Breves contributos para uma ecologia da imagem

Comunicação apresentada nos V Encontros Culturais da Escol$ Castelo Branco,  Maio de 1999

José Carlos Abrantes, Universidade de Coimbra




Nos últimos anos da minha vida profissional tenho vindo a ocupar-me, de modo muito próximo, das imagens e das relações que com elas estabelecemos. Esta preocupação resulta, em primeiro lugar, de exigências curriculares da Licenciatura em Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde lecciono desde 1994/95. Deriva também de uma constatação, socialmente partilhada, de que a imagem, nas suas múltiplas manifestações, ocupa, entretém, aliena, seduz, polui, informa, decide, transforma, educa. Poderemos dizer de outro modo:

A imagem "mexe" com o universo pessoal e social.
Contribui fortemente para a vida económica das sociedades modernas.
É objecto de estudo e de construção teórica.
Congrega mas divide as famílias.
Ajuda e perturba os professores.
Fascina alguns artistas mas decepciona outros.
Produz-se com tecnologias das mais elementares às mais aperfeiçoadas.
Está no centro das atenções de profissionais de todos os tipos: professores, investigadores, jornalistas, políticos, médicos, juristas, desportistas, designers, operadores de informática.

A imagem consubstancia polémicas  sobre questões essenciais que preocupam o homem desde sempre. O que é verdade? perguntamos frequentemente à imagem. Basta lembrar os programas desportivos de domingo à noite: aí se decide se a bola entrou ou não na baliza, se a falta foi mesmo penalty ou se o jogador agrediu ou não o seu colega de competição.  Mas se tomarmos outras imagens, por exemplo de telenovela, a situação é semelhante: interrogamo-nos sobre se o protagonista vai manter o casamento ou se vai optar pelo divórcio, se o desentendimento entre dois rivais vai ter consequências trágicas ou não. Outros vezes interrogamo-nos sobre o bem. Terá sido eticamente sustentavel a perseguição dos "papparazi" a Diana?
Será que temos que pactuar, no espaço público, com grandes cartazes publicitários anunciadores de serviços eróticos? Ainda uma terceira  questão: o que é belo, perguntamos às imagens. E pensamos que, para vermos imagens belas, mais vale recolhermo-nos no escuro de uma sala de cinema ou no recato de uma exposição. Esquecemos que o cinema foi, no seu início, um espectáculo de feira pois a intelectualidade não lhe reconheceu imediatamente direito de cidadania. verdade/mentira, bem/mal, beleza/fealdade eis algumas das bipolaridades que a imagem consubtancia.

O nosso universo está repleto de imagens. O nosso pensar passa pelas imagens. O nosso sentir não as ignora. O nosso agir habituou-se a lidar com elas. Uns acham-nas necessárias, outros excessivas, outros ainda supérfluas.

Tal como existe uma ecologia do ambiente que pretende sobretudo prevenir os estragos ambientais, favorecer o desenvolvimento equilibrado do ambiente e das sociedades humanas, parece legítimo defender a necessidade de uma ecologia da imagem que previna, que balize, que oriente, que sustente pensamentos, modos de estar e de ser que partam da imagem, que confluam na imagem. O mesmo é dizer: pensamentos, modos de estar e de ser que partam e confluam nas pessoas que as fabricam, que as consomem, que as transformam. " O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens" (Débord, 1972). Ora se esta ecologia é necessária na vida social dado o peso da televisão na vida quotidiana, não custa concluir que a ecologia da imagem precisa da escola, como da escola precisam o português, a segurança rodoviária ou a matemática, para citar apenas exemplos de todos conhecidos.

Ocupar-se-à a escola actual da imagem, das imagens?
Todos os professores sabem que se ocupam de imagens.
Ocupam-se das imagens mentais que os alunos trazem quanto atravessam os portões das escolas, preocupam-se com as imagens mentais com que os alunos saem dos portões das escolas. E sabem que essas imagens se relacionam com conceitos, com as aprendizagens, mas também com exemplos humanos, com valores.

Ocupam-se também, por acção ou omissão, da imagem da escola que a comunidade constrói, da imagem dos professores que os parceiros da escola interiorizam. Numa obra que coordenei pude escrever na introdução: "Sabia que uma aluna de uma escola de Setúbal ganhou um prémio de excelência em Tóquio, por ter imaginado um invento para um jardim infantil?
Acredita que uma professora de uma escola de Elvas foi a Chicago apresentar um projecto sobre a Rota do Café na sua cidade, numa reputada conferência internacional sobre ambiente?

Imagina que um livro, de excelente recorte gráfico, foi feito a partir de um trabalho de uma escola de Lisboa, tendo envolvido alunos (e alguns avós!) na recolha de informação?" (Abrantes, 1994). Ora mesmo que os professores saibam da existência desta e doutras iniciativas a imagem social da escola aparece frequentemente desvalorizada. Existe aqui um primeiro terreno óbvio, urgente, para a intervenção da escola e dos professores.

Mas se as imagens mentais são um primeiro território onde se cruza o esforço diário dos professores, quer na sua interiorização individual e de grupo, quer na sua construção social, outros existem não menos urgentes. As imagens atravessam o quotidiano dos alunos, dos professores, dos cidadãos. Que imagens? As imagens dos manuais escolares, as que publicitam os produtos de que temos mais ou menos necessidade, as imagens de informação, de desporto ou ficção que as televisões fazem passar ininterruptamente,  as imagens inteiramente fabricadas nos computadores que não existem em lugar algum da realidade, as imagens médicas que ditam a nossa saúde ou a nossa doença.

Como deve a escola ocupar-se da imagem, destas imagens?
São múltiplos os pontos de entrada para a ecologia da imagem ter contributos da escola. Limitemo-nos a considerar seis eixos possíveis de orientação.

Primeiro: a melhor compreensão da imagem passa pelo contexto da sua fabricação, pelo entendimento da sua génese, da sua história e das suas estórias.

Segundo: a relação da imagem com quem vê implica uma forte atenção à representação, aos modos de representar a
realidade.

Terceiro: são múltiplos os olhares que se forjam na relação de quem vê com o que é visto.

Quarto: A  imagem provoca no olhar humano tranformações radicais por causa dos dispositivos técnicos que as fabricam e dos efeitos de transformação crítica que estes têm com os modos de ver.

Quinto: agir sobre as imagens é uma tarefa importante para os tempos de hoje.

Sexto: a cultura visual pode ser um dado positivo que marcou e marcará fortemente o século que estamos a ajudar a chegar a termo.

Olhemos mais de perto cada um dos elementos sumariamente avançados.

Primeiro: a melhor compreensão da imagem passa pela noção de contexto, passa pela história e pelas estórias das imagens. Reflectir sobre as imagens, na escola, na formação, implica ter em conta a sua história, o contexto da sua construção, as narrativas que encerram.

Olhemos para um exemplo da pintura, para Velasquez e para o seu quadro, As tecedeiras (1644-48). Trata-se de uma imagem que parece representar, com verdade, dois mundos em confronto: no plano mais próximo de quem vê está uma cena de trabalho, as tecedeiras que trabalham no seu atelier; no plano mais afastado, um conjunto de pessoas com porte senhorial dão-nos a sensação de um outro mundo, o mundo da corte de então: quatro senhoras ricamente vestidas apreciam uma tapeçaria, poder-se-ia dizer. Nas aulas de Teoria e História da Imagem costumo fazer ver e fazer falar os alunos sobre esta imagem. É raro alguém ter informações precisas sobre ela. Mas, convidados a sobre ela se expressarem, acabam por referir inúmeros dos seus traços essenciais: a oposição entre o trabalho e o ócio, o dispositivo cénico que sugere, a tensão que dela emana ou a ideia de um conflito que dela parece desprender-se, o ambiente mais escuro do plano próximo e e o cenário mais iluminado do plano mais afastado, os gestos grandiloquentes dos personagens mais longínquos, a simplicidade dos gestos dos trabalhadores e assim por diante. Mas há informação que não pode ser obtida por simples dedução, pelo visionamento da imagem e da sua descodificação. Esta repousa no conhecimento mais pormenorizado de factos, de contextos. Por exemplo, que na época, em Espanha, a indústria da tapeçaria estaria em declínio pois os espanhóis, enriquecidos pelo ouro que chegava das Américas, passaram a comprar panos na Flandres e na Inglaterra; que, nessa época, a maior aspiração de um espanhol era ser hidalgo e ser hidalgo significava duas coisas: não trabalhar e não pagar impostos. Um hábito que parece ainda hoje ter sequelas e não só em Espanha. Em Burgos em 1591 havia cerca de 3 300 chefes de família mas contribuintes só eram cerca de 500. Os pintores nessa época pagavam um imposto, a alcabala, que em Castela era 10% e a ele se opunham, não tanto pela quantia a desembolsar, mas por essa imposição os equiparar às profissões artesanais, como os carpinteiros e os oleiros. Velasquez vive uma tensão, então frequente entre os artistas, de quererem elevar e distinguir o seu trabalho de criação daquele que provinha dos artesãos, do trabalho manual. Velasquez não tinha de início um estatuto muito elevado na corte pois tinha o mesmo salário e tratamento dos barbeiros do rei (90 ducados por ano e um fato)  e nas corridas de touros sentava-se na 4ª fila, ao lado dos bobos e dos lacaios dos nobres. Velasquez precisava de um complemento de ordenado  e ocupava então o cargo de curador ajudante do mobiliário real. O pintor decorava as salas do palácio com as tapeçarias existentes nos depósitos, escolhendo aquelas cujos temas se adequavam às cerimónias. Estas escolhas e os cuidados de reparção a que as tapeçarias eram votadas permitiu ao pintor o contacto frequente com estes ateliers e com as tecedeiras. Foi seguramente aí que Velasquez encontrou parte da inspiração para esta pintura. Esta obra afasta-se das pinturas majestosas do autor e é, segundo um crítico de arte, um dos quadros mais antigos de trabalhadores e dos seus locais de trabalho.   Representa de facto os dois mundos entre os quais o pintor se movia: os artesãos que trabalhavam para a corte e a corte onde era o retratista do rei Filipe IV. A obra parece assim ter um cunho realista no sentido de procurar retratar um quadro da realidade do tempo em que o pintor viveu. Mas essa interpretação parece pouco provável dadas as tendências eruditas vigentes então na corte. Reserva que parecem confirmadas pois o quadro aparece inventariado como tendo pertencido a um nobre da corte e nesse inventário o nome que aparece é a Fábula de Aracne. Velasquez inspira-se pois no 6º livro das Metamorfoses de Ovídio onde se descreve que Aracne (rapariga com o braço branco) desafia Palas (inventora da roca de fiar e aqui representada pela mulher disfarçada) para uma competição. Aracne perde e é transformada em aranha. No plano superior 4 figuras femininas ( a escultura, a arquitectura, a pintura e a música) rodeiam a Deusa Pallas. Neste quadro há ainda a cópia de um pormenor de  um quadro de Ticiano, O rapto da Europa, datado de 1562. O quadro de Ticiano retrata também um episódio de Ovídio e da referida fábula: Aracné, em plena competição com Palas, tece uma serie de tapeçarias a primeira das quais mostra o rapto de Europa por Zeus, disfarçado de Touro. Assim esta imagem tem um claro sentido alegórico, representando o triunfo das artes sobre o pesado esforço ligado ao trabalho artesanal. E se ainda fosse preciso acrescentar pormenores  que expliquem por um lado o contexto da época e da criação da imagem, e por outro lado, a possibilidade de comparação com épocas recentes, eis um último: o momento em que abandona  a corte Velasquez queixava-se que esta lhe devia ordenados que teriam ficado por pagar entre 1630 e 1634... O quer mostra que, se a história não se repete, vai gerando inquietantes semelhanças.

Nesta imagem há pois contextos que explicam, enriquecem, motivam, ancoram digressões na história, na geografia, nos hábitos do viver social, na estética própria que a imagem consubstancia. Compreender os percursos de construção das imagens, quando isso é possível, é conquistar outra compreensão da época, da própria imagem, de nós próprios que temos de nos situar face às problematizações que a informação acrescida nos coloca.

Segundo: A relação de quem vê com a imagem vista atinge níveis mais complexos de compreensão quando quem vê pensa as imagens como representação e não como um véu transparente que nos mostra o mundo tal qual ele é. A imagem é sempre uma construção e ter consciência dessa construção pode representar uma mais valia individual e social.

As imagens arrastam em nós ilusões. De facto, esquecemos quase sempre que a imagem não é a realidade, mas a sua representação. Ao contrário das palavras as imagens têm algumas propriedades das coisas. Nas imagens podemos ver cores e formas que existem no objecto. A palavra tem uma relação arbitrária, convencional com a realidade. Urge por isso compreender que a imagem, mesmo se muito fiel á realidade, consubstancia sempre um olhar particualr sobre o objecto representado. Segundo Gombrich a imagem contém sempre um lado espelho e um lado mapa. O lado espelho é o lado da analogia, da mimesis. O lado mapa é o lado das convenções, é o lado das linguagens que a representação em imagem sempre utiliza em maior ou menor grau. É tarefa de quem educa dar a conhecer estes dois aspectos que podem ser claramente vistos numa fotografia datada de 1839. Numa vista do Boulevard du Temple tomada por Daguerre, tudo se pode ver com uma tal nitidez que espanta Samuel Morse, então em Paris. Tudo menos o movimento (Delpire e Frizot, I, 1989: 12). De facto, só o que não mexe tem registo. Nenhuma pintura ou gravura pode pretender aproximar-se a este resultado, escreve Morse à família, pretendendo assim dar a ideia da objectividade essencial da fotografia. " A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua objectividade essencial, tanto assim que se chama precisamente "objectiva" ao conjunto de lentes que constituem o olho fotográfico substituto do olho humano. Pela primeira vez, entre o objecto inicial e a sua representação, apenas se interpõe um outro objecto. Pela primeira vez também, uma imagem do mundo exterior se forma automáticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um determinismo rigoroso. A personalidade do fotógrafo só entra em jogo pela escolha, a orientação, a pedadagogia do fenómeno e por muito visível que esteja mna obra final, não figura nela na mesma qualidade que a do pintor" (Bazin, 1992:17).

Paradoxo: apesar desta objectividade essencial a imagem que estamos a ver retira à representação fotográfica uma das características primeiras do mundo físico, a do movimento. Nesse conhecido daguerreótipo tudo fica registado, excepto o buliçoso movimento das carruagens e pessoas que o longo tempo de exposição não deixa registar. O único sinal humano é o homem que engraxa os sapatos, mesmo assim não fielmente reproduzido, pois as partes do corpo que se movem não foram também registadas com perfeição. A técnica, fonte de objectividade, reproduz, por um lado,  com extrema fidelidade, por outro não consegue captar o movimento, característica essencial da vida humana.  Na carta de Morse este refere: "Nulle peinture ou gravure ne peut prétendre s'en approcher [...]; en parcourant une rue du regard, on pouvait noter la présence d'une pancarte lointaine sur laquelle l'oeil arrivait à peine à distinguer l'existence de lignes ou de lettres, ces signes étant trop menus pour qu'on puisse les lire à l'oeil nu. Grace à l'aide d'une lentille puissante, dirigée sur ce détail, chaque lettre devenait clairement et parfaitement lisible, et il en était de même pour les plus miniscules brèches ou fissures sur les murs du bâtiment, et sur les pavés de la rue." (Delpire e Frizot, I, 1989: 12). Morse explica depois que, pelo contrário, os objectos em movimento não deixam qualquer traço.

É frequentemente assim com a imagem: há aspectos que são idênticos à realidade, outros que dela se afastam. Seja pela técnica, seja pela codificação, seja pela linguagem utilizada. Poder-se-ia dizer: há mas neste caso existe uma limitação técnica (o elevado tempo de pose) que determina a transformação de uma realidade em movimento numa imagem sem vida, sem o cheiro da vida citadina que os homens criaram. É verdade mas as limitações e as potencialidades técnicas impregnam as representações.

Vejamos outra fotografia, esta de Man Ray e de 1930. Cem anos se passaram sobre a fotografia de Daguerre. O grande plano, de início ausente na fotografia e no cinema começara a ganhar popularidade. Mas com muitas reservas pois os espectadores desconfiam, criticam, não acham natural que uma cabeça possa caminhar sem o corpo e sem as pernas.
Olhamos para esta fotografia e compreendemos que a sua grande beleza deriva de uma construção: olhar apenas um pormenor é algo que tem a ver com um olhar parcelar, dirigido, concentrado, permitido por uma prótese da visão humana, a das lentes. Compreendemos que a força de uma lágrima pode ser evocado com mais força a parir de um grande plano do que através de um plano geral, em que a lágrima se dilui no conjunto da pessoa fotografada. Neste caso trata-se, não de uma restrição técnica que modifica o objecto na sua representação, mas de uma potencialidade técnica com o mesmo resultado. Mas essa potencialidade dá outro sentido às lágrimas e aos sorrisos.  Vejamos mais dois exemplos. esta fotografia é de Paul Almasy. Retrata uma camponesa da América-Latina. Mostra uma realidade, uma mulher com um peso aos ombros, peso que a verga, um rosto tisnado de trabalho. Mas  o peso que carrega é "mais pesado" por causa do modo como o fotógrafo actuou: a fotografia foi tirada em picado, ou seja de um plano superior, e isso faz com que a personagem seja "esmagada" pela escolha técnica e narrativa escolhida pelo autor. Não é só a realidade que conta: o modo de a representar é decisivo.

Atente-se agora nesta outra imagem. Foi tirada no Chateau de Versailles, numa recepção e, obviamente, para além de significar uma realidade social muito diferente, é também uma fotografia que é tirada segundo a técnica oposta, ou seja, um contra-picado. O fotógrafo está em plano inferior e tal posição valoriza os personagens. Ainda uma última fotografia do mesmo autor. Aqui a técnica é diferente, basta o enquadramento, basta escolher uma pequena parte do conjunto social que está representado, para nos dar um contraste muito definido. Desigualdades sociais na América-Latina foi a legenda que acompanhou esta imagem num catálogo. Vemos um camponês que vai entregar os impostos ao senhor da terra. Os contrastes estão completamente evidentes,  quer pelo modo como as pessoas estão vestidas, quer pela separação que é dada pelo tampo da mesa, mas é importante chamar sobretudo a atenção para o enquadramento que, ao escolher uma pequena parte da realidade vista pela fotógrafo,  consegue criar uma representação de um todo social, de uma visão estética de um conflito. Mostra parte de duas pessoas, mas representa um drama de um continente ( a América Latina), simboliza algo do tamanho do mundo e da sua história (as desigualdades). Algo semelhante pode ser visto nesta  célebre fotografia de Man Ray (figura 5), que se chama Lágrimas  e que é um grande plano. Este enquadramento, muito preciso sobre um aspecto da pessoa, um aspecto muito particular, neste caso apenas o olho, mas também uma pequena lágrima que corredando um toque sui generis a esta fotografia e mostrando como a representação é uma construção feita,  embora elaborada a partir da realidade.

Terceiro: são múltiplos os olhares que se forjam na relação de quem vê com o que é visto.

Nos estudos de comunicação ficou conhecida uma teoria de que os efeitos dos media seriam imediatos, funcionariam tal como uma seringa que injectaria o seu conteúdo no interior do corpo humano. Essa visão mecanicista e que atribuía aos media um poder sem limites começou a ser desmentida por investigações começadas no decurso dos anos 50. Um investigador que esteve recentemente entre nós - Elihu Katz - pôs em relevo o papel dos leaders de opinião como filtros entre os media e as pessoas. Outros questionamentos vieram tornar complexa a ideia da influência unilateral dos media. A teoria do agenda setting, por exemplo, veio sustentar que os media não modelam o que pensamos sobre as coisas, mas definem uma agenda a partir da qual discutimos uns com os outros: a guerra da Jugoslávia, o despedimento de Souness ou a nova liderança do PSD são assuntos sobre cada um de nós tem uma opinões pessoais, mas todos os discutimos pois a agenda dos media colocou tais assuntos na agenda de discussão de cada um de nós com os outros e com nós próprios. Ou seja, os media não nos diriam o que passar mas propor-nos-iam uma incessante agenda sobre assuntos sobre os quais vale a pena discutir.  Nos anos 70, Stuart Hall chamou a atenção para a oposição codificação/descodificação e para o conceito das significações preferenciais que as mensagens televisivias procuram induzir. Hall estabeleceu sobretudo a ideia de que nós, espectadores, descodificamos segundo três grandes modelos: uma posição dominante hegemónica, ou seja, as audiências apropriam a significação preferencial oferecida pelo texto; uma posição negociada, posição que é uma mistura de adaptação e de oposição aos códigos dominantes  e, por último, uma posição de oposição, quando o significado preferencial é compreendido, mas reconstruído por quem vê, a partir de concepções, atitudes e valores alternativos. Muitas outras contribuições  como as de Roland Barthes (Mitologias)  e de Umberto Eco (A obra aberta e Os limites da Interpretação) levaram afinal a que hoje se tenha banalizado a pergunta: As imagens existem sem o olhar?

Alguns de entre vós sabem que a SIC passou um conjunto de fotografias intituladas As 100 fotos do século. Num desses programas passou um fotografia relacionada com o massacres de 1994 no Ruanda. Duas mulheres de costas uma para a outra olham dezenas de fotografias expostas no interior de uma tenda branca. São mães que viram os seus filhos desaparecidos no turbilhão dos massacres e dos movimentos dos milhares de refugiados. Um organismo internacional, já com experiências semelhantes noutros casos, fotografou essas crianças desaparecidas para os pais e familiares. Esses familiares passam no interior das tendas e tentam reconhecer os seus. O fotógrafo conta que o olhar destes africanos não reconhece facilmente a imagem na fotografia. "Tirei a fotografia a mim próprio e pergunto às pessoas que procuram os seus familiares: Conhece esta pessoa?" O fotografo revela a sua perplexidade. Muitos dizem nunca ter visto aquele senhor, ali presente junto a eles. Nos reconhecimentos alguns familiares ao verem o rosto próximo entram em pânico: as fotografias,  de tipo passe, induzem-nos a crer que os seus foram barbaramente esquartejados, pois apenas resta a cabeça.As tendas são julgo que cinco onde as fotografias foram repitidas. Segundo um depoimento é na 4ª ou 5ª tenda que se verifica o maior nº de reconhecimentos depois de uma habituação visual aos rostos fotografados. Parece assim que ver implica alguma informação prévia, alguma adaptação aos códigos de representação.

Ver uma imagem é investir um olhar, mas os olhares são construídos culturalmente.  Cada olhar esconde um ser, um modo de estar, modos de pensar. Por isso, o que é visto, varia de pessoa para pessoa. A série Dallas que passou entre nós foi objecto de uma investigação no inicio dos anos 90 (Katz e Liebes). Nela se demonstrou que as comunidades de recepção judias e árabes não tinham o mesmo modo de interpretar JR, e seus acólitos, antes os separavam profundas diferenças. Essa diversidade é um forte motor da leitura  de imagens na escola. A diversidade de leituras pode levar a comportamentos de escuta do outro, das suas razões, do seu percurso a dar significação a elementos que nos deixaram indiferentes.

Vejamos aqui também um exemplo. Numa aula com um pequeno grupo de alunos de um mestrado, mostrei esta imagem (trata-se de uma fotografia de Sebastião Salgado da reportagem sobre a Serra Pelada) e pedi a cada pessoa para escrever uma palavra sobre ela. As verbalizações foram as seguintes

esclavagismo (m)
escravidão (h)
desumanidade (m)
luta (m)
sofrimento (h)
trabalho (m)
extracção (h)
ajuda (h)

Ora nenhuma das palavras se repetiu nas 8 verbalizações, embora escravidão e esclavagismo se possam considerar sinónimos. O facto mais saliente é porém um dos leitores ter verbalizado com a palavra ajuda, explicada pelo facto de se ver uma mão que parece sugerir companheirismo, proximidade, solidariedade. A atenção sobre este pormenor deu coerência a uma leitura que, compreendendo embora o significado preferencial, faz um percurso alternativo nos elementos escolhidos. Isto significa que individualmente investimo-nos no que olhamos. Mas também socialmente. Raramente nos damos conta que os nosso olhos são diferentes dos olhos daqueles que nos antecederam e serão seguramente diferentes daqueles que nos vão continuar.

A perspectiva renascentista pôs o homem no centro do mundo, os pintores do renascimento procuraram m a ilusão que nos aproxima da realidade (Krauße, 1995: 6-13). A procura dessa ilusão é reflexo de escolhas estéticas e provoca um usufruto estético sobre quem vê. Provoca outras vezes perturbação em quem vê: Veronese foi chamado à Inquisição por ter pintado criados e cães, pouco representados até então. Respondeu aos seus interrogadores: "Pinto o que vejo". Esse "pintar o que vejo" estava em contradição com as práticas anteriores, muito centradas na perspectiva hierárquica, que dava apenas lugar ao que era importante e atribuía maior relevo visual aos elementos mais valorizados nas representações das épocas precedentes (por exemplo, Cristo, os santos, os reis eram geralmente representados em tamanho maior do que outros personagens).

No romantismo, os pintores usam estéticas que obrigam o espectador a investir os seus sentimentos, a sua cultura, na leitura das obras (Krauße, 1995: 56-64). O século XX deu origem a estéticas novas provindas do cinema, da televisão, da cultura de massas em geral, da imagem virtual, das performances artísticas. Hoje são bem claros estes movimentos, demasiado evidentes para que neles seja preciso insistir.
 

Quarto: A  imagem provoca no olhar humano tranformações radicais por causa dos dos dispositivos técnicos que as fabricam e dos efeitos de transformação crítica que estes têm com os modos de ver.

Na altura da descoberta das lentes para os microscópios e dadas as diferenças de polimento e fabrico dessas mesmas lentes, a própria incidência da luz na plaqueta provoca imagens diferentes no sujeito que vê. Ou seja, há dúvidas e discussões não só porque o que é visto nunca fora visto dessa forma (ver gravura de Robert Hooke, de 1665 - Sicard, 1998: 67-84) como também o que cada microscópio vê pode ser diferente de aparelho para aparelho ou de situação para situação.  Reflexões que questionam o acto de ver, que obrigam a  movimentos de pensamento sobre a relação do que é visto com o mundo. Discussão que não está terminada e mesmo se tornou mais premente pelos novos dispositivos de visão do mundo de hoje. Jean Pierre Meunier interpelou-nos nas conferências da Arrábida, em 1997, sobre o "God's view" e o nosso "point of view", sobre a oposição entre o objectivismo e o experiencialismo. Questões que têm toda a pertinência em relação às imagens mentais que fabricamos sobre (com) o mundo, mas que os dispositivos técnicos mediadores, entre a nossa visão e a realidade, amplificam de forma gigantesca.Habituámo-nos a acreditar que o golo existiu a partir da imagem que não existiu como registo directo da realidade. Habituámo-nos a considerar que o ponto de vista da câmara fotográfica era melhor que o nosso olhar, que o ponto de vista múltiplo da filmagem de vídeo (mais tarde o ralenti e outras manipulações da imagem) nos davam um retrato mais fiel do que o produzido pelos acontecimentos. Estamos agora a deixar que a imagem virtual (que não é uma imagem no sentido indicial de Bazin) nos diga sobre o que é verdade e o que não é. Estamos no coração de um movimento epistemológico gerado pelo papel da imagem pois ligámos irremediavelmente o nosso modo de ver a dispositivos técnicos fabricantes de imagens, como a fotografia, o computador e a televisão.  E esses dispositivos geram em nós modos de ver com os quais depois questionamos o que vemos. Numa ida um jogo de futebol, marcou-se um golo. Atràs de mim um rapaz perguntou: "Pai, então agora não se vê outra vez o golo?"

Quinto: agir sobre as imagens é uma tarefa necessária, irrecusável, inadiável sob pena de uma passividade crescente nos espectadores.

De que se trata? Trata-se de fabricarmos as nossas próprias imagens, de transformarmos as que nos são propostas por outros, de aproveitarmos as potencialiddaes técnicas do video e dos computadores para mexermos nas imagens como mexemos no texto. Lemos, incorporamos, citamos. Fazemos um texto nosso com as nossas ideias e usando os textos dos outros. Assim também devemos fazer com as imagens, logo pelo uso do telecomando e pela intervenção nas imagens que passaram a poder modificar-se no seu interior (A Máscara, por exemplo). Nalguns ateliers video ou de imagem virtual os jovens retiram grande prazer dessa possibilidade de intervir sobre a imagem, modificando-a. E hoje as tecnologias permitem essas modificações (morphing, por exemplo), um mundo de acções a partir das imagens. Serge Tisseron, que entrevistei recentemente, declarou-me a propósito dos jogos video: "Eu digo sempre aos professores que é preciso que aprendam a tratar as criaturas de video como plasticina numérica".

Sexto: a cultura visual pode ser um dado positivo que marcou o século que estamos a ajudar a chegar a termo.

Em primeiro lugar poderemos identificar um movimento de transformação dos nossos conhecimentos associado às imagens. O aforismo "uma imagem vale mil palavras" pode querer significar esta transformação que gera em nós uma simples imagem vista. A imagem didáctica de um corte de um motor de explosão leva-nos rapidamente de um ponto  do conhecimento a outro.

Galileu percebeu que a lua não era um objecto plano  pela observação cuidada através da sua luneta. E esse movimento individual de conhecimento associado à imagem pode ter também representação colectiva: o "olhar aumentado" da luneta teve efeitos num tempo mais rápido, foi objecto de uma apropriação socialmente mais alargada que o "olhar aumentado" pela lente do microscópio. (Sicard, 1998, ). A lembrar-nos que os movimentos cognitivos que as imagens geram se situam em certos contextos históricos e culturais que lhes condicionam ou expandem a força interna.

Por último uma interrogação: como estão as imagens a influir na cultura de massas? Tema controverso, fruto de contributos contraditórios, analisado amiúde, teve recentemente um desenvolvimento interessante.

Estamos a ficar mais inteligentes por causa das imagens, esta é a opinião de um reputado investigador, Ulrich Neisser, da Universidade de Cornell. Numa investigação publicada na revista American Scientist, encontra-se a descrição do problema e o estado de reflexão sobre ele (Neisser, 1997). De que se trata? Nas décadas mais recentes, tem-se verificado uma subida dos níveis de resposta aos testes de inteligência: nos últimos 50 anos o QI "subiu" 15 pontos  nos EUA, e 21 pontos, em 30 anos, na Holanda. Há muitas hipóteses explicativas para esta subida. Uma delas seria uma maior aptidão para a  resolução dos testes, hoje banalizados. Mas outras explicações são possíveis:  seria plausível que as populações se tivessem tornado mais inteligentes, devido a melhoria da alimentação, a maior escolaridade, a diferentes atitudes dos pais das crianças e jovens em idade escolar. Segundo o autor do artigo, embora cada um destes factores tenha a sua importância, nenhum pode ser a chave explicativa desta evolução positiva. A hipótese mais verosímil é muito interessante e repousa nas mutações culturais ligadas ao acto de ver. Até por que os ganhos mais significativos nos testes se verificam numa sua conhecida componente visual, a matriz de Raven.

O investigador considera que a mudança mais significativa ocorrida no ambiente intelectual do século XX foi a exposição aos media visuais (fotografia, cinema, televisão, video, banda desenhada, cartazes, imagens virtuais...), que teriam criado ambientes icónicos progressivamente enriquecidos, levando a que os jovens dediquem mais tempo aos projectos visuais que as gerações anteriores (diminuindo porventura o tempo dedicado às competências outrora mais desenvolvidas como o "tradicional", mas sempre necessário,  ler, escrever e contar).  Ora, segundo Neisser, nós não olhamos apenas as imagens, também as analisamos. E, sendo assim, é possível admitir que a exposição a ambientes  visuais cada vez mais complexos esteja a produzir melhorias significativas numa forma específica de inteligência, qualificada como "análise visual". Esta tese viria confirmar uma ideia desenvolvida entre os especialistas (entre os quais o mais saliente será Howard Gardner, que esteve entre nós em 1998) segundo a qual existiriam diferentes formas de inteligência que repousariam em diferentes tipos de experiência. Ainda segundo Neisser esta constatação poderia significar que estamos mais "espertos" que os nossos avós no domínio da análise visual, o mesmo não acontecendo quanto a outras formas de inteligência.  O que a ser verdadeiro, não deixa de ser um bom desafio para pais e professores, para escolas e universidades, para jornalistas e cidadãos. É que os jovens ( e os outros cidadãos) não esperaram pelo estudo de Neisser e foram progressivamente mergulhando no mares da imagem, sem as ajudas e orientação a que a sua condição lhes dá direito.
 

Bibliografia:
 

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BARBOZA, Pierre, Les nouvelles images, Paris, Éditions d'art Somogy, Cité des Sciences et et de l'Industrie, 1997.

BAZIN, André, O que é o cinema, Lisboa, Livros Horizonte, 1992 (1ª edição em francês, 1945).

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