A metrópole e o triunfo distópico - a cidade como útero necrosado na ficção cyberpunk
Adriana Amaral1
Índice
Resumo
O artigo remonta as origens da figura da cidade como
elemento central na ficção cyberpunk, a partir do romantismo
gótico e de seus desdobramentos para a cultura contemporânea. O
romantismo aparece como uma visão de mundo caracterizada pela nostalgia,
que reaparece no cyberpunk em sua intersecção com o gênero de
estórias de detetetives. Outro ponto abordado é o caráter
feminino da cidade em sua relação com as estórias cyberpunks, a
partir de seu aspecto sombrio, distópico e perigoso, tendo como
principal exemplo a análise da metrópole do filme Blade Runner.
Palavras-chave: ficção-científica; cyberpunk;
gótico; cidade; espaço urbano.
A questão do espaço urbano tem sido apontada como central na
ficção-científica e, em um de seus subgêneros, o cyberpunk.
A figura da metrópole urbana, apresentada como caótica, sombria,
poluída e desorganizada em sua arquitetura gigantesca e
claustrofóbica, aparece em diversas obras e tem suas origens no
imaginário do romantismo gótico2 em que os autores decadentistas se inspiraram para
buscar a atmosfera de pavor através das construções e
edifícios, com o intuito de produzir um efeito no leitor.
Esse palco, a cidade, no qual acontece a ação das obras
(literárias, cinematográficas, etc) vem sofrendo constantes
transformações, rupturas e também continuidades ao longo dos
séculos e durante os distintos períodos da FC, até chegar, no
domínio do cyberpunk, ao que
Bukatman (1993) afirma ser o espaço terminal.
Nesse cenário, o submundo e a escuridão da rua são componentes
essenciais do gênero3.
Prungnaud (1997) estabelece que o confronto entre o sujeito e o espaço
arquitetônico é um dos traços mais marcantes na continuidade do
mito do gênero gótico e de suas articulações entre outros
gêneros4 (como o das estórias de detetives noir) e
movimentos (decadentismo, modernismo, surrealismo).
No presente artigo, pretende-se analisar algumas das principais
características do mito da cidade em suas relações entre os
gêneros gótico e cyberpunk no decorrer das transformações
dessa figura, partindo dos autores românticos, passando pelos distintos
períodos da FC e finalmente chegando ao cyberpunk e as suas
ligações com o gênero de estórias de detetives noir, gerando
a estética chamada technoir.
Essa proposta de estudo tem o cyberpunk enquanto visão de mundo, assim
como é o romantismo (Lowy e Sayre, 1995). Ela também parte de uma
estética do cotidiano e de um passado construído a partir do hoje,
propondo elementos para uma genealogia dos conceitos de cyberpunk, baseada
na proposta de genealogia estética5 de Facundo (2001), uma análise que
contemple o passado a partir do presente.
Nesse percurso, algumas perguntas são inevitáveis como: de que forma
a metáfora da metrópole aparece na Ficção-Científica,
mais especificamente no cyberpunk? Como ela se transformou durante todo esse
tempo? De que maneira o imaginário da cidade gótica influenciou os
autores decadentistas e, posteriormente os autores de FC? Como é a
cidade na visão cyberpunk?
A fim de discutir essas questões e fazer brotar alguns dos galhos da
árvore genealógica do cyberpunk vamos, em um primeiro momento,
introduzir a visão romântica de mundo e sua continuidade e
herança na cultura do século XXI; num segundo momento,
apresentaremos o gênero gótico como influência central para a FC
e para o cyberpunk; e, num último momento veremos de que maneira a
cidade cyberpunk é apresentada, através do cinema baseado nas obras
do escritor norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), autor inserido no
período da FC chamado de New Wave, mas apontado como predecessor do
movimento cyberpunk dos anos 80, status legitimado pela adaptação de
suas obras para o cinema de Hollywood.
1 O romantismo como visão de mundo --- a influência difusa
na Ficção Científica
Lowy e Sayre (1995) constam que a principal característica do
romantismo, tanto em sua dimensão filosófica quanto na dimensão
política e literária é o seu caráter contraditório.
(...) simultânea (ou alternadamente) revolucionário e
contra-revolucionário, individualista e comunitário, cosmopolita e
nacionalista, realista e fantástico, retrógrado e utopista,
revoltado e melancólico, democrático e aristocrático, ativista e
contemplativo, republicano e monarquista, vermelho e branco, místico e
sensual.
Para os autores, o romantismo é uma visão de mundo, ou seja, uma
estrutura mental coletiva, que fica mais ou menos presente, em determinados
períodos históricos e movimentos artísticos. Sendo assim, ele
é uma presença que adquire visibilidade em algumas obras ou mesmo
estilos. ``(...) com efeito, muitas obras românticas ou
neo-românticas são deliberadamente não-realistas:
fantásticas, simbolistas e, mais tarde, surrealistas.'' (Lowy e Sayre,
1995)
A herança do romantismo na FC se manifesta e se apresenta principalmente
através da idéia de utopia, da nostalgia de se retornar aos valores
perdidos; pela estetização do presente; pela rejeição e
euforia em relação à modernidade e, principalmente, pela
idéia de mecanização do mundo e das relações puramente
utilitárias entre os seres humanos. ``Os românticos estão
também obcecados pelo terror de uma mecanização do próprio
ser humano'' (Lowy e Sayre, 1995)
Para Lowy e Sayre, a influência romântica é difusa e
tendencialmente dominante, contudo, ela tem sido, na maior parte do tempo
ignorada e negada, embora algumas correntes e tendências de arte e
cultura contemporâneas transformem e alterem a herança
romântica, mesmo assim perpetuando-a.
Segundo os autores,
a Ficção Científica começa anti-romântica, dirigida aos
novos intelectuais -- cientistas e técnicos, pouco sensíveis à
visão romântica, projetando tecno-utopias, mas após o conflito
mundial (a Segunda Guerra) e durante os anos 50, instala-se a dúvida e o
ceticismo; e a partir dos anos 60, em um terceiro tempo, vamos assistir a
visões negras de degradação total do mundo, desastre
ecológico, até mesmo destruição final (Lowy e Sayre, 1995)
Se pensarmos na história da FC e em seus períodos, veremos que aqui
se configura a chamada New Wave of Science Fiction6 que tem como
pressupostos a transformação da linguagem da FC e uma
aproximação com as ciências humanas e com as questões
filosóficas e existenciais em seus temas. E é justamente nesse
período que está inserida a obra de Philip K. Dick e seus
personagens paranóicos e desconfiados em relação ao futuro, mas
principalmente ao presente. As viagens espaciais e batalhas
intergalácticas com monstros de outros mundos dão lugar às
perguntas pela identidade, pela memória e constituição do ser
humano, pela temática da dissolução do real, pela paranóia
do mundo contemporâneo, entre outras.
De acordo com a definição de K. Dick,
SF presents in fictional form an eccentric view of the normal or a normal
view of a world that is not our world. Not all stories set in the future or
on other planets are SF (some are space adventures), and some SF is set in
the past or the present (time-travel or alternate world stories). It is not
mimetic of the real world.
(Dick apud Bertrand , 1980)
Esse mundo descrito pela FC é também o mundo das vanguardas
modernistas como o simbolismo, o expressionismo e o surrealismo, todos
herdeiros da tradição romântica de recusa permanente da
realidade banal e prosaica e da tecnicização e
hiperindustrialização. Lowy e Sayre (1995) afirmam que no simbolismo
essa recusa se dá através da ironia, da melancolia e do pessimismo;
no expressionismo ela acontece como uma atmosfera que soma utopia,
angústia, desespero e revolta através da expressão da
interioridade e de seus dilaceramentos; já o surrealismo faz isso
apresentando um reencantamento com o mundo e utlizando o mito como forma de
apresentar o universo não-racional.
Para o antropólogo Thomas (1988), esse universo não-racional se
manifesta em um imaginário pulsional no qual a FC é um revelador dos
tempos por mostrar que as relações entre o homem e a máquina
não são neutras, mas sim estão inseridas na vida cotidiana de
forma que desorienta o ser humano, causando uma certa obsessão. Há
nas estórias de FC, o que o antropólogo chama de triunfo do
irracional.
L'accumulation des horreurs, la vanité des destructions,
l'imbecilité des arguments invoques pour déclencher le conflit, tels
sont les moyens par lesquels la littérature fiction dénonce le
caractere irrationnel de la logique apocalyptique, une logique du delire.
(Thomas, 1988)
Rabkin (1976) afirma que essa visão escapista, de fuga da realidade
é uma das marcas mais comuns pela qual podemos reconhecer uma obra que
se relacione com o fantástico e a fantasia. Nessa relação, ele
aponta a FC como um gênero no qual a fantasia faz parte. ``A work
belongs in the genre of science-fiction if its narrative world is at least
somewhat different from our own, and if that difference is apparent agains
the background of an organized body of knowledge'' (Rabkin, 1976)
A percepção de características românticas presentes nessas
vanguardas artísticas é bastante recente e, de acordo com Lowy e
Sayre (1995), ``(...) exprime-se, sobretudo, nos anos 80. Se observarmos o
domínio da literatura anglo-americana, vamos constatar uma
evolução evidente''. É, na conturbada década de 80, que os
escritores cyberpunk redescobrem a literatura da New Wave, em especial a de
K. Dick, e ao mesmo tempo, o cinema hollywoodiano faz as primeiras
adaptações cinematográficas de sua obra. Sua temática de
permanente dúvida entre o que é realidade e o que é sonho pode
ser vista tanto como um escapismo romântico da realidade tecnológica
como quanto uma representação surrealista pintada com cores
paranóicas.
É nesse contexto de personagens perdidos em um emaranhado de provas e
pistas sobre suas identidades que o cenário da cidade adquire uma grande
importância tanto por sua arquitetura monstruosa como por suas
artérias sombrias nas quais habitam distintas raças, classes sociais
e tribos urbanas. Cidade em que há um caos controlado, governos
paralelos e multinacionais dominantes. Mas de onde surge essa idéia da
cidade? Como ela vem se apresentando do romantismo gótico em diante
até chegar a um papel de quase protagonista no cyberpunk? De que maneira
ela deixa de ser um mero pano de fundo e transforma-se em palco da mascarada
na cibercultura?
2 O corpo da cidade -- da arquitetura gótica à
decadência urbana
Roberts (2000) afirma que o ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o
etéreo, fatores importantes da FC, são constituintes da literatura
gótica tendo em William Blake (1757-1827) e Edgar Allan Poe (1809-1849)
alguns de seus textos fundadores.
Prungnaud (1997) acentua que o apogeu da novela gótica acontece entre os
anos 1780 e 1790, mas que seus elementos constituintes reaparecem nos
escritores decadentistas do final do século XIX como Byron, Baudelaire,
Mallarmé entre outros, principalmente entre os anos 1880 a 1918.
Todavia, essas datas não estão fechadas em si mesmas e, além
disso, entre esses períodos houve uma continuidade dessa
tradição literária, em algumas obras. Frankenstein de Mary
Shelley (1797-1851), por exemplo, que é considerada por muitos como a
primeira obra de FC e por outros como uma obra entre os dois gêneros
(gótico e FC) foi publicada em 1818, exatamente entre esses dois
períodos. Um outro ponto ressaltado por Prungnaud (1997) é o da
osmose entre autores britânicos e franceses, sendo que havia um
intercâmbio de influências entre esses países distintos e
outrora inimigos no que tange à literatura.
Para Facundo (2001), tanto os escritores simbolistas, como os modernistas e
decadentistas enxergam a vida inteira como obra de arte, menosprezando o
útil em relação ao belo, dotando de um valor de beleza a todo
tipo de objetos úteis que cercavam suas vidas. A cidade aparece
então como mais um desses objetos estetizados nos quais as
construções, a arquitetura, as ruas, funcionam como cenário.
Após essa breve periodização da novela gótica, passamos
então a sua especificidade temática: o confronto entre o sujeito e o
espaço arquitetônico, no qual transitam as personagens,
principalmente o vilão.
Conforme Prungnaud (1997), as relações entre um movimento
estético (no caso a arquitetura) e um gênero literário é uma
articulação que coloca em jogo a identidade do próprio
gênero gótico. Identidade essa que também é construída
a partir do que ele chama de componentes autênticos do gênero:
atmosfera tenebrosa, o clima de tensão e de medo, a presença de pelo
menos um personagem aterrorizante.
Se estabelecermos uma relação entre esses componentes e um exemplo
de obra cyberpunk como, por exemplo, o filme Blade Runner (Blade Runner, Ridley Scott,
1982) veremos que a atmosfera tenebrosa se dá pela obscuridade da
cidade7 O clima de tensão acontece entre
todas as personagens, seja entre Deckard e Rachel, entre Roy e Tyrell, entre
Deckard e seus chefes na polícia, etc. O personagem aterrorizante fica
por conta do andróide Roy Batty com sua força mais do que humana,
principalmente na cena em que ele mata seu criador, Tyrell, representando o
que Prungnaud (1997) chama de criatura da ciência, ou seja, fruto do
terror cotidiano que vem dos laboratórios, da pesquisa científica
contemporânea.
Em sua pesquisa sobre a continuidade do gótico como mito e gênero,
Prungnaud (1997) descreve que, em um primeiro momento, a construção
da novela gótica por excelência era a catedral. A catedral, segundo
ele, era uma metáfora para o corpo humano, pois os autores
românticos a percebem como um organismo vivo no qual há uma
misteriosa harmonia. O mito da catedral é resultado do projeto dos
arquitetos da Idade Média que a conceberam como grandiosa e ao mesmo
tempo como um lugar sagrado que representa a quintessência da
feminilidade, a síntese da mãe, da esposa, da santa, da virgem, um
lugar que não pode ser profanado.
De 1880 em diante, a catedral perde seu papel dentro da estrutura das
estórias góticas para a aparição da metrópole urbana com
sua desorganização, sua amplidão e ao mesmo tempo claustrofobia.
A cidade passa a ser então a metáfora do lugar gótico com sua
estrutura labiríntica herdada dos fortes medievais.
Lembramos que essa segunda fase está bastante marcada historicamente
pela industrialização, pela modernização das vilas que
passam a ficar cada vez maiores e tornam-se cidades, pela dissolução
dos vínculos sociais das pequenas comunidades.
Prungnaud (1997) acrescenta que a loucura passa a ser um atributo das
grandes cidades com os loucos perambulando por suas ruas, aumentando assim o
clima de terror e decadência. A paisagem caótica e o crescimento
desenfreado da urbe tem em Paris e Londres colossais exemplos. O gigantismo da
metrópole herda o aspecto selvagem que caracteriza o local da
habitação gótica, fazendo com que ela desempenhe um papel
central dentro da estrutura da narrativa. Esse gigantismo (que nesse caso
é o da cidade) apresenta-se para Bassa e Freixas (1993) como um dos
eixos temáticos primordiais da FC.
De acordo com Thomas (1988), a metrópole tem um lugar eminente dentro da
FC, sendo tanto invasora e invadida e podendo se virar contra o próprio
homem, sendo hostil contra seus próprios habitantes. A cidade é um
elemento do triunfo distópico que está presente na maior parte dos
textos de FC. ``La science-fiction, fidèle à son option pessimiste,
prête volontiers à la ville des instincts destructeurs. Comme si la
ville était un nouveau genre d'objet rebelle, animée d'hostilité
qui l'a créée.'' (Thomas, 1988)
Por fim, segundo Prungnaud (1997), temos ainda o arquétipo da cidade
morta, que perdeu o prestígio e agora inspira sentimentos
nostálgicos. Essa cidade morta também pode ser vista em Blade
Runner, com a progressiva fuga das elites para as colônias espaciais, a
cidade fica entregue aos ``perdedores'', aos outsiders, às figuras do submundo,
à violência, aos poderes paralelos como, por exemplo, os
caçadores de andróides (blade runners). Essa cidade sombria
constituída por dejetos e objetos de outras épocas em meio à
tecnologia representa, para Gorostiza e Pérez (2002) o fracasso da
razão, além de estar inserida em uma cotidianidade anômala, na
qual os resquícios da destruição em um mundo distópico
pós-guerra aparecem em forma de uma chuva ininterrupta.
Se analisarmos a cidade como elemento integrante da vida como pensavam os
decadentistas, veremos que a metrópole e o desenvolvimento
tecnológico caminham lado a lado. É por isso que, à medida que
ela vai crescendo e se desenvolvendo, mesmo que de forma desordenada, sua
importância vai aumentando exponencialmente dentro da FC, ocupando um
lugar central no cyberpunk.
3 A metrópole no cyberpunk --- útero dos conflitos
humano/não-humano
Segundo Bukatman (1993), uma questão que aparece muito
freqüentemente na temática cyberpunk é a cidade modernista
cedendo espaço ao não-lugar e, o espaço sideral da
ficção científica do período clássico --- anos 30/40
--- dando lugar ao ciberespaço.
Even at its most conservative, cyberpunk thematizes an ambivalence regarding
terminal existence. The works are correctives to the dystopian city-spaces
of the present. Urban space and cyberspace become reciprocal metaphors ---
each enables an understanding and negotiation of the other. (Bukatman, 1993)
No cyberpunk, a cidade aparece tanto como um parque temático, quanto uma
simulação, combinando símbolos da era espacial de alta
tecnologia com a visão vitoriana do crescimento desordenado e não
planejado.
A cidade aparece como uma entidade negativa, um espaço escuro e
superpovoado quebrado por formas de neon e estruturas corporativas, sendo
claustrofóbica e monádica. Os detritos do passado reaproveitado
misturam-se aos shopping-centers onde o tempo não parece passar8.
Bukatman (1993) explica que essa nova representação do espaço
(seja a cidade, seja o ciberespaço) aponta para uma
desorientação ou deslocamento de um mapa cognitivo para que o
sujeito possa compreender os novos termos da existência na
contemporaneidade.
Segundo ele, a cultura dominante é definida pela acelerada mudança
tecnológica, especialmente eletrônica. Já para Bruce Sterling,
que além de escritor cyberpunk, ``o novo modo do ser é o estado
tecnológico da mente --- techno state of mind9''. (Sterling apud
Bukatman, 1993).
Para ambos esse modo do ser possui uma aproximação entre a
ficção e a teoria, tanto estilística quanto tematicamente. Isso
possibilita uma associação entre esse estilo literário/visual
com a estrutura comercial da cultura de massa, através da qual o estilo
é difundido.
Bukatman (1993) afirma que a FC transforma nosso próprio presente em um
passado determinado de algo que virá, o que remonta novamente à
idéia de Roberts (2000) de que o gênero é extremamente
nostálgico e romântico.
Nessa questão da nostalgia e do passado, podemos repensar e
problematizar a relação entre os gêneros de FC e de estórias
de detetives, que ressurgem com a New Wave e com o cyberpunk10. Segundo Rabke (1976), o
fantástico ocupa um continuum ao longo do qual podemos colocar os gêneros de
estórias de detetive e de FC, ambos se entrecruzam ao longo do caminho
incluindo ou inserindo elementos que os caracterizam mais como FC ou como
ficção de detetive.
Bukatman (1993) coloca nesse interstício entre os gêneros, o
espaço urbano como o personagem principal. A cidade em suas diferentes
percepções une ambos os gêneros. ``A set of motifs is shared by
writers in both genres: a concern with models of social order and disorder;
narrative structures based on perception and spatial exploration; and most
significantly, a mapping of compacted, decentered, highly complex urban
spaces. (Bukatman, 1993)
Tanto nas estórias de detetives noir quanto no cyberpunk os personagens
precisam descobrir quem são, qual sua função dentro da narrativa
e o desfecho final ou apela para o fantástico, como diz Rabkin (1976) ou
mesmo para a tecnologia como uma espécie de magia do homem
contemporâneo conforme nos indica Thomas (1988).
Ainda relacionada à questão dos espaços e distâncias (que
pode ser a separação entre as pessoas, entre humanos e
não-humanos, entre planetas, entre ambientes físicos e
eletrônicos) está a definição da existência
contemporânea, pois é nesse entre-lugar que se dá a
configuração e a (re)construção da identidade e da
memória, que, em geral, na literatura cyberpunk tem como mote a
descorporificação11 como forma de
transcendência (Fischer, 1996).
É dentro desse contexto que a cidade aparece como elemento definidor e
central da existência humana. Tomando Blade Runner como exemplo destas
questões geográficas, bem como da estética technoir12 na qual a
cidade sombria e envolta no submundo apresenta-se como uma figura marcante
no cyberpunk enquanto subgênero da FC, Bukatman (1993), complementa:
Blade Runner displays a bold and disturbing extrapolation of current trends:
it is a future built upon the detritus of a retrofitted past (our present)
in which the city exists as a spectacular site; a future in which the
nostalgia for a simulacrum of history in the forms of the film noir
(narrationally) and forties fashion (diegetically) dominates; a future when
the only visible monument is a corporate headquarters.
O clima da arquitetura e da cidade obscura e noir da Los Angeles de 2021 de
Blade Runner deve-se tanto a influência dos desenhos de Moebius, os
quadrinhos da revista Heavy Metal e as construções do filme
Metrópolis (Fritz Lang, 1927). Por sua vez, essa relação com a cidade e com a
paranóia da sociedade urbana apresentada pelo filme influenciou obras
posteriores como a Detroit decadente e cheia de criminosos de Robocop (Paul
Verhoeven, 1987); a Tokyo do anime13 Akira (Katsuhiro Ôtomo, 1988) desenho animado japonês
cyberpunk em sua estética; a iluminação da Gotham City do filme
- (Tim Burton, 1989), e, como afirmam Gorostiza e Pérez (2002).
A cidade, assim como a catedral no romantismo gótico, também
representa o feminino (não é mera coincidência que em
inglês, francês, espanhol e em português ela seja um substantivo
feminino), mas não mais no sentido da feminilidade como sagrado, como a
santa, a mãe e a esposa. Nos domínios da ficção
científica, há duas figuras da mulher que são dicotômicas e
sempre presentes (Thomas, 1988). A primeira é a da mulher que precisa
ser protegida, fértil, doce, a mesma que aquela metaforizada pela
catedral. Já a segunda, aparece como noturna, maléfica, bárbara
e perigosa, um tipo de ameaça ao poder masculino e que está prestes
a desconstruir a vida, a identidade e a memória do homem, o protagonista
em busca da verdade. Não é à toa que a femme fatale dos filmes noir reaparece na
ficção cyberpunk sob diversas formas, e no caso, de Blade Runner ela
aparece em sua duplicidade do mesmo desejo humano: as andróides Rachel e
Pris.
A metrópole em sua feminilidade aparece no cyberpunk como uma mulher
soturna, sombria, mal iluminada, ameaçadora e perigosa, em cujo
útero foi gerado o espaço terminal (Bukatman, 1993) da
existência humana e cujas vielas, ruas e construções abrigam
seres híbridos, humanos e máquinas. Um útero no qual durante o
romantismo gótico deu vida ao crescimento desenfreado e desordenado dos
lugares, e a edifícios aterrorizantes constituindo um novo tipo de
selvageria moderna (Prungnaud, 1997). Esse grande útero que é a
cidade encontra-se na ficção cyberpunk, infectado pela tecnologia,
necrosado e em vias de ser abandonado, tentando converter-se em dados,
bytes, em informação pura a fim de transcender sua existência
física para a ``alucinação consensual''14 chamada ciberespaço.
In a giant, empty, decaying building which had once housed thousands, a
single TV set hawked its wares to na unhabited room. This ownerless ruin
had, before World War Terminus, been tended and maintained. Here had been
the suburbs of San Francisco, a short ride by monorail rapid transit; the
entire peninsula had chattered like a brid tree with life and opinions and
complaints, and now the watchful owners had either died or migrated to a
colony world. (Dick, 1968)
4 Referências Bibliográficas
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abril de 2004. Publicação do Ciberpesquisa - Centro de Estudos e
Pesquisas em Cibercultura, ISSN 1676-2916. Editor: André Lemos.
http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und/404_39.htm
- BARRAL, Etienne. Otaku. Os filhos do virtual. São Paulo: SENAC,
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- BASSA, Joan, FREIXAS, Ramon. El cine de ciencia ficción. Una
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- BERTRAND, Frank C. Philip K. Dick on philosophy: a brief interview. In: Sci-fi Magazine, 1980. http://www.geocities.com/pkd/lw/index.htm.
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um fio num mundo de alta tecnologia. São Paulo: Devir
Livraria, 1993
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post-modern science fiction. 4 ed. Durham: Duke Universtiy Press, 1998.
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Ballantine Books, 1968.
- FISCHER, Jeffrey. The postmodern paradiso. Dante, cyberpunk and technosophy of cyberspace. In:
PORTER, David. Internet Culture. London: Routledge. 1996.
- GIBSON, William. Neuromancer. New York: Ace Books, 1984.
- GOROSTIZA, Jorge, PÉREZ, Ana. Blade Runner. Estudio
crítico. Barcelona: Paidós, 2002.
- LOWY, Michael, SAYRE, Robert. Revolta e melancolia. O romantismo na
contramão da modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
- MADDOX, Tom. The wars of the Coin's Two Halves: Bruce Sterling's Mechanist/ Shaper Narratives. In: McCAFFERY, Larry. Storming the reality studio. A
casebook of cyberpunk and postmodern fiction. London: Duke University
Press, 6 ed. [1988] 1994.
- PRUNGNAUD, Joëlle. Gothique et décadance. Recherches sur la
continuité d'un mythe et d'un genre au XIXe siècle en
Grande-Bretagne et en France. Paris: Honoré-champion. 1997.
- RABKIN, Eric S. The fantastic in literature. New Jersey: Princeton
University Press, 1976.
- ROBERTS, Adam. Science Fiction. London: Routledge, 2000.
- THOMAS, Louis Vincent. Anthropologie des obsessions. Paris:
L'Harmattan, 1988.
- TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo:
Martins Fontes, 1ed. 1980.
- TOMÁS, Facundo. Formas artísticas y sociedad de masas.
Elementos para una genealogía del gusto, el entresiglos XIX-XX.
Madrid: La Balsa de la Medusa, 2001.
- 1
- Jornalista e Mestre em Comunicação Social pelo
PPGCOM/ PUCRS na linha de pesquisa Tecnologias do Imaginário. Atualmente
é Doutoranda em Comunicação Social pelo mesmo programa, onde
está desenvolvendo tese sobre cyberpunk e a obra de Philip K. Dick.
É bolsista da CAPES. Fez Estágio de Doutorado no Boston College, em
Boston, Massachussets, Estados Unidos como bolsista do CNPq de setembro de
2004 a fevereiro de 2005.
Email: adriamaral@yahoo.com
- 2
- As relações entre
os contos góticos e o cyberpunk tem sido citados por diversos estudiosos
da FC como Bukatman (1993), Roberts (2000), Dyens (2002) entre outros. Uma
análise de como as temáticas presentes no gótico reaparecem na
FC e, mais especificamente no cyberpunk está no artigo Espectros
da ficção científica -- a herança sobrenatural do
gótico no cyberpunk apresentado no GT Tecnologias da Informação
e da Comunicação no XIII Encontro da Compos, em São Bernardo do
Campo, junho de 2004.
- 3
- No livro de regras de RPG (Role Playing
Game) para a criação de um mundo cyberpunk chamado GURPS Cyberpunk --- A vida por um fio num mundo de alta tecnologia, podemos ter uma
pequena amostra do ambiente no qual as estórias se passam: ``Cyberpunk
é um gênero essencialmente urbano. É a respeito de cidades
superpopulosas, com pessoas tão empilhadas umas sobre as outras que a
privacidade praticamente não existe. Estas megalópoles podem
esparramar-se por centenas de milhares de quilômetros quadrados, como um
monstruoso pesadelo urbano carregado de tons sombrios de cinza. Imagine
São Paulo com dez vezes mais pessoas, todas com pressa. E, embora haja
um interior, pode não ser verde e agradável. Salvar as baleias?
Esqueça. A última morreu já faz muito tempo. As pessoas
estão mais preocupadas com seus próprios problemas do que com a
extinção dos jacarés. A poluição é uma realidade.''
(Blankenship, 1993)
- 4
- Como esclarece Todorov (1980): ``Nunca houve
literatura sem gêneros; é um sistema em contínua
transformação.''
- 5
- Em sua análise do gosto
nos entreséculos XIX e XX, Facundo (2001) faz uma tentativa de
compreender a cultura atual: ``Al dirigir la mirada sobre esse
fructífero momento pretérito se parte necessariamente de un ponto
de vista producido en el presente.''
- 6
- ``O pessimismo
em relação às fronteiras da realidade, assim como as
relações de poder e os elementos tidos como constitutivos do ser
humano reaparecem, na forma de estórias violentas e sexualizadas,
integradas à tecnologia e inseridos no cotidiano. Na NW, a questão
da imortalidade é retomada a partir de uma angústia existencial que
permeia as personagens em suas relações com a sociedade, as
instituições, com a tecnologia e com os outros indivíduos. A NW
foi um movimento extremamente criativo, entretanto, só tendo sido
redescoberto e valorizado apenas na década de 80 pelas mãos dos
escritores cyberpunks que veio em seu rastro.'' (Amaral, 2004)
- 7
- Sobre o caráter romântico da cidade em Blade
Runner: ``The city is sepia-toned and mist-enshrouded, a fully industrial
and smog-bound expanse which yet retains, (...) some semblance of a romantic
utopian impulse. (Bukatman, 1993)
- 8
- A
descrição da fachada de um prédio em Do android dreams of electric sheep? nos dá uma
noção desse hibridismo arquitetônico: ``The Mission Street Hall
of Justice building, onto the roof of which the hovercar descended, jutted
up in series of baroque ornamented spires; complicated and modern.'' (Dick,
1968)
- 9
- grifo da autora
- 10
-
Maddox ([1988] 1994) concisamente descreve as relações entre o
movimento cyberpunk e a New Wave: ``Cyberpunk, science-fiction's new
movement of the 1980s, continues the style and the spirit of the 1960s New
Wave: literary, insurgent, comtemptuous of the genre's prevailing standards.
As critics have remarked, however, the new writers, differ in not being
repulsed by technology; rather, they use hard science and technology as the
stone on which to hone their aesthetic edge''.
- 11
- Fischer (1996) afirma que a
aspiração medieval de vida eterna reaparece como temática na
literatura cyberpunk, apresentando o corpo como elemento negativo a partir
do desejo dos personagens de se transformarem em dados, a fim de não
mais habitarem as cidades, mas sim o ciberspaço.
- 12
-
Sobre a estética technoir: ``O personagem atormentado em busca de
respostas tentando desvendar um quebra-cabeças de sua própria
identidade e o confronto homem-máquina são pontos centrais da obra
de PKD e, de certa forma, também são as estruturas narrativas da FC
enquanto gênero, que reaparecem na estética cyberpunk através
dos filmes. Talvez por lidar com tais questões, essenciais ao
gênero, Philip K. Dick tenha sido legitimado via película como
predecessor de uma estética que é, ao mesmo tempo diferente e
similar às estéticas anteriores: o tech-noir''. (Amaral, 2004)
- 13
- A cultura otaku, dos nerds
japoneses está intimamente relacionada com a cibercultura, o virtual e
às questões tecnológicas. Nesse contexto, a estética
cyberpunk está presente nos principais meios de comunicação,
cultura e arte japoneses, principalmente, nos animes (desenhos animados como
Akira) e nos mangás (histórias em quadrinhos). Barral (2000),
explica essa influência distópica nos mangás: ``Os anos 80
são o reino dos cyberpunks: os autores de mangas preferem, em vez de
descrever a espiral infernal que provoca a destruição total,
concentrar-se na vida dos sobreviventes em um universo devastado e
hostil.''
- 14
- Conceito
gibsoniano de ciberespaço. Ver em: GIBSON, William.
Neuromancer. NY: Ace Books, 1984.