O DOMÍNIO A PRIORÍSTICO DA COMUNICACIONALIDADE

NA TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA DE KARL-OTTO APEL



José António Campelo de Sousa Amaral, Universidade Católica Portuguesa


Junho de 1994



ÍNDICE


TOPOGRAFIA DA INVESTIGAÇÃO


PREFÁCIO


INTRODUÇÃO


PRIMEIRA PARTE: A linguagem como mediação

Capítulo primeiro: o problema de um conceito filosófico de linguagem


Capítulo segundo: a teoria do conhecimento no trânsito da crítica da consciência para a crítica da linguagem


Capítulo terceiro: a linguagem na sua tridimensionalidade

I. A análise sintática segundo R. Carnap

II. A análise semântica segundo A. Tarsky

III. A análise semiótica segundo C. Morris


SEGUNDA PARTE: A Transformação da Filosofia

Capítulo primeiro: a desconstrução linguística da metafísica

I. A transformação da filosofia na análise lógica da linguagem

II. A transformação da analítica na hermenêutica da linguagem

III. A transformação da hermanêutica na pragmática da linguagem


Capítulo segundo: a reconstrução metafísica da linguagem

I. A re-transcendentalização da linguagem

II. A linguagem como tema e via de acesso à reflexão transcendental



TERCEIRA PARTE: O a priori comunicacional e a transformação filosófica da racionalidade

Capítulo primeiro: a dissolução da falácia cienticista do solipsismo metódico

I. A discussão actual sobre a função da ciência na era da linguagem

II. Crítica da falácia cienticista do ideal de "ciência unificada"


Capítulo Segundo: a transcendentalidade comunicacional como justificação última da razão - o apriori da comunidade comunicacional



CONCLUSÃO


BIBLIOGRAFIA CITADA E REFERIDA




Topografia da investigação:


O estatuto configurador da mediação linguística.

O trânsito da consciência à linguagem.

O estigma anti-metafísico da filosofia da linguagem.

A influência actual da filosofia analítica na sua tri-dimensionalidade sintática (Carnap), semântica (Tarski) e pragmática (Morris).


A transformação da filosofia.

A desconstrução linguística da metafísica da filosofia através da suspeita analítica (Wittgenstein), hermenêutica (Heidegger) e pragmática (Peirce).

A reconstrução metafísica da linguagem mediante a legitimação transcendental da analítica, da hermenêutica e da pragmática


O a priori da comunicacionalidade.

A dissolução do solipsismo.

O "a priori" da comunidade comunicacional.




PREFÁCIO


Partindo do projecto analítico, hermenêutico e pragmático de revisão dos pressupostos transcendentais do discurso filosófico, a filosofia de K.O. Apel procura situar-se ao nível de uma rigorosa fundamentação que intenta indiferir o discurso que certa apologética anti-racional canonizou de pós-moderno, e legitimar criticamente a reflexão linguística, ilibando-a da suspeita transcendental que ilusoriamente criou.

A "novidade" do pensamento apeleano, de resto, não reside tanto na filiação explícita numa linhagem filosófica cujas raizes mergulham no pensamento de Wittgenstein, Heidegger e Peirce, mas sobretudo no propósito de sondar em termos justificacionais a possibilidade, a validade e os limites da mediação linguística.

A transformação da filosofia consiste assim em indagar acerca da consistência das apologias "linguisticistas" da "morte da filosofia", e em reconduzir a crítica da linguagem a um vínculo transcendental, constituidor e legitimador da possibilidade do discurso científico e ético.

Esta investigação propõe-se dar conta do modo como se opera no pensamento de Apel essa "viragem trancendental" da linguagem, algumas décadas depois de ter sido consumada pela analítica, pela hermenêutica e pela pragmática a "viragem linguística" da filosofia. Procuraremos ensaiar uma exposição criteriosa do pensamento deste autor, tendo sobretudo em consideração aquele que consideramos ser o ponto medular da sua filosofia: a compreensão solidária, comunicativa e dialógica da verdade, e as respectivas implicações éticas.


Centrando-nos na ideia de transformação da filosofia, abordaremos a pertinência histórica e a relevância filosófica de uma legitimação transcendental da razão comunicativa, e a consequente falácia abstractiva de três sofismas que se lhe opõem: a valência subjectiva do "eu penso"; o fundamento solipsta da racionalidade; e a apropriação monológica da verdade.

Deixaremos ainda o aceno à sugestão apeleana de uma ética discursiva que, em nome da mesma razão comunicativa, tende de igual forma a obviar o "equívoco" das éticas que apelam, quer para a unilateralidade moral do foro privado da consciência, quer para a irredutibilidade pessoal da decisão íntima, quer ainda para a salvaguarda democrática da liberdade de expressão individual.


INTRODUÇÃO

Num período em que muitas vozes se levantaram para, em nome de uma pós-modernidade1 anti-metafísica2, proclamar a decadência e a morte da filosofia, o que moveu Karl-Otto Apel a enveredar por um projecto transformacionista da filosofia, em vez de trilhar o caminho dos que, em nome da dialéctica marxista e da análise da linguagem, defendem a sua superação ?


Para aqueles que, ao falarem da "morte da filosofia", apelem para Karl Marx, deveriam ter em consideração que, para Marx, a total "superação da filosofia" dependia da sua "realização"; dito de outra forma; dependia da "transformação filosófica do mundo". Uma total "superação da filosofia" fica, por conseguinte, posta de parte. 3


O trecho supracitado introduz-nos na recusa apeleana em adoptar o modelo epistemológico que vê, tanto na ultrapassagem [überbietung] da filosofia, como na sua superação [überwindung], a pedra de toque do triunfo da ciência contemporânea, pelo menos a partir do projecto analítico do Wienerkreis.4

Delimitar o estatuto da razão não significa, no entender de Apel, superar a filosofia, e suprimir mediante uma minuciosa "análise linguística" o "invólucro metafísico" do seu discurso, mas implica transformá-la no reduto da própria mediação linguística.

Esta mutação de perspectiva prescreve ao discurso filosófico contemporâneo um dever e uma tarefa.

Um dever, porque, enquanto não ficar "transformada" mediante a sua "realização", a vocação do discurso filosófico consiste em ter que caminhar "impotente" no distanciamento "contra-fáctico" e "inoperante" da reflexão teórica.5

Uma tarefa, na medida em que se encontra destinado à filosofia o esclarecimento da relação entre pensar e agir.

Subscrevendo a denúncia habermasiana contra as reduções abstraccionistas em que tem incorrido a razão ocidental desde o advento da filosofia platónica6, Apel entende que a filosofia deve realizar-se, não como instância dirimente, mas como mediação entre teoria e praxis.7

Para além da aparente dicotomia entre "pensar" e "agir", urge ainda transformar a filosofia, em virtude de uma outra falácia que se tem insinuado no pensamento ocidental: o "culto" dos grandes pensadores.8

A categoria de "grande pensador" - superada já, de resto, desde 1962, pelo prório processo interno de transformação da filosofia9- encerra uma falácia, que consiste em atribuir a um individuo o "mono-pólio" de uma cosmovisão.

A convicção que subjaz à tese apeleana de uma transformação da filosofia dissipa essa tentação monopolista da racionalidade.

Com efeito, na justa medida em que


os grandes pensadores já não forem considerados representantes de cosmovisões detidas por um só indivíduo, perante os quais temos de optar a favor ou contra, (...) só então é que se poderá utilizar e apreciar com maior imparcialidade o potencial de pensamento que se encontra à disposição de todos. 10


Para realizar a filosofia como mediação entre teoria e praxis na sociedade humana, a comunidade filosófica deveria ser por conseguinte capaz de organizar o discurso filosófico


de modo a evitar a sua desintegração nas antecipações solipsistas dessa verdade definitiva, representada pelas "cosmovisões" dos "grandes pensadores" 11.


Como alcançar, então, esse ponto de vista jogado para lá das cosmovisões perspectivistas dos "grandes pensadores"?

Pensamos que esta questão delimita o pretexto e o contexto do sentido da transformação da filosofia postulada por Apel.

Para aceder a esse sentido transformacional, tentaremos mostrar em que medida o pensamento apeleano, assumindo embora o sentido hermenêutico da abertura [Eröffnung] linguística do e ao ser, tende a reconduzir a instância linguística para um nível transcentental de legitimação, no qual seja possível justificar a validade do discurso racional e, interremissivamente, a possibilidade de uma ética discursiva, a partir do ponto de vista a priorístico da comunicação.



1 "(...) Considera-se que o pós-moderno é a incredulidade em relação às metanarrativas. Esta é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, pressupõe-na. Ao desuso do dispositivo (...) de legitimação corresponde especialmente a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. (...) Onde pode residir a legitimidade (...)? No consenso obtido por discussão, como pensa Habermas? Mas isso violenta a heterogeneidade dos jogos de linguagem. E a invenção faz-se sempre na divergência. (...) A questão que fica em aberto é esta: é praticável uma legitimação do vínculo social (...) em conformidade com o paradoxo análogo ao da actividade científica? (...)" [LYOTARD Jean-François, A Condição Pós-Moderna, trad. por José Bragança de MIRANDA, Gradiva, Lisboa (1989) 12-13].

2 "(...) Soltanto che, ci si può ancora chiedere, che cosa significa allora metafisica ? (...) Naturalmente anche queste ricerche postmetafisiche in senso streto, nonostante il loro taglio filosoficamente specialistico sono intrechiante con determinate prospettive del mondo. (...) Il Moderno (...) può esprimere dal suo grembo in modo ugualmente originario la conoscenza oggetivante della natura e un' autonomia fondata nell' autoconscienza. (...) Da allora la filosofia cerca di trapassare in un altro medium; Karl-Otto Apel parla di una transformazione. (...)" [HABERMAS Jürgen, Il Pensiero Post-metafisico, trad. di Marina Calloni, Ed. Laterza, Roma-Bari (1991) 263-270].

3 APEL Karl-Otto, La transformacíon de la filosofía, trad. de Adela CORTINA, Joaquín CHAMORRO y Jesús CONILL, ed. Taurus, Madrid (1985)

NB: Todas as referências bibliográficas relativas ao pensamento de Karl-Otto APEL serão remetidas, sempre que possível, para a versão castelhana da obra Transformation der Philosophie [Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main (1972-1973)]. A tradução para o portugês dos trechos em versão castelhana é da nossa inteira responsabilidade.

4 O Círculo de Viena deu-se a conhecer em 1929 com um Manifesto assinado por Carnap, Hahn e Neurath. Nele se desenvolveram as grandes teses do movimento aglutinado em torno de uma concepção científica do mundo [wissenschaftlische weltanchauung]. Assim, segundo Carnap, a filosofia apenas tem sentido enquanto instância de esclarecimento das componentes elementares que constituem validamente um enunciado científico. O método que Carnap supõe, apoia-se na lógica simbólica moderna, a qual fornece os elementos protocolares indispensáveis para as descrições estruturais da realidade empiricamente observável e susceptível de verificação. Nessa linha, todo o aparato filosófico, erigido na base de uma metafísica nem é verdadeiro nem falso, mas encontra-se desprovido de sentido, dado que, nem os conceitos são protocolarmente verificáveis, nem os enunciados metafisicos respeitam as regras da sintaxe lógica da linguagem [Cf. CARNAP Rudolf, Überwindung der Metaphysik durch die logische Analyse der Sprach, trad. fran. in A. SOULEZ (dir.), Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, PUF, Paris (1985)].

5 Cf. APEL Karl-Otto, o.c., Introducción, I, 10.

6 Cf. HABERMAS Jürgen, La technique et la science comme "idéologie", pref. et trad. par Jean-René LADMIRAL, Denoel/Gouthier, Paris (1973)

7 A propósito da relação entre teoria e praxis e o modo de a equacionar no cerne do debate contemporâneo sobre o estatuto da ciência cf. APEL Karl-Otto, A Ciência como emancipação?, in Transformación de la filosofía, II, 121ss; cf. também HABERMAS Jurgen, Theorie und Praxis, Frankfurt (1971) Introd. [cit. por APEL Karl-Otto, La transformación de la filosofía, Introducción, I, 10 (n.3)].

8 Ao consumar essa denúncia, Apel tem em mente o ponto de vista difundido na Alemanha entre a década de trinta e sessenta, segundo o qual o cânone oficioso dos "grandes pensadores" alemães se encontrava definitivamente estabelecido até Nietzsche. De resto, é este o autor a quem Heidegger atribui a responsabilidade de ter encerrado um ciclo de pensatividade, cujo desfecho inscreve o próprio colapso da metafísica ocidental. Cf. a propósito, HEIDEGGER Martin, Nietzsche, 2 vol.s, trad. par Pierre KLOSSOWSKI, Paris (1971).

9 Cf. APEL Karl-Otto, La transformación de la filosofía, Introducción, I, 11.

10 L.c.

11 L.c.