O DOMÍNIO A PRIORÍSTICO DA COMUNICACIONALIDADE

NA TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA DE KARL-OTTO APEL



José António Campelo de Sousa Amaral, Universidade Católica Portuguesa


Junho de 1994


Introdução; Primeira Parte; Segunda Parte; Conclusão e Bibliografia



Terceira parte

A PRIORI COMUNICACIONAL E TRANSFORMAÇÃO DA RACIONALIDADE


Veritas est filia plurium.

[aforisma séc. XII]


Capítulo primeiro:
a dissolução da falácia cienticista do solipsismo metódico (do optimismo da razão científica, à crise do "eu penso" enquanto critério de verdade)


I. A discussão actual sobre o estatuto da ciência na era da linguagem


De entre as "tarefas da universalidade no presente e para o futuro"1 há uma que Apel destaca pelo impacto filosófico na era contemporânea: a prática da ciência.

Que significado tem essa urgência científica num pensamento que privilegia e justifica a premente opção por uma reflexão filosófica acerca da linguagem?

Destacamos três razões que em nosso entender atestam em Apel esse enfoque epistemológico:


a. em primeiro lugar, porque a discussão em torno daquilo que se "convencionou" designar de ciência representa ainda hoje, enquanto investigação tecnicamente relevante, um dos polos de reflexão mais importantes, para não dizer o principal, da cultura contemporânea;


b. em segundo lugar, porque a proverbial subserviência das "ciências do espírito" em relação às ciências ditas de "exactas" perderá o seu lastro de irreversibilidade em função da nova tarefa que se terá de reservar futuramente às ciências humanas na era das teorias e ciências da linguagem: implementar numa "unidade de investigação e ensino" a prática comunicativa em ordem à formação de uma "opinião pública" esclarecida;


c. por último, porque, no que toca de modo particular às ciências sociais, que só verdadeiramente no séc. XX adquiriram o estatuto de "exactas" com o advento da ciência económica e da psicologia científica, a sua tarefa deveria consistir não propriamente na aplicação e potenciação da força produtiva científico-tecnológica a uma social-engineering 2, mas num aprofundamento racional e crítico das interpretações de domínio público que resultem da "unidade de investigação e ensino" das ciências humanas.


Se aprimeira razão não levanta qualquer objecção no actual estado da reflexão epistemológica, já as outras duas não se apresentam de forma tão pacífica. Para Apel a razão é simples: a tarefa de levar a cabo, quer a implementação de uma "prática comunicativa" nas ciências do espírito, quer particularmente um aprofundamento crítico das "interpretações de domínio público" nas ciências sociais, apresenta-se


tão pouco clara aos olhos das mentes contemporâneas, que já o facto de muitos considerarem duvidosa a função das "ciências do espírito", seria motivo suficiente para as excluir de bom grado do conceito de ciência.3


Ainda assim, o desafio teórico apeleano parece-nos surgir como o ... mais adequado para derribar com as múltiplas barreiras que se ergueram e continuam a manter contra uma reflexão meta-científica sobre as actuais condições de possibilidade da ciência.

Não temos, por conseguinte, nenhum pejo em qualificar a discussão apeleana sobre as competências do discurso científico como um dos mais pertinentes e relevantes contributos para o debate contemporâneo acerca da possibilidade, alcance elimites daciência na era da linguagem.

Tal enfoque parece-nos filosoficamente tanto mais decisivo, quanto mais ninguém teria previsto há um bom par de décadas atrás que fosse possível inviabilisar a tese epistemológica unanimemente aclamada, segundo a qual o contexto teórico-funcional da ciência poderia muito bem permenecer instrumental e ideologicamente garantido numa praxis social, sem reflexão filosófica alguma acerca do sentido das pressões institucionais e tecnológicas.

Certamente a actual discussão sobre a função da ciência levanta um coro de vozes dissonantes, pondo de manifesto divergências aparentemente irreconciliáveis.

Não se nega porém que um debate não suscite polémica; o problema é que tais divergências têm para Apel um significado nefasto:


as dificuldades mútuas de entendimento sobre esta discussão degeneram frequentemente num intercâmbio de tópicos, através do qual o emprego particular dos termos "ideologia" ou "ideológico" constitui uma verdadeira ameaça para reduzir a discussão a esteriotipos em nome dos quais se reputa de incompreensivel a posição do adversário.4


Esse diagnóstico de Apel torna necessário, então, que destaquemos em primeiro lugar as posições actualmente defendidas na concepção de ciência a partir do seu pano de fundo histórico, antes de apreendermos o alcance e o contributo filosófico da transformação transcendental da linguagem para uma ampliação gnoseo-antropológica do paradigma da racionalidade5, ampliação essa que é válida, tanto para o progresso científico-tecnológico, como para o progresso de um acordo interpessoal acerca do sentido da vida, que aspira a transformar a "quase-natureza" da sociedade numa comunidade real de comunicação.

 

II. Crítica da falácia cienticista do ideal de "ciência unificada".


A) Refutação da ideia de uma filosofia metodologicamente transformada. Crítica à teoria popperena da "sociedade aberta" e do "racionalismo crítico".


A concepção desenvolvida por C.S. Peirce acerca da formação do consenso numa comunidade ilimitada de experimentação e interpretação pode-nos fornecer o fio condutor do projecto apeleano de empreender uma transformação da filosofia no interior mesmo de uma reflexão transcendental sobre a utência científica da linguagem.

Segundo Peirce, essa comunidade de experimentação e interpretação, teria, na época da crença científica nos métodos rigorosamente controláveis, a função semiótica de dissolver a coacção do "método da autoridade", mediante a substituição do a priorismo solipsista -entendido como concretização do sujeito transcendental kanteano- por uma doutrina do concenso veritativo.

A posição de Peirce não deixa contudo de suscitar uma ambiguidade de base. Na verdade, o facto de Peirce pretender erigir o consenso veritativo como critério de verdade metódicamente aferido e metodologicamente relevante para a ciência, indicia o enfoque a todos os títulos cienticista da substituição da autoridade privada por um consenso metodicamente alcançado. Essa derrapagem "cienticista", foi de resto detectada mais tarde por Peirce, quando se deu conta nomeadamente que não podia aferir uma racionalidade consensualmente relevante a partir de uma normatividade científica para "clarificar as ideias" no sentido da "máxima pragmática", mas tinha que proceder precisamente ao contrário: pressupor a relevância consensual para fundamentar a "lógica normativa da ciência".6

O problema heurístico de uma transformação da filosofia postulada na era da ciência e da linguagem, radica-se para Apel no eixo dessa aporia peirceana. Nesse sentido, todas as tentativas para a superar, revelar-se-ão desacertadas


tanto por parte daqueles que queiram "superar" a filosofia reduzindo-a ao estatuto de ciência ou lógica da ciência, como da parte daqueles que se sintam manietados às pretensões da "grande filosofia", indiferentes ao grande paradigma não só do método científico, como também ao da racionalização da interacção e comunicação humanas, no qual aquele se encontra pressuposto.7


O inciso de Apel revela-se portanto decisivo: para a filosofia levar avante, em plena era da ciência e da linguagem, a pretensão "fundamentalista" de manter irrevogável a "ideossincrasia" teórica do seu discurso, restam-lhe apenas dois caminhos:

- ou extraviar-se no irracional, o que se revelaria contraditório, tendo em conta a sua aspiração à racionalidade,

- ou então diluir-se no privado, o que se tornaria igualmente insustentável, atendendo à pretensão universal do seu discurso.


A aporia cienticista, detectada por Apel na reconversão epistemológica da pragmática operada por Peirce, adquiriu um particular e desinibido enfoque contemporâneo na doutrina popperiana da "sociedade aberta", entendida como "ciência metodologicamente orientada". A solução adoptada por Popper no sentido de empreender uma "transformação da filosofia" em nome do "racionalismo crítico" revelou inconsistências equívocos que o próprio Apel se empenhou em desfazer.

Ainda que exercida em nome de uma fundamentação da "sociedade aberta", poderá uma "transformação da filosofia" ser consumada nos moldes estritos de uma "engenharia social" [social engineering] nomotética e metodologicamente relevante? Até que ponto é que a noção "quase-comunicativa" de "sociedade aberta" não é o constructo de uma falácia abstractiva de teor cienticista?

Partindo do princípio que, tal como Peirce, Popper deseja extrapolar o paradigma normativo do método científico a uma filosofia da sociedade ética e politicamente relevante, então entendemos em que medida o pensamento filosófico de Apel requer e opera uma transformação da filosofia em moldes transcendentais em detrimento de uma transformação da filosofia nos trâmites de uma racionalização metodologista.

O enfoque científico do método tem para Apel uma importância instrumental, mas não uma relevância canónica ou normativa. Nesse sentido, a questão que se põe é que, mesmo quando aplicada epistemologicamente a uma filosofia crítica do "consenso" em vista dasnecessidades efins da sociedade, a extrapolação metodologista poppereana porque


suprime a reflexão sobre os pressupostos transcendentais do conhecimento em maior escala e profundidade do que o fez Peirce, não toma como este em devida conta que uma filosofia crítica da sociedade que trate, entre outras coisas, do acordo interpessoal sobre necessidades e fins, não pode ser pensada pura e simplesmente como generalização do ideal metódico da ciência e da sua referência tecnológica à praxis.8


A estratégia poppereana de "extrapolação metódica" incorre em dois tipos de falácias abstractivas que intervêm a par uma da outra de modo muito pouco claro: a do tecno-cienticismo, e a do canonico-metodologismo.


a. A primeira falácia -tecno-cienticista- tem a ver com o facto de, a partir do ideal metódico de "ciência unificada", Popper pretender lançar teoricamente os alicerces de uma "engenharia social" como fundamento da racionalidade e da racionalização políticas de uma "sociedade aberta". Para Apel, o óbice da falácia reside não só no facto de, se tomar o conjunto dos indivíduos como "parcelas" e "átomos" que devem tomar parte na "soma" das discussões sociais sobre fins e normas, mas também no facto de se reduzir os cidadãos a anónimos objectos naturais que se podem investigar e manipular instrumentalmente mediante à luz de fins arbitrariamente discutidos e estabelecidos. Ainda que o modelo científico "ensaio-erro" fosse suficiente para, numa óptica de relação sujeito-objecto, tornar eficazes ab ovo ad mortem todas as combinatórias possíveis do xadrez social, o sofisma teórico persiste, na medida em que a doutrina do "convencionalismo crítico" se abstém de explicar com a necessária radicalidade "crítica" de que modo pode uma "sociedade aberta" tirar o máximo partido do processamento comunicativo da informação científico-técnica, sem perder de vista, nem o âmbito normativo de todas as regras, nem o escopo teleológico de todos os fins. Impõe-se por via disso um questão: para aceder a uma organização do "acordo" acerca dos fins e normas sociais, sem cair propriamente no vício cienticista de converter os sujeitos do acordo em objectos de uma explicação empírico-analítica "quase-naturalística",


não seria necessário -interroga-se Apel- recorrer a filosofias (...) para as quais o homem apresentado como sujeito e objecto da ciência (e da tecnologia) constituisse não apenas um problema de controle optimizado do feed-back social, mas fundamentalmente um problema de reflexão transcendental sobre as condições de possibilidade de um conhecimento que não seja exclusivo da ciência natural ou de uma prática que não seja só técnica? 9


b. A questão acima formulada por Apel introduz-nos no âmbito da segunda falácia -canonico-metodologista-, subjacente à já referida estratégia popperiana de extrapolação cienticista. A convicção epistemológica de que, ao instituir a "comunidade dos científicos" em paradigma da "sociedade aberta", o "método de argumentação crítica" (exigido por Popper para tomar o lugar, enquanto "postulado virtualmente universal", de uma "radical fundamentação filosófica") dá um passo decisivo para ratificar a tese apeleana de ampliação do conceito de racionalidade no estofo da comunicação interpessoal, resulta também ela de um procedimento falacioso de teor cienticista, a saber: o facto de a "argumentação crítica" na "comunidade dos cientistas da natureza " se auto-instituir canonicamente como paradigma metodológico da "sociedade aberta", sem se aperceber que com isso contradiz e inibe o princípio da livre "discussão comunitária acerca dos meios e fins"... Ora, é precisamente esta abtracção canónica que, no entender de Apel, subjuga a comunidade argumentativa dos cientistas (da natureza) apenas aos interesses cognitivos da ciência da natureza, e sem que se tenha previamente em conta as necessidades e interesses concretos da comunidade já socializada em si, a qual se encontra inclusive na base da eleição e selectividade dos interesses cognitivos da própria ciência da natureza. Nesse sentido impõe-se transformacionalmente


uma questão relevante para a auto-compreensão da própria filosofia: pode a filosofia extrapolar por seu turno a ideia de argumentação crítica (...), de tal modo que seja possível institucionalizá-la na sociedade real qua comunidade de comunicação (...)? 10


Partindo das implicações falaciosas decorrentes da concepção poppereana de "sociedade aberta", podemos ver então com mais nitidez os contornos fundamentais e o escopo último de uma tranformação da filosofia entendida como ampliação comunicacional da racionalidade no pensamento de Apel. Uma teoria da "sociedade aberta" nunca poderia erigir-se como instância fundamentadora dessa transformação comunicacional da razão, dado que não basta "extrapolar" -para mais indevidamente, como vimos- a ideia de "convencionalidade crítica" numa "comunidade argumentativa" para aceder a uma fundamentação última da comunicacionalidade. A razão é simples: porque o interesse cognitivo "quase-naturalisticamente" insinuado no seu procedimento metodológico não tem de se relectir "necessariamente" num saber de manipulação [Verfügungswissen], como se a sociedade pudesse ser "hipostaticamente" reduzida ao nível de um interesse da "comunidade científica de argumentação". Não basta, por conseguinte, que, em nome de um pretenso e almejado convencionalismo crítico, cada cientista realize a abdução das necessidades ou interesses pessoais e individuais, colocando-se ao serviço do progresso da verdade numa "comunidade de investigação, para aceder às ilimitadas possibilidades comunicacionais de uma "sociedade aberta".11 Se fôr coerente com as premissas doutrinais da "sociedade aberta", o cientista que realiza a "argumentação crítica" numa "comunidade de investigação" pretenderá, no fim de contas, "explicar" e "manufacturar" a sociedade, não na base do modelo sujeito-sujeito de um acordo comunicacionalmente orientado, mas na óptica do modelo sujeito-objecto, mediante o qual a sociedade é quase-naturalisticamente reduzida a objecto de um "saber de trabalho" [Arbeitswissen] por uma "elite" de sujeitos que intercambiam "quase-comunicacionalmente" (ou seja, "arbitrariamente") experiências repetíveis e formalizáveis.

A que se deve então, no entender de Apel, esta profunda insuficiência e limitação do "racionalismo crítico" poppereano, na hora de levar a cabo uma transformação da filosofia, entendida como ampliação comunicacional da racionalidade? Basicamente a duas razões: a) uma de teor axiomático, e b) outra de índole transcendental.


a. De um ponto de vista estritamente axiomático, a insuficiência inerente ao "racionalismo crítico" deve-se ao fracasso das expectativas geradas em torno de uma extrapolação abstractiva da racionalidade metódica : nesse sentido, a evidente insuficiência do racionalismo crítico, para Apel,


não pode ser atribuida sem mais a uma filosofia ligada à ciência e regida por uma racionalidade metódica, mas sim, em última análise, ao axioma de ciência unificada (ou de metodologia unificada), (...) que actua em prejuizo da escola poppereana.12


b. De um ponto de vista eminentemente transcendental, a limitação decorrente da perspectiva "convencionalista" de Popper deve-se acima de tudo ao logro das expectativas depositadas na elevação crítica da argumentação e discussão sobre normas e fins a uma "comunidade de investigação": nessa linha, também o manifesto limite do racionalismo crítico se deve ao facto, para Apel,


de entender-se pura e simplesmente como "crítica" sem se assegurar dos próprios cânones, isto é, das condições de possibilidade e validade do próprio desempenho crítico. O racionalismo crítico da escola poppereana não parece estar capacitado para isso, na medida em que não se crê obrigado a empreender uma reflexão fundamental (no sentido de transcendental) acerca das condições de possibilidade e validade do conhecimento no seu sentido mais amplo; em lugar disso, acredita ser possível extrapolar um paradigma de racionalidade metódica -sem dúvida convincente- sem postular uma reflexão transcendental e desqualificando a intromissão de outros paradigmas gnoseológicos da tradição filosófica como metodologicamente irrelevantes ou, inclusivamente, "obscurantistas" (desprezando,por exemplo, o paradigma da hermenêutica nas "ciências do espírito" e o da dialéctica na crítica da sociedade).13


B) Crítica da ideia (neo-)positivista de ciência unificada


As duas razões aduzidas por Apel para justificar a insuficiência e limite da concepção poppereana, quer de "sociedade aberta", quer de "racionalismo crítico", colocam-nos filosoficamente no fio condutor da perspectiva transformacionista de Apel: a ampliação comunicacional do conceito de racionalidade no eixo de uma reflexão transcendental acerca e mediante a linguagem.

O que tem a ver uma teoria da ciência com uma teoria da linguagem?


Refere Apel:


quem se prontifique a defender hoje em dia uma teoria da ciência que pressuponha [como efectivamente pressupõe Apel...] interesses do conhecimento diferenciados a priori, tem que enfrentar a oposição dos pressupostos da tese positivista ou neo-positivista da ciência unificada ("unified science").14


Quem se dê ao trabalho de cotejar a teoria neo-positivista da ciência com a teoria kanteana do conhecimento, acabará por verificar que

- se por um lado Kant, com o intuito crítico de esclarecer filosoficamente as condições de possibilidade da experiência, defende uma "lógica transcendental" cuja pedra de toque consiste em constituir a experiência mediante uma síntese categorial aperceptiva,

- o neo-positivismo está convicto, por outro, que lhe basta uma "lógica formal" matematicamente ampliada para poder reduzir todo o conhecimento aos "dados" da experiência científica, sem ser necessário sequer assegurar-se de uma reflexão que lhe permita justificar a possibilidade de umaconstituição sintética desses mesmos dados da experiência.15

Quer dizer, se compararmos a filosofia transcendental kanteana com o formalismo lógico que informa o discurso científico neo-positivista, deparamo-nos com o facto singular de que a pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento não só não se encontra ampliada no neo-positivismo, como até é aí reduzida a um limiar de relevância mínimo.

Ao tentar contornar, pelo menos no tocante à problemática fundamental da lógica da ciência, quer a pergunta pelo interesse cognitivo do seu discurso, como a questão da justificação transcendental dos seus pressupostos, dissolvendo-as respectivamente numa "psicologia do conhecimento" e numa "sociologia do saber", o neo-positivsmo incorre em dois lapsos estruturais:

a. esquece por um lado a relevância teórica de uma constituição transcendental dos "dados da experiência", e

b. desleixa por outro a relevância prática de uma visão do mundo comprometida (isto é, de um interesse cognitivo constituidor do sentido ).

O alcance do ponto de vista transformacional de Apel depende em larga escala da desmontagem filosófica desta dupla inadvertência neo-positivista e da sua consequente solvência teórico-ética, ao nível de uma remissão transcendental da comunicacionalidade.

Nesse sentido, o princípio segundo o qual todo o discurso científico tem de ser fatalmente referido não só a um processamento de "dados" puramente teórico e higienicamente desinteressado, como também a um desempenho que, de forma constante e invariável, obedece metodicamente aos mesmos trâmites operativos, releva sintomaticamente de uma crença que, em Apel, é desconstruida até às últimas consequências: a crença no ideal de ciência unificada.

De que pressupostos arranca então uma ideia de ciência unificada na perpectiva de Apel?


Os pressupostos da ideia de "ciência unificada" (...)podem ser clarificados tendo em conta o modo como o neo-positivismo julga a distinção esboçada por Dilthey e outros entre as chamadas ciências da natureza "que explicam causalmente" e as ciências do espírito "que compreendem o sentido".16


A distinção entre "explicação" e "compreensão", postulada pelo neo-positivismo, arranca psicologicamente de uma diferenciação acertada:

- por um lado, o ser humano pode internalizar nexos causais entre acontecimentos do mundo exterior -aqueles que reconhecemos na base do modelo behaviorista "estímulo-resposta"- e configurá-los internamente até certo ponto [por exemplo: aproximar-me de uma fonte de calor se tenho frio]. Uma vez conhecidas as reacções internas, e outras mais complexas na base delas, posso inclusive extrapolá-las automaticamente por associação mental dos acontecimentos do mundo exterior [por exemplo: sempre que há uma descida de tempratura as pessoas procuram aquecer-se]: a essa extrapolação os neo-positivistas chamam de "explicação";

- por outro lado, quando vejo, por exemplo que alguém sai de casa para partir lenha e acender a lareira, posso interpolar na base dessa conduta que a pessoa em causa tem frio e procura aquecer-se, produzindo uma situação para gerar calor: a essa interpolação os neo-positivistas dão o nome de "compreensão".

Uma distinção operada desta forma parte de uma premissa psicologista acertada, a saber, da "distinção" entre "acontecimentos externos-estímulo" e "vivências internas-resposta", mas decorre precisamente do pressuposto cienticista, segundo o qual nos é permitido "extrapolar" causalmente a "compreensão" segundo leis constantes. Assim, a apropriação neo-positivista da compreensão consiste basicamente no seguinte: tornar equivalente uma "máxima de conduta" a uma "hipótese nomológica" (explicativa), mediante a "internalização" empírico-psicologista de condutas observadas; se a "hipótese nomológica" puder ser verificada objectivamente, então encontrámo-nos diante de uma "explicação"...


Todavia pergunta-se: se, como de resto Apel o confirma,


a diferença entre explicação e a compreensão consiste, pois, em que a "compreensão" equivale só a uma componente da operação lógica de explicar 17,


em que moldes pode então ser liminarmente inviabilizada esta redução da compreensão -e, consequentemente, das chamadas "ciências humanas" ou "do espírito"- a uma heurística pré-científica que se pretende assumir como "serva (explicativa) da ciência"?

O pensamento epistemológico de Apel oferece-nos três vias possíveis:


1. Em primeiro lugar, poderíamos assinalar o carácter aporético da pretensão cienticista de elaborar uma hipótese explicativa com a "ajuda" da compreensão. Assim, um historiador que, por exemplo, intentasse explicar causalmente uma situação de crise, nunca poderia, por exigência do próprio estatuto da disciplina histórica, empreender uma subsunção explicativa do fluxo acontecimental a partir "leis universais". Para Apel resulta bem claro que, perante a solicitação de uma explicação causal no sentido da "logic of science",


o lógico teria que poder formular expressamente a lei geral que o historiador pressupõe implicitamente, e que rezaria, por exemplo, mais ou menos assim: "os soberanos que levam a cabo uma política contrária aos interesses dos seu súbditos resultam sempre impopulares", (...) lei essa que obviamente o historiador recusaria não só por se revelar desacertada, como também, enquanto hipótese nomológica, por se revelar insuficiente.18


Fica por conseguinte bem patente que a explicação do historiador não pode ser considerada, nem como uma explicaçãonomológico-dedutiva (que infira conclusões válidas a partir de premissas universais), nem tão pouco como uma explicaçãonomológico-indutiva (que preveja a probabilidade estatística de uma ocorrência a partir de leis): em qualquer dos casos, a explicação, própria das ciências exactas empíricas não responde basicamente à pretensão do historiador de interpretar a "necessidade" de um acontecimento "particular".


2. Em segundo lugar, poderíamos, como contraponto à redução explicativista da compreensão, postular uma transformação hermenêutica do cienticismo, aplicando ao discurso da ciência a tese linguística da compreensão-prévia-à-análise-da-linguagem. Assim, uma análise hermenêutica da linguagem científica partirá do princípio que os actos de extrapolação causal das reacções internas do indivíduo possuem, enquanto formas intencionalmente ligadas à linguagem, a propriedade da compreensão. Partindo epistemologicamente deste limiar hermenêutico, é ponto assente em Apel que a ciência só pode


compreender os dados do próprio mundo (em cujo contexto surge a conduta que queremos compreender) na medida em que partir previamente da compreensão intencional da conduta que pretende compreender.19


Quer dizer: o mundo deixa de ser uma "existência de coisas, entendida como conexão segundo leis" [vide Kant], mas sim uma "situação global" do "ser-no-mundo", na qual podemos participar mediante a compreensão linguística [vide Heidegger e Gadamer].


3. Em terceiro lugar, poderíamos ainda, no âmbito daquilo que Apel designa por gnoseo-antropologia20, indiferir uma redução cienticista da compreensão, levando o neo-positivismo a aceder a uma reflexão transcendental sobre a relação complementar entre "objectivação de factos naturais" e "explicação de acontecimentos humanos". Nesse sentido, com o intuito de melhor esclarecer essa relação complementar, podemos e devemos não só perguntar pelas condições linguísticas de possibilidade e validade do discurso científico, como ainda pensá-las criticamente até às últimas consequências, como o exige uma "antropologia do conhecimento". Por conseguinte, um cientista da natureza não pode pretender explicar algo por si só, como se o solus ipse fosse de facto o lema supremo do seu critério de verdade [como o fôra o cogito, ergo sum para Descartes...].21 Peirce já vislumbrara, de resto, em que medida é que a um desempenho científico de tipo "experimental" deve corresponder pragmaticamente uma "comunidade semiótica de interpretação". Ora para Apel é precisamente a irredutibilidade deste acordo, projectado intersubjectivamente,


que constitui a condição de possibilidade da ciência objectiva (...) e determina os limites de qualquer programa (...)objectivo-explicativista.22


A partir destes três tópicos vemos pois como Apel


- dissolve o ideal cienticista de reduzir a compreensão à explicação;23

- esclarece até que ponto esse ideal corresponde ao sofisma cienticista de uma ciência unificada;

- explica em que moldes a teoria da ciência tem que ser gnoseo-antropologicamente perspectivada na base de uma reflexão linguística;

- justifica em que medida é que uma teoria da linguagem científica tem de ser criticamente assegurada por uma reflexão transcendental comunicacionalmente transformada.

Assim, se quiser adoptar a perspectiva transformacionista de Apel, a filosofia terá que provar até às últimas consequências em que medida é que o acordo intersubjectivo, mesmo não podendo ser cientisticamente subsumido por nenhum método da ciência objectiva, tem efectivamente de se constituir como tema nuclear de uma reflexão transcendental sobre a ciência.

Dito de outa forma: compete à filosofia, na era contemporânea da linguagem e da ciência, provar que uma reflexão transcendental acerca da possibilidade, alcance e limites da razão científica deve justificar não só a necessidade das ciências empírico-descritivas ou objectivo-explicativas, que operam na base do modelo "sujeito-objecto", como também a relevância e a pertinência daquilo que Apel gnoseo-antropologicamente denomina de "ciências do acordo" [Verständingungswissenschaften], ciências essas que terão de operar na base intersubjectiva de um modelo "sujeito-sujeito".


Para o provar, vejamos como, de acordo com a perpectiva apeleana, a filosofia terá de proceder em última instância a uma dupla dilucidação trancendental:


a. denunciar e desconstruir, por um lado, o pressuposto solipsista que informa metódico-explicativisticamente grande parte do discurso da ciência contemporânea;


b. postular e proceder, por outro lado, a um resgate transcendental do aparato teórico-ético, nos limites estritamente a priorísticos de uma razão comunicacional.


C) A abstracção solipsista como pressuposto transcendental da falácia cienticista. O "neo-positivismo" como sintoma do "estado de coisas" da razão contemporânea.


A concepção objectivista de "ciência unificada" apoia-se num pressuposto que o discurso científico de recorte analítico-linguístico partilha com a moderna filosofia clássica da consciência: o pressuposto do solipsismo metódico.

É precisamente em atenção à constituição de uma teoria da razão que arranque do a priori da comunidade de comunicação que Apel procede a uma desconstrução crítica da falácia solipsista, tal como os neo-positivistas a pretenderam implementar no discurso científico.

Da mesma forma que Descartes [je pense, donc je suis, est si ferme et si assurée, que (...) je pouvais la recevoir, sans scrupule, pour le primière principe de la Philosophie]24, também os partidários de uma concepção neo-positivista da ciência partem do pressuposto de que, em princípio, um só sujeito seria capaz de conhecer algo enquanto tal e, por isso, capaz de aceder ao saber científico.

A questão que se coloca, porém, a Apel é que o ideal de uma ciência solipsisticamente unificada é ele próprio paradoxal e inconsistente: o paradoxal da situação reside no facto de a "logic of science" neo-positivista conectar uma metodologia da ciência unificada com o interesse analítico-linguístico pelo acordo meta-científico, sem que para tal se assegure das condições de possibilidade e validade desse acordo. Por conseguinte,


se a metodologia da ciência unificada não só exige que o interesse hermenêutico pela compreensão não se conecte de modo algum com o interesse analítico-linguístico pelo acordo metacientífico, como ainda exige, pelo contrário, no contexto de um programa lógico de redução, que tal acordo se subordine ao interesse da explicação objectiva, parece então existir uma contradição entre o programa do método analítico-linguístico e o programa da metodologia científica.25


Ora, na medida em que o neo-positivismo, à luz de uma metafísica tradicional do sujeito, ignora o princípio segundo o qual o conhecimento baseado na relação "sujeito-objecto" parte previamente da consistência de um acordo intersubjectivamente produzido na base de uma relação "sujeito-sujeito", podemos caracterizar então a filosofia de Apel como denúncia, e ao mesmo tempo como superação transformacional, do paradoxo inerente a uma conexão epistemológica entre o enfoque analítico-linguístico da ciência e o solipsismo metódico em que efectivamente opera.

Partindo, por um lado, do princípio que um ideal científico de cariz analítico não reconnhece pressupostos trancendentais, nem tão pouco reflecte sobre eles, e atendendo, por outro, ao facto singular de a "contradição" entre o enfoque lógico-linguístico da analítica e o solipsismo metódico da gnoseologia moderna constituir, segundo Apel, um dos obscuros pressupostos transcendentais da "logic of science" neo-positivista26, convém perguntar em que domínios devemos situar uma reflexão acerca dos pressupostos últimos de um discurso científico que pretende ser simultaneamente analítico e unificado sem deixar de ser objectivo nem lógico. O neo-positivismo empreendeu-a, mas não trascendentalmente, isto é, sem se assegurar de uma reflexão sobre as condições de possibilidade e validade desses pressupostos. Nesse "défice" justificacional reside sem dúvida a inconsistência filosófica não só da ciência, mas também de uma especulação que incopore a racionalidade nos estritos limites solipsísticos do modelo "sujeito-objecto".

Vejamos de que modo as respostas da cartilha neo-positivista à pergunta pelos pressupostos últimos de um ideal de ciência unificada, encontram respectivamente na reflexão epistemológica apeleana três marcos que se complementam e corrigem transcendentalmente.


a. Em primeiro lugar, poderíamos, de acordo com o empirismo lógico, eleger a lógica formal como base de sustentação crítica dos pressupostos últimos de uma teoria da ciência. Com efeito, o pressuposto segundo o qual podemos conectar um dispositivo lógico com uma pura descrição de factos observáveis no domínio construtivo de uma linguagem científica idealmente formalizada, constitui no fim de contas o móbil característico que impelira já a metafísica leibnitzeana a mover-se em direcção a uma "lingua philosophica sive calculus raciocinator "27 com o intuito de pôr fim às eternas disputas que dividiam os filósofos acerca da acepção das palavras. Para Apel


podemos afirmar que o empirismo lógico dispôs de uma base teórica para realizar a sua almejada "superação da metafísica mediante a análise lógica da linguagem", na medida em que se manteve arreigado à metafísica oculta de teor leibnitzeano.28


Ainda assim coloca-se a seguinte questão: em que medida é que os pressupostos "cripto-metafísicos" do empirismo lógico mantêm um relação com o "solipsismo metódico"? Não nos constrange a exigência leibnitzeana de uma linguagem intersubjectivamente válida a reconhecer o "valor transcendental" do acordo intersubjectivo? Para Apel o postulado de uma linguagem unificada objectivista pressupõe de raiz um solipsismo metódico na medida em relativiza e toma como supérfula um reflexão transcendental acerca do carácter intersubjectivo que, em última análise, a linguagem formalizada tenta obviar ao nível da comunicação uniforme e homogénea entre os agentes científicos:


daí que, por princípio, não nos seja lícito utilizar as linguagens científicas formalizadas para um acordo no pleno sentido do termo 29...


b. Em segundo lugar, poderíamos, em função desse "défice" de transcendentalidade, empreender uma formatação transcendental do ideal wirttgensteineano de uma linguagem unificada, mediante a seguinte tese expressa e constantemente reiterada no Tractatus : a forma lógica da linguagem ideal que figura o mundo [weltabbildend] não pode ser constituida de modo arbitrário, mas tem de estar ocultada na linguagem ordinária [Todas as proposiões da linguagem quotidiana encontram-se, tal como são, oredenadas de um modo completamente lógico30] como condição de possibilidade de toda a construção linguística [como não é possível ocupar-me logicamente das formas que posso inventar, devo pois ocupar-me daquilo que me permite inventá-las...31].Posto então que a forma lógica da linguagem constitui para Wittgenstein a condição pretensamente transcendental de toda a figuração [Weltabbildung] linguística do mundo e, consequentemente, de todo o discurso logicamente proferido acerca do mundo, a filosofia analítica entende que não pode haver nenhum discurso meta-linguístico no tocanta à relação entre linguagem e mundo. Ora, para Apel nesta interdição reside precisamente a ilegitimidade analítico-logística para se assumir como ponto de vista definitivo de uma reflexão transcendental sobre a comunicação linguística. Na verdade, mesmo admitindo que a forma lógica "transcendental" da linguagem -isomorficamente idêntica à forma lógica do mundo descritível- não se pode mostrar,


então -questiona Apel- o que é que acontece ao "sujeito da ciência", que para Kant era suposto ser -enquanto "consciência em geral"- o portador da unidade transcendental de um conhecimento possível de objectos? ...32


Ora, para Wittrgenstein, a unidade transcendental de um eu -kanteanamente entendido como "consciência em geral"- não existe [O sujeito que pensa, que tem representações, não existe...33]; o que existe é a "unidade transcendental da linguagem", analiticamente entendida como condição de possibilidade e validade da ciência, como o era para Kant a "unidade transcendental da consciência do objecto"... Precisamente porque pretender reduzir e dissolver a "lógica transcendental" kanteana numa lógica formal linguisticamente aferida, é que Apel entende que Wittgenstein perde teoricamente a decisiva para aceder a uma reflexão transcendental [pragmática] do acordo linguístico :


a par da rescisão do eu como "auto-consciência", é perdida também a possibilidade de se pensar a dependência transcendental da consciência do objecto e de si mesma em relação a um acordo dialógico: pensar o mundo no espaço lógico da linguagem não é para Wittgenstein um "diálogo da alma consigo mesma" (Platão), nem a fortiori uma função da comunicação transcendental.34


Quer dizer: a típica divisa wittgensteineana "eu sou o meu mundo" [Tractatus..., 5.63], ao tentar contornar o embaraço do solipsismo, acaba paradoxalmente por expressar no essencial o carácter solipsístico de uma reflexão analítico-linguística de pretensões transcendentais. Ela não nega a existência de outros sujeitos, é certo; o que nega é o pressuposto transcendental de uma comunicação entre sujeitos, pressuposto esse que Apel entende postular como fundamento e possibilidade de uma compreensão linguística do mundo e, inclusive, da própria auto-compreensão linguística...


c. Por último, poderíamos sustentar, ainda assim, de acordo com a "logic of science" neo-positivista, que o acesso epistémico do discurso a essa exigência transcendental de "comunicação" é assegurado pelo próprio princípio analítico da convencionalidade. De facto, os neo-positivistas entendem que as "convenções" são necessárias para constituir e assegurar os "semantical frameworks", entendidos como linguagens da ciência. As "convenções" resultariam ainda igualmente necessárias, por outro lado, para garantir a confirmação ou a falsificação de hipóteses ou enunciados teóricos obtidos na óptica empírica da observação. Contudo, até que ponto é que uma doutrina da "convenção" pode constituir-se justificacionalmente como ponto de vista supremo do acordo acordo comunicacional que Apel postula? Com efeito não pode. E não pode por duas razões: em primeiro lugar porque toda a convenção depende do carácter irracional de uma soma atomisticamente constituida por decisões arbitrárias que se pretendem que precedam e antecipem a todo o discurso "racional"35, em segundo lugar porque segundo Apel


o facto de se pressupôr que são precisas "convenções" [convenios) para construir sistemas semânticos -responsáveis em última análise pelo sentido dos enunciados científicos- revela que a pragmática transcendental da comunicação intersubjectiva constitui o pressuposto último da lógica da ciência, (...) mesmo quando o sistema onto-semântico herdado de Wittgenstein (...) impediu que (...) se considerasse a problemática filosófica da comunicação racional como metaproblemática da semântica construtiva.36


Não temos dúvida de que tal reflexão postulada por Apel sobre a estrutura transcendental de tal problemática poria em perigo não só a "ortodoxia", como as legítimas "convicções" e "pretensões" do programa inerente a um ideal de "ciência (solipsisticamente) unificada". Contudo, se quisermos levar de facto às últimas consequência a convicção e a pretensão "transcendental" da lógica analítica que informa o discurso científico neo-positivista, temos que pressupôr "anti-solipsisticamente" que os cientistas não só são objectos da própria linguagem descritivo-formal que intentam construir, como também "co-sujeitos" do acordo linguístico em virtude do qual "aderem" às expectativas e interesses depositados nessa construtividade.


Da análise dos três marcos neo-positivistas que atrás analisamos na esteira do pensamento de Apel resta então a seguinte questão: se com efeito o pressuposto do solipsismo metódico constitui para Apel um obstáculo decisivo para se aceder à problemática transcendental do acordo, em que moldes equacionar então o cunho justificacional que Apel postula para o pressuposto último da comunicacionalidade?



Capítulo segundo:
a transcendentalidade comunicacional como justificação última da razão; teses programáticas acerca do a priori da comunidade comunicacional


A transformação filosófica da linguagem, empreendida ao nível reflexivo de uma reconstrução metafísica do acordo (analítico), da intersubjectividade (hermenêutica) e do consenso (pragmático), a par da transformação filosófica da ciência empreendida ao nível reflexivo da desconstrução crítica do solipsismo inerente ao ideal de ciência unificada, fornecem-nos os fios condutores teóricos que nos permitem não só postular uma ampliação comunicacional do sentido contemporâneo da racionalidade, como dotá-la de um fundamento transcendental, que lhe permitam de acordo com as exigências teóricas contemporâneas impor-se gnoseologica e eticamente como condição de possibilidade discursiva do conhecimento e da acção.

Para alcançar essa subsumção transcendental da linguagem e da ciência Apel opera em dois eixos temáticos transformacionalmente inversos mutuamente inter-rectificáveis: a) um que reclama um regresso epistémico-linguístico à filosofia kanteana e b) outro que postula uma ... da clássica filosofia transcendental da consciência (kanteana) a partir dos contributos teóricos de uma reflexão linguística justificacionalmente elevada a uma comunidade de comunicação.

Assim,


- frente à lógica dominante e triunfante da ciência contemporânea


considero que hoje em dia toda a teoria filosófica da ciência deve responder à pergunta kanteana pelas condições transcendentais de possibilidade e validade da ciência 37;


- frente aos defensores de uma regressão ao "kantismo ortodoxo"


considero também que hoje em dia a resposta à pergunta kanteana não tem que se restringir a uma filosofia transcendental da "consciência em geral"; antes creio que a pergunta pelo sujeito transcendental da ciência deve estar mediada pela autêntica aquisição da filosofia neste século: pelo reconhecimento do valor transcendental da linguagem, e portanto, da comunidade linguística.38


Esta circularidade auto-remissiva entre "transformação transcendental da linguagem" e "transformação linguística da transcendentalidade" colocam-nos no centro de gravidade da filosofia de Apel: a possibilidade de uma fundamentação teórica epistemológico-linguisticamente relevante da razão comunicativa.

Com efeito, abandonando o escopo do pensamento apeleano, não vislumbramos de maneira nenhuma de que modo poderia uma reflexão epistemológica acerca das condições de possibilidade e validade da ciência dotar-se dos cânones normativo-justificacionais do seu desempenho, fixando-se exclusivamente dos limites das suas próprias competências. Isto é: a pergunta pelas condições transcendentais de possibilidade e validade da ciência não se pode identificar de modo algum com a questão formal de uma possível dedução de teoremas no reduto de um sistema axiomático que para se fundamentar tenha novamente de regressar a si próprio. Fora dos limites de uma reflexão transcendental, essa pergunta só pode necessariamente

- ou de dissolver-se num círculo lógico sem suspensão crítica;

- ou de perder-se num regressus ad infinitum sem retorno especulativo;

- ou de extraviar-se, em última análise, nos meandros dogmáticos de uma petição de princípio sem distanciamento justificacional...


O que torna então relevante para Apel uma retranscendentalização da linguagem e do discurso científico, não obstante a recusa liminar em manter vigente os pressupostos pressupostos kanteanos de um "esquematismo transcendental" da "apercepção"?

A ideia de a priori.

Na verdade, não basta postular, mesmo que de um ponto de vista transformacional, que a tradicional problemática gnoseológica entrou em colapso no momento em que se converte supletivamente em problemática linguística. É necessário com efeito que esse retorno linguístico [linguistic turn] esteja dotado de um lastro a priorístico que o impeça de incorrer e de se radicalizar nos mesmos exageros metafísicos que a sua suspeita denunciou no tocante à absolutização cartesiana da evidência auto-consciente do sujeito pensante.39

Em que moldes teóricos pode ser então equacionada segundo Apel a insuficiência crítica da evidência da consciência (seja ela concebida em sentido cartesiano, kanteano ou mesmo husserliano) no que respeita a uma fundamentação última do conhecimento?

Refere Apel:


O facto de as constatações fenomenológicas e gnoseo-antropológicas se apoiarem como fenómenos individuais numa evidência intuitiva auto-consciente, não basta de facto para fundamentar a priori a sua validade intersubjectiva.40


Onde vincular então essa "fundamentação a priorística" das intuições individuais da consciência e, consequentemente, a intuição supostamente originária e radical da própria subjectividade? Para Apel ela encontra-se transcendentalmente vinculada à ... comunicacional do acordo linguístico:


Só então -refere Apel- a evidência da minha consciência se converte, mediante o acordo linguístico, em enunciados a prioristicamente válidos para nós e pode considerar-se, portanto, como conhecimento vinculante a priori, no sentido da teoria consensual da verdade.41


Nesta ratificação transcendental de uma teoria da verdade-consenso-comunicação, reside a nosso ver o ponto fulcral do ponto da filosofia transformacionista de Apel: a determinação da verdade na síntese comunicativa -e não já na síntese aperceptiva (Kant)- constitui inter-remissivamente o ponto supremo justificacional de uma filosofia transcendental linguisticamente transformada, no interior mesmo de uma filosofia da linguagem transcendentalmente transformada.

É graças a esse "trânsito inter-remissivo" [que parte da linguagem para a reflexão transcendental e da reflexão transcendental linguisticamente transformada para o a priori comunicacional] que temos, não de dirigir, à imagem e semelhança da filosofia analítica, uma espécie de demolidora suspeita de crência de relevância dirigida contra o sem-sentido toda a filosofia moderna, mas de elevar justificacionalmente ao a priori da comunicação a sua profissão de fé nas virtualidades do sujeito pensante, por mais radical e fecunda que seja a evidência do acto dubitativo para uma auto-consciência. Nesse sentido a posição filosófica de Apel é inequívoca:


Inerentemente à argumentação -e isto estende-se inclusive a qualquer acto dubitativo por mais radical que seja (...)-, todo aquele que argumenta já estabeleceu e reconheceu de forma implícita os pressupostos transcendentais da teoria do conhecimento e da teoria da ciência: o jogo linguístico transcendental de uma comunidade crítica e ilimitada de comunicação.42


Se quiséssemos tomar Kant como ponto de partida, e respeitar assim o sentido transformacional do pensamento de Apel, poderíamos referir o seguinte: o kanteano "eu-penso-que-deve-acompanhar-todas-as-minhas- representações" na síntese aperceptiva do "eu-que-põe-o-objecto" tem de se encontrar já criticamente su-posto numa comunidade transcendental de comunicação, que é a única que, no entender de Apel, pode e deve confirmar a verdade, quer do auto-conhecimento, quer do próprio conhecimento do mundo e do(s) outro(s). Sem o sansionamento crítico deste pressuposto transcendental, em relação ao qual Kant apenas contemplou metafisicamente, como vimos, no vislumbre pragmático de uma antropologia, não pode haver conhecimento da verdade, porque se inibe a verdade (comunicacional) do conhecimento.


Erigida a teoria da comunicação nestes moldes transcedentais pensamos também que fica perfeitamente consumada uma refutação cabal das duas teses que mais se insurgiram contra a perspectiva apeleana da comunicacionalidade: o criticismo dogmático de H. Albert43 e o decisionismo irracional de K. Popper44. De facto, tal como esclarece Apel,


sempre que intentemos uma fundamentação última mediante reflexão transcedental, quem filosofa não precisa de eleger, nem de forma "dogmática", nem por "decisão irracional", a comunidade crítica de comunicação a que quer pertencer, porque, enquanto participante da argumentação, já teve que reconhecer implicitamente o pressuposto da comunidade crítica ilimitada de comunicação.45


O erro básico da falácia abstractiva do solipsismo metódico consistiu precisamente no desleixo desse princípio básico e elementar da comunicacionalidade: com efeito, levar às últimas consequências a decisão individual a favor ou contra um critério de verdade ou de uma estratégia argumentativa "fora" do âmbito transcendental da comunicação, é criar intrinsecamente a "impossibilidade", quer da própria auto-compreensão solitária, quer mesmo da relevante auto-identificação subjectiva. Apenas pode "optar" pela auto-afirmação ou pela auto-negação um "eu" que pre-su-ponha já a garantia a priorística de uma comunidade de comunicação:


aqui radica -esclarece Apel- a liberdade de eleição do homem finito, a qual já não pode fundamentar-se ulterirormente, e à qual devemos recorrer sem dúvida para realizar na prática a comunidade crítica de comunicação.46


À sondagem teórica da possibilidade, alcance e limites fácticos dessa realização prática da comunidade de comunicação, fica reservada a tarefa de uma ética discursiva comunicacionalmente transformada.


Por aqui vemos pois, para concluir, em que medida é que a clássica fractura entre o domínio do pensamento (vertível numa gnoseologia) e o domínio da acção (vertível numa moral) não encontra em Apel uma receptividade favorável, mas é sujeito ao crivo de uma fundamentação comunicacional.47

Para Apel, o sentido de uma transformação da filosofia pressupõe e postula também uma auto-remissividade entre theoria e praxis : a razão discursiva pode e deve verter-se transformacionalmente numa comunicacionalidade eminentemente moral, da mesma forma que o agir comunicativo pode e deve fundamentar-se transformacionalmente num discurso eminentemente racional.

A tematização da ética comunicacional em Apel merece obviamente uma outra via de investigação que ultrapassa os limites do presente trabalho.

Contudo ela fica acenada, quanto mais não seja porque uma leitura correcta da perspectiva transformacionista da filosofia de apel exige o aceno a essa "inter-remissão" cominicativa entre o discurso racional que se pretende ético e a acção moral que se requer racionalmente fundamentada.




1 Tarefas da Universidade no presente e para o futuro é o título de um círculo de colóquios realizados nas Jornadas Universitárias de Kiel (1969) onde Apel se destacou com uma conferência intitulada Ciência como emancipação? Uma valorização crítica da concepção de ciência na "teoria crítica.

2 Tal como o pretende K. Popper: cf. POPPER Karl, The Open Society and its Enemies, London (1962).

3 APEL Karl-Otto, Ciência como emancipação? Uma valorização crítica da concepção de ciência na "teoria crítica, o.c., II, 121.

4 Ibid., o.c., II, 122.

5 Esse contributo da filosofia transcendental encontra-se lapidarmente condensado por Apel numa orientação fundamental gnoseo-antropológica da pergunta transcendental pelas condições de possibilidade (...), em função da qual (...) podemos então -tal como o exige o enfoque apriorístico- estabelecer princípios regulativos para o possível progresso do conhecimento que temos de postular na prática [APEL Karl-Otto, A orientação gnoseo-antropológica da filosofia transcendental: o a priori do interesses do conhecimento e o a priori da reflexão acerca da validade, in "Introdução", o.c., I, 68].

6 Apel refere-se a esta "conversão" [turn] operada no pensamento de Peirce na "Introdução" a PEIRCE Charles, Schriften II, Frankfurt (1970) 20 ss. [cit. por APEL Karl-Otto, Transformação da filosofia mediante a racionalidade metódica? Crítica da falácia cienticista, in "Introdução", o.c., I, 12 (n.5)].

7 APEL Karl-Otto, Transformação da filosofia mediante a racionalidade metódica? Crítica da falácia cienticista, in "Introdução", o.c., I, 12.

8 Ibid., in "Introdução", o.c., I, 13.

9 Ibid., in "Introdução", o.c., I, 14-15.

10 Ibid., in "Introdução", o.c., I, 16.

11 Apel salienta, de resto, que também o próprio Peirce já tinha visto neste "selfsurrender" quase-comunicacional o distintivo moral da "ilimitada comunidade científica de investigação": cf. PEIRCE Charles, Schriften I, o.c., 245 ss. [cit. por APEL Karl-Otto, Transformação da filosofia mediante a racionalidade metódica? Crítica da falácia cienticista, in "Introdução",o.c., I, 16 (n.10)].

12 APEL Karl-Otto, Transformação da filosofia mediante a racionalidade metódica? Crítica da falácia cienticista, in "Introdução",o.c., I, 17.

13 Ibid., in "Introdução", o.c., I, 17-18.

14 APEL Karl-Otto, Cientística, hermenêutica e crítica das ideologias. Projecto de uma teoria da ciência a partir de uma perspectiva gnoseo-antropológica, o.c., II, 96. Ao referir-se à tese unificacionista da ciência, Apel tem obviamente em vista os trabalhos vindos a lume entre 1930 e 1938 na revista Erkenntnis, cuja continuação foi assegurada nos E.U.A. com a publicação da International Encyclopedia of Unified Science (1938 ss.) e do Journal of Unified Science (1939). Para uma visão mais aprofundada do itinerário e circunstancialismos histótricos destas publicações, cf. CARNAP Rudolf (et al.), Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, Antonia SOULEZ (dir.), o.c..

15 Atente-se, de resto, no facto de, na doutrina do primeiro Wittgenstein, o problema de uma "constituição transcendental" dos "estados de coisas" (isto é, dos "dados") e da "forma lógica da linguagem" serem alvo de um rebaixamento analítico ao nível "meta-linguístico" de convenções "tácitas"[Abmachung] e/ou "arbitrárias" [Ubereinkunft] logicamente incontornáveis: cf. WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus..., o.c., 3.315; 4.002; 5.02.

16 APEL Karl-Otto, Cientística, hermenêutica e crítica das ideologias. Projecto de uma teoria da ciência a partir de uma perspectiva gnoseo-antropológica, o.c., II, 98.

17 Ibid., o.c., II, 99.

18 Ibid., o.c., II, 100.

19 Ibid., o.c., II, 103.

20 Para uma visão mais profunda do carácter "gnoseo-antropológico" de uma "transformação da filosofia" em Apel, cf. APEL Karl-Otto, A orientação gnoseo-antropológica da filosofia transcendental: o a priori dos interesses do conhecimento e o a priori da reflexão acerca da validade, in "Introdução", o.c., I, 64-72; vide tb. Id., O problema gnoseo-antropológico, in "Cientística, Hermenêutica e Crítica das ideologias...", o.c., II, 91-96.

21 Os escritos do "último" Wittgenstein acerca da "linguagem privada" representam ainda assim, na esfera de uma filosofia analítica, o melhor antídoto contra a "egologia" cienticista do neo-positivismo: cf. a propósito WITTGENSTEIN Ludwig, Investigações Filosóficas, o.c., §§ 197, 199, 243 e 256.

22 APEL Karl-Otto, Cientística, hermenêutica e crítica das ideologias. Projecto de uma teoria da ciência a partir de uma perspectiva gnoseo-antropológica, o.c., II, 106.

23 Essa "dissolução" não compromete, em todo o caso, a tese apeleana, segundo a qual é impossível no limite dirimir o "problema residual" de uma mediação dialéctica entre a compreensão interpessoal das "ciências humanas" e a explicação quase-naturalista das "ciências exactas": cf. APEL Karl-Otto, O problema residual da mediação dialéctica entre a "compreensão" interpessoal e a "explicação" quase-naturalista, in "O desenvolvimento da Filosofia analítica da linguagem e o problema das Ciências do espírito", o.c., II, 65-90; como contraponto à posição de Apel, vide tb. WINCH Peter, The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy, London (1990) 1-62.

24 DESCARTES René, Discours de la Méthode, o.c., IV, 32.

25 APEL Karl-Otto, A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 222.

26 Cf. Ibid., 222-223.

27 LEIBNITZ, Opuscules et Fragments inédits de Leibniz, o.c., 153 ss.

28 APEL Karl-Otto, A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 224.

29 Ibid., o.c., II, 225.

30 WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus..., o.c., 5.5563

31 Ibid., 5.555

32 APEL Karl-Otto, A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 227.

33 WITTGENSTEIN Ludwig, Tractatus..., o.c., 5.631

34 APEL Karl-Otto, A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 228.

35 Ibid., o.c., II, 232.

36 Ibid., o.c., II, 230-231.

37 APEL Karl-Otto, "Teses Programáticas", in A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 209.

38 L.c.

39 Cf. DESCARTES René, Meditationes de prima philosophia, o.c., VII, Secunda, 23-34.

40 APEL Karl-Otto, "Teses Programáticas", in A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 210.

41 Ibid., o.c., II, 211.

42 L.c.

43 Cf. ALBERT Hans, Traktat über kritische Vernunft, Tuebingen (1980).

44 Cf. POPPER Karl, The Open Society and its Enemies, o.c.

45 APEL Karl-Otto, "Teses Programáticas", in A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais, o.c., II, 211-212.

46 Ibid., o.c., II, 212.

47 Acerca de uma fundamentação comunicacional da ética, cf. os dois principais estudos de Apel levados a partir de 1967 até hoje, uma vez que Apel se encontra neste momento empenhado ainda em empreender uma fundamentação ética que responda aos problemas que a evolução da ciência, da técnica, da política, da ecologia e da comunicação de massas, têm colocado contemporaneamente à humanidade:


- APEL Karl-Otto, L' Éthique à l' Âge da la Science. L' a priori de la communauté communicationnelle et les fondements de l' éthique, trad. par Raphaël LELLOUCHE et Inga MITTMANN, Lille (1987) e


- APEL Karl-Otto, Etica della Comunicazione, trad. per Virginio MARZOCCHI, Milano (1992).