A metrópole e o triunfo distópico - a cidade como útero necrosado na ficção cyberpunk

Adriana Amaral1

 

Índice

 

Resumo

O artigo remonta as origens da figura da cidade como elemento central na ficção cyberpunk, a partir do romantismo gótico e de seus desdobramentos para a cultura contemporânea. O romantismo aparece como uma visão de mundo caracterizada pela nostalgia, que reaparece no cyberpunk em sua intersecção com o gênero de estórias de detetetives. Outro ponto abordado é o caráter feminino da cidade em sua relação com as estórias cyberpunks, a partir de seu aspecto sombrio, distópico e perigoso, tendo como principal exemplo a análise da metrópole do filme Blade Runner.


Palavras-chave: ficção-científica; cyberpunk; gótico; cidade; espaço urbano.


A questão do espaço urbano tem sido apontada como central na ficção-científica e, em um de seus subgêneros, o cyberpunk. A figura da metrópole urbana, apresentada como caótica, sombria, poluída e desorganizada em sua arquitetura gigantesca e claustrofóbica, aparece em diversas obras e tem suas origens no imaginário do romantismo gótico2 em que os autores decadentistas se inspiraram para buscar a atmosfera de pavor através das construções e edifícios, com o intuito de produzir um efeito no leitor.

Esse palco, a cidade, no qual acontece a ação das obras (literárias, cinematográficas, etc) vem sofrendo constantes transformações, rupturas e também continuidades ao longo dos séculos e durante os distintos períodos da FC, até chegar, no domínio do cyberpunk, ao que

Bukatman (1993) afirma ser o espaço terminal.

Nesse cenário, o submundo e a escuridão da rua são componentes essenciais do gênero3.

Prungnaud (1997) estabelece que o confronto entre o sujeito e o espaço arquitetônico é um dos traços mais marcantes na continuidade do mito do gênero gótico e de suas articulações entre outros gêneros4 (como o das estórias de detetives noir) e movimentos (decadentismo, modernismo, surrealismo).

No presente artigo, pretende-se analisar algumas das principais características do mito da cidade em suas relações entre os gêneros gótico e cyberpunk no decorrer das transformações dessa figura, partindo dos autores românticos, passando pelos distintos períodos da FC e finalmente chegando ao cyberpunk e as suas ligações com o gênero de estórias de detetives noir, gerando a estética chamada technoir.

Essa proposta de estudo tem o cyberpunk enquanto visão de mundo, assim como é o romantismo (Lowy e Sayre, 1995). Ela também parte de uma estética do cotidiano e de um passado construído a partir do hoje, propondo elementos para uma genealogia dos conceitos de cyberpunk, baseada na proposta de genealogia estética5 de Facundo (2001), uma análise que contemple o passado a partir do presente.

Nesse percurso, algumas perguntas são inevitáveis como: de que forma a metáfora da metrópole aparece na Ficção-Científica, mais especificamente no cyberpunk? Como ela se transformou durante todo esse tempo? De que maneira o imaginário da cidade gótica influenciou os autores decadentistas e, posteriormente os autores de FC? Como é a cidade na visão cyberpunk?

A fim de discutir essas questões e fazer brotar alguns dos galhos da árvore genealógica do cyberpunk vamos, em um primeiro momento, introduzir a visão romântica de mundo e sua continuidade e herança na cultura do século XXI; num segundo momento, apresentaremos o gênero gótico como influência central para a FC e para o cyberpunk; e, num último momento veremos de que maneira a cidade cyberpunk é apresentada, através do cinema baseado nas obras do escritor norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), autor inserido no período da FC chamado de New Wave, mas apontado como predecessor do movimento cyberpunk dos anos 80, status legitimado pela adaptação de suas obras para o cinema de Hollywood.

1  O romantismo como visão de mundo --- a influência difusa na Ficção Científica

Lowy e Sayre (1995) constam que a principal característica do romantismo, tanto em sua dimensão filosófica quanto na dimensão política e literária é o seu caráter contraditório.


(...) simultânea (ou alternadamente) revolucionário e contra-revolucionário, individualista e comunitário, cosmopolita e nacionalista, realista e fantástico, retrógrado e utopista, revoltado e melancólico, democrático e aristocrático, ativista e contemplativo, republicano e monarquista, vermelho e branco, místico e sensual.
Para os autores, o romantismo é uma visão de mundo, ou seja, uma estrutura mental coletiva, que fica mais ou menos presente, em determinados períodos históricos e movimentos artísticos. Sendo assim, ele é uma presença que adquire visibilidade em algumas obras ou mesmo estilos. ``(...) com efeito, muitas obras românticas ou neo-românticas são deliberadamente não-realistas: fantásticas, simbolistas e, mais tarde, surrealistas.'' (Lowy e Sayre, 1995)

A herança do romantismo na FC se manifesta e se apresenta principalmente através da idéia de utopia, da nostalgia de se retornar aos valores perdidos; pela estetização do presente; pela rejeição e euforia em relação à modernidade e, principalmente, pela idéia de mecanização do mundo e das relações puramente utilitárias entre os seres humanos. ``Os românticos estão também obcecados pelo terror de uma mecanização do próprio ser humano'' (Lowy e Sayre, 1995)

Para Lowy e Sayre, a influência romântica é difusa e tendencialmente dominante, contudo, ela tem sido, na maior parte do tempo ignorada e negada, embora algumas correntes e tendências de arte e cultura contemporâneas transformem e alterem a herança romântica, mesmo assim perpetuando-a.

Segundo os autores,
a Ficção Científica começa anti-romântica, dirigida aos novos intelectuais -- cientistas e técnicos, pouco sensíveis à visão romântica, projetando tecno-utopias, mas após o conflito mundial (a Segunda Guerra) e durante os anos 50, instala-se a dúvida e o ceticismo; e a partir dos anos 60, em um terceiro tempo, vamos assistir a visões negras de degradação total do mundo, desastre ecológico, até mesmo destruição final (Lowy e Sayre, 1995)
Se pensarmos na história da FC e em seus períodos, veremos que aqui se configura a chamada New Wave of Science Fiction6 que tem como pressupostos a transformação da linguagem da FC e uma aproximação com as ciências humanas e com as questões filosóficas e existenciais em seus temas. E é justamente nesse período que está inserida a obra de Philip K. Dick e seus personagens paranóicos e desconfiados em relação ao futuro, mas principalmente ao presente. As viagens espaciais e batalhas intergalácticas com monstros de outros mundos dão lugar às perguntas pela identidade, pela memória e constituição do ser humano, pela temática da dissolução do real, pela paranóia do mundo contemporâneo, entre outras.

De acordo com a definição de K. Dick,
SF presents in fictional form an eccentric view of the normal or a normal view of a world that is not our world. Not all stories set in the future or on other planets are SF (some are space adventures), and some SF is set in the past or the present (time-travel or alternate world stories). It is not mimetic of the real world.

(Dick apud Bertrand , 1980)
Esse mundo descrito pela FC é também o mundo das vanguardas modernistas como o simbolismo, o expressionismo e o surrealismo, todos herdeiros da tradição romântica de recusa permanente da realidade banal e prosaica e da tecnicização e hiperindustrialização. Lowy e Sayre (1995) afirmam que no simbolismo essa recusa se dá através da ironia, da melancolia e do pessimismo; no expressionismo ela acontece como uma atmosfera que soma utopia, angústia, desespero e revolta através da expressão da interioridade e de seus dilaceramentos; já o surrealismo faz isso apresentando um reencantamento com o mundo e utlizando o mito como forma de apresentar o universo não-racional.

Para o antropólogo Thomas (1988), esse universo não-racional se manifesta em um imaginário pulsional no qual a FC é um revelador dos tempos por mostrar que as relações entre o homem e a máquina não são neutras, mas sim estão inseridas na vida cotidiana de forma que desorienta o ser humano, causando uma certa obsessão. Há nas estórias de FC, o que o antropólogo chama de triunfo do irracional.
L'accumulation des horreurs, la vanité des destructions, l'imbecilité des arguments invoques pour déclencher le conflit, tels sont les moyens par lesquels la littérature fiction dénonce le caractere irrationnel de la logique apocalyptique, une logique du delire. (Thomas, 1988)
Rabkin (1976) afirma que essa visão escapista, de fuga da realidade é uma das marcas mais comuns pela qual podemos reconhecer uma obra que se relacione com o fantástico e a fantasia. Nessa relação, ele aponta a FC como um gênero no qual a fantasia faz parte. ``A work belongs in the genre of science-fiction if its narrative world is at least somewhat different from our own, and if that difference is apparent agains the background of an organized body of knowledge'' (Rabkin, 1976)

A percepção de características românticas presentes nessas vanguardas artísticas é bastante recente e, de acordo com Lowy e Sayre (1995), ``(...) exprime-se, sobretudo, nos anos 80. Se observarmos o domínio da literatura anglo-americana, vamos constatar uma evolução evidente''. É, na conturbada década de 80, que os escritores cyberpunk redescobrem a literatura da New Wave, em especial a de K. Dick, e ao mesmo tempo, o cinema hollywoodiano faz as primeiras adaptações cinematográficas de sua obra. Sua temática de permanente dúvida entre o que é realidade e o que é sonho pode ser vista tanto como um escapismo romântico da realidade tecnológica como quanto uma representação surrealista pintada com cores paranóicas.

É nesse contexto de personagens perdidos em um emaranhado de provas e pistas sobre suas identidades que o cenário da cidade adquire uma grande importância tanto por sua arquitetura monstruosa como por suas artérias sombrias nas quais habitam distintas raças, classes sociais e tribos urbanas. Cidade em que há um caos controlado, governos paralelos e multinacionais dominantes. Mas de onde surge essa idéia da cidade? Como ela vem se apresentando do romantismo gótico em diante até chegar a um papel de quase protagonista no cyberpunk? De que maneira ela deixa de ser um mero pano de fundo e transforma-se em palco da mascarada na cibercultura?

2  O corpo da cidade -- da arquitetura gótica à decadência urbana

Roberts (2000) afirma que o ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo, fatores importantes da FC, são constituintes da literatura gótica tendo em William Blake (1757-1827) e Edgar Allan Poe (1809-1849) alguns de seus textos fundadores.

Prungnaud (1997) acentua que o apogeu da novela gótica acontece entre os anos 1780 e 1790, mas que seus elementos constituintes reaparecem nos escritores decadentistas do final do século XIX como Byron, Baudelaire, Mallarmé entre outros, principalmente entre os anos 1880 a 1918. Todavia, essas datas não estão fechadas em si mesmas e, além disso, entre esses períodos houve uma continuidade dessa tradição literária, em algumas obras. Frankenstein de Mary Shelley (1797-1851), por exemplo, que é considerada por muitos como a primeira obra de FC e por outros como uma obra entre os dois gêneros (gótico e FC) foi publicada em 1818, exatamente entre esses dois períodos. Um outro ponto ressaltado por Prungnaud (1997) é o da osmose entre autores britânicos e franceses, sendo que havia um intercâmbio de influências entre esses países distintos e outrora inimigos no que tange à literatura.

Para Facundo (2001), tanto os escritores simbolistas, como os modernistas e decadentistas enxergam a vida inteira como obra de arte, menosprezando o útil em relação ao belo, dotando de um valor de beleza a todo tipo de objetos úteis que cercavam suas vidas. A cidade aparece então como mais um desses objetos estetizados nos quais as construções, a arquitetura, as ruas, funcionam como cenário.

Após essa breve periodização da novela gótica, passamos então a sua especificidade temática: o confronto entre o sujeito e o espaço arquitetônico, no qual transitam as personagens, principalmente o vilão.

Conforme Prungnaud (1997), as relações entre um movimento estético (no caso a arquitetura) e um gênero literário é uma articulação que coloca em jogo a identidade do próprio gênero gótico. Identidade essa que também é construída a partir do que ele chama de componentes autênticos do gênero: atmosfera tenebrosa, o clima de tensão e de medo, a presença de pelo menos um personagem aterrorizante.

Se estabelecermos uma relação entre esses componentes e um exemplo de obra cyberpunk como, por exemplo, o filme Blade Runner (Blade Runner, Ridley Scott, 1982) veremos que a atmosfera tenebrosa se dá pela obscuridade da cidade7 O clima de tensão acontece entre todas as personagens, seja entre Deckard e Rachel, entre Roy e Tyrell, entre Deckard e seus chefes na polícia, etc. O personagem aterrorizante fica por conta do andróide Roy Batty com sua força mais do que humana, principalmente na cena em que ele mata seu criador, Tyrell, representando o que Prungnaud (1997) chama de criatura da ciência, ou seja, fruto do terror cotidiano que vem dos laboratórios, da pesquisa científica contemporânea.

Em sua pesquisa sobre a continuidade do gótico como mito e gênero, Prungnaud (1997) descreve que, em um primeiro momento, a construção da novela gótica por excelência era a catedral. A catedral, segundo ele, era uma metáfora para o corpo humano, pois os autores românticos a percebem como um organismo vivo no qual há uma misteriosa harmonia. O mito da catedral é resultado do projeto dos arquitetos da Idade Média que a conceberam como grandiosa e ao mesmo tempo como um lugar sagrado que representa a quintessência da feminilidade, a síntese da mãe, da esposa, da santa, da virgem, um lugar que não pode ser profanado.

De 1880 em diante, a catedral perde seu papel dentro da estrutura das estórias góticas para a aparição da metrópole urbana com sua desorganização, sua amplidão e ao mesmo tempo claustrofobia. A cidade passa a ser então a metáfora do lugar gótico com sua estrutura labiríntica herdada dos fortes medievais.

Lembramos que essa segunda fase está bastante marcada historicamente pela industrialização, pela modernização das vilas que passam a ficar cada vez maiores e tornam-se cidades, pela dissolução dos vínculos sociais das pequenas comunidades.

Prungnaud (1997) acrescenta que a loucura passa a ser um atributo das grandes cidades com os loucos perambulando por suas ruas, aumentando assim o clima de terror e decadência. A paisagem caótica e o crescimento desenfreado da urbe tem em Paris e Londres colossais exemplos. O gigantismo da metrópole herda o aspecto selvagem que caracteriza o local da habitação gótica, fazendo com que ela desempenhe um papel central dentro da estrutura da narrativa. Esse gigantismo (que nesse caso é o da cidade) apresenta-se para Bassa e Freixas (1993) como um dos eixos temáticos primordiais da FC.

De acordo com Thomas (1988), a metrópole tem um lugar eminente dentro da FC, sendo tanto invasora e invadida e podendo se virar contra o próprio homem, sendo hostil contra seus próprios habitantes. A cidade é um elemento do triunfo distópico que está presente na maior parte dos textos de FC. ``La science-fiction, fidèle à son option pessimiste, prête volontiers à la ville des instincts destructeurs. Comme si la ville était un nouveau genre d'objet rebelle, animée d'hostilité qui l'a créée.'' (Thomas, 1988)

Por fim, segundo Prungnaud (1997), temos ainda o arquétipo da cidade morta, que perdeu o prestígio e agora inspira sentimentos nostálgicos. Essa cidade morta também pode ser vista em Blade Runner, com a progressiva fuga das elites para as colônias espaciais, a cidade fica entregue aos ``perdedores'', aos outsiders, às figuras do submundo, à violência, aos poderes paralelos como, por exemplo, os caçadores de andróides (blade runners). Essa cidade sombria constituída por dejetos e objetos de outras épocas em meio à tecnologia representa, para Gorostiza e Pérez (2002) o fracasso da razão, além de estar inserida em uma cotidianidade anômala, na qual os resquícios da destruição em um mundo distópico pós-guerra aparecem em forma de uma chuva ininterrupta.

Se analisarmos a cidade como elemento integrante da vida como pensavam os decadentistas, veremos que a metrópole e o desenvolvimento tecnológico caminham lado a lado. É por isso que, à medida que ela vai crescendo e se desenvolvendo, mesmo que de forma desordenada, sua importância vai aumentando exponencialmente dentro da FC, ocupando um lugar central no cyberpunk.

3  A metrópole no cyberpunk --- útero dos conflitos humano/não-humano

Segundo Bukatman (1993), uma questão que aparece muito freqüentemente na temática cyberpunk é a cidade modernista cedendo espaço ao não-lugar e, o espaço sideral da ficção científica do período clássico --- anos 30/40 --- dando lugar ao ciberespaço.


Even at its most conservative, cyberpunk thematizes an ambivalence regarding terminal existence. The works are correctives to the dystopian city-spaces of the present. Urban space and cyberspace become reciprocal metaphors --- each enables an understanding and negotiation of the other. (Bukatman, 1993)
No cyberpunk, a cidade aparece tanto como um parque temático, quanto uma simulação, combinando símbolos da era espacial de alta tecnologia com a visão vitoriana do crescimento desordenado e não planejado.

A cidade aparece como uma entidade negativa, um espaço escuro e superpovoado quebrado por formas de neon e estruturas corporativas, sendo claustrofóbica e monádica. Os detritos do passado reaproveitado misturam-se aos shopping-centers onde o tempo não parece passar8.

Bukatman (1993) explica que essa nova representação do espaço (seja a cidade, seja o ciberespaço) aponta para uma desorientação ou deslocamento de um mapa cognitivo para que o sujeito possa compreender os novos termos da existência na contemporaneidade.

Segundo ele, a cultura dominante é definida pela acelerada mudança tecnológica, especialmente eletrônica. Já para Bruce Sterling, que além de escritor cyberpunk, ``o novo modo do ser é o estado tecnológico da mente --- techno state of mind9''. (Sterling apud Bukatman, 1993).

Para ambos esse modo do ser possui uma aproximação entre a ficção e a teoria, tanto estilística quanto tematicamente. Isso possibilita uma associação entre esse estilo literário/visual com a estrutura comercial da cultura de massa, através da qual o estilo é difundido.

Bukatman (1993) afirma que a FC transforma nosso próprio presente em um passado determinado de algo que virá, o que remonta novamente à idéia de Roberts (2000) de que o gênero é extremamente nostálgico e romântico.

Nessa questão da nostalgia e do passado, podemos repensar e problematizar a relação entre os gêneros de FC e de estórias de detetives, que ressurgem com a New Wave e com o cyberpunk10. Segundo Rabke (1976), o fantástico ocupa um continuum ao longo do qual podemos colocar os gêneros de estórias de detetive e de FC, ambos se entrecruzam ao longo do caminho incluindo ou inserindo elementos que os caracterizam mais como FC ou como ficção de detetive.

Bukatman (1993) coloca nesse interstício entre os gêneros, o espaço urbano como o personagem principal. A cidade em suas diferentes percepções une ambos os gêneros. ``A set of motifs is shared by writers in both genres: a concern with models of social order and disorder; narrative structures based on perception and spatial exploration; and most significantly, a mapping of compacted, decentered, highly complex urban spaces. (Bukatman, 1993)

Tanto nas estórias de detetives noir quanto no cyberpunk os personagens precisam descobrir quem são, qual sua função dentro da narrativa e o desfecho final ou apela para o fantástico, como diz Rabkin (1976) ou mesmo para a tecnologia como uma espécie de magia do homem contemporâneo conforme nos indica Thomas (1988).

Ainda relacionada à questão dos espaços e distâncias (que pode ser a separação entre as pessoas, entre humanos e não-humanos, entre planetas, entre ambientes físicos e eletrônicos) está a definição da existência contemporânea, pois é nesse entre-lugar que se dá a configuração e a (re)construção da identidade e da memória, que, em geral, na literatura cyberpunk tem como mote a descorporificação11 como forma de transcendência (Fischer, 1996).

É dentro desse contexto que a cidade aparece como elemento definidor e central da existência humana. Tomando Blade Runner como exemplo destas questões geográficas, bem como da estética technoir12 na qual a cidade sombria e envolta no submundo apresenta-se como uma figura marcante no cyberpunk enquanto subgênero da FC, Bukatman (1993), complementa:
Blade Runner displays a bold and disturbing extrapolation of current trends: it is a future built upon the detritus of a retrofitted past (our present) in which the city exists as a spectacular site; a future in which the nostalgia for a simulacrum of history in the forms of the film noir (narrationally) and forties fashion (diegetically) dominates; a future when the only visible monument is a corporate headquarters.
O clima da arquitetura e da cidade obscura e noir da Los Angeles de 2021 de Blade Runner deve-se tanto a influência dos desenhos de Moebius, os quadrinhos da revista Heavy Metal e as construções do filme Metrópolis (Fritz Lang, 1927). Por sua vez, essa relação com a cidade e com a paranóia da sociedade urbana apresentada pelo filme influenciou obras posteriores como a Detroit decadente e cheia de criminosos de Robocop (Paul Verhoeven, 1987); a Tokyo do anime13 Akira (Katsuhiro Ôtomo, 1988) desenho animado japonês cyberpunk em sua estética; a iluminação da Gotham City do filme - (Tim Burton, 1989), e, como afirmam Gorostiza e Pérez (2002).

A cidade, assim como a catedral no romantismo gótico, também representa o feminino (não é mera coincidência que em inglês, francês, espanhol e em português ela seja um substantivo feminino), mas não mais no sentido da feminilidade como sagrado, como a santa, a mãe e a esposa. Nos domínios da ficção científica, há duas figuras da mulher que são dicotômicas e sempre presentes (Thomas, 1988). A primeira é a da mulher que precisa ser protegida, fértil, doce, a mesma que aquela metaforizada pela catedral. Já a segunda, aparece como noturna, maléfica, bárbara e perigosa, um tipo de ameaça ao poder masculino e que está prestes a desconstruir a vida, a identidade e a memória do homem, o protagonista em busca da verdade. Não é à toa que a femme fatale dos filmes noir reaparece na ficção cyberpunk sob diversas formas, e no caso, de Blade Runner ela aparece em sua duplicidade do mesmo desejo humano: as andróides Rachel e Pris.

A metrópole em sua feminilidade aparece no cyberpunk como uma mulher soturna, sombria, mal iluminada, ameaçadora e perigosa, em cujo útero foi gerado o espaço terminal (Bukatman, 1993) da existência humana e cujas vielas, ruas e construções abrigam seres híbridos, humanos e máquinas. Um útero no qual durante o romantismo gótico deu vida ao crescimento desenfreado e desordenado dos lugares, e a edifícios aterrorizantes constituindo um novo tipo de selvageria moderna (Prungnaud, 1997). Esse grande útero que é a cidade encontra-se na ficção cyberpunk, infectado pela tecnologia, necrosado e em vias de ser abandonado, tentando converter-se em dados, bytes, em informação pura a fim de transcender sua existência física para a ``alucinação consensual''14 chamada ciberespaço.
In a giant, empty, decaying building which had once housed thousands, a single TV set hawked its wares to na unhabited room. This ownerless ruin had, before World War Terminus, been tended and maintained. Here had been the suburbs of San Francisco, a short ride by monorail rapid transit; the entire peninsula had chattered like a brid tree with life and opinions and complaints, and now the watchful owners had either died or migrated to a colony world. (Dick, 1968)

4  Referências Bibliográficas

AMARAL, Adriana. Explorando as sombras da distopia philipkdickiana -- de como o cinema technoir legitimou o status cyberpunk de Philip K Dick. In: 404notfound, Ano 4, Vol. 1, n. 39, abril de 2004. Publicação do Ciberpesquisa - Centro de Estudos e Pesquisas em Cibercultura, ISSN 1676-2916. Editor: André Lemos. http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und/404_39.htm

BARRAL, Etienne. Otaku. Os filhos do virtual. São Paulo: SENAC, 2000.

BASSA, Joan, FREIXAS, Ramon. El cine de ciencia ficción. Una aproximación. Barcelona: Paidós.1a ed. 1993.

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BUKATMAN, Scott. Terminal Identity. The virtual subject in post-modern science fiction. 4 ed. Durham: Duke Universtiy Press, 1998.

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GOROSTIZA, Jorge, PÉREZ, Ana. Blade Runner. Estudio crítico. Barcelona: Paidós, 2002.

LOWY, Michael, SAYRE, Robert. Revolta e melancolia. O romantismo na contramão da modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

MADDOX, Tom. The wars of the Coin's Two Halves: Bruce Sterling's Mechanist/ Shaper Narratives. In: McCAFFERY, Larry. Storming the reality studio. A casebook of cyberpunk and postmodern fiction. London: Duke University Press, 6 ed. [1988] 1994.

PRUNGNAUD, Joëlle. Gothique et décadance. Recherches sur la continuité d'un mythe et d'un genre au XIXe siècle en Grande-Bretagne et en France. Paris: Honoré-champion. 1997.

RABKIN, Eric S. The fantastic in literature. New Jersey: Princeton University Press, 1976.

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TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1ed. 1980.

TOMÁS, Facundo. Formas artísticas y sociedad de masas. Elementos para una genealogía del gusto, el entresiglos XIX-XX. Madrid: La Balsa de la Medusa, 2001.

1
Jornalista e Mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM/ PUCRS na linha de pesquisa Tecnologias do Imaginário. Atualmente é Doutoranda em Comunicação Social pelo mesmo programa, onde está desenvolvendo tese sobre cyberpunk e a obra de Philip K. Dick. É bolsista da CAPES. Fez Estágio de Doutorado no Boston College, em Boston, Massachussets, Estados Unidos como bolsista do CNPq de setembro de 2004 a fevereiro de 2005.
Email: adriamaral@yahoo.com
2
As relações entre os contos góticos e o cyberpunk tem sido citados por diversos estudiosos da FC como Bukatman (1993), Roberts (2000), Dyens (2002) entre outros. Uma análise de como as temáticas presentes no gótico reaparecem na FC e, mais especificamente no cyberpunk está no artigo Espectros da ficção científica -- a herança sobrenatural do gótico no cyberpunk apresentado no GT Tecnologias da Informação e da Comunicação no XIII Encontro da Compos, em São Bernardo do Campo, junho de 2004.
3
No livro de regras de RPG (Role Playing Game) para a criação de um mundo cyberpunk chamado GURPS Cyberpunk --- A vida por um fio num mundo de alta tecnologia, podemos ter uma pequena amostra do ambiente no qual as estórias se passam: ``Cyberpunk é um gênero essencialmente urbano. É a respeito de cidades superpopulosas, com pessoas tão empilhadas umas sobre as outras que a privacidade praticamente não existe. Estas megalópoles podem esparramar-se por centenas de milhares de quilômetros quadrados, como um monstruoso pesadelo urbano carregado de tons sombrios de cinza. Imagine São Paulo com dez vezes mais pessoas, todas com pressa. E, embora haja um interior, pode não ser verde e agradável. Salvar as baleias? Esqueça. A última morreu já faz muito tempo. As pessoas estão mais preocupadas com seus próprios problemas do que com a extinção dos jacarés. A poluição é uma realidade.'' (Blankenship, 1993)
4
Como esclarece Todorov (1980): ``Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em contínua transformação.''
5
Em sua análise do gosto nos entreséculos XIX e XX, Facundo (2001) faz uma tentativa de compreender a cultura atual: ``Al dirigir la mirada sobre esse fructífero momento pretérito se parte necessariamente de un ponto de vista producido en el presente.''
6
``O pessimismo em relação às fronteiras da realidade, assim como as relações de poder e os elementos tidos como constitutivos do ser humano reaparecem, na forma de estórias violentas e sexualizadas, integradas à tecnologia e inseridos no cotidiano. Na NW, a questão da imortalidade é retomada a partir de uma angústia existencial que permeia as personagens em suas relações com a sociedade, as instituições, com a tecnologia e com os outros indivíduos. A NW foi um movimento extremamente criativo, entretanto, só tendo sido redescoberto e valorizado apenas na década de 80 pelas mãos dos escritores cyberpunks que veio em seu rastro.'' (Amaral, 2004)
7
Sobre o caráter romântico da cidade em Blade Runner: ``The city is sepia-toned and mist-enshrouded, a fully industrial and smog-bound expanse which yet retains, (...) some semblance of a romantic utopian impulse. (Bukatman, 1993)
8
A descrição da fachada de um prédio em Do android dreams of electric sheep? nos dá uma noção desse hibridismo arquitetônico: ``The Mission Street Hall of Justice building, onto the roof of which the hovercar descended, jutted up in series of baroque ornamented spires; complicated and modern.'' (Dick, 1968)
9
grifo da autora
10
Maddox ([1988] 1994) concisamente descreve as relações entre o movimento cyberpunk e a New Wave: ``Cyberpunk, science-fiction's new movement of the 1980s, continues the style and the spirit of the 1960s New Wave: literary, insurgent, comtemptuous of the genre's prevailing standards. As critics have remarked, however, the new writers, differ in not being repulsed by technology; rather, they use hard science and technology as the stone on which to hone their aesthetic edge''.
11
Fischer (1996) afirma que a aspiração medieval de vida eterna reaparece como temática na literatura cyberpunk, apresentando o corpo como elemento negativo a partir do desejo dos personagens de se transformarem em dados, a fim de não mais habitarem as cidades, mas sim o ciberspaço.
12
Sobre a estética technoir: ``O personagem atormentado em busca de respostas tentando desvendar um quebra-cabeças de sua própria identidade e o confronto homem-máquina são pontos centrais da obra de PKD e, de certa forma, também são as estruturas narrativas da FC enquanto gênero, que reaparecem na estética cyberpunk através dos filmes. Talvez por lidar com tais questões, essenciais ao gênero, Philip K. Dick tenha sido legitimado via película como predecessor de uma estética que é, ao mesmo tempo diferente e similar às estéticas anteriores: o tech-noir''. (Amaral, 2004)
13
A cultura otaku, dos nerds japoneses está intimamente relacionada com a cibercultura, o virtual e às questões tecnológicas. Nesse contexto, a estética cyberpunk está presente nos principais meios de comunicação, cultura e arte japoneses, principalmente, nos animes (desenhos animados como Akira) e nos mangás (histórias em quadrinhos). Barral (2000), explica essa influência distópica nos mangás: ``Os anos 80 são o reino dos cyberpunks: os autores de mangas preferem, em vez de descrever a espiral infernal que provoca a destruição total, concentrar-se na vida dos sobreviventes em um universo devastado e hostil.''
14
Conceito gibsoniano de ciberespaço. Ver em: GIBSON, William. Neuromancer. NY: Ace Books, 1984.