN, G., Images de l’organization, ed. Les Presses de Laval / ESKA, 1989

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- TAYLOR, J. R., Rethinking the theory of organizational communication. How to read an organization, ed. Ablex Publishing, 1993

- TURNER, B., (org), Organizational Symbolism, ed. Walter de Gruyter,

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