Sobre acontecimentos media made.
Uma revisitação do caso do Big Dan's (New Bedford, Massachusetts, 1983)

Onésimo Teotónio Almeida, Brown University

Em 1983, na cidade de New Bedford, Massachusetts - onde vive uma comunidade portuguesa, na sua maioria açoriana, que constituiu a maioria de uma população total de 100 000 pessoas - ocorreu num bar um caso de estupro colectivo, mais um crime de bas fond dos muitos infelizmente comuns nas cidades americanas. A transformação em caso nacional e internacional de um crime de bairro, resultante de uma cultura tradicionalmente machista como é a portuguesa - neste caso a micaelense, especificamente, pois eram emigrantes micaelenses os homens envolvidos - começou quando o jornal da cidade, The New Bedford Standard Times, relatou o incidente em parangonas, e em termos que só ao fim de um ano se não iriam em grande parte confirmar. Descrevia-se a violação por seis homens, durante duas horas, de uma mulher que parara num bar para comprar cigarros. O jornal falava ainda de uma dúzia pelo menos de espectadores que não só tinham presenciado, mas haviam mesmo aplaudido o drama. Tempos depois, um grupo de mulheres, lideradas por uma luso-americana, organizava um "cortejo de velas" chamando a atenção dos meios de comunicação social para o caso. O fogo alastrou-se sobremaneira quando, pela primeira vez na América, a televisão obteve licença de transmitir o julgamento em directo. Até então, nem fotógrafos podiam entrar no tribunal, apenas eram admitidos artistas que desenhavam os retratos que nos habituámos a ver na imprensa e na própria televisão (1)

Em Junho de 1995, o Forum Açoriano promoveu uma mesa redonda para revisitação do caso, na ocasião da passagem de um documentário sobre o mesmo realizado pela jornalista Diana Andringa. Pediram-me um comentário ao filme, de parceria com a Professora Adelaide Baptista e João Luís Medeiros; este, residente em Fall River, não pôde comparecer, embora tivesse enviado um texto expressando um ponto de vista muito próximo do que a seguir se apresenta (2).

Em vez de historiar todo o longo processo, projecto que ocuparia um volumoso livro, optei então, como agora aqui, por centrar a minha revisitação à volta de um tema, juntando simplesmente alguns documentos importantes que, no seu conjunto, reproduzem o essencial de algumas facetas mais importantes do caso. Abre-se assim o dossier com um texto enviado pelo autor destas linhas ao New York Times em Março de 1984:
 

Sobre a ética de acontecimentos media-made

O alegado caso de violação no Big Dan's em New Bedford, Massachusetts, dá-nos um exemplo pungente para análise do poder dos media na criação de eventos.
Os acontecimentos são na verdade construídos sobre uns quantos factos. No entanto, para se produzir um bom acontecimento media-made , é preciso ser-se selectivo. É preciso escolher-se apenas alguns dos factos, sem necessariamente os distorcer, já que têm de ser apresentados com relativa exactidão. Devem, porém, ser transpostos para outro contexto e, para ganharem força, devem ser usados ao serviço se uma causa imbuída de momentum.
Atentemos na história do "Big Dan's". Supostamente (e foi nesses termos que a divulgaram ao longo de um ano inteiro), seis homens violaram durante duas horas, sobre uma mesa de bilhar, uma mulher que tinha casualmente parado naquele bar para comprar um maço de cigarros. E, como se isso não fosse já suficiente mau, quinze homens, sentados num balcão, apreciaram e aplaudiram o espectáculo até ao fim.
A notícia era soberba. O caso a preto e branco da vítima inocente de vilões latinos, machos chauvinistas. O New Bedford Standard Times nem pestanejou. Tinha a notícia da boca da vítima. Logo a seguir, todo o país dispunha de um feio, mas belo exemplo, utilizável para propósitos vários, porque fornecia tanto protótipo como símbolo a todos os que se preocupam com a escalada da violência nos Estados Unidos; a feministas e outros defensores dos direitos da mulher; e, ainda, a observadores e analistas do nosso comportamento moral colectivo, alarmados perante a apatia e os crescente desinteresse e neutralidade das testemunhas de crimes.
Todavia, em New Bedford e nos arredores, aqueles que conhecem os bairros da cidade e a sua subcultura imigrante, desde o começo se interrogaram sobre os "factos" dos media e em breve tomavam conhecimento de uma outra versão dos mesmos. Expressou-se preocupação sobre tal discrepância, mas não em língua inglesa e, por consequência, não se fez suficientemente ouvir. Aliás, mesmo quando escutadas, as vozes que apresentavam o outro lado da história foram postas à margem como óbvios indicadores, ou de aceitação da liberdade do macho, o machismo típico da cultura portuguesa ("os portugueses são latinos, logo..."), ou de mera inversão de culpas, neste caso a culpabilização da própria vítima.
Jornalista após jornalista passou por New Bedford e reproduziu a história dos acusadores sem atentar na versão dos acusados. Nenhum deles permitiu que um só depoimento de alguém da comunidade viesse estragar com "factos" novos a notícia "perfeita" que levaria ao prelo as suas obras-primas jornalísticas.
Está neste momento a decorrer o julgamento. De seis, o número de alegados violadores desceu a dois, e já não se fala de violações sucessivas. As alegadas duas horas são agora quinze minutos. Em vez de inadvertida paragem para comprar cigarros, ouvimos que a mulher tomou várias bebidas e se ofereceu para pagar outras aos presentes. Ao que parece, não entrou só para comprar cigarros. A multidão de espectatores aplaudindo participativamente não é sequer mencionada. E crê-se haver mais na forja.
Mas este artigo não é uma tentativa de desculpabilização dos violadores, é simplesmente um esforço no sentido de se desmitizar um acontecimento construído pelos media. Se o caso Big Dan's é uma instância de violação, torna-se agora evidente que a verdade do que aconteceu difere muito do altamente inflaccionado relato até este momento divulgado pelos media. Segundo se apresenta nesta altura, trata-se de um feio caso de violação - como refere o advogado de acusação Raymond Veary, "uma história sem heróis" - mas, ainda assim, de modo nenhum merecedora da atenção nacional que tem recebido, especialmente em vista de todos os outros crimes que o país diariamente testemunha, incluindo os de natureza semelhante a este.
Muitos dos portugueses residentes nos Estados Unidos provêm das ilhas dos Açores - onde não há registo de violações em grupo. Um estafado cliché do Sudeste da Nova Inglaterra pinta-os como católicos tradicionais, trabalhadores e respeitadores da lei. Esta comunidade emigrante, com um exemplar historial público de decência, vê agora quotidianamente nos noticiários nacionais o seu nome associado a um modo de comportamento que, mesmo se fosse correctamente descrito (e não o é), de modo nenhum reflectiria a comunidade no seu todo - para mais tendo ocorrido num bem conhecido bar de má reputação, onde uma subcultura se estabeleceu contra a vontade dessa comunidade.
Mas de quem é a culpa? Quem deve ser responsabilizado por esta popularização de um único lado da história, promovendo o inexacto estereótipo de uma comunidade, num país pronto a acreditar que todos os latinos são machos chauvinistas (e portanto violadores potenciais), e onde a maioria dos seus habitantes até agora ignora o historial ético de tal comunidade, se não a sua própria existência,, precisamente porque ela nunca dá azo a notícias (por ser tranquila, embora activa, de presença modesta - virtudes que por sua vez são responsáveis por se ter deixado a notícia crescer sem medida, à mercê do poder devorador dos media)?
Para melhor se defender causas são necessários exemplos prototípicos, mas os media e os defensores dessas causas não têm o direito de criar tais exemplos só porque a sua potencial existência pode ajudar a causa x ou y. Os referidos grupos interessados têm, pelo contrário, a inegável obrigação de verificar os factos de que dispõem a fim de não imolarem vítimas em proveito da causa que defendem. Deve ser sempre assim e, muito particularmente, quando se trata de acontecimentos ocorridos em meios, culturas ou pequenos mundos, com os quais essses grupos não estão familiarizados. Quando a notícia parece demasiado "boa" para ser verdadeira, caveat: tomar cuidados extra.
Jornalistas e editores afirmam saber tudo isso. Os enganos acontecem, dir-me-ão. Mas poucos terão a coragem de vir pedir desculpas publicamente. É esta a natureza das notícias. E assim se fazem vítimas duplamente vitimizadas: como resultado das causas morais em voga, e da causa do jornalismo.


* * *

Este artigo, que se destinava à Op-Ed page de The New York Times, uma página aberta de opinião pública, não chegou a sair. Por duas vezes telefonei à redacção. Da primeira informaram-me que o texto estava agendado para breve. Uma semana depois voltei a telefonar. Disseram-me que era importante o conteúdo do artigo mas havia passado a sua oportunidade. Um já não sei que caso internacional ocupava agora a opinião pública e o espaço aberto do jornal (3). Simples confirmação, ao fim e ao cabo, do que o próprio artigo defendia.

No entanto, algum tempo depois, mais precisamente a 11 de Abril de 1984, The New York Times publicava um artigo de Jonathan Friendly intitulado "A imprensa de algum modo falhou no esclarecimento das notícias sobre os aplausos durante a violação de New Bedford". Aqui se reproduzem alguns excertos:

Alan Levin, repórter do New Bedford Standard Times, tentou descobrir quem tinha aplaudido. O mesmo fez Fred Bayles, repórter da Associated Press. Igualmente o fez ainda uma lista de outros repórteres de cadeias de televisão e de revistas e grandes jornais nacionais, enviados a New Bedford para escreverem sobre a noticiada violação em grupo no bar Big Dan's.
A imagem de um bar cheio de clientes a aplaudir enquanto uma mulher estava a ser violada foi o que tornou este acontecimento particularmente horrível e especial tema de notícia.
O cenário que emergiu do julgamento dos seis homens (4) que acabaram por ser condenados foi consideravelmente diferente e confirmou a versão fornecida pelos donos do bar três semanas depois do ataque /em oposição à que a imprensa noticiara de acordo com o relato da vítima/.
(...)
Em entrevistas, os repórteres disseram que se sentiram intrigados pela disparidade entre os primeiros relatos que começaram a emergir duas ou três semanas mais tarde. Mas acrescentaram que estavam tão atarefados cobrindo o desenrolar de acontecimentos como a prisão, as marchas de protesto e as tensões étnicas na comunidade, que tiveram pouco tempo para voltar atrás e tentar alterar a visão pública do que acontecera.
"As impressões iniciais são as que perduram", disse o Sr. Bayles.
Na mais calma atmosfera do julgamento a mulher reconheceu diferenças entre o seu testemunho e o relato que fez à polícia, mas disse que estava desnorteada na altura das declarações.


O texto do articulista do New York Times continua abrindo com o subtítulo "Relatos em erro":

Jornalistas e académicos entrevistados disseram que não conseguiam recordar-se de outro caso em que um tão crucial elemento da notícia, que tão fortemente influenciou a opinião pública, fosse subsequentemente reconhecido como falso.
(...)
Mr. Impemba /John M. Impemba, do New Bedford Standard Times/ diz que os repórteres tentaram entrevistar pessoas nos bairros vizinhos do bar, mas "a comunicação era difícil porque muitas pessoas com quem falámos não sabiam falar inglês."
Friendly, depois de reconhecer que três semanas após o crime o advogado do dono do bar já tinha negado a existência da claque de quinze a aplaudir, prossegue:
Mas a notícia tinha momentum e os repórteres estavam tão ocupados correndo atrás de novos desenvolvimentos que tiveram pouco tempo para se preocuparem com uma questão que estava de facto assente.

"É difícil reduzir a escala de uma notícia desde o momento em que ela atraíu a atenção nacional", notou Dudley Clendinem, repórter do New York Times, que escreveu o primeiro artigo-em-grande sobre o incidente e a cidade.

"Em reprospectiva, deveríamos ter sido mais específicos", disse David R. Jones, o director do noticiário nacional do New York Times. E isso apesar de o articulista frisar que o Times registou, no final do julgamento, a discrepância entre as notícias iniciais e o que foi apurado em tribunal.

Mesmo quando se tornou claro antes do julgamento que o relato inicial estava pelo menos aberto a questões, esse facto aparecia secundarizado no corpo dos artigos. The Los Angeles Times, num artigo do mês passado, quando o julgamento chegava ao fim, foi ao que parece a primeira grande agência noticiosa a chamar directamente a atenção para a discrepância.

John Katz, produtor e executivo do programa CBS Morning News, disse que o seu programa tentou abordar a questão da discrepância ao entrevistar Judith Lindahl, advogada de defesa. "Nessa entrevista, Mrs. Lindahl declarou que 'a história inicial foi de facto um opening statement (5) de um ano de duração que plantou na mente do público, dos jurados, uma visão do caso que simplesmente não era verdade."

Apesar da evidência, persiste a impressão de uma taberna cheia de espectadores-participantes, mesmo entre jornalistas que têm vindo a seguir o caso.

A CNN fez uma reportagem de várias horas diárias durante o mês de julgamento. Ao ser interrogado mais tarde sobre a razão por que achara o caso tão interessante / para ser televisionado/ Larry Motte, produtor executivo, citou a brutalidade do crime e o levantamento na comunidade.

"E, claro", disse ele, "havia a claque."

* * *

Após a leitura do artigo do NYT, o subscrevente deste texto enviou uma carta ao director do jornal que, tal como a primeira, não foi publicada:
 

Providence, 16 de Abril de 1984

Ex.mo Senhor:

Fiquei satisfeito, embora embasbacado, ao ver o vosso artigo / de 11 de Abril/ acusando a imprensa de ter falhado na execução de um bom trabalho no caso de violação no Big Dan's, e reconhecendo que os jornalistas nunca abordaram o facto de a história real ter sido diferente dos relatos iniciais.
Mas achei irrisória a explicação que deram os repórteres. Segundo o vosso artigo, eles "ficaram intrigados com a disparidade... mas estavam demasiado ocupados a cobrir o fluxo dos acontecimentos, tais como as prisões, as marchas de protesto e as tensões étnicas no seio da comunidade, para terem tempo de voltar atrás e tentar alterar a visão pública do que acontecera."
Isto é uma ultrajante mistificação. Se estivessem de facto ocupados dessa forma, teriam descoberto que a tal agitação na comunidade se devia precisamente à discrepância entre o que a comunidade sabia ser o caso e o que a imprensa estava fazendo dele.
Os repórteres (e eu falei com muitos) nunca quiseram ouvir nada que não fosse suficientemente apetitoso para uma notícia. As marchas de protesto foram só a culminância disto: uma comunidade absolutamente revoltada contra o que a imprensa fizera. Os media, porém, nunca quiseram inteirar-se da situação. (Eu fui testemunha!)
Um último aspecto: o vosso artigo declara que The Los Angeles Times foi o primeiro jornal de grande tiragem a chamar a atenção dos leitores para a mencionada discrepância. The New York Times poderia tê-lo feito muito antes. No dia 13 de Março (quando o julgamento estava ainda a decorrer), eu enviei para a vossa página Op-Ed um artigo intitulado "Sobre a ética dos acontecimentos media-made", frontalmente abordando esse mesmo tema e os comportamentos da imprensa neste caso. Foi-me então delicadamente respondido que a página tinha outros acontecimentos ligeiramente mais urgentes a tratar.
Agora, depois da imprensa ter ordenhado este caso até à última gota, alguns elementos da própria imprensa vêm dizer que esta se enganou. Nunca é tarde, não é verdade? Mas os danos sofridos pela comunidade portuguesa são irremediáveis.
 

* * *

Naturalmente que aos poucos o público se foi esquecendo do caso Big Dan's e era de esperar que mais cedo ou mais tarde, serenados os ânimos, alguém viesse revisitá-lo enfrentando os acontecimentos com o espírito crítico que faltou às reportagens em cima da ocasião. O inesperado é ter ele vindo de uma feminista que pretendia analisar o tratamento dado pelos media às vítimas de crimes sexuais na última década. O livro Virgin or Tramp, de Helen Benedict, é publicado em 1992 pela reputada Oxford University Press. A autora identifica uma tendência para rotular as vítimas de ou virgens ou lixo. Relativamente ao Big Dan's, porém, Helen Benedict confessa-se perante um caso com facetas bem diferentes das comuns. No balanço final do capítulo que lhe dedica, afirma:

Concordo também com Chancer / a socióloga Lynn Chancer / no que diz respeito a ser a imprensa indirectamente responsável pelo facto de os portugueses se terem revoltado contra a vítima. Sem repórteres nem porta-vozes portugueses, os jornais locais americanos foram incapazes de retratar a comunidade de forma não-estereotipada, bem como incapazes de ganhar a confiança da família e dos amigos da vítima de modo a representarem o seu lado. Como consequência, o caso foi polarizado em termos de media liberais americanos versus New Bedford portuguesa, o que provocou na população local um tal sentimento de injustiça que esta se voltou contra a vítima como bode expiatório. Isso não aconteceu inteiramente por culpa da imprensa, mas foi certamente exacerbado pelas suas falhas.
(...) /O/s media receberam muitas ccensuras em pós-análises do caso, algumas sem razão, mas muitas bem merecidas. Tendo em mente essas críticas, perguntei aos repórteres da história o que pensavam, em retrospectiva, da sua cobertura do Big Dan's.
Ellsworth, do /Providence / Journal, que é hoje advogada /.../ não ficou muito bem impressionada com os meios de comunicação não-locais: "Lembro-me do meu espanto perante a atitude superior e maldosa que tinham os repórteres não-locais relativamente aos réus. Em relação à vítima, também, mas antes de mais em relação aos réus... Às vezes não me era possível ouvir o que se dizia durante o julgamento porque esses homens e mulheres contavam piadas com ares de nojo. Pensei comigo: "Que hipocrisia! Aqui estão estes simpáticos liberais a fazer tanto barulho sobre o que aconteceu a esta pobre vítima, quando o que de facto pensam é que os réus são lixo, a vítima é lixo e isto é tudo um grande circo". Ellsworth acrescentou que achava que essa atitude de menosprezo não transpareceu nos artigos dos jornalistas, mas é possível que os portugueses sejam de outra opinião.
Estes, / uma outra jornalista/ que ainda trabalha para o Boston Herald, disse o seguinte sobre a cobertura do seu jornal: "Foi um período em que os nossos editores não tinham muitos escrúpulos sobre coisa nenhuma. Rupert Murdoch acabara de comprar o jornal. Agora está diferente, mas nessa altura tínhamos editores estilo Murdoch. Estavam a tentar marcar pontos e nenhum obstáculo os detinha."
(...)
Kukielski, do Providence Journal, disse /.../: "Gostaria que nessa altura o meu jornal tivesse analisado melhor as questões. Quando revejo o meu ficheiro, lembro-me de como a notícia disparou como um foguetão de tantas direcções diferentes. Gostava que tivesse havido mais oportunidade de pôr todas essas coisas em contexto."
A solução poderia ter sido encarregar alguém de fazer uma análise semanal da história. (...) Um/a tal analista poderia ter explicado os aspectos técnicos das acusações, os mitos relativos à violação, os métodos dos advogados, a história da discriminação contra os portugueses, e poderia ter fiscalizado o equilíbrio das reportagens. É possível que um olhar frio e exterior aos acontecimentos pudesse ter impedido os repórteres de tão injustamente se deterem no lado anti-vítima e de deixarem inflamar-se os seus preconceitos classistas contra os portugueses.
Charig, uma das repórteres "despretensiosas" que Ellsworth elogiou, tinha a dizer o seguinte sobre o caso Big Dan's e a sua cobertura: "Nunca vi um caso de que toda a gente tivesse saído tão magoada e tão desiludida... Fiz a cobertura de muitos casos julgados em tribunal e não me parece ter visto outro em que houvesse menos sentido de justiça. Foram tantas vidas destroçadas."


E Helen Benedict conclui assim o seu capítulo:

Como resultado, o Big Dan's não será esquecido. Revelou o cru avesso da sociedade americana - o conflito entre homens e mulheres, a suspeita generalizada em relação às vítimas, e o ódio recíproco entre americanos instalados e os que são vistos como estrangeiros, classe baixa, não-brancos, ou "o outro" - e revelou a forma como estes elementos podem seduzir e enviesar a imprensa.


Em face de tudo o que acima fica exposto, atrevo-me a alterar um pouco o título do filme de Diana Andringa. Além de "O caso de violação numa comunidade" (6), suponho que os dados atrás apresentados me dão razão suficiente para acrescentar: "...e o caso de violação de uma comunidade".

* * *

A demonstrar mais uma vez que os mitos não morrem, a cobertura jornalística surgida num jornal de Ponta Delgada resolveu ignorar completamente os factos que eu citara no meu comentário (7). Em vez de referi-los directamente, o jornalista respondeu-lhes repetindo o que estafada e apressadamente a imprensa foi sempre dizendo antes das autocríticas de The New York Times, Los Angeles Times e outros (8).

Face a mais uma enfadonha repetição de clichés, mas agora na própria terra natal da maioria dos manifestantes, enviei ao Açoriano Oriental a seguinte carta (9):
 

Ponta Delgada, 3 de Julho de 1995

Senhor Director:

A reportagem do seu jornal da sessão do Forum Açoriano dedicada à revisitação do famigerado caso de estupro colectivo há doze anos em New Bedford, Massachusetts, conhecido pelo "Big Dan's", inclui várias inexactidões, muitas delas importantes; mas, no seu todo, embora sem me citar directamente, deturpa o núcleo central da minha intervenção - o próprio título da reportagem é de uma afirmação por mim feita. Como o meu texto estava escrito e foi lido (aliás o único texto lido naquela sessão), não me é nada difícil contrapôr as minhas afirmações às da dita reportagem.
Não se tratou de uma acusação pura e simples da comunicação social americana. Li, sim, excertos de textos de autocríticas feitas a propósito do tratamento dado pela comunicação social americana. Não é todos os dias que o Los Angeles Times e The New York Times vêm a público reconhecer que empolaram um caso porque aceitaram como factos elementos posteriormente não comprovados. Nunca foi posto em causa tratar-se de um crime, mas sim haver razões para se armar com esse crime o circo que se lhe seguiu.
Julgo que os excertos que li são altamente eloquentes. Mais ainda, citei de um livro de uma feminista, Helen Benedict, Virgin or Tramp, publicado em 1992 pela Oxford University Press, uma série de críticas e autocríticas da parte de jornalistas e cientistas sociais dizendo mais ou menos o mesmo que os autores daqueles jornais. De propósito citei quase só mulheres, para acentuar que não se tratava de uma opinião enviesada pelo género. As jornalistas eram de jornais como o Providence Journal e o Boston Herald. O livro de Benedict procura analisar o tratamento dado pela comunicação às vítimas de estupro e acaba por conceder que, no caso do Big Dan's, é compreensível que a população se tenha revoltado contra a comunicação social.
Foi isso que eu disse, foram textos a demonstrá-lo que li, mas nada disso se depreende ou imagina ao ler-se a reportagem do Açoriano Oriental. Por isso me vejo obrigado a vir fazê-lo pessoalmente.
Uma última nota sobre a frase final da reportagem do A. O - ("Nada garante que nos Açores actuais não venha a acontecer um caso de violação como o do Big Dan's; o que ele provavelmente nunca será é defendido pela população.") Primeiro: Uma afirmação destas revela que o jornalista continua sem entender os motivos que levaram a população à rua e isso foi lá explicado sem a reportagem dar sinal disso. Segundo: Dá para pensar se aqueles milhares de portugueses, na sua maioria açorianos e de São Miguel, emigraram para a América idos da Lua.

Grato pelo espaço que me dispensará, cumprimenta-o cordialmente o

O. T. A.


O jornalista respondeu repetindo as suas posições, mas acrescentando esta informação espantosa:

A jornalista Diana Andringa foi bem clara ao declarar que havia conseguido uma declaração em "off the record" de um dos homens que se encontrava no bar enquanto a violação se desenrolava, dizendo que com ele estavam bastantes mais pessoas.


Espantoso, de facto, porque o que o tribunal não conseguiu apurar, nem os jornalistas Alan Levin, do New Bedford Standard Times, ou Fred Bayles, da Associated Press (nem tantos outros, como revelava The New York Times), consegue-o uma jornalista portuguesa apenas com um telefonema anónimo que ela supôs ser de uma testemunha de crime, sem disso ter nenhuma prova, dado que a pessoa não se identificou. Mas, ao que parece, para o jornalista do A. O. trata-se de prova apodítica (10).

Contrariamente ao que supunham os organizadores do Forum Açoriano, ainda é cedo afinal para termos a capacidade de olhar este caso na nudez dos seus factos e sem as paixões ideológicas das vagas ou vogas em curso. Mas aqui ficam ao menos estes documentos para a reflexão daqueles que, através dos media portugueses, não receberam mais do que a repetição papagueada do que entreteve durante um ano os media americanos (11).

Num ciclo de colóquios sobre os media realizado na Brown University com personalidades da cena nacional, Howard Kurtz, do Washington Post, criticou os media por serem "demasiado vagarosos na admissão dos seus erros". Comentando a atitude da imprensa no caso Donald Trump, Kurtz afirmou que "a imprensa estava tão enfronhada na parte sexy da história que se esqueceu de que se tratava de um desastre financeiro" (12). E mais adiante: "Somos excelentes na cobertura de crises, a chegar a um banco depois de ter sido assaltado, e a desaparecer depois em busca da calamidade seguinte." (13)

Raras vezes, porém, alguma da melhor imprensa americana voltou tão cedo como neste caso em auto-crítica. O significado de tal reacção é, por si, eloquente.
 


1 Ainda hoje, nem máquinas fotográficas nem câmaras de televisão são autorizadas nos tribunais federais.

2 "O tristemente famoso caso "Big Dan's": Uma disputa em família?" Açoriano Oriental, 1 de Julho de 1995. João Luís Medeiros é um ex-deputado à Assembleia da República, hoje a viver em Fall River.

3 Enviei então o artigo para a Columbia Journalism Review, que soube preparava um úmero especial sobre "Ética e Comunicação Social". O pretexto da revista para não publicá-lo foi bem mais plausível: "(...) Em vista do facto de o NY Times  ter (embora tardiamente) examinado o mito da multidão que aplaudia, parece-me que deixarei passar a oportunidade de publicar o seu texto - tanto mais que o nosso número de Maio/Junho já está na impressora e o seu texto só poderia sair em Julho." Assinava a carta Spencer Klaw, Director. (19 de Abril de 1984)

4 Sic, mas foram quatro.

5 Declarações lidas tanto pelo advogado de acusação como pelo advogado de defesa no início de cada julgamento.

6 O filme de Diana Andringa pareceu-me muito equilibrado na atenção que deu aos diversos pontos de vista. Mas ao utilizar repetitivamente, como autêntico leitmotiv , na abertura e fecho de cada parte, cenas de uma violação ocorrida no filme The Accused, com a actriz Jodie Foster, acabava deixando reforçada na mente do telespectador a ideia de que o mesmo (ou muito semelhante) se passou no Big Dan's. Ora quem seguiu o julgamento pela televisão sabe que não foi assim.
 O filme The Accused pretendeu ficcionalizar o caso do Big Dan's, mas nunca fez qualquer referência aos portugueses porque o Portuguese-American Congress fez pressão junto da Warner Brothers, e usou de todas as influências ao seu alcance para que o filme desligasse as comunidades portuguesas do crime. O que a Warner Brothers decidiu por bem não fazer fê-lo porém a jornalista portuguesa.
No final do debate com Diana Andringa, durante o qual a jornalista confessava estar de acordo com a minha posição, lamentando apenas que eu não estivesse do lado das mulheres que desfilaram contra um crime, disse-lhe que era exactamente essa a nossa diferença. Eu achava bem que as mulheres lutassem contra o machismo, mas não deveriam servir-se de um caso como aquele, em que havia tanta sujeira de todo o lado e nada justificava que as feministas o "limpassem" das facetas inconvenientes para a sua posição, a fim de alcançarem os seus objectivos. "É um caso demasiado sujo de parte a parte" - expliquei. Aí, Diana Andringa concordou.
Uma outra ficcionalização foi levada a cabo por Greg O'Brien na Boston Magazine, que acabou sendo um relato ficcional do ponto de vista da vítima em que o autor deu largas à sua imaginação, nem por isso deixando de situar localmente o acontecimento: "Rape in New Bedford". Vol. 75, nº8 (1983). Na secção "Cartas ao Director" da mesma revista publiquei tempos depois  o seguinte comentário crítico: "Rape in New Bedford," by Greg O'Brien /August/, was astonishing, not in content but in what it revealed about Boston Magazine's journalistic standards - not bad compared to the National Enquirer, with one exception: the Enquirer does not pretend to do anything but the trashy yellow journalism that makes quick bucks. (Vol.75, nº11, 1983. p. 13)

7 "A violação de uma comunidade", Açoriano Oriental, 1 de Julho de 1995.

8 Houve outros, de facto, e a vários níveis. O meu grosso dossier inclui um artigo de uma mulher, Anita Kostecki, "Pointing the Finger: Portuguese Identity and the Big Dan's Rape Case", na revista feminista Cleavage - The Brown Undergraduate Journal of Women's Studies, que, após expressar que os violadores mereciam ser castigados pelo que de crime houve no seu acto, termina com as seguintes afirmações:
 "Creio, contudo, que a comunidade portuguesa teve razão em protestar contra o tratamento que recebeu, como grupo étnico, das mãos de outros indivíduos. O crime foi sensacionalizado pela imprensa em resposta aos desejos do cidadão médio americano (...). O crime foi mantido a uma distância "confortável" do mainstream da cultura americana, através de uma associação com um grupo minoritário. Os homens e mulheres americanos brancos puderam voyeuristicamente fruir dois papéis indesejáveis. Mas este voyeurismo e conforto aconteceu à custa da identidade da comunidade portuguesa e do seu brio étnico. Como disse um participante na demonstração: "Não me importa se esses indivíduos estavam inocentes ou culpados; o que dói é o que este caso fez à minha gente." Vol. 1 (Primavera 1987), p. 22.

9 Publicada em 5 de Julho de 1995.
 No artigo atrás mencionado,  João Luís de Medeiros lembrava que, durante o primeiro trimestre de 1983, foram comunicados às autoridades de Massachusetts 62 casos de crime de estupro, sendo 12 considerados gang rape, ou seja, estupro colectivo. O articulista termina assim a sua revisitação do caso:
"Mas eis que houve o grande falhanço táctico. Em 1983, aparentemente, ninguém conseguiu traduzir, numa linguagem socio-culturalmente clara, as intenções dos manifestantes: "Não ao estupro - sim à justiça".
 Para o americano médio, ficou no ar uma dúvida tremenda acerca dos propósitos dos manifestantes. Afinal, os imigrantes portugueses estavam contra ou a favor do estupro?
 E foi isso também que muitas da companheiras intelectuais do nosso grupo étnico, quiçá doutrinadas no fervor emocional do seu militantismo contra o "machismo" doméstico que reclamam conhecer bem - foram elas, afinal, que se recusaram a observar e a compreender a realidade total, com a sabedoria, a coragem e a tolerância requeridas a quem, como sói dizer-se, na ânsia de cortar a árvore, largaram fogo à floresta..." Açoriano Oriental, 1 de Julho de 1995.

10 A resposta continha ainda outras afirmações desinformadas e de compreensão deficiente de realidades que não vem para aqui esclarecê-las.

11 Na altura dos acontecimentos publiquei n'O Jornal um artigo em que procurava pôr água na fervura tentando fornecer alguns dados dos acontecimentos que não apareciam nas reportagens da imprensa portuguesa (O Jornal, 29-3-1984 e 11-5-1984). Joana Godinho respondeu-me com "O direito de dizer não", como se eu alguma vez tivesse negado à vítima o direito de dizer não. O meu texto ("Contra argumentos não haja factos"), juntamente com uma resposta à jornalista ("Ainda o caso do Big Dan's e as sucessivas confusões"), vêm incluídos em L(USA)lândia - a Décima Ilha (Angra do Heroísmo: Secretaria Regional dos Assuntos Sociais/ Direcção de Serviços de Emigração, 1987), pp. 171-178.
 Joana Godinho vivia nessa altura na Carolina do Norte, a duas horas de avião de New Bedford, e seguia os acontecimentos pelos media. Como aliás fazia também o jornalista do Açoriano Oriental.

12 Howard Kurtz, "The Vigilant Press: A Love-Hate Relationship", in America's Media: Are They Out Of Control?, Actas de um colóquio realizado na Brown University entre 27 de Fevereiro e 9 de Março de 1995 (Providence, RI: Brown University/Providence Journal, 1995), p. 10.

13 Idem, p. 11.