Orlan do outro lado do espelho

Eunice Gonçalves Duarte

Introdução à problemática do corpo

Orlan/Orlon

O corpo para Orlan

Relação com o espectador

Orlan no contexto da arte contemporânea

Lucros e dinheiro

Conclusão

Notas

Bibliografia

 

Introdução à problemática do corpo

«Os mais cuidadosos, hoje, perguntam: “Como se há-de preservar o homem?” Zaratustra, porém, é o primeiro e único a perguntar: “Como se há-de superar o homem?”»
Nietzsche 1

Como se pode superar o homem? Como superar os seus limites e aumentar a capacidade física e intelectual?

Quando Nietzsche, através de Zaratustra, propôs esta superação, a solução seria o super-homem [Übermensch]. O homem que tinha morto o ser divino que condicionava o seu livre arbítrio e se tinha colocado no seu lugar. Em suma, deixa de ser a criação para passar a criador. É possível esta transferência de poder criativo? Vejamos: talvez tenham sido Mary Shelley e o seu Dr. Frankenstein os primeiros a aventurar-se nesta área e não tardaram a criar um monstro, não uma criação perfeita que pudesse superar o homem mas um ser monstruoso. Foi isso motivo suficiente para que não se fizessem mais experiências? Não! Pelo contrário, desde o inicio do século que de teses escritas se tem passado a acções práticas: a busca de um novo ser perfeito.

Actualmente, estamos no meio da revolução tecnológica, que é considerada tão importante e influente como a Revolução Francesa de 1789.Criou-se um novo real ou, segundo a consideração de Baudillard, um “hiper-real”; e isso, só por si, é uma mudança brutal. Para um novo real será necessário, então, que o ser humano esteja devidamente apetrechado com todos os instrumentos necessários para a transição de realidade. É altura de se evidenciarem como cyborgs2. Não se pretende com isso transformar os homens em seres saídos da “Guerra das Estrelas”, mas sim provar que actualmente já somos cyborgs

Donna Haraway, no seu «Manifesto for Cyborgs», prova que a utilização de “próteses”3 tão simples como relógios ou óculos faz com que já sejamos cyborgs e não simples humanos. Vai ainda mais longe ao dissertar que a criação de cyborgs totais (apenas máquinas) poderá dissolver os problemas da discriminação feminina, por superarem a actual relação entre dominados e dominantes.

É certo que esta visão de Donna Haraway, além de estar carregada de um forte feminismo, é explorada de modo puramente político. No entanto, traz para a nossa consideração algo que apenas poderíamos imaginar numa outra dimensão.

Se considerarmos desde quando o homem utiliza próteses, concluímos que terá sido desde que se apercebeu que teria de sobreviver; para caçar, não podendo utilizar as mãos, socorreu-se de próteses; para cultivar teve de usar outra prótese, e assim por diante… Todos os dias nos socorremos de uma série de próteses, sem as quais já não podemos passar, e às quais o nosso corpo se adaptou, pedindo novas próteses, mais potentes e mais eficazes. Sendo assim, se elas passam a deixar de ter o estatuto de prótese e nós deixamos de ser só “criação de Deus”, então o cyborg é possível!

Com novos conceitos surgem novas dúvidas: “É possível viver e ter sensações (desejos) com essas próteses? Ou são apenas adaptações mortas?”

Allucquére Rosanne Stone4 desenvolve uma série de estudos onde prova a possibilidade de se sentir a prótese como sendo a nossa carne, sejam próteses cirúrgicas ou tecnológicas. E cada vez mais se exploram novas próteses tecnológicas e a maneira de as adaptar ao corpo humano; próteses tecnológicas que nos dão acesso ao espaço virtual.

A realização de desejos e fantasias passa a ser conseguida através destes novos simulacros. Num ciberespaço onde parece não haver limites nem repressões, o ciberindivíduo sente-se constantemente tentado a explorar a liberdade que lhe é permitida e faz experiências; muda de sexo, de cor, de estatuto social, etc.

Já não se trata da tal inteligência artificial usada em benefício do humano mas sim da tecnologia como forma de extensão do corpo.

Mais do que o corpo obsoleto de Stelarc ou o corpo sem órgãos de Deleuze, a substituição da carne (órgãos) por outros materiais e mecanismos parece cada vez mais possível e não apenas utopia.

Por que razão se quererá acrescentar próteses e mudar a carne?

A ideia de corpo é uma invenção da modernidade que aparece como substituto da alma. Desde Platão que carne e alma estão separadas e assim ficaram durante a Idade Média e o cristianismo. A carne surge sempre associada ao conceito de pecado, a um ser terrestre, mortal, logo associada ao que é mau. Por outro lado a alma acabou por ser colocada ao nível do divino, sendo uma das possibilidades de, após uma vida terrestre mortal, ascender a uma vida celestial (ou não) imortal, a esta ideia associam-se as ideias de inferno e céu5. Os pecados da carne seriam punidos com o fogo do inferno, quem se deixava vencer pela carne não merecia herdar o “reino dos céus” e muitas das vezes esses pecados terrestres eram punidos na terra por seres de “carne e osso” impiedosos. De uma cultura que respeitava o corpo, associado à beleza e à saúde (Grécia) entra-se num cerco apertado que esconde a carne e a deixa apodrecer.

Com a destruição da ideia de alma, devida à crise niilista, surge a ideia de corpo como liberto de alma ou de carne; assim temos uma espécie de segunda pele independente da matéria. Já que os conceitos se separam, por que não uma separação também física? Mas o corpo e a imagem produzida por ele não são facilmente desfragmentados pela nossa cultura, já que este passou a ser considerado como propriedade, a única propriedade6.

A carne sim, corre o risco de ser substituída, já que é na carne que reside o que não se pode vencer, a doenças, os vermes, a morte das células, etc., por isso deve ser substituída. Deleuze propõe uma alteração à função natural dos órgãos a fim de se obter uma nova unidade ou multiplicidade, onde o organismo, ou a “organização orgânica dos órgãos”, é o verdadeiro inimigo. Uma organização obrigada a seguir regras de articulações e sedentarismo. As problemáticas não ficam por aqui; para além do questionamento da imagem produzida do corpo, da consideração da carne como matéria a substituir, há ainda a considerar a relação dessas imagens com o poder político. Através de meios ortopédicos de controlo da sociedade, as ligações do corpo fazem dos utilizadores uma espécie de marionetas, cobertas de ligações invisíveis que tornam o sujeito facilmente manipulável. Claro está, ao abalar estes conceitos do corpo abala-se também todo o pensamento ocidental hierarquizado em torno deste. O que fazer com a substituição da carne, já que esta precisa de véus ou máscaras para esconder a fragilidade da matéria com que somos constituídos e para criar cada vez mais essa invisibilidade de fios que nos ligam à cultura e a sociedade? Prevê-se que essa cobertura passa a ser apenas uma imagem no virtual, no simulacro e na representação. Procura-se um corpo sem carne, sem imagem e sem semelhança de Deus onde a evolução continua por entre outro espaço, que não o físico. Isso não invalida o corte definitivo com qualquer ligação; antes, segundo Bragança de Miranda, existe sempre um fio que liga um corpo à vida que nem por “batota” consegue ser cortado. “O corpo é um feixe de ligações” e ao cortar-se o fio com o biológico faz-se outra ligação: a eléctrica. Esta última ligação pode apresentar-se como mais perigosa.

Lifeforms de Merce Cunningham e Ghostcatching de Bill T. Jones são dois exemplos onde o corpo sem carne actua num espaço indefinido e mágico, onde não existem suportes para a colocação dos pés ou dos braços ou do corpo, não existe diferença entre chão e tecto, o estar em cima ou em baixo. Numa exploração do espaço possível, em Lifeforms as figuras delineadas saltam de um ecrã para outro ficando por momentos em lado nenhum. Nesse espaço o corpo assume formas e posições de difícil execução para qualquer bailarino experiente.

Trata-se de performances virtuais onde a matéria não entra em acção. Embora sejam uma representação da imagem do corpo, não existe uma violência directa sobre a carne nem uma tentativa de substituí-la em prol de uma performance, de uma superação dos limites da criação artística, da adaptação a novas ferramentas de trabalho para um corpo perfeito ou seja para que motivo for. A carne sofre actualmente as maiores atrocidades possíveis e o sujeito cai numa antropofagia, aprovada pela sociedade que o rodeia. Mas o que acontece ao corpo que altera a sua própria matéria como forma de escultura e performance? Assistimos a uma desmaterialização da arte para esta se materializar no corpo do artista?

Agindo impiedosamente sobre a carne, Orlan executa as suas performances cirúrgicas, chamando para si toda a atenção dos media. Segue-se uma pequena dissertação sobre esta artista que levou muitos dos especialistas da área a interrogar-se sobre a autenticidade das suas intenções artísticas.

 

Orlan/Orlon

“J'ai donné mon corps à l'art”
Orlan

Não é uma afirmação mas o titulo de uma performance. Uma das muitas performances coreografadas, preparadas e realizadas por Orlan durante a Reincarnação de St. Orlan

Em 1977, “O beijo da artista” (Le baiser de l'artiste) causa polémica com a simulação do seu corpo como uma máquina automática de vender beijos; o utilizador colocava a moeda do respectivo valor numa pequena ranhura que a artista usava ao peito e esta recompensava-o com um beijo. Este foi o ponto de partida para uma mulher que 6 anos antes se havia baptizado com o nome artístico de St. Orlan7, ao “mascarar”-se com materiais como o vinil e a pele. Encena a vida dos santos em forma de performance integrando fotos, colagens, vídeos. Esta incarnação centrava-se na denúncia da hipocrisia da sociedade tradicional na forma como tratava a imagem feminina, colocando-a sempre entre a santa e a prostituta.

Influenciada pela obra de Duchamp e pelas correntes revolucionárias do Maio de 68, Orlan trabalha performances blasfémicas onde o seu corpo encarna e molda diferentes personagens, numa espécie de retratos vivos das acções que se passam. Uma gravidez extra-uterina fez com que fosse operada de emergência; através de uma anestesia local, pôde ser espectadora da sua operação como se a parte do corpo a ser operada não lhe pertencesse8. Montou uma única câmara na sala de operações e assim que a primeira cassete terminou foi enviada de imediato para o Centro de Arte Contemporânea de Lion para ser exibida, numa performance quase em simultâneo. Mas foi só pelo seu 43.º aniversário, em 1990, que fez a primeira de nove operações da performance Reincarnação de St. Orlan9. Através de acessórios e cenários vários tinha representado as suas esculturas e performances; agora Orlan passa a esculpir na sua própria carne, agindo impiedosamente sobre ela através de operações plásticas. Não seriam operações normalizadas feitas à porta fechada, mas sim sob a forma de performance mediática e ensaiada onde se mistura música, literatura e dança. A sala é decorada de acordo com uma cenografia específica e os figurinos são feitos por costureiros famosos, numa mistura do barroco, grotesco e kitsch. Cuidadosamente estudada e estruturada, começa pela desconstrução da imagem mitológica feminina, construída através da história da arte. Assim concebeu um retrato feito com o nariz da escultura de Diana, a boca de Europa de Boucher, a testa da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o queixo da Vénus de Botticelli e os olhos da Psyché de Gerome. A escolha de cada uma destas personagens tem uma razão específica: não foram escolhidas pela sua beleza artística ou pelo facto de serem mundialmente conhecidas mas pelo seu peso histórico e mitológico que as tornou parte da história e cultura ocidental. A escolha de Diana deve-se a esta ser a deusa da caça, agressiva e aventureira, que não se submetia aos homens, Psyché devido à sua necessidade de amor e de beleza espiritual, um oposto a Diana, Europa por esta ter olhado para outro continente e se ter aventurado num futuro desconhecido, Vénus pela sua caracterização mitológica como deusa do amor, da fertilidade e da criatividade, e Mona Lisa pelo mistério e pela lenda de que este é um auto-retrato do pintor.

Cada performance é registada em fotos e vídeos e a partir de certa altura começa a ter transmissões em directo, via satélite, para todo o mundo. Os espectadores podem telefonar para a artista colocando as mais diversas perguntas, sempre com um estilo diferente. Ao misturar estas personagens mitológicas faz surgir uma personagem híbrida que não procura a beleza ou a juventude; ao escolhê-las Orlan não deseja entrar para o livro de recordes em operações plásticas nem sequer ser parecida com as personagens, como é acusada pelos vários meios da comunicação da especialidade. Elas são uma inspiração pelo seu contexto histórico e pelo seu valor representativo.

Os textos constituem uma parte importante nestas performances, já que estas são feitas com base em textos filosóficos, psicoanaliticos e literários de autores como Antonin Artaud, Michel Serres, Eugenie Lemoine-Luccioni, Alphonse Allais, Elisabeth Betuel Fiebig, Raphael Cuir, Julia Kristeva e ainda textos hindus em sânscrito. Tudo é feito pela artista de maneira consciente já que as anestesias são dadas a nível local e não geral, o que lhe permite gerir o que se passa à sua volta assim como os materiais que registaram a sua performance para futuras exibições. Orlan, tal como qualquer artista, toma uma certa posição em relação a uma ideologia artística que quer ver materializada.

A sua posição artística não é contra as intervenções plásticas mas contra os padrões de beleza e o domínio destas ideologias que se entranham cada vez mais na carne dos homens e das mulheres. Orlan explica que com a idade se tende a estranhar a aparência no espelho; algumas pessoas não aguentam essa ideia e as operações plásticas são sem dúvida a melhor solução, numa sociedade que valoriza e idolatra a juventude. As operações plásticas não são naturais ao corpo humano, assim como outros medicamentos e cosméticos utilizados, que acabam por ser assimilados como “extensão” e se tornam necessários à sobrevivência.

“Dei o meu corpo à arte” e é na arte que ele ficará, já que pretende doá-lo a um museu após a sua morte, mumificado ou moldado com resina, sendo a peça mais importante de uma instalação vídeo interactiva. De momento Orlan dedica todos os seus esforços para que seja reconhecida judicialmente a sua nova identidade relacionando-a com a sua nova imagem.

O corpo para Orlan

“This is my body, This is my software.”
Orlan

Bragança de Miranda classifica o corpo como um feixe de ligações prejudiciais à nossa vontade. Já para Deleuze e Guattari o corpo é uma unidade uniforme. Orlan afirma que o seu corpo é o seu software, esta é a sua frase de apresentação, como se se tratasse de um cartão de visitas. O corpo é uma espécie de bolsa onde está a matéria que permite a Orlan trabalhar sobre ele tornando-o uma metamorfose. “Este corpo é obsoleto”, diz, “não está preparado para a velocidade exigida hoje em dia e cada vez mais exigida”.

Quando da sua pesquisa e preparação para a Reincarnação de St. Orlan, consultou um psicanalista que ao saber o que iria fazer lhe disse que iria cometer um suicídio, proibindo-a de prosseguir o trabalho, afirmando que este tipo de mudanças no corpo através de operações plásticas deve apenas ser utilizado em situações de ausência do orgânico ou então em caso de acidente e não para práticas de metamorfose artística. Ao reformular estas noções e ao explorar as novas possibilidades de actividade artística faz dessas performances um “ready-made”; assim como Duchamp readaptou objectos quotidianos e John Cage fez do silêncio música, Orlan faz de operações plásticas a sua obra.

Para alguns críticos o seu corpo é a sua obra de arte final mas para a artista não é o resultado final que importa, e sim esse ritual de passagem que faz em cada performance. Da discussão de valores que são abalados e que surgem em torno das questões por ela colocadas, acrescenta ainda que na sua vida a relação com os outros não depende do seu corpo mas do contexto e das histórias produzidas pelo seu corpo.

Esta foi a primeira e única artista a utilizar as operações plásticas como performance10, designando o seu trabalho como «Carnal Art»11, um auto-retrato feito com o uso de tecnologias avançadas que lhe dão a possibilidade de ter o corpo “aberto” sem sofrimento e ver o seu interior. As suas ideias e conceitos artísticos encarnaram na carne o valor do corpo na sociedade ocidental e o seu futuro nas gerações vindouras face ao avanço tecnológico e às manipulações genéticas. O confronto entre esta fragilidade do corpo e o avanço tecnológico é a base de todo este trabalho, isto é, saber como eles se podem relacionar ou se o tecnológico acabará por prevalecer sobre o biológico.

Na continuação deste trabalho, pensa em operar o seu nariz, aumentando-o tanto quanto possível anatomicamente. O seu trabalho não desrespeita o seu corpo, pelo contrário denúncia a sua fragilidade e a decadência que mais tarde ou mais cedo todos acabamos por notar.

Relação com o espectador

Além das imagens mitológicas que Orlan adaptou para a sua reincarnação, as suas performances12 têm uma aproximação muito forte ao espectador.

As tragédias gregas, pelo seu carácter de rito e de representação da vida de personagens mitológicas, emocionavam plateias, fazendo-as reagir como se fosse real o que se passava em cena. A barreira que separava o real da ficção era quase inexistente, com excepção do espaço físico onde decorria a acção, os anfiteatros gregos.

As performances cirúrgicas de Orlan destroem por completo essa barreira entre real e ficção, já que o espaço utilizado é uma sala cirúrgica, que apesar de decorada e cenografada de acordo com a performance, não perde o seu carácter “operatório” associado a médicos, a bisturis e ao cheiro de desinfectante, e a acção realmente acontece, não é representação ou apresentação de algo, é o escortanhar do corpo e a substituição de certos elementos por outros. No meio de sangue e de entranhas começa o desenrolar da acção, ou o inicio da reincarnação.

Durante muito tempo Orlan assumiu uma série de representações teatrais usando figurinos e máscaras para a ilusão do real. A partir da década de 90, a ilusão deixou de o ser e o seu corpo passou a conter em si essas máscaras, em acções onde o sujeito passa a ser o objecto e o público e o privado se confundem com a expansão dos meios de comunicação.

Muitos artistas fazem estas experiências de se colocarem perante o perigo com a intenção de perturbar quem vê, absorvendo os limites entre a realidade e ficção e entre vida e morte, colocando o espectador não só no meio do naufrágio mas tentando afogá-lo também, para tal utilizando meios que pareçam o mais reais possíveis e de difícil representação13. Ao passarem a transmitir as suas performances em directo, tornou-se possível uma interactividade e uma aproximação maior do espectador.

Para esta artista a arte é só por si uma questão de vida ou de morte e assim em cada operação corre um risco, já que insiste em estar consciente durante todo o processo. As anestesias são dadas ao nível da espinha e com isso corre cada vez mais o risco de ficar paralítica, além das deformações14 que pode sofrer ou até mesmo a morte.

Orlan acha que corre tanto perigo como um piloto de corridas, o risco não está nas suas acções cirúrgicas mas na aceitação das mesmas pela sociedade, que está sempre pronta para inventar inquisições e regras de ética. Teme mais as violências verbais da crítica do que as do corpo, o grande risco é o não poder voltar atrás, mesmo que queira. Assim que termina a sua performance espera-se pelo sarar das cicatrizes e que prepare a produção da próxima intervenção.

Estas acções trazem uma atenção maior por parte dos media do que o normal nas práticas artísticas. Estes acontecimentos mediáticos obrigam o público a reagir, a concordar, a discordar, a tentar ver se o artista realmente consegue cortar o seu próprio corpo, a procurar razões e identificar semelhanças com outros casos; em suma não é só um público que vê. Será um retorno à magia que a arte sempre proporcionou ao espectador?

Para Konstantin Stanislavski a melhor técnica de representação, a mais real possível, seria o recorrer à memória, à recordação de acções passadas, para que as emoções desse momento possam ser utilizadas para se incorporar uma personagem. Mas Orlan tatua não só a sua memória mas também o seu próprio corpo com personagens específicas, componentes da e conectadas com a sua prática artística.

A arte absorve a vida já que deixa de haver o distanciamento ilusório e a morte não é entendida como um fim mas como mais uma metamorfose. Não significará antes a possibilidade de o espectador experimentar arte?

Orlan no contexto da arte contemporânea

Chama a sua arte “Carnal Art” e não “Body Art”, como já referi num capítulo anterior; no entanto não nega influências. A referência de Marcel Duchamp está presente no seu trabalho: através da sua obra começou a perceber que o negócio do belo não é nada mais do que um negócio. Andy Warhol é outra das referências por deixar que na sua arte apareçam os meios com que as realiza, e principalmente Joseph Beuys, no seu papel de shaman cujas feridas representam os males da sociedade como um vazio ainda não perceptível pelos outros. A sua arte absorve também influências de Herman Nitsch e do grupo vienense “Aktionismus”, da década de 60, que espantava os espectadores com imagens reais de rituais de sacrifícios do próprio corpo. Dos artistas desta corrente artística destaca-se Rudolf Schwarzkogler que se fotografou a cortar o seu pénis em fatias, o que lembra algumas das fotos de Orlan durante o seu processo de cura e transição para as novas operações. A grande distinção entre este grupo e a artista em questão residia num fingimento teatral não real, com o espaço como elemento determinante. O espaço de Orlan é uma sala de operações enquanto os espaços desse grupo eram os mais variados; além disso a maior parte dos documentos fotográficos era, quase sempre, encenada.

De momento, identifica o seu trabalho com o de artistas como Sterlac e Hans Haacke. Sterlac apresenta um tipo de arte que lhe agrada por ter declarado o corpo obsoleto e ter substituído uma série de membros para ultrapassar os limites da sua simples carne, propondo a si mesmo objectivos muito ambiciosos sem se afastar do complemento crítico que faz à sociedade. De Hans Haacke interessa mencionar o seu trabalho de pesquisa sobre a lavagem do dinheiro.

Ao contrário do que se poderia pensar, sente-se distante em relação à maioria das obras realizadas com as novas tecnologias. Acha que são só demonstrações técnicas ou da qualidade da definição de imagens; poucas obras têm um verdadeiro conteúdo pessoal e artístico. Apesar de utilizar as novas tecnologias para expansão do corpo, deixa claro que isso nada tem de semelhante às instalações electrónicas e tecnológicas exploradas em todos os festivais ciber.

Além deste nomes, destacam-se ainda Jeffrey Shaw, Daniel Buren, Rebecca Horn, Marina Abramovic, Annie Sprinkle, Guillaume Bijl, Andreas Serrano, Cindy Sherman, Damien Hirsh, Fabrice Hybert, Walter de Maria e Mattthew Barney.

Podemos ainda associá-la também ao movimento da arte informe em que a estrutura deixa de existir e a obra de arte aparece sempre como inacabada, como um contínuo, sem um limite material. Mesmo dentro de um frasquinho, ou algo parecido, deixa sempre adivinhar uma história passada e uma possível história futura, onde não existe um fim específico. Não há necessidade de haver obra, basta apenas haver conceito. Sob este aspecto, Orlan contribui para o movimento da desmaterialização da obra de arte e para o aparecimento de novos paradigmas de intervenção artística ao colocar a arte num local incómodo, não num “site specific” mas em todo lado onde ela estiver, podendo ser observada como um elemento politico, biólogico e de intervenção na sociedade circundante.

Lucros e dinheiro

Já que se trata de uma arte efémera em que a escultura está inserida no corpo da artista, de que maneira se dá a comercialização dos seus trabalhos?

Orlan tem consciência da dificuldade de comercialização das obras de qualquer artista, principalmente quando se trata de um tipo de trabalho como o seu. Sabe também da pouca comercialização dos trabalhos do grupo de Viena, como Gina Pane, que só se tornou interessante quando se soube da iminência da sua morte, e mesmo assim poucas obras dela hoje são compradas. Os coleccionadores não estão interessados em adquirir parte de líquidos do corpo, excepto se estes estiverem associados a uma prática artística muito forte e a um grande jogo de divulgação, como Orlan sabe fazer. Sabe que, como disse Andy Warhol, “arte é negócio” e cada vez mais as peças artísticas são assimiladas a mercadorias comerciais e os artistas não negam um bom preço pelas suas obras, muito menos os herdeiros destes se incomodam com este facto e o mesmo se passa com as galerias.

Como já foi referido, cada performance cirúrgica é registada em vídeo e fotografada, além disso durante essas intervenções a artista faz uma série desenhos com o seu sangue e gordura que depois são comercializados. As entrevistas que dá são pagas a peso de ouro, assim como as conferências e as aparições nos diferentes festivais. Apresenta em exposições, como produto das suas performances, amostras dos líquidos (carne e sangue). Para além do seu trabalho como artista, é docente da Escola de Belas Artes de Dijon.

Um dos seus trabalhos, de momento, consiste na angariação de uma agência de publicidade que a rebaptize com um nome artístico e um logótipo, identificando-se com uma política comercial em que ela é o próprio produto.

Conclusão

Corpo cortado, aberto, mapeado, examinado, violentado, exposto, comercializado, idolatrado… Que corpo é este que nos aparece hoje? Obsoleto? Talvez! Coberto de véus que esconde o que de mais abominável existe? É possivel! Dificilmente olhamos para carne viva, descoberta, mesmo que seja só e apenas um pequeno corte. Como nos relacionarmos com um corpo sem órgãos? Ou como nos relacionarmos com um corpo com órgãos cada vez mais fragilizados?

Qual noiva do monstro de Frankenstein, Orlan deixa para trás as suas encenações teatrais e decide trabalhar directamente na carne, gravar no seu corpo máscaras. Ao contrário da história de Mary Shelley, Orlan é simultaneamente criadora e ser criado.

A história e a cultura mapeou o nosso corpo com regras e leis que moldam o nosso comportamento; a partir do século XI começa a haver uma repugnância com o corpo e as práticas a ele associadas: iniciaram-se as proibições, as punições e as perseguições. Era uma altura em que se morria muito e tal não assustava a população que parecia estar sempre preparada para a chegada da morte. Estavam certos de encontrar outra vida, fosse ela num inferno ou num paraiso, mas ela continuava, não acabava com o material. No século XX a esperança de vida aumentou e ninguém quer morrer, já não se acredita nessa vida como continuum e teme-se pela velhice e pelas consequências que se seguem, por isso é mais do que aceitável que haja este culto do corpo saudável, da juventude e do belo.

Na arte, tudo muda, há muito que se descobriu que o verdadeiro impacto da arte na vida quotidiana não era o mostrar o belo mas o desvendar do feio e das técnicas.

Ao realizar este trabalho, Orlan colocou em cena esse confronto com a morte e com o feio, mostrando olhos inchados, cicatrizes na cara, uma mostruosidade que impressiona: olha-se por momentos mas não mais do que isso; ver mais perturba-nos. A artista sabe disso e faz disso a sua motivação artística. A vida fica aniquilada por este zelo de arte, de ideologias artísticas, políticas e estéticas como um cristo que defende a sua identidade de “filho de Deus” e por ela dá a vida. O importante deste trabalho é que dele se fale.

 


Notas

1 Nietzsche, Friedrich, Assim falava Zaratustra, tradução de Paulo Osório de Carvalho, Lisboa, ed. Relógio d’água, 1998, p. 335.

2 «Cybernetic Organism». Embora se trate de um termo utilizado na ficção cientifica, o seu pai foi um cientista de nome Manfred Clynes.

3 Entende-se por prótese tudo aquilo que é exterior ao ser humano, isto é, o que não lhe pertence organicamente.

4 Stone, Allucquère Rosanne, The war of desire and technology at the close of mechanical age, Cambridge (Mass.)/Londres, MIT Press, 1995.

5 A Biblia, no Novo Testamento, faz a clara distinção entre os frutos do espírito e as obras da carne.

6 Para John Locke o corpo é a primeira propriedade que se tem e todas as outras surgem por produção do corpo.

7 O nome Orlan é inspirado na fibra sintética Orlon.

8 Perna para que te quero, o último livro de Oliver Sacks, fala-nos da experiência pessoal que teve ao cair e partir a perna de tal maneira que, além de uma ruptura de ligamentos, teve um deslocamento do quadricípede. Durante a sua recuperação, o Dr. Sacks recusava a sua própria perna como se não lhe pertencesse, quando a tocava era o mesmo que tocar um bocado de carne sem ligação ao resto do conjunto do corpo.

9 Tendo cada um os seguintes títulos: L’art Charnal, Changement d’identité, Rituel de passage, Ceci est mon corps ceci est mon logiciel, J’ai donné mon corps à l’art, Opération(s) Réussie(s), Corps/status, Identité alterité, Je suis un autre, je suis au plus fort de la confrontation.

10 Em 1957, Andy Warhol tentou sem sucesso a performance plástica.

11 Não se trata de nenhuma variante da body art dos anos 60, antes é precisamente o contrário, já que esta prática não deseja a dor procurando por estes meios a purificação, nem procura resultados finais, mas sim que se tome cada performance por si e que a modificação do corpo se torne tema de debates públicos.

12 Segundo a definição de Carlos Augusto Ribeiro: “na performance art dá-se a indistinção dos pápeis. Assim uma performance pode ser feita 1) por um espectador; 2) com o artista e/ou 3) na ausência do artista de acordo com um protocolo antecipado. Uma performance pode ou não incluir a body art dependendo de o artista assumir ou não a presentação do seu corpo. A fotografia e outros meios audiovisuais possuem geralmente o estatuto de resíduo de um acto artístico que, efectuando-se no estúdio do artista ou em espaços públicos (no caso da performance art), se assemelham a uma espécie de ritual privado e hermético.” («Entre-actos, mutantes fascinantes: díptico com Koons e Orlan», Revista de Comunicação e Linguagens n.º 25/26, Real vs. Virtual, Edições Cosmos, Lisboa, 1999, pág. 383, nota 6).

13 Recorrem geralmente a elementos como: “a obscenidade, nudez frontal, o sangue, os excrementos, a mutilação, o perigo real, a ameaça, a dor verdadeira , a morte possível” (idem, pág. 376).

14 Devido aos vários implantes duas bossas são visíveis nas suas têmporas.


 

 

Bibliografia

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FAM, «Converzazione tra FAM e Orlan»

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Haraway, Donna, «A manifesto for cyborgs: Science, technology and socialist feminism in the 1980s»

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Miranda, José A. Bragança de, «As ligações do corpo», in Metamorfoses do Sentir, Porto, Balleteatro edições.

Nietzsche, Friedrich, Assim falava Zaratustra, tradução de Paulo Osório de Carvalho, Lisboa, ed. Relógio d'água, 1998.

«Orlan»

Orlan, «L'art charnel»

Orlan, «Orlan conference»

Orlan, «Orlan Speaks»

Orlan, «This is my body... this is my software»

Orlan, «Woman with Head... Woman without Head»

Ribeiro, Carlos Augusto, «Entreactos: mutantes fascinantes: Díptico com Koons e Orlan», Revista de Comunicação e Linguagens N.º 25/26 (Real vs. Virtual), Lisboa, ed. Cosmos, Março 1999.

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